A Canção de Rolando

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A Cano de Rolando

A CANO DE ROLANDO A CANO DE GESTA E O PICO MEDIEVAL1 OPICO

Costuma-se encarar o pico como a narrativa de proezas gloriosas, praticadas por um heri, num tempo remoto. Todos estes pontos podem ser debatidos. A narrativa, em prosa ou em verso (e neste caso corresponde a momentos inaugurais, mais primitivos, de uma sociedade/literatura), mescla-se de descries de objetos, cenas, ambientes, personagens, encontrando-se ambas indissoluvelmente ligadas. O texto pode se difundir atravs da transmisso oral ou escrita, respectivamente pelas vias popular e erudita. No primeiro caso, vem muitas vezes acoplado ao canto, com melodia e instrumentos especficos. Os grandes feitos no so necessariamente hericos. Eles se prendem queles que os praticam dentro de um contexto histrico-social especfico. Com o passar do tempo, o contingente eliminado e tais feitos sempre associados a contendas, disputas, batalhas e guerras so esvaziados de seu ambiente real, simplificados e purificados, tornando-se assim exemplares, tpicos, lineares, idealizados. Com esta desrealizao os personagens travestem-se em gloriosos heris de aes superlativadas, a servio de uma causa naturalmente justa um chefe, uma raa, um sistema de valores, no embate maniquesta entre o Bem e o Mal. Assim, numa primeira fase percebe-se o ser humano em sua individualidade caractersticas pessoais, famlia, geografia definida, eventos reais reconhecveis e verificveis com respeito ao referente da sociedade. o caso do Cantar de Mio Cid, com menos de um sculo de distncia entre o fato real e a transcrio literria. No caso da Cano de Rolando, onde quatro sculos medeiam entre o evento real e o mais antigo manuscrito conhecido, o da biblioteca inglesa de Oxford, os personagens se investem de caractersticas ideais, perdem o quotidiano, para se tornarem quase que meras abstraes. E se a distncia for maior ainda, transformam-se nos deuses e semi deuses dos poemas homricos.2 O maior ou menor intervalo entre o fato histrico e a transcrio literria permite constatar algumas diferenas flagrantes, embora relativas, se for feita a comparao entre o Poema do Cid e a Cano de Rolando:31

A autora aborda este tema em: A narrativa medieval. In: VASSALLO, Ligia et alii. A narrativa ontem e hoje Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984. p 47-69, com abundante indicao bibliogrfica. 2 Ver: SARAIVA, Antnio Jos. Histria da cultura em Portugal, Lisboa, Jornal do Foro, 1962. v. 1, cap. IV A epopia brbara, p. 141-165, especialmente p. 143-144: A epopia inicialmente um relato tanto quanto possvel fiel de acontecimento de que o poeta teve notcia atravs de testemunhas ou de pessoas que conhecem as testemunhas. Nasce em torno da impresso produzida pelos acontecimentos. Mas sobre esta primeira forma elaboram-se depois outras que tm por base no j os acontecimentos mas a forma literria que eles primeiro revestiram. Perde-se o nexo com os fatos e com os heris cantados, e a fantasia dos poetas tende a despertar o interesse e a sensao pelo exagero ou at pela inverossimilhana dos acontecimentos e dos personagens. Tendese assim para uma mitologia. Os semideuses de Homero ou dos Nibelungos comearam por ser homens como o Cid, e foram em seguida super-homens como Carlos Magno ou Roldo (grifo nosso). 3 Informaes colhidas na conferncia La Chanson de Roland e El Cantar de Mio Cid, realizada pela prof.

Poema do Cid mundo comentado realismo envolvimento, certa empatia do narrador contemporaneidade (40 anos entre o sucedido e o texto) mais histrico variedade de eptetos conforme a situao tempo psicolgico heri humano mobilidade e evoluo dos personagens o heri se enfileira para ganhar a vida tematiza sobre a luta de classes e a situao econmica interesse muito grande pelo fator econmico cosmos com todas as classes sociais autodeterminao no trgico: o Cid morre na cama desmitificao: as 2 espadas do Cid, Colada e Tizona, so conquistadas por ele e valem materialmente Mito a partir das excelncias humanas economia do fantstico, certo naturalismo

Cano de Rolando mundo dado no realismo distanciamento do narrador afastamento (evento do sc. VIII, texto do sc. XII) mais lendrio um s epteto sempre imobilidade temporal e social heri sobre-humano personagens monolticos o heri no se enfileira para ganhar a vida tematiza motivos transcendentais ausncia de interesses materiais cosmos apenas aristocrtico fatalismo heri pico provoca admirao semelhante do poema trgico mitificao: Durindana, a espada de Rolando, dada por Deus mito a partir do sagrado fantasia sobrenatural

Quer isto dizer que a sociedade que constri o texto redige-o de modo a que a ao do protagonista que se alou acima de seus companheiros sirva de exemplo e modelo. Mas isto no implica que o pico se refira a um passado remoto. Em nossos dias, apenas mudou de fachada. Identificam-se caractersticas semelhantes nas epopias antigas, nas canes de gesta, nos filmes de faroeste, na luta entre bandido e mocinho ou americano e comunista do cinema ou das histrias em quadrinhos, no cordel sobre as astcias de Lampio contra um sistema social esprio. Ainda no heri contemporneo encontram-se graus de afastamento do presente identificveis pelos cinfilos: de 007 nossoMaria do P. S. Correia Lima de Almeida, em 27/8/85, na Faculdade de Letras da UFRJ. Ver tambm: CASTRO, Amrico. Espaa en su historia. Buenos Aires, Losada [1947], sobretudo p. 231-278 e SARAIVA, Antnio Jos. Op. cit, captulo mencionado na nota 2.

