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A caça ao gorila por forasteiros e nativos na África equatorial

(1847-1902)

Sílvio Marcus de Souza Correa Universidade Federal de Santa Catarina

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Introdução

Até meados do século XIX, poucos naturalistas tinham realizado expedições pela África

equatorial. Maior era o número de exploradores com pretensões de naturalistas. Paul Belloni du

Chaillu foi um desses exploradores que praticou a caça para fins científicos. Sua maior proeza foi

ter sido o primeiro “branco” a caçar gorilas nas selvas africanas. Outros exploradores tentaram

repetir seu feito ou mesmo ir além, como o inglês Richard Francis Burton, ao tentar capturar um

gorila vivo para exibir em Londres.

Além de animais empalhados ou de esqueletos para museus de história natural ou para coleções

de particulares, havia uma demanda por animais vivos, notadamente para jardins zoológicos da

Europa e dos EUA. A pesquisa científica e a curiosidade popular em torno do gorila em meados

do século XIX foram coetâneas às ideias evolucionistas de Charles Darwin e Alfred Russel

Wallace. Com base nos relatos sobre a caça ao gorila e sobre o interesse científico pelos

antropoides africanos, este trabalho demonstra o quanto algumas teorias científicas dependeram

dos caçadores forasteiros que, por sua vez, dependeram dos caçadores nativos.

O interesse científico pelos grandes símios antes do evolucionismo

Desde o século XV se estabeleceu um comércio transatlântico de animais exóticos. Entre os

prediletos estavam os monos. Os macacos eram capturados, geralmente, por caçadores nativos na

África, na Ásia e no Novo Mundo. No entanto, alguns fatores relacionados à dieta alimentar, ao

comportamento, a zoonoses e problemas de adaptação ao clima europeu abreviavam a

longevidade dos macacos no hemisfério norte, especialmente daqueles primatas das florestas

tropicais.

Havia também um interesse científico pelos macacos, notadamente pelos chimpanzés,

orangotangos e gibões. Desde a primeira edição do Systema Naturæ (1735), Carl Linnæus tratou

da semelhança entre o homem e alguns símios classificados na categoria “antropomorfa”. Em

edições posteriores, o naturalista sueco adotou a categoria primata, insistindo na semelhança

anatômica. Tal semelhança intrigava outros naturalistas. Edward Tyson, por exemplo, escreveu

um livro sobre a semelhança dos grandes símios com o homem. Juntamente com uma síntese

sobre o assunto desde alguns textos de Aristóteles, Plínio e outros pensadores da Antiguidade que

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trataram de monos, sátiros e trogloditas até relatos de viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII,

Tyson apresentou seus resultados sobre a morfologia e a anatomia de macacos que ele pôde

observar em Londres. Também naturalistas como Buffon e Daubenton puderam escrever sobre os

grandes símios em seus compêndios de história natural sem sair de Paris. Em Edimburgo, Lord

Mondobbo empreendeu estudos de anatomia comparada entre homem e os grandes símios a fim

de entender a evolução da linguagem.

Não restam dúvidas que as histórias fantásticas sobre “homens-macacos” tiveram relação com os

grandes símios, representados, desde a Antiguidade, pelas figuras de sátiros ou trogloditas. Mas a

semelhança entre homens e macacos fomentava novos estudos de anatomia comparada. O famoso

anatomista francês Georges Cuvier fez suas próprias comparações entre homens e macacos. Sua

divisão da humanidade em três raças ainda permitia estudos aproximativos entre negros e

macacos. Escusado lembrar as considerações de Cuvier com base na dissecação do corpo de

Sarah Baartman e nas quais características sexuais da “Vênus Hotentote” foram comparadas com

as de fêmeas de babuínos.

Da última geração pré-evolucionista, o “Cuvier britânico” Richard Owen também fez estudos de

anatomia comparada entre homens e macacos. Porém, a maioria dos primatas ainda permanecia

incógnita dos naturalistas em meados do século XIX. O número de primatas classificados

aumentaria com as expedições científicas mundo afora, principalmente pela América do Sul,

África e Ásia. Em relação àqueles cujo habitat natural era o interior da África, muitos foram

somente classificados cientificamente a partir da segunda metade do século XIX. O gorila foi um

deles.

