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A BUSCA DA AUTONOMIA COGNITIVA: AUTORREGULAR O APRENDER EM SALAS DO ENSINO FUNDAMENTAL Jussara Cristina Barboza Tortella Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC-Campinas Resumo Neste trabalho, ao analisar as produções de alunos do 5º ano do ensino fundamental, participantes do projeto “Aprender a aprender: As Travessuras do Amarelo”, discutimos mudanças de procedimentos e atitudes à luz das relações entre os conceitos de equilibração a partir do modelo teórico piagetiano e autorregulação preconizados pelo modelo teórico sociocognitivo de Zimmerman. Participaram da pesquisa 90 alunos do 5º ano do Ensino Fundamental de um município da região metropolitana de Campinas. Para a coleta de dados foram utilizados dois instrumentos, o uso do diário sobre os procedimentos de estudos preenchido em três momentos e a narrativa sobre determinados trechos da história “As travessuras do Amarelo”. Como resultados evidenciamos que para algumas crianças não notamos mudanças nos argumentos quando consideramos os três registros dos diários. No entanto, alguns alunos demonstraram pensamentos diferenciados no preenchimento desse instrumento. As narrativas denotam uma nítida diferença entre as atitudes dos alunos antes e após a participação no projeto. Nota-se pelos argumentos apresentados, tanto na explicação do motivo pelo qual os alunos decidiram iniciar os estudos, como suas percepções antes e após o projeto, mudanças de atitudes frente às atividades de estudo. Inferimos que houve, para alguns alunos, um processo de tomada de consciência e de equilibração majorante. Este trabalho está composto de três partes, sendo que a primeira destaca as contribuições teóricas sobre o processo de equilibração, tomada de consciência e autorregulação. A segunda apresenta a pesquisa que retrata as representações de alunos sobre as aprendizagens a partir da participação no referido projeto que utiliza a literatura infantil para construção de estratégias de aprendizagem. Na última parte, trazemos algumas considerações sobre a contribuição dos estudos para a realidade escolar. Palavras-chave: Autorregulação. Equilibração. Ensino Fundamental. Introdução Escola. Conviver nesse espaço como gestor, docente ou aluno nos remete a compreender as variáveis que interferem no processo de aprendizagem de conceitos e atitudes. O sucesso (ou não) do trabalho docente e dos alunos depende de fatores tais como a organização da escola, o currículo, um ambiente familiar satisfatório, um ambiente escolar propício à aprendizagem, a avaliação da aprendizagem, a organização do próprio aluno para a aprendizagem dos diferentes conteúdos. Particularmente, para o presente artigo, nos interessa esse último tópico. De forma geral, documentos oficiais apontam que a criança tem o direito de aprender os diversos conteúdos em situações de escolarização mediadas pela Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola EdUECE- Livro 1 00093

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A BUSCA DA AUTONOMIA COGNITIVA: AUTORREGULAR O

APRENDER EM SALAS DO ENSINO FUNDAMENTAL

Jussara Cristina Barboza Tortella

Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC-Campinas

Resumo

Neste trabalho, ao analisar as produções de alunos do 5º ano do ensino fundamental,

participantes do projeto “Aprender a aprender: As Travessuras do Amarelo”, discutimos

mudanças de procedimentos e atitudes à luz das relações entre os conceitos de

equilibração a partir do modelo teórico piagetiano e autorregulação preconizados pelo

modelo teórico sociocognitivo de Zimmerman. Participaram da pesquisa 90 alunos do

5º ano do Ensino Fundamental de um município da região metropolitana de Campinas.