coetneo, passando pelos caubis do velho oeste americano, aos guerreiros intergalcticos, distantes no espao porque tambm no tempo.4 O relato das faanhas sobre-humanas e lendrias de algum dotado de uma qualidade ou defeito exacerbado e nico, inserido num campo semntico coerente porm restrito, identificado como paladino de uma verdade ou sistema de valores monoltico e aceito sem discusso, levando esta aceitao s ltimas conseqncias eis a a essncia do pico, quer se localize no presente prximo ou no passado remoto. Cada poca atualiza o pico conforme seus padres e critrios. E na Idade Mdia o pico por excelncia repousa na cano de gesta. A CANO GESTA

DE

Entende-se por cano de gesta um longo poema pico, em versos de oito, 10 ou 12 slabas, reunidos em estrofes ou laisses de extenso desigual, cada uma delas terminando por assonncia numa vogal, em vez de rima. Destinava-se a ser cantada diante de um auditrio, segundo melodia simples acompanhada de um instrumento de cordas, semelhante viola ou ao realejo5 (no que se assemelha literatura de cordel). Tais traos marcam-lhe a oralidade, que se traduz pelas intromisses do executante-escriba no texto que est a apresentar, nos artifcios de declamao e nas frmulas prontas para se dirigir ao pblico, nas repeties e refros. As canes de gesta so difundidas por artistas nmades, os jograis, nas peregrinaes, aldeias, feiras, castelos ou quaisquer lugares onde haja aglomeraes. O termo gesta um neutro plural latino significando coisas feitas, mas passou logo a ser percebido como um feminino singular com o sentido de histria. Trata-se portanto de um poema ou conjunto de poemas cujos temas se referem a um mesmo grupo de eventos lendrios, ou de protagonistas, da serem concebidos dentro de ciclos. Eles partem de um personagem ou acontecimento real, adulterado pela lenda e pela transmisso oral, o que se atesta pelas inmeras verses de cada histria. Seu ncleo reside em efemrides belicosas ocorridas na Alta Idade Mdia, perodo de grandes invases e de lutas pela conquista do territrio, mas a maioria dos manuscritos data da Plena Idade Mdia, sculos XII e XIII, perodos de intensa revivificao cultural na Europa e, com isso, de retomada da escrita donde a florao literria confirmada. Seu primeiro momento oral, passando depois escrita, ainda em versos, prosificados sculos mais tarde, o que possibilita as tradues que vo aumentar sua difuso. No se deve contudo pensar a literatura medieval dentro da atual oposio verso/prosa, inexistente naquele momento, quando toda a literatura, narrativa ou no, era feita em versos. Estes poemas so a primeira manifestao literria desligada da4

Agradecemos profa Maria Thereza Barrocas pelos conceitos referentes adaptao do pico contemporaneidade, transmitidos em entrevista informal na Faculdade de Letras, UFRJ, 1985. 5 Consultar: AUERBACH, Erich. Introduo aos estudos literrios. 2. ed. So Paulo, Cultrix 1972. p. 111-115, e AUERBACH, Erich. A nomeao de Rolando como chefe da retaguarda do exrcito franco. In: _______ Mimesis. 2. ed. So Paulo, Perspectiva, 1976. p. 83-105.

liturgia6, da qual herdam o canto, mas substituindo a vida dos santos (um de seus possveis pontos de partida) pela de um heri nacional e o ascetismo pelo combate a servio de Deus. Tais poemas picos exaltam as proezas de um heri, num perodo em que os estados nacionais ainda esto em formao. Retratam um mundo masculino o das batalhas e lutas pelo poder. Na medida em que se colocam conforme a tica dos valores da classe dominante, podem ser considerados como literatura aristocrtica, no importando quem tenham sido seus autores, alis desconhecidos. Seu discurso , portanto, oficial, temeroso e distante da carnavalizao representada pela stira das canes maldosas. O interesse da escola romntica pela Idade Mdia trouxe tona tais manuscritos e a discusso sobre suas origens:7 1) A teoria das cantilenas supe a existncia primitiva de poemas lricos, rapsdias de velhas canes populares, compostas ao longo de geraes, transportando-se depois para o narrativo e finalmente para o pico. 2) A teoria das epopias primitivas pressupe que desde o seu incio a cano de gesta adota a forma pica, sendo o produto espontneo da alma popular, cada poema remontando a lendas de tempos obscuros. 3) A hiptese de Joseph Bdier associa os santurios nas rotas de peregrinao a Santiago de Compostela ecloso de relatos maravilhosos, confirmados pelas relquias e monumentos ligados aos heris ao longo do percurso. De todo modo, considerando-se a estreita relao entre os jograis e o clero, grupo dominante poltica e culturalmente, no de se estranhar esta interferncia. 4) Modernamente, devido unidade formal e temtica bem como ao contedo literrio encontrados nestes poemas, admite-se que foram criados por um poeta individual, baseado na tradio oral vinculada a heris e grandes acontecimentos histricos. Este poeta teria transformado a lenda em epopia, segundo a tica de seu tempo. Neste sentido, epopia e cano de gesta so sinnimos, reservando-se o ltimo termo manifestao medieval. Desta poca existem trs grandes poemas picos nacionais, sempre referentes s etnias germnicas: a Cano de Rolando dos francos, o Cantar de Mio Cid dos visigodos, a Cano dos Nibelungos, dos borgndios. Eles terminam a pr-histria pag dos povos europeus e iniciam a formao das naes cristianizadas. So as primeiras obras em lngua vulgar romance e no mais em latim. Todas as trs so annimas. A epopia e a cano de gesta possuem vrios traos em comum: ambas constituem textos fundadores, pertencentes s pocas iniciais da literatura, redigidos em versos e dentro dos moldes do gnero pico. No entanto divergem na viso de mundo e na estrutura, visto que tais criaes decorrem de diferentes etapas da sociedade: a Antigidade e o Renascimento, para a epopia, e a Idade Mdia para a cano de gesta. A viso de mundo da epopia, produto de uma sociedade pag ou marcada por seus cnones, mostra um homem livre, sem nenhuma preocupao escatolgica, que sofre os influxos do fatum e cujo destino depende da interveno dos deuses criados sua imagem. Em6