A descoberta do gorila no meio científico

Em meados do século XIX, missionários norte-americanos na região do atual Gabão foram

informados pelos nativos a respeito de um grande macaco. Também crânios e ossos desse grande

símio foram coletados por missionários e enviados aos EUA. Em 1847, um artigo publicado na

Revista de História Natural de Boston informava sobre a existência de uma nova espécie de

troglodita na África central. Tratava-se de um animal distinto do chimpanzé. Foi chamado de

gorila (Troglodytes gorilla) em alusão a uma denominação antiga da literatura viática. Os autores

não tinham visto o animal, porém, o estudo osteológico com base em crânios e vários ossos

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(inclusive fêmur, tíbia e pélvis) permitiu uma série de comparações entre a anatomia do gorila, do

chimpanzé e do homem.

O artigo de Thomas S. Savage e Jeffries Wyman (1847) se valeu ainda de informações orais de

caçadores nativos e da literatura de viagem que relatava sobre vários símios antropoides nas

florestas da África central. Escusado lembrar que nos relatos ou coletâneas sobre a África dos

séculos XVI e XVII, tem-se a referência a figuras antropomórficas de sátiros ou trogloditas. Para

ficar em dois exemplos: o relato do inglês Andrew Battel e a compilação do holandês Olfer

Dapper.

A partir das últimas décadas do século XVIII, vários naturalistas estavam engajados no programa

de completar o inventário zoológico e botânico com base no sistema classificatório linneano. O

mesmo serviu para aqueles que tentavam repertoriar a fauna e a flora extintas a partir do estudo

dos fósseis. No campo da botânica e da zoologia, a África se tornou alvo dos naturalistas

linneanos como Anders Sparrman e William Paterson.

As comparações entre homens e macacos, mesmo que sob a orientação de um paradigma pré-

evolucionista, se inscrevem neste contexto de descobertas tanto de fósseis quanto de animais

ainda desconhecidos do meio científico. Desde os estudos de fósseis até o surgimento da

paleontologia, houve um importante avanço no que diz respeito à idade geológica do planeta,

bem como a diversidade de espécies de animais e plantas, etc. Tal acúmulo de conhecimento no

campo da geologia, paleontologia e arqueologia não se fez sem evidenciar algumas anomalias da

teoria em voga sobre a gênese humana e a sua relação com a história natural. A descoberta de

fósseis humanos juntamente com fósseis de uma fauna extinta suscitava uma série de

questionamentos sobre a origem das espécies, inclusive a humana. Em termos de anatomia

comparada, a relação entre o homem e os grandes símios (gibão, orangotango, chimpanzé e

gorila) obrigavam alguns cientistas a rever suas teorias. É nesse contexto que o artigo de Savage e

Wyman (1847) foi publicado, ou seja, às vésperas de uma crise paradigmática no meio científico

e da emergência de um novo paradigma: o evolucionismo.

Em 1849, um esqueleto de gorila chegou ao Museu de História Natural de Paris. Outros se

somariam à coleção parisiense nos anos seguintes. Entre 1853 e 1861, uma série de estudos de

anatomia comparada foi publicada nos anais do museu; inclusive, o nome do gênero Gorilla e o

da espécie gina foram dados pelo zoólogo francês Isidore Geoffroy Saint-Hilaire. (GAUTIER,

2005:67).

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No mesmo período, esqueletos de gorilas chegam também ao Museu Britânico em Londres, onde

Richard Owen aprofunda seus estudos de anatomia comparada entre o homem e os grandes

símios. O diretor do British Museum foi um dos protagonistas de decisivos debates científicos

sobre os primatas e o lugar da espécie humana na evolução das espécies, etc. Maior autoridade

sobre os primatas, o professor Owen obteve também ossos e gorilas empalhados do caçador Paul

Belloni de Chaillu que, por sua vez, explorou o interior do Gabão, entre os anos de 1853-1859 e

1863 -1866.

Caçando gorilas

Paul B. du Chaillu foi o primeiro “branco” a caçar gorilas. Durante a sua juventude em Paris, ele

aprendeu a técnica de taxidermia com Jules Verreux. Além de gorilas, Paul B. du Chaillu

empalhou centenas de outros mamíferos e milhares de aves. Como ele mesmo afirmou no

prefácio do seu primeiro livro: “Eu matei, empalhei e enviei mais de 2.000 pássaros, dos quais

mais de 60 espécies novas e eu abati mais de 1.000 quadrúpedes, dos quais empalhei e enviei

200, com mais de 80 esqueletos. Entre estes quadrúpedes, há mais de 20 espécies até então

desconhecidas da ciência.”