Para a coleta de dados foram utilizados dois instrumentos, o uso do diário sobre os

procedimentos de estudos preenchido em três momentos e a narrativa sobre

determinados trechos da história “As travessuras do Amarelo”. Como resultados

evidenciamos que para algumas crianças não notamos mudanças nos argumentos

quando consideramos os três registros dos diários. No entanto, alguns alunos

demonstraram pensamentos diferenciados no preenchimento desse instrumento. As

narrativas denotam uma nítida diferença entre as atitudes dos alunos antes e após a

participação no projeto. Nota-se pelos argumentos apresentados, tanto na explicação do

motivo pelo qual os alunos decidiram iniciar os estudos, como suas percepções antes e

após o projeto, mudanças de atitudes frente às atividades de estudo. Inferimos que

houve, para alguns alunos, um processo de tomada de consciência e de equilibração

majorante. Este trabalho está composto de três partes, sendo que a primeira destaca as

contribuições teóricas sobre o processo de equilibração, tomada de consciência e

autorregulação. A segunda apresenta a pesquisa que retrata as representações de alunos

sobre as aprendizagens a partir da participação no referido projeto que utiliza a literatura

infantil para construção de estratégias de aprendizagem. Na última parte, trazemos

algumas considerações sobre a contribuição dos estudos para a realidade escolar.

Palavras-chave: Autorregulação. Equilibração. Ensino Fundamental.

Introdução

Escola. Conviver nesse espaço como gestor, docente ou aluno nos remete a

compreender as variáveis que interferem no processo de aprendizagem de conceitos e

atitudes. O sucesso (ou não) do trabalho docente e dos alunos depende de fatores tais

como a organização da escola, o currículo, um ambiente familiar satisfatório, um

ambiente escolar propício à aprendizagem, a avaliação da aprendizagem, a organização

do próprio aluno para a aprendizagem dos diferentes conteúdos. Particularmente, para o

presente artigo, nos interessa esse último tópico.

De forma geral, documentos oficiais apontam que a criança tem o direito de

aprender os diversos conteúdos em situações de escolarização mediadas pela

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intervenção dos professores e, de forma específica, apontam para as situações mais

autônomas a serem fortalecidas pelos profissionais da escola e alunos (BRASÍLIA,

2012; CNE, 2010).

Embora os esforços dos docentes estejam voltados para o sucesso escolar, os

resultados das avaliações externas, tais como a Prova Brasil e o SARESP denotam a

dificuldade na interpretação dos textos e de raciocínio lógico matemático por parte do

aluno. Além de avaliar as competências cognitivas, o SARESP utiliza também outro

instrumento (Questionário socioeconômico) que faz um levantamento, dentre muitos

aspectos, das estratégias de aprendizagem utilizadas pelos alunos, por exemplo, se o

professor o incentiva a fazer as tarefas; se há abertura para esclarecimento de possíveis

dúvidas; se o aluno gosta das atividades de sala de aula; se os pais ou irmãos ajudam nas

tarefas de casa ou se o aluno as realiza sozinho (SÃO PAULO, 2012).

Os resultados apresentados em relatório oficial apontam que, para os alunos, há

incentivo por parte dos docentes para as atividades escolares, com novas explicações,

ajuda e controle adequado do tempo das atividades. Quando analisamos as questões

relacionadas às tarefas e estudos, menos alunos apontam esse acompanhamento, tanto

por parte dos professores quanto dos familiares. Quando questionados sobre a lição de

casa, os alunos apontam que nem sempre se comprometem, revelando que esta não é

uma prática frequente para quase 30% dos alunos (SÃO PAULO, 2012). A tarefa

escolar pode ser considerada como uma atividade que requer certa autonomia por parte

dos alunos. Nota-se, pelos resultados, que nem todos quando solicitados a realizarem

atividades de forma mais independente, mais autônoma, as realizam.

Para explicar como os alunos chegam a se posicionar de forma mais autônoma

frente aos trabalhos escolares, utilizaremos o modelo construtivo no qual ao professor

cabe a organização das interações sociais, a organização didática pedagógica que

permite ao aluno interagir com os diversos objetos de aprendizagem e, ao aluno, o papel

ativo na construção de novos saberes; portanto, um modelo relacional. Outro aspecto a

ser considerado são as contribuições que a teoria da equilibração majorante, numa

abordagem construtivista, permite aos professores compreender e tomar consciência dos

“elementos epistemológicos em jogo e das restrições psicológicas inerentes à

construção dos conhecimentos” (CRAHAY, 1999 apud HADJI, 2011, p. 7).

