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A Cachorra da Mãe do Delegado

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A Cachorra da Mãe do Delegado

Eric Carvalho

A Cachorra da Mãe do Delegado

1ª edição

2014

Este livro é dedicado a meu pai, cujo a vida permitiu que lesse apenas os rascunhos, e a vovô Tojal e a vovô Cabôco, que, contando suas

histórias, norteou a maneira como eu contaria as minhas.

“Tenho duas armas para lutar contra o desespero, a tristeza e até a morte: o riso a cavalo e o galope do sonho.

É com isso que enfrento essa dura e fascinante tarefa de viver.”

Ariano Suassuna

SUMÁRIO

Prefácio, 11 Agradecimentos, 13 Cobra Miúda, 15

Pedro Pereba, 20

Rosa, 23

Zé Firmino, 26

O Moço da Capital, 31

O Moço da Roça, 40

O Noivado, 43

Doutor José Firmino, 49

Zé Firmino Mais Uma Vez, 53

O Dia do Casório, 60

A Cachorra da Mãe do Delegado, 62

Dona Adélia Recebe Uma Visita, 69

Mais Um Noivado, 73

O Presente, 81

Zé Firmino, O Assassino, 92

Zé Firmino É Condenado, 100

A Aparição, 126

A Partida, 154

Derradeiro Capítulo, 167

PREFÁCIO

u tive o prazer de dividir o mesmo avô com o autor. Posso dizer certamente em conhecimento de causa

que a história é biográfica. Não da vida de alguém, é uma bio-grafia das lembranças, da terra, da fala, do cheiro, do jeito, do sertão e do nordeste. O livro foi escrito pouco tempo depois da morte de seu avô, Seu Cabôco, e não só as homenagens, mas também as referências são explícitas. O respeito pelo patriarca da família, os símbolos que eu reconheço e muitos reconhece-rão, não deixam dúvida: foi feito para o avô, ou em outra análi-se, por causa do avô.

A história, que muitas vezes mostra-se triste, nostálgica e perversa, transborda humor pelas palavras e suaviza o texto nu-ma comédia cotidiana. A concreta condição do pobre nordesti-no é deixada de lado, ou talvez em segundo plano. Irônico e sarcástico, o narrador se comporta como se estivesse numa con-versa com o leitor, frente a frente, e não perde a oportunidade de largar o texto e descambar uma piada qualquer. Quando se está em transe, sugado pelo livro, o texto na verdade revela-se uma prosa, não a literária, mas a nordestina. É o chamado “dedim de prosa”.

A trama começa espalhada, como peças de um quebra-cabeça. O narrador joga os fatos e aos poucos costura um mes-mo episódio sob diferentes ângulos, até que a história assume proporções incríveis ao longo do livro. A narrativa é própria de um roteiro cinematográfico. O autor mesmo confessa que a fez para ser filmada futuramente.

Nos diálogos, o tempo da comédia é preciso, sendo im-possível não notar a semelhança de Zé Firmino e Pedro Pereba com os célebres personagens de “O Auto da Compadecida” de Ariano Suassuna: Chicó e João Grilo, respectivamente. São cla-ras também algumas referências às músicas de Luiz Gonzaga, como, por exemplo, a cidade de Assum Preto e o pré-fixo usado para chamar o pai na casa.

E

É um livro de comédia. Volta e meia, a gargalhada per-meia o texto, mas, nas últimas páginas, fica difícil conter as lá-grimas. Bate uma saudade de numseiquê.

Kiko Carvalho

AGRADECIMENTOS

ão posso negar a grande contribuição de todos que leram este livro enquanto eu o escrevia. Seja com

sugestões, opiniões ou me incentivando, parentes, amigos e mi-nha namorada (hoje esposa) compuseram, junto comigo, toda a história que se segue.

Inspirei-me na cultura do nordeste, no qual tenho orgu-lho de ter nascido, nas histórias que meus avós contavam, nos moradores da zona rural que conheci, nas superstições e no fol-clore local.

Agradeço aos que tiveram a paciência de ler várias vezes o mesmo capítulo enquanto eu os reescrevia, aos que gargalha-vam ao lê-los: era isso que me motivava a continuar a história.

Enfim, obrigado a todos que me ajudaram a construir este livro.

Tenha uma boa leitura. Lembro-me bem: tudo começou em uma viagem e falávamos sobre

Adoniran Barbosa...