Mas seria como caçador de gorilas e como autor de livros de aventuras pelo interior da África que

ele se tornaria famoso. Além do seu relato de viagem intitulado Exploration and Adventures in

Equatorial Africa (1861), as suas histórias de caça ao gorila foram publicadas em alguns de seus

livros para um público leitor juvenil. Para ficar em dois exemplos: Stories of the Gorilla Country

(1868) e Lost in the Jungle (1869).

Desde a sua primeira viagem ao Gabão, a caça e a preparação de animais selvagens para coleções

particulares faziam parte de seus propósitos. A sua segunda viagem foi, inclusive, financiada

parcialmente pela Sociedade de Geografia de Boston. O explorador franco-americano conseguiu

notoriedade ao descrever o gorila, ao caçá-lo e a enviar exemplares deste animal para Inglaterra,

França e EUA. Porém, desde a publicação de seu primeiro livro, houve dúvidas no meio

científico em relação à veracidade de suas observações sobre o comportamento do gorila, etc. Em

termos de geografia e etnografia, alguns de seus apontamentos também foram criticados.

Apesar das reservas em torno dos escritos de Paul B. du Chaillu, o fato é que alguns cientistas ou

exploradores buscaram refutar as observações do autor de Exploration and Adventures in

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Equatorial Africa. O escocês William Winwood Reade foi um deles. Como caçador de gorilas,

Winwood Reade não superou Paul B. du Chaillu. Sua contribuição mais importante foi no campo

historiográfico, no qual logrou uma história da África inovadora para os padrões da época. Seu

darwinismo social lhe valeu várias críticas.

Richard Francis Burton foi outro crítico do explorador franco-americano. Embora reconhecesse o

fato de que Paul B. du Chaillu fora o primeiro branco a caçar um gorila, o explorador inglês

Richard F. Burton esperava ser o primeiro a enviar um gorila vivo a Londres. Em seu livro Two

Trips in Gorilla Land (1878), Burton discorda de algumas observações e assertivas de Paul B. du

Chaillu. Também criticou os gorilas da coleção de Paul B. Du Chaillu, pois, segundo ele,

“lamentavelmente, os exemplares estavam mutilados e eram imperfeitos.” Mas Burton malogrou

em seu intento de caçar gorilas e enviá-los vivos a Londres. Segundo ele próprio, o major francês

Du Ruvignes teve mais sorte durante suas caçadas em 1863. “Desde então, o caçador francês tem

dado morte a mais gorilas”.

O mono da discórdia

Em seu livro Two Trips in Gorilla Land (1876), Richard F. Burton fez um jogo de palavras ao

alcunhar o gorila como mono da discórdia. O fato é que anti-evolucionistas e evolucionistas

tinham explicações diferentes sobre a semelhança entre homem e gorila (McCook, 1996:177).

Essas primeiras discussões científicas sobre o gorila ainda ecoavam quando o tradutor das Mil e

uma noites era cônsul britânico numa ilha próxima à Guiné Equatorial. No livro supracitado,

Burton demonstra um conhecimento parcial sobre as controvérsias a respeito dos antropoides,

notadamente o gorila. No entanto, a revisão da literatura demonstra que o autor não acompanhou

as teses dos evolucionistas, sobretudo as de Thomas Huxley, sobre a semelhança entre homem e

gorila. Por outro lado, Burton conhecia a obra Savage Africa, de W. Winwood Reade. Este

escritor escocês e caçador de gorilas tinha sido enviado para a África equatorial a fim de

averiguar as observações de Paul B. du Chaillu (MANDELSTAM, 1994). Cabe lembrar toda a

polêmica que envolveu vários naturalistas de renome como Richard Owen, Cassins e cujos

artigos contra ou a favor de Paul B. du Chaillu foram publicados na imprensa.