Concordamos com Hadji (2011) sobre a necessidade da construção de novos

conhecimentos no campo das práticas pedagógicas sobre como organizar situações

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didáticas nas quais os alunos realmente sejam os atores da construção de suas

aprendizagens e não meros expectadores.

A opção pela teoria piagetiana se deu ao fato de ela destacar a correspondência

entre os aspectos cognitivos, afetivos e sociais em qualquer conduta e no caso nos

interessa as condutas que os alunos adotam na realização das atividades escolares.

Destacamos nesse estudo as explicações da teoria de Jean Piaget sobre o processo de

equilibração, conceito que consideramos fundamental para o entendimento tanto do

aspecto intelectual como do afetivo. Recorremos, também, as estudos contemporâneos

sobre autorregulação, apoiados na teoria de Zimermnan.

1. Contribuições Teóricas: o processo de equilibração, tomada de consciência e

autorregulação

As questões sobre aprendizagem são fonte de preocupação e estudo de docentes

e pesquisadores da área da educação. Compreender os procedimentos e estratégias que

os alunos adotam conscientemente para resolver as tarefas escolares e realizá-las com

êxito é uma busca constante dos profissionais da escola. Aliado a essa compreensão

temos outros fatores que interferem no processo geral do ensino – a escolha das

atividades e os procedimentos didáticos adotados pelos docentes. Os estudos de Piaget

sobre a equilibração e tomada de consciência e os de Zimermman sobre autorregulação

nos ajudam a compreender os fatores ora mencionados.

Piaget (1976, p.10) parte do pressuposto de que o conhecimento não advém

nem da experiência, nem de um conhecimento inato, mas resulta de uma interação entre

sujeito e objeto de conhecimento, proveniente de “construções sucessivas com

elaborações constantes de estruturas novas”. Conhecer algo, “[...] não é somente

explicar; e não é somente viver: conhecer é algo que se dá a partir da vivência (ou seja,

da ação sobre o objeto do conhecimento) para que este objeto seja imerso em um

sistema de relações" (RAMOZZI-CHIAROTINO, 1988, p.3). O conceito de estrutura

pressupõe um conjunto de elementos relacionados e três características sempre

presentes: totalidade, transformação e autorregulação.

Segundo o autor, quatro fatores básicos regulam o desenvolvimento intelectual:

a maturação, a experiência, a transmissão social e a equilibração.

Outro fator interveniente na construção do conhecimento é a afetividade que é vista, no

contexto da teoria piagetiana, como aquela que move, que desencadeia o processo de

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equilibração a partir do qual as estruturas se constroem. Partindo-se dessa conceituação,

o afeto tanto pode retardar como acelerar essa construção. Visto de outra forma, quando

o sujeito está afetivamente envolvido ou tem interesse por um dado objeto do

conhecimento, há uma aceleração e o atraso irá ocorrer quando as questões afetivas

forem obstáculos para o desenvolvimento intelectual.

A relação entre afeto e cognição se destaca na explicação dos conceitos centrais

da teoria piagetiana, como os estágios, a teoria da equilibração, o processo de tomada de

consciência, dentre outros. O autor descreve em suas obras quatro estágios, integrativos,

diferenciados e que se caracterizam por estruturas de conjunto, obedecendo a uma

ordem sequencial necessária.

Existem mecanismos funcionais constantes e comuns em todos os estágios. O

sujeito busca sempre explicar algo, resolver problemas quer em situações cotidianas ou

escolares; esta ação, quer seja um movimento, quer seja um sentimento ou um

pensamento, é desencadeada por uma necessidade. Embora esse funcionamento seja

comum a todos os estágios, ele depende também das estruturas que o desencadeiam.