Eric Carvalho

N

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COBRA MIÚDA

ssa história aconteceu há muito tempo. Quem me contou foi meu pai, Laurindo, que nem era nascido

na época. É história do tempo do meu avô. E se meu pai nem era nascido, então é porque tem muito tempo mesmo. Nessa época, meu avô era moço e ainda morava em Cobra Miúda, cidadezinha lá do sertão.

Cobra Miúda era pequena mesmo, mas não era miúda só no nome não. Ficava perto de Cobra Grande, mas, nem por causa dos seus atributos físicos reduzidos, era pior que esta. O povo de Cobra Grande é que vivia mangando dos homens da miúda, e já dá pra imaginar o que falavam...

A cidade de meu avô não surgiu do nada. Dizem que foi um doutor de Cobra Grande que apareceu por lá e, gostando, resolveu morar. Não demorou para o pessoal perceber que al-guma coisa boa tinha na região. E foi aparecendo gente. Come-çou uma casinha aqui, outra mais pra lá, alguém que resolveu montar uma bodega pra vender umas coisinhas...

O tal doutor acabou morrendo. Depois construíram uma igrejinha bem onde o homem tinha sido enterrado (ninguém sabe se por homenagem ou para cobrir definitivamente o túmu-lo do homem). Daí pra frente, tudo aconteceu mais rápido. Cresceu rápido e parou de crescer rapidinho também. Assim, a cidade ficou pequena como era.

Mas é melhor assim. O povo todo se conhece (e como es-se povo conhecia a vida dos outros...) e quase não tem bandido. No máximo uns ladrõezinhos de galinha. Coisa besta, que se resolve no braço mesmo. Só o filho mais novo do Seu Raimun-do um dia se meteu a valente e quase toma uma surra de quatro, mas Seu Raimundo chegou a tempo e socorreu o filho.

E Cobra Miúda tinha delegado — frouxo... — mas era um delegado. Alguns diziam que fazia tudo o que Dona Adélia qui-sesse (calma, daqui a dois capítulos, você vai saber quem ela é). Tinha conseguido o emprego com gente influente da região. Nem levava jeito para polícia. De tão incompetente, foi o me-

E

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lhor que lhe arranjaram: um emprego de delegado onde não tem crime nenhum.

A economia de Cobra Miúda era baseada no comércio mesmo. Tinha coisa que traziam de fora pra vender para os mo-radores da cidade. Nada demais. O povo da zona rural vendia seus produtos na feirinha da cidade. Verdura, fruta, legume, ovo, carne, essas coisas que o pessoal precisava e que se produzia no sítio. Além disso, o lugar contava com pedreiro, ferreiro, um médico que aparecia de vez em quando, uma professorinha (tão inteligente ela... cursou até o ginásio na capital!), um marceneiro que gostava tanto de dinheiro que só faltou vender a própria mãe. Tinha também o padre, que, de tanto pedir dinheiro na missa, era importantíssimo para movimentar o comércio local.

As casas foram ocupando os espaços primeiramente ao redor da igreja, depois em volta das primeiras, ficando a igreji-nha e a praça em que estava localizada como o centro da cidade. As do miolo eram melhores, pessoal bem de vida, que tinha até rádio em casa! Quem morava lá pra trás se contentava com o som que a prefeitura mantinha na pracinha ou com a banda de pífano que circulava pelas ruas.

A cidade era pequena, mas gostava de festa. De vez em quando tinha quermesse na igreja. O padre adorava... Dava uma boa quantia pra igreja com a venda das comidas.

— Esse ano foi melhor que o ano passado. Assim é que tem que ser. Obrigado, Senhor!

Festa boa também era quando tinha um casamento. Claro que boa era quando o casamento era de gente rica, os dos po-bres ninguém nem se empolgava... Era “até que a morte os sepa-re” e vamos ver o que deu pra comprar dessa vez.

Mas se os casamentos movimentavam a cidade, dessa vez o rebuliço foi enorme. Quem estava para casar era nada menos que Rosa, a moça mais cobiçada da cidade. E o noivo era Zé Firmino, o último homem que alguma mulher do local iria esco-lher pra casar, se é que ainda escolhesse esse, pois algumas pre-feriam o caritó a casar com o rapaz.