Ver apresentao comentada da Chanson de Roland. Paris, Larousse, 1972. Col. Nouveaux Classiques Larousse, 2. v. 7 Ver nota 6.

contrapartida o heri da gesta, nascido sob a gide do mundo cristo, concebido imagem de Deus e est sempre a servio de uma causa a que se devotar Deus, o rei , ansioso por cumprir o seu dever. Da sua inegvel vocao escatolgica, associada ao maniquesmo e expresso de um ponto de vista oficial. Quanto estrutura, a epopia bastante longa, o que permite digresses e uma multiplicidade de episdios, dentre os quais ressaltam o amoroso e a descida aos infernos. J a cano de gesta revela-se comparativamente mais curta devido ao menor nmero de versos. Portanto no traz tantas digresses e concentra-se num nico episdio, eliminando assim de sada o captulo amoroso. Dada a verticalizao ascendente da Idade Mdia e o empenho em salvar-se elevando a alma ao cu, esta ser a preocupao do heri de gesta, para o que conta com o auxlio de anjos e santos. A gesta se aproxima da realidade histrica que lhe serve como ponto de partida, ao passo que a epopia dela se afasta. Ambos os textos recorrem ao maravilhoso, pago na epopia, cristo na gesta. A CANO ROLANDO HISTRICO-SOCIAL

DE

E SUA LEITURA

Embora existam muitos textos medievais sobre a histria de Rolando, o manuscrito mais antigo e o mais artisticamente literrio o que foi descoberto na biblioteca de Oxford, redigido em dialeto anglonormando e pertencendo ao ciclo do Rei ou ciclo de Carlos Magno, um dos mais prolficos. Contm 4.002 versos decasslabos assonnticos, distribudos em 291 estrofes de extenso desigual as laisses e dividido em quatro partes: A Traio (versos 1 a 1016), A Batalha (versos 1017 a 2396), O Castigo dos Pagos (versos 2397 a 3674), O Castigo de Ganelo (versos 3675 a 4002). Pela ideologia do texto e pelo estado da lngua, acredita-se que tenha sido escrito entre o final do sculo XI e meados do sculo XII, depois que a idia de cruzada contra os pagos j vicejava na Europa crist. Admite-se no entanto que o manuscrito de Rolando seja o remanejamento de verses anteriores. Ignora-se a autoria do texto apesar da meno a Turoldus no ltimo verso (Ci falt la geste que Turoldus declinet), porque o sentido de declinet permanece obscuro, podendo ser compor, transcrever, recitar ou copiar. O enredo da cano repousa sobre um fato real ocorrido no reinado de Carlos Magno (768-814), a batalha de Roncesvales (15/8/778), quando o rei (742-814), que s se tornar imperador em 800, tinha apenas 36 anos. O exrcito franco havia ido a Saragoa por solicitao do governador de Barcelona, Sulayman Ben Al Arab, revoltado contra o emir de Crdoba, seu superior. O desentendimento entre os chefes rabes e uma revolta de saxes ao norte levaram Carlos a retornar em poucas semanas e no aps os sete anos do poema: quando bascos cristos dizimam sua retaguarda, perecendo no combate sobrinhos do rei, como Rolando, e o bispo Turpino entre outros. Por causa do hierarquizado sistema de alianas ento vigente, a guerra torna-se um assunto de famlia. A retirada e o massacre so