Piaget (1971, p.15) explica: “Os interesses de uma criança dependem, portanto,

a cada momento do conjunto de suas noções adquiridas e de suas disposições afetivas,

já que estas tendem a completá-los em sentido de melhor equilíbrio”.

Para explicar o processo de construção dos conceitos, sejam eles físicos, lógico-

matemáticos ou sociais, Piaget (1976, p.10) utiliza o termo equilibração: “É por isso que

falaremos de equilibração enquanto processo e não somente de equilíbrios, e sobretudo

de equilibrações ‘majorantes’ que corrigem e completam as formas precedentes de

equilíbrios”. Nesse sentido, o equilíbrio seria o produto final, enquanto a equilibração

seria o processo para se chegar a um estado de equilíbrio.

Esse processo de equilibração, que vai se diferenciar nos diversos níveis,

depende, para sua própria manutenção, de desequilíbrios e reequilibrações e os mais

fundamentais para o desenvolvimento são os que geram “um melhor equilíbrio, o que

nos fará falar de “equilibrações majorantes” e o que levantará a questão da auto

organização (PIAGET, 1976, p.11). Decorre dessa conceituação um processo dialético,

ou seja, o organismo ao mesmo tempo em que tende a se conservar, se modifica. A

partir desses postulados, pode-se explicar como ocorre o processo de equilibração.

Após ter esclarecido o que são equilibrações majorantes, passemos agora a outro

conceito relevante para o entendimento das relações afetivas e cognitivas: a tomada de

consciência. Para Piaget (1983), o que caracteriza a afetividade são suas composições

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energéticas e o que caracteriza o aspecto cognitivo são as estruturas. Em ambos os casos

existem processos conscientes e inconscientes. Nos processos afetivos, os resultados são

conscientes visto que se traduzem por sentimentos que são manifestados, mas os

mecanismos deste processo são inconscientes. Da mesma forma, nos processos

cognitivos, o resultado da ação é consciente e os mecanismos são quase que totalmente

inconscientes, ou seja, o sujeito não tem consciência do funcionamento de suas

estruturas.

Piaget (1983) ainda estabelece uma relação entre a tomada de consciência e o

“recalque” cognitivo. Estudando-se o processo de tomada de consciência, percebe-se

que a criança desde muito cedo sabe executar várias ações com êxito; mas a tomada de

consciência de uma ação, principalmente a que apresenta conceitos contraditórios, é

geralmente tardia. O recalque afetivo ocorre quando um sentimento parece estar em

contradição com sentimentos ou tendências de posição superior, sendo eliminados por

uma repressão consciente ou um recalque inconsciente, sendo, pois, comparável ao

processo de tomada de consciência acima mencionado. Quando uma ação é eficaz não

há necessidade de uma tomada de consciência, mas quando uma ação requer regulagens

ativas, “o que supõe escolhas intencionais entre duas ou várias possibilidades, há

tomada de consciência em função dessas necessidades mesmas” (PIAGET, 1983,

p.231).

Dependendo do grau de contradição de uma ação, a tomada de consciência pode

ser rápida ou depender de construções: “ela é primeiramente deformante e lacunar,

depois se completa pouco a pouco graças a novos sistemas conceituais permitindo

ultrapassar contradições por integração dos dados nesses novos sistemas” (PIAGET,

1983, p.231).

A compreensão do processo de tomada de consciência nos conduz a perceber

que tal constructo pode explicar a importância do aluno conhecer seu próprio processo

de aprendizagem, o momento em que faz o planejamento para a realização das

atividades escolares, verificar quais as condições para a execução da tarefa, tais como

pedir ajuda ou organizar o ambiente para melhor resolver a tarefa proposta.