Desde meados do século XIX, a imprensa metropolitana desempenhava um importante papel na

divulgação de certas descobertas científicas. Sobre o darwinismo, várias matérias informativas,

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outras de conteúdo mais crítico e mesmo contra à teoria de Darwin ganhavam as páginas dos

jornais, além de algumas caricaturas em semanários ilustrados como L’Éclipse de Paris ou The

Hornet de Londres. Algumas matérias humorísticas foram publicadas como o poema satírico

Monkeyana, na edição de 18 de maio de 1861, na revista londrina Punch. Junto ao texto que

menciona Charles Darwin, Richard Owen, Thomas Huxley e Paul B. du Chaillu, entre outros,

tem-se um cartoon de um gorila que se pergunta quem é ele afinal. A pergunta é uma paródia à

frase abolicionista (Am I a man and a brother?). Se, por um lado, as revistas satíricas foram um

canal de divulgação de debates científicos em torno da evolução da espécie humana, por outro,

alguns periódicos se especializaram nessa vulgarização da ciência. Para ficar num exemplo, o

artigo sobre o homem à luz do evolucionismo de Augustus Radcliffe Grote, publicado na

Popular Science Monthly, em sua edição de 13 de agosto de 1878.

No Brasil, houve também uma tentativa de divulgar a ciência por meio de um jornal: O

Vulgarizador: jornal dos conhecimentos úteis (1877–1880). Neste periódico foram publicados

cinco artigos intitulados “O darwinismo: cartas a uma senhora”, entre 1877 a 1878, e de autoria

de João Zeferino Rangel de S. Paio (VERGARA, 2007: 385). Porém, desde 1875, o darwinismo

já era tema de conferências que visavam divulgar o conhecimento científico na capital do Brasil.

Tais conferências já eram polêmicas e tinham repercussão em jornais cariocas como o Jornal do

Commercio, O Globo, O Apostolo e o Diário do Rio de Janeiro (CARULA, 2008).

Em busca do elo perdido

Em 1863, o naturalista britânico Thomas Huxley publicou um livro sobre o lugar do homem na

história natural (Evidence as to Man's Place in Nature). No mesmo ano, o naturalista alemão Carl

Vogt publicou suas lições sobre o homem e sua posição na criação e na história natural

(Vorlesungen über den Menschen, seine Stellung in der Schöpfung und in der Geschichte der

Erde). Ambas as obras foram escritas sob o paradigma evolucionista.

No supracitado livro, Huxley fez alusão ao elo perdido (missing link) na evolução entre homem,

gorila e chimpanzé. Nas décadas de 1860 e 70, várias publicações (científicas ou não) aventaram

sobre a eventual existência de antropoides ainda desconhecidos da ciência. Paul B du Chaillu

mencionou alguns como o Kulu-Kamba. Winwood Reade (1861) e Richard F. Burton (1876)

também fizeram referências ao Kulu-Kamba. Burton, no entanto, considerava improvável a

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existência de um macaco maior do que o gorila.

O que fomentou ainda mais a busca pelo elo perdido da evolução humana no interior da África

foi o fato de se encontrar na mesma região equatorial gorilas, chimpanzés e os então

denominados “pigmeus”. Durante suas expedições pelo interior da África, tanto Paul B. du

Chaillu quanto Georg Schweinfurth encontraram, por exemplo, gorilas, chimpanzés e “pigmeus”

em áreas vizinhas. Por sua vez, Schweinfurth escreveu que a boca dos “pigmeus” quase não tem

lábios e parece com a dos macacos quando fechada (apud Quatrefages 1874:501). Paul B. du

Chaillu chegou a escrever um livro sobre o país dos “pigmeus”, intitulado The country of the

dwarfs e publicado em 1872.

Os primeiros estudos sobre os “pigmeus” foram realizados por antropólogos italianos e ingleses.

Entre outros, cabe destacar os artigo de A. De Quatrefages (1874) e Richard Owen (1874) com

relação a dois “pigmeus” levados para Nápoles e que foram objeto de estudo no Cairo. Com base

em fotografias, o antropólogo italiano (QUATREFAGES, 1874: 505) foi categórico ao afirmar

que os “Akkas não são absolutamente o elo intermediário entre o homem e o macaco como

alguns transformistas esperam ainda descobrir.” Quatrefages foi um dos primeiros a fazer a

distinção entre os “pigmeus” encontrados por Schweinfurth e por Du Chaillu. Escusado lembrar a

série de estudos comparativos entre chimpanzés, gorilas e “pigmeus” da África equatorial, além

de bosquímanos da África do Sul.