episdios de monta, que levam o rei a desistir de aventuras na Espanha e a fortificar suas fronteiras na Aquitnia. Por prudncia e diplomacia, os cronistas da poca atestam o fato minimizando-o. Enquanto isso, no Oriente, Carlos Magno aliava-se ao califa de Bagd, o clebre Harum AlRachid. Portanto, embora defensor da cristandade, Carlos Magno no era inimigo dos rabes e a idia de cruzada no do seu tempo. Mas ela pertence poca do manuscrito e identifica-se com a Reconquista espanhola. No entanto, os inmeros anacronismos do texto levam a uma transfigurao da histria: um episdio local serve de pretexto exaltao da mstica feudal e da monarquia, o servio das armas abre as portas da eternidade e assim por diante; Carlos Magno j o imperador da anacrnica barba florida, com mais de 200 anos, as armas e a forma de lutar no correspondem ao sculo VIII. Em compensao, o manuscrito reflete problemas polticos e jurdicos prprios da poca de sua composio, como a independncia dos senhores feudais, o papel social e poltico da linhagem, os deveres morais e feudais do rei, o lugar da realeza no sistema vasslico. Esta literatura, surgida do esfacelamento feudal e herdeira do mito imperial carolngio, chega maturidade num momento em que as estruturas do poder esto em plena mutao. Concluso: no se trata de um texto histrico, mas de uma reelaborao dos dados reais do sculo VIII a partir da ideologia e da vivncia dos sculos XI e XII. Excetuando-se alguns nomes prprios e de lugares e o malogro da expedio, tudo o mais fictcio. Alguns personagens tm existncia histrica atestada (Carlos Magno), embora nem sempre seu papel real equivalha importncia que lhes atribui o poema (Rolando). Outros podem ser identificados com pessoas vivas ou um amlgama de vrias (Naimes, Ogier, Turpino, Gerier, Gaifet, Torleu ou Traulos chefe de uma seita religiosa). Outros ainda so pura fico: Olivier que representa o companheiro de guerra; Turpino ou o monge-soldado das Cruzadas; Ganelo o traidor, personagem tradicional de poema pico.8 Os doze pares de Rolando so: Olivier, Turpino, Gerino, Gerier, Oton, Berenger, Ivon, Ivrio, Engelier, Samson, Anses, Gerard de Roussillon. Esta lista varia segundo a gesta. Pares aqui significam os que esto em p de igualdade em relao a Rolando. Primitivamente recebiam esta denominao os vassalos de um mesmo suserano. Posteriormente estendeu-se dos vassalos mais poderosos, palatinos (isto , do palcio, da corte) e que deviam ao chefe conselho e auxilio (militar e pecunirio). So portanto os defensores, donde a derivao para paladinos. Neste sentido o poema revela conceitos da feudalidade e da monarquia. Todos os personagens pertencem nobreza em sua mais alta estirpe, dispondo pois de funo militar na sociedade medieval, onde constituem o grupo dominante junto com o clero. Por isso no h personagens do povo nem plebeus. Freqentemente h vrios parentes na mesma equipe. Dentre eles sairo os refns, que garantem a palavra empenhada por um dos membros de seu cl. Assim, a guerra e o servio militar so casos de famlia. A partir do texto, este fenmeno ocorre com8

Ver Revista Dossiers de lArchologie, Paris-Dijon, n 30, set-out. 1978.

os cristos e com os pagos. Um personagem pode ser denominado por vrios ttulos, alm do de baro. Assim, Carlos Magno rei, imperador; Rolando conde, marqus da marca ou marquesado (territrio de fronteira) da Bretanha. Armas, lanas e espadas constituem os instrumentos de ao do guerreiro, da receberem nomes prprios. Atesta-se a importncia dos cavalos companheiros de trabalho nesta sociedade atravs da descrio dos animais, seu comportamento, sua especializao, conforme a tarefa a ser realizada o que no deixa de revelar uma noo de hierarquia. Apesar de no ser uma obra histrica, o texto permeia vrios traos da sociedade que o escreveu, alguns deles anacrnicos quanto poca dos eventos da Cano. a) A questo poltica do comportamento de Ganelo: vingana pessoal (j anunciada desde o princpio) ou traio ao chefe supremo? Esta dvida transparece no julgamento do cunhado de Carlos Magno, quando se prope perdo-lo por esta vez. Porm, numa sociedade que repousa sobre a fidelidade aos acordos feitos, a atitude pessoal no pode ultrapassar os limites da segurana do chefe supremo, da sua condenao. b) O julgamento de Deus materializado pelo duelo judicirio, que traz ganho da causa em litgio ao vencedor da luta corporal. c) A priso e tortura do ru (Ganelo), bem como sua humilhao ( guardado por gente inferior sua casta). d) A dicotomia Cu-lnferno, j que o conceito de Purgatrio s se concretizar ao longo do sculo XIII. O Paraso um campo de flores, para onde vai diretamente a alma dos justos ou mrtires, cabendo o Inferno aos pagos, danados ou pecadores. e) A guerra de religio no existia ao tempo de Carlos Magno, mas decorre do esprito das cruzadas. Assim, so mrtires os que morrem em defesa de sua f. Por isso, a penitncia imposta pelo arcebispo aos soldados lutar bem. Por outro lado, o guerreiro consciente do devotamento que deve demonstrar na defesa dos valores pelos quais luta e que lhe traro fama. Prova disto o temor s canes maldosas (satricas) que podero ser feitas a respeito dele se sua atitude no se identificar com o padro almejado. f) A conquista da Inglaterra, obra de Guilherme o Normando em 1066, no fez parte da poltica de Carlos Magno, mas sua meno no texto permite de certo modo dat-lo como posterior a este evento. g) Os limites da Francia no sculo X: Saint-Michel du Pril ou So Miguel do Perigo (Bretanha-Normandia), Saints (Colnia ou Xanten, no rio Reno), Wissant (porto do canal da Mancha, ao norte de Boulogne), Besanon (junto s montanhas do Jura) atestados na tempestade pela morte de Rolando no correspondem s fronteiras do vasto imprio carolngio. Conforme a passagem do texto, o termo Frana corresponde a um ou a outro destes dois conceitos territoriais. h) Durante cerca de um ms por ano cada nobre prestava seu servio militar ao suserano, geralmente na primavera-vero, quando se realizavam as campanhas. No texto maio. O rei ou imperador percorria seus domnios para utilizar tais servios na prpria regio em que se