O conceito de autorregulação parte desse mesmo pressuposto e “refere-se aos

processos que envolvem a activação e a manutenção das cognições, comportamentos, e

afectos dos alunos, planeados e ciclicamente adaptados para a obtenção dos seus

objectivos escolares (SCHUNK, 1989a, 1994; ZIMMERMAN, 1989, 2000a, 2002 apud

SOARES, 2007). Rosário (2004, p. 37) define a autorregulação da aprendizagem como:

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“[…] um processo activo no qual os sujeitos estabelecem os objectivos que norteiam a

sua aprendizagem tentando monitorizar, regular e controlar as suas cognições,

motivação e comportamentos com o intuito de os alcançar”. O autor descreve, pautado

nos estudos de Zimmerman, um modelo cíclico denominado de Planejamento,

Execução e Avaliação (PLEA).

Segundo Soares (2007, p. 6), os estudos de Zimmermann indicam que o sucesso

escolar, relacionado com o processo da autorregulação da aprendizagem, envolve o

controle e a escolha de aspectos fundamentais da aprendizagem, tais como estabelecer

metas, planejar, organizar o tempo e ambiente e “a utilização eficiente dos recursos

disponíveis, a monitorização das realizações, a antecipação dos resultados das suas

acções escolares e a procura de ajuda sempre que necessário”. Para a autora, o sucesso

está ainda atrelado a crenças positivas que o aluno apresenta sobre sua aprendizagem e a

possibilidade de realizar atividades com êxito.

Muitas dessas estratégias não são efetivamente utilizadas pelos alunos pelo

desconhecimento e cabe ao professor promover ações educativas intencionais com o

objetivo da utilização dessas ferramentas pelos alunos, que acabam sendo úteis em

varias áreas do conhecimento. No entanto, não basta o conhecimento das estratégias,

mas são de extrema importância a vivência e utilização das mesmas em diferentes

atividades escolares.

As estratégias de aprendizagem estão relacionadas aos conteúdos aos quais elas

se inserem. Rosário, Núñez e González-Pienda (2007) descrevem três tipos de

conhecimento: o conhecimento declarativo está relacionado com o saber algo e a

tomada de consciência das etapas de sua construção (planejar, executar e avaliar). O

conhecimento procedimental se refere ao saber como fazer algo e o condicional à

capacidade de perceber quando e como utilizar determinada estratégia.

Os autores entendem que para que o processo de autorregulação se efetive é

necessário um contexto educacional em que o educador faça planejamentos intencionais

sobre a sua atuação, que parte de uma estrutura que contempla diferentes momentos do

ensino: 1. Ensino direto; 2. Modelação; 3. Prática guiada; 4. Interiorização; 5. Prática

autônoma.

Assim, a construção da autonomia se dá de forma progressiva e o papel do

professor é fundamental. Segundo Rosário (2004, p. 44) o apoio do docente “deve ser

feito de forma escalonada e transitar de uma mediação mais directiva e intensa, numa

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fase inicial, para formas mais autocontroladas e auto-reguladas, até a supressão do

apoio.

Segundo Uchoa (2000, p. 6) nas atividades escolares intervém “simultaneamente

o processo de interiorização e outro de exteriorização das atividades de regulação”.

Quando os professores fazem questionamentos aos alunos, solicitam que revejam

determinada parte da tarefa proposta, os alunos não agem passivamente a essas

intervenções. Aos poucos vão construindo estratégias de autocorreção, elaborando bons

questionamentos ou buscando novas informações.

Os conceitos ora apontados – equilibração, tomada de consciência e

autorregulação – nos auxiliaram na compreensão das produções de alunos e professores

do 5º ano do ensino fundamental participantes do projeto “Aprender a aprender: As

Travessuras do Amarelo”. Assim, discutimos mudanças de procedimentos e atitudes em

situações de aprendizagem não no sentido de apreciação de resultados, mas com o

intuito de descrever o processo.