Os gorilas e os chimpanzés eram considerados os macacos mais semelhantes ao homem enquanto

que os “pigmeus” o grupo mais primitivo na escala da evolução humana. A comparação entre

africanos, gorilas e chimpanzés foi uma prática comum dos estudos de anatomia comparada

como fizeram Georges Cuvier e Richard Owen. O darwinista Carl Vogt (1865) também

comparou africanos com gorilas e chimpanzés ao tratar da microcefalia. Para o naturalista alemão

radicado em Genebra, os microcéfalos teriam características anatômicas, comportamentos e

posturas quase idênticas às dos macacos (Roque, 2006:167). Se a involução era tratada em

ensaios sobre a microcefalia, outras hipóteses semelhantes eram formuladas em relação aos

“pigmeus” e aos grandes símios no que concerne à linguagem e as semelhanças anatômicas. O

naturalista alemão Georg Schweinfurth comparou os “pigmeus” com chimpanzés e considerou a

linguagem dos primeiros “primitiva”.

Assim como a zoologia e a botânica continuavam com suas classificações da fauna e da flora

nessas regiões pouco exploradas como as da linha do Equador, a antropologia também fazia o seu

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inventário, as suas “descobertas” de grupos humanos. A paleontologia também ampliava seu

campo científico. A descoberta cada vez maior de fósseis suscitava uma diversidade da fauna

extinta, a busca por animais até então desconhecidos da ciência permitia aos caçadores

“cientistas” uma oportunidade ímpar de prestígio. Associar o seu nome com uma descoberta ou

com a denominação de uma nova família, espécie ou subespécie de animal era uma forma de

prestígio que alguns caçadores buscavam.

Fósseis de uma fauna extinta, animais desconhecidos da ciência e grupos humanos sem contato

com a civilização ocidental eram procurados com avidez, principalmente aqueles que pudessem

ser o elo perdido da evolução humana.

Caçadores forasteiros e nativos

As grandes expedições pelo interior da África marcaram uma época. Mungo Park, Dr.

Livingstone, Henry Morton Stanley, Richard Burton e John Speke são alguns dos nomes

associados à exploração do continente africano. Porém, nenhum nome de africanos que

participaram dessas expedições é lembrado, mesmo que, na condição de régulos, curandeiros,

guerreiros, carregadores, cozinheiros, intérpretes ou guias, vários deles se tornaram personagens

dos relatos ou diários dos exploradores. Alguns tiveram mesmo o seu nome registrado. Entre

eles, alguns caçadores.

A participação de caçadores nativos foi crucial durante as expedições de Paul B. de Chaillu,

Winwood Reade e Richard Francis Burton em busca de gorilas. Alguns deles foram mencionados

nos relatos desses exploradores. Cabe ressaltar que outros escritores de língua inglesa trataram de

caçadas, inclusive de gorilas. Para ficar num exemplo, Robert Michael Ballantyne publicou um

livro sobre caçadores de gorilas (The Gorilla Hunters) em 1861.

Dos primeiros caçadores forasteiros, o relato de Paul B. du Chaillu confirma a importância

imprescindível dos caçadores nativos para localizar gorilas, caçá-los e transportá-los até a costa.

Os caçadores nativos foram igualmente importantes como informantes sobre o comportamento

dos gorilas, etc. Além do seu relato de viagem, Paul B. du Chaillu publicou uma série de livros

para um público infanto-juvenil em que estórias de caçadas foram temas principais.

Em Stories of the Gorilla Country, o autor divide o protagonismo de suas caçadas com os

caçadores nativos. Um deles, Etia, era um velho escravo, um experiente caçador. Por ser o

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responsável pelo abastecimento de caça (bush meat) ao régulo local, Etia costumava caçar toda

semana. Para o caçador forasteiro, o velho escravo serviu de guia e caçou gorilas. O caçador

forasteiro descreveu a casa do seu guia, onde havia ao redor ossos de elefantes, hipopótamos,

leopardos e gorilas como troféus de sua proeza (as trophies of his prowess). Além deste caçador

nativo, Paul B. du Chaillu mencionou ainda um caçador Ashira, chamado Gambo. Dos caçadores

nativos, algumas estórias sobre gorilas foram relatadas pelo caçador forasteiro. Uma delas (que se

passou com o pai de um deles) acusa o uso de uma lança pelo caçador o que já deixara de ser a

arma entre os nativos que acompanhavam o caçador forasteiro. Estes usavam fuzis. Outra história

foi relatada por Gambo e tratou de um homem que se transformou em gorila. Esse último tema se

repetiu em relatos de outros caçadores nativos, sendo abordado nos livros de Winwood Reade

(1861) e Richard Burton (1872).