encontrava, bem como para consumir os impostos que lhe eram debitados sob a forma de vveres. Alm da importncia ideolgica da religio, percebe-se no texto, no mbito cultural em sentido estrito, o impacto da formao de base clerical, atravs da influncia da Bblia sobre o escriba, atestada em inmeras passagens, como a dos sonhos premonitrios do imperador, a dos signos precursores do fim do mundo (tempestade pela morte de Rolando), a parada do sol para que o combate se prolongue, a referncia terra de Datan e Abiron, a orao de Carlos Magno antes da batalha final. Por outro lado, ainda por via desta mesma formao de base clerical que devem ter chegado ao poeta referncias a Virglio e Homero, simples menes no exploradas na Cano de Rolando. Pode-se ainda assinalar nesta cano de gesta o padro de beleza medieval, representado no s pela atltica aparncia fsica dos guerreiros como tambm pelos olhos. A excelncia recai sobre os de cor cambiante, como os de Ganelo. O termo original, vair, confunde-se por homofonia com vert, verde, cor identificada com a dos olhos traidores, o que refora este trao do personagem. ESTRUTURAO TEXTO

DO

A apresentao pica opera em terceira pessoa, atravs de um narrador que apresenta os personagens mediante estrutura dialogada.9 Aquele no se anula por trs da narrativa. Talvez como marca da oralidade, ele interrompe seu relato para se dirigir ao auditrio, comentando os fatos e externando suas opinies, favorveis aos valores vigentes. Por isso, lamenta a sorte dos partidrios de Rolando. Por outro lado, desde o incio ele j anuncia o que vai ocorrer: a traio de Ganelo. Deste modo, retira-se a tenso. Resta apenas o prazer de narrar, cheio de digresses, prprias do estilo pico. Alis, uma das convenes picas repousa sobre o fato de que todos sabem o que vai ocorrer (narrador e fruidor da obra), exceto os personagens. Outros lugares-comuns caractersticos do pico so os sonhos, os avisos premonitrios e maus pressgios, as cenas de batalha e de descrio da dor, o adeus fnebre e a genealogia dos personagens, os eptetos, as repeties (de situaes, gestos, estrofes, versos). E como intercalam-se o presente da narrativa com o relato do passado, o perodo tambm alterna pretrito e presente. Os personagens so estereotipados e sem densidade psicolgica, falam pouco e se exprimem por gestos. Isto se verifica a partir do epteto, reduzindo os actantes a um nico trao, marcado por oposio ou por complementaridade Assim, o traidor Ganelo (flon, injria mxima) se ope a Rolando (o preux valor supremo), corajoso e valoroso paladino dos valores estatudos; o bravo se completa com a presena do prudente e sensato Olivier, o sbio (sage). Os traos antitticos naturalmente colaboram para representar uma viso de mundo maniquesta. Logo, os personagens atuam aos pares: Rolando e Olivier, Ganelo e Pinabel, Ganelo x Rolando, Pinabel x Thierry, sendo o companheirismo muito9

Ver STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da potica. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1972. 199 p.

exaltado nos poemas picos. Algumas vezes esta noo transparece atravs da semelhana de nomes: Gerino, Gerier; Ivon, Ivrio; Basan, Basilio; Clarien, Clarifan. Os dilogos dos personagens, que na mesma fala alternam tu e vs como formas de tratamento, restringem-se a ordens de comando, apelo s armas, elaborao de estratgias de luta, comentrios sobre a batalha campal, invectivas verbais para incitar o corpo-a-corpo, muito bem simbolizadas pelos brados de guerra. Excetua-se a discusso entre os paladinos a respeito do toque do olifante, um pouco mais elaborada devido argumentao apresentada. No entanto curioso constatar que, num embate onde tudo ope os dois grupos de participantes, nenhum tem dificuldade em compreender a lngua do outro. A linguagem gestual dos personagens atesta sua parca elaborao interior e a importncia da sociedade oral no texto, motivo pelo qual tudo deve-se transformar em ao. Assim, a luva caindo da mo de Ganelo torna-se um mau pressgio; os sonhos do imperador se concretizam em vises; um acordo selado com beijos, presentes e juras; o anjo fala; a barba exposta sobre o peito indica desafio; o basto e a luva representam o embaixador; o emir bate com a luva no joelho como garantia do que diz; o mrtir Rolando prepara o cenrio de sua morte e volta a luva para Deus, em sinal de submisso; as aes so reiteradas: um d, o outro recebe. A simplificao do personagem confere com a simplificao do enredo, resumido nas peripcias da batalha. Este campo semntico permite justificar os episdios de luta corporal retratados com sangrento realismo, as batalhas colossais e o agigantamento das situaes. Neste sentido, no primeiro embate h 20 mil francos contra 400 mil infiis, depois reduzidos a 60 combatentes contra 100 mil. H 15 mortos rabes para cada cristo abatido. Em torno de Turpino jazem 400 cadveres. Os trs ltimos sobreviventes agonizantes, Rolando, Gautier e Turpino, eliminaram respectivamente 22, 6 e 5 vtimas, sendo que os trs se defrontam com mil homens a p e 40 mil montados. Diante do corpo de Rolando, cem mil franceses desmaiam. Neste mundo, onde predominam os valores e atividades masculinos, a fidelidade palavra empenhada supera qualquer outro preceito. Por isto, Ganelo no pode trair o suserano por uma questo de vingana pessoal contra Rolando; Alda falece ao saber da morte do noivo, pela quebra do pacto e no por amor, sentimento desconhecido poca das canes de gesta. Mas nesta guerra, a religio serve apenas de ponto de partida. Pagos e cristos lutam por prestgio, poder, terras, riquezas, bens materiais, saques, acobertados ideologicamente sob a antinomia Bem/Mal. Seus valores so os mesmos, porm invertidos. Por isso, os francos so fiis, valentes, seguidores da lei de Cristo, belos, bons e detm a certeza de suas posies, ao passo que os rabes so infiis, covardes, herticos, feios, maus e detentores do erro. Tudo se ope, no entanto h homologias entre os dois campos contendores. Em ambos os exrcitos h um chefe supremo, de barba branca como flor, escoltado por um sobrinho e inmeros familiares; cada um dispe de doze pares e de um grito de guerra, uma religio defendida com a luta. Como o escriba ignora o contexto rabe, fato confirmado pela falta de meno verossmil ao