2. Delineando o campo metodológico

O objetivo dessa pesquisa foi analisar as produções de alunos e professores do 5º

ano do ensino fundamental participantes do projeto “Aprender a aprender: As

Travessuras do Amarelo”. Trata-se de uma pesquisa descritiva de cunho qualitativo.

Foram participantes 90 alunos do 5º ano do Ensino Fundamental de três escolas de

tempo integral de uma cidade da região metropolitana de Campinas-SP.

O referido projeto utiliza o livro infantil denominado “As Travessuras do

Amarelo” como uma ferramenta estratégica para trabalhar estratégias de autorregulação

da aprendizagem. Segundo Rosário, Nuñez e Pienda (2007) autores da história, a

narrativa foi escrita com o objetivo de promover e trabalhar estratégias de

autorregulação em crianças do ensino fundamental, possibilitando que elas vivenciem

situações nas quais possam construir determinadas estratégias que possibilitem uma

ação mais autônoma no que diz respeito à organização de suas tarefas, estudos e ações

cotidianas.

A história apresenta vários personagens que vivem em um bosque e tem como

foco central a busca do personagem Amarelo, uma das cores do arco-íris, que sumiu. Na

procura pelo amigo, as cores encontram vários desafios que, para superarem, contam

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com a ajuda dos outros personagens. É nesse contexto que os autores possibilitam que

as crianças conheçam e vivenciem algumas das principais estratégias de autorregulação.

O projeto prevê um curso para professores e equipe pedagógica com a utilização

do material denominado Auto-Regulação em crianças Sub-10- Projecto Sarilhos do

Amarelo (Rosário, Nuñez e Pienda, 2007) que tem por objetivo discutir o marco teórico

da autorregulação e análise da narrativa infantil a ser trabalhada com os alunos;

acompanhamento do desenvolvimento do projeto em sala de aula e encontro com os

pais. Além desses procedimentos a presente pesquisa utilizou como instrumentos de

coleta de dado o uso do diário sobre os procedimentos de estudos e a narrativa sobre

determinados trechos da história, material preenchido pelos alunos.

Após as devidas autorizações da Secretaria da Educação e responsáveis pelos

alunos acompanhamos as formações dos professores, principalmente as que focavam a

utilização dos diários, que após a revisão das professoras foi organizado em dois

tópicos: questões nas quais as crianças completavam com registros de como estudavam

em casa e no outro na escola. Para as narrativas dos trechos da história, as crianças

precisavam destacar o que haviam compreendido daquele trecho e em segundo

momento se já haviam vivenciado uma situação parecida com aquela.

Foram agendadas as retiradas dos diários e narrativas com a orientadora

pedagógica responsável pelas escolas em dias específicos. Em posse dos registros dos

alunos selecionamos três de cada aluno sendo um no início da utilização dos diários, o

segundo após um mês e o último ao final do projeto. Os mesmos foram submetidos à

técnica de análise de conteúdo (Bardin, 2011), com o intuito de descrever e interpretar

os registros dos alunos.

3. O Projeto Aprender a aprender: a busca da autonomia cognitiva

Nesta seção apresentamos as respostas dos alunos e a análise qualitativa dos

dados. Uma das questões para o preenchimento do diário tinha por objetivo

compreender os motivos pelos quais as crianças decidem iniciar seus estudos em casa

“decidi começar a estudar porque...”. Após a análise, as escritas dos alunos foram

organizadas em cinco seguintes categorias. O nome registrado dos alunos é fictício.

Categoria 1 - Motivos extrínsecos. O aluno Felipe assim argumenta: Pois minha mãe

disse que posso ficar bom na prova. Já a aluna Silvana destaca: Para ficar inteligente.

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Categoria 2: Bons resultados. O aluno José salienta que começou a estudar para

melhorar a nota e Pedro para tirar boas notas.

Categoria 3: Melhoria do aprendizado. Julia disse: Preciso melhorar na lição e nas

provas. Henrique escreve: Preciso melhorar no estudo, leitura e provas.

