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  • 7/26/2019 a Biblioteca ou a Vida?

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    A Biblioteca ou a Vida?

    auto-autorArslio Martins

    Aveiro, de Junho de

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    Nota de entrada.

    Este texto foi escrito, a pedido de Susana Fernandes, para o Boletim da Biblioteca da EscolaSecundria de Jos Estvo e foi publicado no nmero do boletim, no seu ano III, relativo aos

    meses de Dezembro de a Janeiro de .

    Voltei a v-lo hoje quando procurava saber se, nessa biblioteca, havia em depsito o livro "O

    Anjo Ancorado"de Jos Cardoso Pires.

    Tambm pode ser lido emhttp://wp.me/PWWQr-gn

    http://wp.me/PWWQr-gnhttp://wp.me/PWWQr-gn
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    A Biblioteca ou a Vida?

    Um dia de cada vez, mais velho um dia me sinto. Lembro-me vaga-mente de ter vontade de ser mais velho em anos do que era realmente.Tambm tinha a ideia que sabedoria e experincia eram maiores e me-lhores quanto mais velho fosse. E, de certo modo, para mim a vida noera interessante e bem a trocava por nmeros maiores a representar amesma vida. minha volta, todos me diziam que no tinha razo.

    Aceitei passar a viver, acumulando lentamente a sabedoria e a expe-rincia. Lembro-me vagamente de chegar a dar-me por satisfeito comesta lenta acumulao por ver outras pessoas a elogiar este ou aqueleaspecto de coisas que eu dizia ou fazia. De certo modo, devo ter incor-porado na minha sabedoria e tambm na minha experincia, os livrose os filmes que ia vendo e, de tal modo o fazia que passava por minha

    sabedoria e minha experincia o que constava dos livros que lia ou dosfilmes que via. Lembro-me de ter como certo ter feito ou descobertoalgumas coisas que posso no ter feito e muito menos descoberto. Davaporcertoparamimmesmoqueumaboapartedaminhavidaconhecidase tinha forjado no que ouvia, lia ou via dos outros.

    Hoje, duvido dessa razo e lamento o tempo que perdi a ler os livros

    e a ver os filmes dos outros. Porque no guardo memria dos livrosque li nem dos filmes que vi, nem dos meus actos passados, nem dosfactos a que assisti. Para mim, eu sou o livro que estou a escrever ecomeo a pensar que, para os outros, eu tambm sou o livro. O queme tem dado muitos dissabores e complicaes que perturbam a minhavida que... no mais que o livro que estou a escrever.

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    Por ter tomado conscincia de no ter memria de mim, em cada vi-sita biblioteca, procurava escrever uma fatia da minha vida que perma-necesse emcondies deser consultada por mim emqualquermomento.

    Comprei um caderno de folhas que fui preenchendo laboriosamente.Como o tempo podia ser pouco, tinha de ser rpido na construo daminha vida. Esta, no a outra de que no guardara memria.

    De manh, ia para a biblioteca municipal, perdido entre os outros ve-lhos a ler as frescas pelos ttulos dos dirios. E passava a maior parte dastardes numa biblioteca que me diziam ser na escola onde trabalhara a

    maior parte da minha vida. Para no ser interrompido pela amizade cu-riosa das pessoas, que me conheciam no me lembrava de onde, passeia mostrar-me sempre muito ocupado e passei a ir tambm bibliotecada universidade. Bem, para ser franco, eu no ia propriamente s bi-bliotecas. Ia para as salas de leitura e procurava livros que contassemuma histria de vida de algum que, em cada momento, podia ser a

    histria dos anos que me faltavam minha vida escrita. E copiava, prin-cipalmente copiava, excertos de romances tendo o cuidado de mudar osnomes das personagens. Em vez dos nomes dos personagens dos roman-ces, escrevia os nomes de pessoas de uma lista laboriosamente escrita econfirmada pelas pessoas que moravam na casa de que tinha chave eonde me aparecia comida, cama e roupa lavada.

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    Foi assim que eu escrevi milhares de folhas que foram sendo ordena-das como um dirio da minha vida, desde o nascimento at agora. Porme ter sobrado algum tempo, cheguei a substituir alguns anos da mi-

    nha vida por outros, se encontrava algum romance que aumentasse acoerncia do relato que eu ia lendo com regularidade (era a minha vidaque ali estava guardada, que diabo!). Mas tinha sempre pouco tempo,j que o tempo ia passando e eu tinha sempre de acrescentar a vida lidapor cada dia de vida.

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    Uma mulher, de que me lembro de ver desde sempre, embora meesquea das pessoas todos os dias, falou-me do meu caderno e de umoutro acontecimento que l estaria descrito. Fui verificar e l estava o

    assunto de que ela me tinha falado.Ela estava afinal a perguntar-me coisas sobre a minha vida!!! Tinha

    andado a ler o romance da minha vida! No me zanguei, antes pelocontrrio. Na altura at teve muita piada porque ela corrigia a pontua-o e at fazia comentrios engraados sobre a forma como aparecia nomeu caderno este ou aquele acontecimento, esta ou aquela pessoa.

    A confuso s comeou quando ela deu a ler o caderno a outras pes-soas da famlia e houve algum que se lembrou de dizer que aquilo eraafinal o dirio da minha vida e fez notar que todos os nomes eram reais.Algum estava muito zangado com a forma como era tratado nos meuscadernos.

    E foi, a partir da, que a minha vida se complicou muito. Ainda pro-curei defender a minha vida tal como ela estava escrita, mas isso saumentou a zaragata minha volta.

    A partir de certa altura, aquela mulher que era referida por mulher doArslio (que sou eu) deixoude falar comigo. No foi mau. Issopermitiu-me copiar de alguns romances os ltimos meses da minha vida.

    Agora parece-me mesmo que toda a gente j leu o meu livro ou partedele.

    J vi fotocpias soltas de algumas pginas do meu dirio. fcilidentificar-me pela letra.

    E tenho reparado que os mais velhos, que antes falavam comigo, vodeixando de me falar.

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    Uma rapariga mais nova que muitas vezes aparece a ajudar-me confir-mou o que eu suspeitava: as pessoas mais velhas que comigo se cruzamconstam da minha lista e no tm gostado da forma como so tratadas

    no livro.Eu disse rapariga: Ningum lhes pediu que lessem a minha vida. A

    minha vida minha e eu no dei autorizao para tirarem cpias dosmeus cadernos!

    Ela riu-se na minha cara, enquanto me respondia:

    "Oh av, deixa l. O teu romance j um best-seller e consideradoo livro mais intrigante que algum dia foi escrito. mesmo estudadocomo um caso original de escrita".

    No sei porqu, mas ocorreu-me chamar-lhe Raquel e vi que ela davapelo nome. Ento, contei-lhe como que fazia e pedi-lhe que meacom-panhasse o trabalho de adaptao pelas bibliotecas durante uns dias. Ela

    assim fez.

    Quando vi que ela tinha aprendido a completar a minha vida, despedi-medelaedemim. PensoqueelasabequandovaiescreverapalavraFIM.S no a mesma letra. Mas isso no importante. O importante parauma vida escrita o mtodo, a tcnica, o tempo e a biblioteca.

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    Na minha aldeia diziam-me que o gramo, a felga, a gorga e a erva de conta eram ervas daninhas.

    E piores que essas havia as ervas ruins. Sempre me pareceu que era da espcie das ervas ruins.Arslio Martins,