territrio ocupado bem como sua geografia e pelos nomes vagos ou inventados, atribuiu-lhe a mesma estrutura scio-poltica dos francos e concede-lhe uma estranha santssima trindade, composta por Maom (profeta do Isl), Tervagante (divindade fictcia) e Apolo (adaptao do paganismo grego, ao qual tambm se junta Jpiter). E por conta destas transposies e associaes do mundo cristo europeu, onde clero e nobreza compem a classe dominante, o poder e o sagrado vm juntos tambm no poema. Deste modo, as intervenes do maravilhoso cristo (pranto da natureza pela morte do heri, prolongamento do dia para vingar a morte dos pares de Frana, a corte celestial levando a alma de Rolando para o Paraso, a intimidade entre o anjo Gabriel e Carlos Magno) s incidem sobre quem detm o poder o imperador ou seu representante o sobrinho. No conjunto das identificaes, o imperador corresponde ao cavaleiro de Cristo, Rolando ao apstolo fiel, Ganelo a Judas, os doze pares aos apstolos. Finalmente cumpre mencionar a parataxe pica. Na Cano de Rolando os versos so longos, comportando uma orao predominantemente coordenada. Pode-se supor que a conjuno destruiria a harmonia do verso ou que o estado da lngua no a aceita. Na verdade a coordenao pica corresponde a uma estrutura e um estado de esprito, em homologia com a sociedade feudal cerrada e hierarquizada, em consonncia com o estilo romnico rural na medida em que no h governo central e que no h mobilidade social.10 Em suma, o carter pico da Cano de Rolando enfatiza um nico ponto de vista, no deixando margem a ambigidades. Da seu carter exemplar, que permite extrapolar seus conceitos para outras sociedades igualmente maniquestas. Desse modo se explica, em nossos dias, sua intensa sobrevivncia na literatura de cordel brasileira, com todas as adaptaes que o fenmeno comporta, porquanto o sertanejo profundamente religioso peleja em busca de justia num mundo de antagonismo entre ele e o poderoso dono da terra, seu arquiinimigo e representante do Mal. O mito carolngio, embelezado pela lenda, espalhou-se atravs do mundo ocidental, o que se atesta pelas inmeras esttuas, vitrais e iluminuras em toda a Europa, bem como por sua presena, retomada no s atravs de textos de vrias pocas, mas tambm pelos enredos das marionetes sicilianas. A PRESENA ROLANDO

DE

NO BRASIL

A gesta carolngia constitui um tema de alta freqncia na literatura oral nordestina, presente na cantoria e no desafio potico, remetendo sempre a uma noo de destemor e valentia. Sua popularidade uma constante entre a populao pobre e mdia de Portugal e do Brasil, mas desapareceu na Espanha e na Frana atuais. Entre os sertanejos muito vasta a meno aos heris de Roncesvales, como referncia cultural direta ou indireta, guisa de10

Ver HAUSER, Arnold. Historia social de la literatura y del arte. 3. ed. Madrid, Guadarrama, 1969. v. 1. 452 p. Cap. Edad Media.