Categoria 4: Motivação e implicação. Aprender coisas novas foi o argumento de Julio

e Mariana começou a estudar para aprender e ganhar nota 10.

Categoria 5: Prazer do estudo. Ana afirma que iniciou o estudo porque: Gosto de

aprender.

Para algumas crianças não notamos mudanças nos argumentos quando

consideramos os três registros. O aluno Marcelo nas três coletas respondeu que decidiu

começar a estudar porque tem prova demonstrando argumentos de obrigatoriedade, para

obter nota favorável na avaliação. No entanto, alguns alunos demonstraram

pensamentos diferenciados no preenchimento dos diários. Como exemplo, a aluna

Laura que na primeira coleta respondeu que começou a estudar para ter boas notas, na

segunda para passar de ano e na terceira porque quer aprender, demonstrando uma

passagem da obrigatoriedade para a motivação pelo estudo.

Passemos agora para a análise das narrativas dos aprendizados dos trechos da

história. Após várias atividades de reflexão sobre a narrativa, como última proposta foi

solicitado à criança que escrevessem sobre sua rotina de estudo: Antes do projeto quais

eram as suas atitudes quando não conseguia aprender? E hoje o que você faz para

conseguir aprender e quais atitudes você toma quando surge alguma dificuldade?

Da mesma forma que na análise dos diários, as respostas das crianças foram

agrupadas por conteúdos similares. Destacamos as categorias (C) e um quadro que

demonstra as mudanças de conduta. Para antes da realização do projeto as respostas

foram organizadas em 4 categorias (Categoria 1: atitudes distratoras; Categoria 2:

Desistência; Categoria 3: Acomodação; Categoria 4: Ausência de Planejamento;

Categoria 5: Ausência de estudo) e no término do projeto outras 4 categorias (Categoria

6: PLEA; Categoria 7: Apoio social/Pedir ajuda; Categoria 8: Mudança

comportamental).

Quadro 1 – Atitudes antes e após o projeto

O quadro nos revela dados interessantes. Há uma nítida diferença entre as

atitudes dos alunos antes e após a participação no projeto “As travessuras do Amarelo”.

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Entendemos que a oportunidade de pensar sobre sua própria aprendizagem possibilitou

que os alunos pudessem aprender algumas estratégias importantes para o sucesso

escolar: pensar antes de realizar as atividades propostas, selecionando materiais,

realizando mentalmente ou com registro escrito um plano para a execução da atividade;

monitorar a realização da própria atividade ou do grupo, antecipando possíveis

problemas ou os resolvendo de forma eficiente. Foram capazes ainda de avaliar seu

próprio trabalho e utilizar a estratégia de pedir ajuda quando necessário.

Nota-se pelos argumentos apresentados, tanto na explicação do motivo pelo qual

os alunos decidiram iniciar os estudos, como suas percepções antes e após o projeto,

mudanças de atitudes frente às atividades de estudo. Inferimos que houve, para alguns

alunos, um processo de tomada de consciência e de equilibração majorante. Embora

sejam processos inconscientes, foi possível verificar por meio do pensar sobre sua

própria aprendizagem expresso na fala, o que Piaget (1976) denomina de um melhor

equilíbrio, provindo de desequilíbrios e reequilibrações constantes.

O docente teve um papel fundamental nessas nítidas mudanças de

comportamento permitindo que os alunos pudessem, durante a realização do projeto,

pensar sobre suas próprias aprendizagens, conhecer e utilizar estratégias

autorregulatórias em diferentes atividades escolares, em face a uma aprendizagem

autônoma das crianças.