Winwood Read mencionou coletar informações junto aos caçadores nativos, inclusive escravos

que serviram de caçadores, mas também registrou o ciúmes dos caçadores nativos (the jealousy

of native hunters) como um empecilho para o caçador forasteiro. Por isso, duvida que Paul du

Chaillu tivesse ele mesmo caçado gorilas.

Em seu relato sobre suas duas expedições pela Gorilândia, Burton informou que os cacadores

nativos riram quando ele mostrou algumas ilustrações do Gorilla Book de Paul B. du Chaillu.

Apelando para o conhecimento dos nativos, Burton queria mostrar o quanto as imagens que

representavam um gorila em pé não correspondiam fielmente à realidade.

Com a Partilha da África, pode-se inferir que houve um aumento do número de caçadores

forasteiros e nativos de gorilas. Afinal, a demanda dos jardins zoológicos por gorilas cresceu nas

primeiras décadas do século XX. Se os zoos de Londres e Paris já contavam com gorilas desde o

último quartel do século XIX, outros jardins zoológicos metropolitanos tiveram seus exemplares

somente nas décadas de 1920 e 30. Para ficar em um exemplo, no Zoo de Berlim, o primeiro

gorila chegou em 1928. Ainda no início do século XX, uma última espécie de gorila foi

classificada pelo zoólogo alemão Paul Matschie. O gorila da montanha (Gorilla beringerei) foi

encontrado por uma tropa de soldados alemães em 1902 nos confins da então África Oriental

Alemã. Oscar von Beringe, oficial da Schutztruppe, caçou dois exemplares e os enviou para

Matschie em Berlim.

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Considerações finais

Com base no sistema linneano de classificação, o estudo zoológico da fauna extra-europeia

permitia um melhor conhecimento sobre classes, ordens, famílias, gêneros, espécies, subespécies

etc. Tal estudo dependia também do que chegava desses animais de outros continentes. Algumas

vezes era apenas um crânio, um osso, um esqueleto parcial ou completo.

Da boca de caçadores nativos da África equatorial, o reverendo Wilson e o Dr. Savage, entre

outros missionários norte-americanos, tiveram as primeiras informações sobre o gorila. Das mãos

dos mesmos informantes receberam, provavelmente, os crânios e ossadas que formariam o

material básico para o primeiro estudo científico sobre o gorila das terras baixas. A partir de

então, um interesse científico e uma curiosidade popular fomentaram uma demanda por gorilas

nas principais cidades europeias e norte-americanas. Com a ajuda de caçadores nativos,

caçadores forasteiros tentaram atender tal demanda. A caça aos gorilas foi considerada

promissora para alguns caçadores em busca de notoriedade.

Mas nem todos os caçadores lograram uma reputação científica pelos seus feitos. Muitos foram

meros fornecedores de animais para museus de história natural, jardins zoológicos e coleções

particulares. Em regra, a fama ou o reconhecimento científico ficaria reservada aos cientistas

responsáveis pela classificação taxonômica desses animais.

Da denominação científica de chimpanzés e gorilas, alguns naturalistas tiveram seus nomes

associados. O alemão Georg Schweifurth teve o seu nome associado a uma subespécie de

chimpanzé (Pan troglodyte schweinfurthii). No que tange ao gorila, rendeu-se tributo ao norte-

americano Thomas S. Savage e ao francês Isidore G. Saint-Hilaire (1852). O zoólogo alemão

Paul Matschie denominou uma subespécie de gorilas (gorila berengeri) em tributo ao caçador

alemão Oskar von Berenge que lhe enviou dois exemplares. Das quatro subespécies de gorilas,

atualmente, nenhuma tem o nome de Paul B. du Chaillu e tampouco de qualquer caçador nativo.

Apesar disso, o nome de alguns deles apare nos relatos de viagens e na literatura de caça. Cabe,

pois, aprofundar os estudos sobre a importância desses caçadores nativos e de suas técnicas de

caça, notadamente do seu conhecimento sobre os gorilas, para melhor compreender a relação

entre eles e os caçadores forasteiros que, por sua vez, tiveram um papel crucial na coleta de

material para a primatologia moderna.

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Referências:

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28º Reunião Brasileira de Antropologia São Paulo, 2 a 5 de julho de 2012.

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