modelo de bravura e coragem. Assim que, por exemplo, h um distrito denominado Roldo, no municpio de Morada Nova, Cear; os soldados da escolta pessoal do falso monge Jos Maria, da guerra do Contestado (1912-1914), eram Os doze pares de Frana, embora fossem 24 pessoas, chamando-se Roldo o subchefe do monge;11 na Cavalhada, o Partido do Encarnado chefiado por Roldo, o Partido Azul por Oliveiros (Macei, 1952); gmeos so batizados como Roldo e Oliveiros.12 H, pois, toda a sorte de contaminao e extrapolao do tema, que no nos vem, no entanto, da Cano de Rolando, mas da obra em prosa Histria do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de Frana. Este livro, para Cmara Cascudo, foi, at poucos anos, o livro mais conhecido pelo povo brasileiro do interior. De escassa popularidade nos grandes centros urbanos, mantinha seu domnio nas fazendas de gado, engenhos de acar, residncias de praia, sendo, s vezes, o nico exemplar impresso existente em casa. Rarssima no serto seria a casa sem a Histria de Carlos Magno, nas velhas edies portuguesas. Nenhum sertanejo ignorava as faanhas dos Pares ou a importncia do Imperador de Barba Florida13 Os personagens da gesta francesa se adaptaram to bem no Brasil que seus nomes adquiriram significados paradigmticos: Roldo o valente Ferrabrs o brigo, Valdevinos (Balduino) o vagabundo sem eira nem beira, Galalo ou Galalau denota algum desmesuradamente alto, magro e desajeitado; o duque Naimes tornou-se Nem e Baligante o almirante Balo; o apelativo do cavalo de Roldo, Famanaz, atesta as qualidades deste companheiro de trabalho; as espadas e outras armas guardam sua tradicional importncia e freqentemente as primeiras tambm recebem nomes prprios. Isto aparece transfigurado nos folhetos de cordel, onde se fazem adaptaes realidade local, como os trajes de couro, o poder do fazendeiro, a ideologia local, imbuda de maniquesmo e de messianismo, e a viso ingnua do mundo. A fama ilustre desta matria de Frana se integra s mltiplas tradies culturais europias introduzidas no Nordeste desde o incio da colonizao e difundidas oralmente. No entanto, a Histria do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de Frana nos chegou pela via escrita, graas a edies de Lisboa feitas no sculo XVIII, traduzidas por Jernimo Moreira de Carvalho, fsico-mor do Algarve, com recapitulaes e edies de vrios livros sucessivos, incluindo ampliao de trechos de Boiardo (Orlando enamorado, 1495) e Ariosto (Orlando furioso, 1532). Sua forma definitiva foi alcanada no sculo XIX. Este texto a fonte principal das cantorias nordestinas. Divide-se em 2 partes e 9 livros, com acrscimo da Histria de Bernardo del Carpio que venceu em batalha aos Doze Pares de Frana. O ponto de partida para Portugal e Espanha, porm, prende-se obra Histria del Emperador Carlomagno y de los Doce Pares de Francia e de la cruda batalla que hubo Oliverios con Fierabras, Rey de Alexandria,11

Ver QUEIROZ, Maurcio Vinhas de. Messianismo e conflito social (A guerra sertaneja do Contestado: 19121916). 3. ed. So Paulo, tica, 1981. 323 p. 12 CASCUDO, Lus da Cmara. Roland no Brasil. In: _______ Mouros, franceses e judeus. Trs presenas no Brasil. So Paulo, Perspectiva, 1984. 115 p. p. 41-48. 13 CASCUDO, Lus da Cmara. Cinco livros do povo. Introduo ao estudo da novelstica no Brasil. Rio de Janeiro, JosOlympio, 1953. 449 p. p. 441.

hijo del Almirante Balan, edio do alemo Jacob Cromberger, Sevilha, 1525, traduzida do francs por Nicolas de Piemonte.14 A vitalidade do tema se reflete no s nas inmeras verses surgidas na Europa desde a cano de gesta francesa do sculo XII, mas sobretudo em folhetos de cordel, como, entre outros, A batalha de Oliveiros com Ferrabraz e A priso de Oliveiros, de Leandro Gomes de Matos; O cavaleiro Roldo, de Antnio Eugnio da Silva; As traies de Galalo e a morte dos Doze Pares de Frana, de Marcos Sampaio. O sentimento de valor e honra, conforme a representao popular do cangaceiro, se associa figura de Carlos Magno e seus Doze Pares de Frana, referncia clssica para o cantador que celebra no bandido o paladino do povo.15 A relao estreita entre os antigos heris da cano de gesta tradicional e os novos paladinos do serto, os cangaceiros, se devem ao fato de que as leis de honra e a valentia na batalha permitem a passagem da gesta para a lenda. Misturando histria e crnica, os cantadores se preocupam em salvar a imagem do bandido e os valores que ele representa para a comunidade. A permanncia do tema se justifica porque a matria que se conta uma persistncia adequada proveniente de atuante historicidade fundamentada na arraigada tradio cultural e no em modismo recente ou em artificiosidade literria.16 A historicidade e o carter de coletividade explicam o alcance do pico carolngio. A fidelidade antiga gesta se mantm devido coincidncia de mundos, o medieval e o atual nordestino.17 Uma aproximao social irrecusvel entre a Idade Mdia e a realidade nordestina leva a tais persistncias neste universo aparentemente to distante. Da as marcas arcaizantes, por causa das condies de recluso e isolamento da regio onde se pratica esta literatura. Ligia Vassallo A CANO DE ROLANDO I A TRAIO DE GANELO (versos 1 a 1016) A A assemblia dos Sarracenos 1 (versos 1 a 9) O rei Carlos, nosso grande imperador, sete anos completos14 15

Cf. notas 12 e 13. PELLOSO, Silvano. Medioevo nel serto. Tradizione medievale europea & archetipi della letteratura popolare del Nordeste del Brasile. Napoli, Liguori Editore 1984. 206 p. Cap. II: II cangaceiro nordestino paladino dei poveri e flagello di Dio: Carlos Magno e Roberto il Diavolo. 16 FERREIRA, Jerusa Pires. Cavalaria em cordel. O passo das guas mortas. So Paulo, Hucitec, 1979. 140 p. p. 15. 17 FERREIRA, J. P.Op.cit. p. 99. Traduo de Ligia Vassallo. A presente traduo da Chanson de Roland foi feita a partir da edio bilnge (francs antigo e francs moderno) estabelecida por Yves Bonnefoy (Paris, UGC 10/18, 1968) e confrontada com a edio comentada de Guillaume Picot (Paris, Larousse, 1972. 2 vol.)