Algumas considerações

O acompanhamento do desenvolvimento do projeto “Aprender a aprender: As

Travessuras do Amarelo” nos permitiu revisitar os conceitos de equilibração e tomada

de consciência que descrevem um aluno ativo, que busca novas compreensões a partir

do contato com o mundo que o rodeia, reconhecendo os conflitos e perturbações, na

busca de melhores explicações, de superações utilizando formas mais aperfeiçoadas,

“majorantes” (BRENELLI, 1996) A busca pela autonomia cognitiva se fez presente

nesses processos. A escola vem como reconhecedora desse sujeito aprendente, que tem

por função principal a organização de um espaço rico em situações de aprendizagem

(MACEDO, 2005).

Para uma mudança na realidade apontada no início do texto, em que boa parte

dos alunos não se comprometem com as tarefas escolares aliado a nossa experiência na

área educacional em que recebemos constantes queixas que professores apresentam

sobre a falta de estudo por parte dos alunos, notamos a necessidade de redimensionar

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dois papéis importantes nesse processo. O primeiro, o papel do aluno que precisa cada

vez mais tomar consciência da responsabilidade frente aos seus próprios estudos, de

tomar consciência quais as melhores estratégias é preciso ter para obter melhores

resultados escolares. O segundo, o papel do docente nesse processo, pois assim como o

aluno, ele não pode ser um mero expectador e seu papel não se restringe a transmitir o

conhecimento culturalmente construído. Entendemos que, ao mesmo tempo em que

transmite conhecimento, necessita realizar intervenções que permitam a conscientização

do processo autorregulatório da aprendizagem dos alunos e nas interações sociais, no

desenvolvimento do currículo a partir de uma perspectiva formativa.

Referências

BRASÍLIA. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Elementos

conceituais e metodológicos para definição dos direitos de aprendizagem e

desenvolvimento do ciclo de alfabetização (1º, 2º e 3º anos) do ensino fundamental,

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BRENELLI, R. P. O jogo como espaço para pensar: a construção de noções lógicas

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MACEDO, L. de. Ensaios pedagógicos: Como construir uma escola para todos? Porto

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SOARES, S. F. dos S. M. Auto-regulação da tomada de apontamentos no Ensino

Básico, (Doutorado em educação). Universidade do Minho, 2007.

Quadro 1 – Condutas antes e após o projeto

Nome Antes do projeto C Após o projeto C

Alex Eu fazia as coisas sem

pensar e só fazia bagunça. 1 Eu faço o PLEA, penso e consigo. 6

Caio Eu desistia. 2 Hoje quando não consigo aprender eu peço

ajuda para um colega ou para a professora e

tento me esforçar para aprender.

7

Bia Eu sempre desistia. 2 Eu sei que errando é que se aprende e estou usando o PLEA nas tarefas escolares.

6

Carol Quando eu não conseguia

aprender eu ficava quieta e tentava ver o livro dos

outros.

3 Eu procuro ajuda e não tenho medo, porque

os amigos servem para isso. 7

Luana Eu achava que quando

não estava conseguindo fazer uma atividade eu

podia deixar sem fazer.

Antes eu não dava opiniões, só brincava

durante a aula, quase não

dava tempo de fazer as

lições, pois eu ficava muito distraída.

1

Eu penso antes de agir, não faço tudo

correndo, presto atenção nas lições e em tudo que está à minha volta. Agora eu não brinco

mais na explicação da professora e dou

opinião. Eu mudei muito com esse projeto, a

professora ficou super impressionada. Hoje

eu não faço mais bagunça na sala de aula,

pois com a professora aprendi que no futuro quem vai sair prejudicada sou eu.

8

Bete Eu não planejava nada,

não entendia e quando ia avaliar se não fosse bom

eu nem ligava.

4 Agora eu faço exatamente o PLEA, planejar,

executar e avaliar. Consigo entender, e na hora de avaliar, tento fazer as coisas ainda

melhor.

6

Pedro Eu não estudava, por isso

tinha bastante dificuldade em algumas coisas.

5

Já hoje estudo, quando tem uma matéria que

não entendo eu pergunto para a professora. 7

Fonte: dados da pesquisa

Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola

EdUECE- Livro 100104