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O cabra era feio, pobre, morava na roça e ainda vivia caindo em peças pregadas pelos rapazes do lugar. Por isso, nin-guém acreditou quando a notícia se espalhou pela cidade. A mãe de Rosa era contra, mas como seu marido, em seu leito de mor-te, pediu-lhe que deixasse a filha decidisse o seu futuro, teve de aceitar o casamento.

— Você deveria era casar com o Rômulo, primo seu lá da capital. É estudado, gentil, e pode lhe dar uma vida melhor que a que lhe dou hoje.

— Ele é chato e muito metido. Não gosto dele! Prefiro viver na roça do que morar com um desse na capital.

— Olhe aqui, você vai casar porque foi um desejo do seu pai, mas saiba que logo, logo essa farra acaba, ouviu? Veja o que a cidade anda falando! Você casa, mas darei um jeito de te man-dar embora daqui e lhe arrumar um marido que preste!

E chegou o dia do casório. Todo mundo queria ver o ca-

samento de Rosa com Zé Firmino. Mas, na verdade, poucos estavam contentes. Rosa era muito cortejada pelos rapazes da região, mas nunca quis namoro com nenhum deles. Se Rosa casar já era ruim, escolher logo o bocó do Zé Firmino era muito pior!

— Que peste é que Rosa viu nesse roceiro? — E eu sei lá do diabo! Acho que foi só por teimosia...

Aquela ali é teimosa que nem burro empacado... — Ou então foi pra provocar o povo daqui mermo. Co-

mo se eu me importasse, hunf! Para ser padrinho, Zé Firmino fez questão de chamar Pe-

dro Pereba, homem em que mais confiava e um dos poucos que não ridicularizavam suas atitudes.

Dentro da igreja, o nervosismo de sempre. — Ai, Cristo, tá demorando demais... — Calma... — Num aguento mais esperar.

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— Não se preocupe... atrasar é coisa normal no casamen-to...

— Normal pra noiva! Tô aqui tem mais de meia hora já! — disse Rosa já aflita.

— Ele deve tá chegando... sabe como é, o sítio fica um pouco longe da cidade e ele tá vindo de carroça. — tentou acal-mar a moça, Pedro Pereba.

— Que barulho é esse? É risada, é? — perguntou Rosa. — Parece que o povo tá dando risada mermo... — disse

Pedro, aproximando a mão ao ouvido — Então... o Zé chegou! Pedro correu pra porta da igreja e deu de cara com Zé

Firmino. Olhou o rapaz da cabeça aos pés. — E aí, Pedro? Tô bunito ou num tô? — Tá, tá sim... — disse Pedro, com cara de quem não

gostou. — E Rosa já chegou? — Faz tempo... — Ôxe! E por que ela chegou mais cedo? — Mais cedo? Chegou foi uma hora atrasada. Deu pro-

blema com o vestido... — Então deve de tá avexada! Sai da frente, Pedro! — Péra, hômi! Vai devagar! Zé Firmino entrou na igreja olhando em direção ao altar.

Nunca havia se casado antes, nem estado em um casamento. Só esperava que tudo ocorresse bem e que o padre num viesse pe-dir dinheiro bem no meio daquele povo todo, porque aí ia ter confusão. Finalmente, chegou próximo à noiva.

— Rosa, ói eu. A menina ficou parada. Só olhando o Zé. Olhou cada pe-

ça da roupa do noivo. — Num esperava me ver vestido assim, né? — Não mesmo! — É roupa novinha em fôia. — Santa Maria do Céu... — O Pedro achou bunito. Você gostou? — Adorei...

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Aquela calça verde com uma corda servindo de cinto não era tão feia assim. Mas combinar isso com uma camisa de listras amarela e vermelha e uma sandália de dedo deu a Rosa vontade de mandar o rapaz ir para casa trocar de roupa. Contudo, pen-sando na demora que ia levar e no atraso do noivo, resolveu casar-se assim mesmo.

O padre chegou. Deu uma olhada nos convidados, nos padrinhos, na noiva, no noivo, no noivo, e mais uma vez no noivo. Nunca vira na vida alguém de tamanho mal gosto.

— Roupa nova, meu filho? — É sim, seu padre. E se o sinhor tá querendo saber se eu

tenho dinheiro, nem vem porque hoje eu tô com os bolsos va-zio. Gastei tudo na roupa pro casório.

— Zé... — sussurrou Rosa morta de vergonha. Padre Lauro fechou a cara e abriu a Bíblia. — Aham... Vamos começar logo com isso.