permaneceu na Espanha: conquistou a terra altiva at o mar. Nenhum castelo resiste diante dele; no lhe resta abater nenhum muro, nenhuma cidade, exceto Saragoa, que fica numa montanha. Domina-a o rei 2 Marsilio, que no ama Deus. Ele serve a Maom e invoca Apolo: No pode se proteger, nem impedir a desgraa de o atingir. 2 (versos 10 a 23) O rei Marsilio estava em Saragoa. Foi para a sombra de um vergel. Repousa em um prtico de mrmore azul. Em torno dele esto mais de vinte mil homens. Ele convoca seus condes e duques. Escutai, senhores, a calamidade que nos assola. O imperador Carlos da Doce Frana veio a este pas para nos confundir. No tenho exrcito para combat-lo. No tenho homens capazes de desbaratar o exercito dele. Aconselhai-me como sbios e salvai-me da morte e da vergonha! Nenhum pago responde 3 uma s palavra, exceto Blancandrino, do castelo de Val Fonde. 3 (versos 24 a 46) Blancandrino era um dos mais sbios entre os pagos: digno cavalheiro de valor para assistir seu senhor. Ento ele disse ao rei: No vos inquieteis! A Carlos, o orgulhoso e pretensioso, enviai palavras de fiel servio e grande amizade. Vs lhes dareis ursos e lees e ces, setecentos camelos e mil aores j com as penas mudadas, quatrocentos mulos carregados de ouro e prata, cinqenta carros com que formar um comboio: ele poder pagar fartamente a seus soldados. Dizei que ele j guerreou muito tempo nesta terra; que a Aix, em Frana, ele deveria retornar; que vs o encontrareis l na festa de So Miguel e recebereis a lei dos cristos e vos tornareis seu vassalo com toda a honra e todo o bem Se ele quiser refns, ento enviai-lhe uns dez ou vinte, para dar-lhe confiana. Enviai-lhe os filhos de nossas mulheres4: eu enviarei o meu, ainda que ele possa perecer. Mais vale eles perderem as cabeas do que ns perdermos nossos ttulos e propriedades e sermos reduzidos a mendigos!5 4 (versos 47 a 61) Blancandrino disse: Por esta minha mo direita e pela barba6 que cai em meu peito, logo vereis desfeito o exrcito dos Franceses. Os

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Embora a lenda fale em sete anos, segundo a realidade histrica Carlos Magno permaneceu apenas poucas semanas na Espanha, que jamais conquistou. Junto com Tervagante, Maom e Apolo constituem a trindade santa atribuda aos sarracenos. Notar que o primeiro no existe, o segundo um profeta de Al, o terceiro um deus grego. Como o poeta cristo ignora os preceitos da religio muulmana, faz tais incongruncias e misturas. A mesma ingenuidade leva-o a transpor para os rabes a hierarquia feudal dos cristos (estrofe 2). Este termo vago no indica um ponto geogrfico preciso, mas vale como designao de castelo. Indica que o autor no conhecia a terra ocupada pelo grupo rival, por isso inventa nomes de localidades, ao passo que fidedigno quanto aos da sua sociedade. Esta ocorrncia se repete ao longo do texto do poema, pois h vrias outras denominaes iniciadas por Val (vale). Existem tambm muitas liberdades poticas quanto geografia de Espanha. 4 Notar neste contexto a pouca importncia atribuda s mulheres e aos filhos (meros instrumentos dos pais). 5 Sob a capa da guerra de religies, est em jogo a questo da posse da terra e de bens materiais. 6 A barba longa, para muulmanos e cristos, uma moda do sculo XI. No tempo de Carlos Magno os homens s usavam bigode. Anacronismo.

Francos voltaro para sua terra, a Frana. Quando cada um tiver retornado a suas propriedades, quando Carlos estiver em Aix, em sua capela, ele convocar uma alta Corte na festa de So Miguel. O dia vir e o prazo passar sem que ele de ns oua palavras ou notcias.7 O rei orgulhoso e seu corao cruel. Ele mandar cortar a cabea dos refns. Mais vale eles perderem as cabeas do que ns perdermos a Espanha clara e bela e suportarmos males e sofrimentos! Os pagos dizem: Talvez ele diga a verdade! 5 (versos 62 a 77) O rei Marsilio suspendeu a assemblia da Corte.8 Ento chamou Clarino de Balaguer9, Estamarino e Eudropino, seu par, e Priamon, e Guarlan o Barbudo, e Machiner e seu tio Maheu, e Jouner e Malbiano de Ultramar, e Blancandrino, para expor sua misso. Dentre os mais infiis, colocou dez parte: Senhores bares, ireis a Carlos Magno. Ele sitia a cidade de Cordres.10 Em vossas mos levareis ramos de oliveira, o que significa paz e humildade. Se por vossa perspiccia puderdes estabelecer um acordo, eu vos darei uma quantidade de ouro e prata, tantas terras e feudos quanto quiserdes. Os pagos dizem: Estamos satisfeitos! 6 (versos 78 a 88) O rei Marsilio suspendeu a assemblia da Corte.11 Ele disse a seus homens: Senhores, vs ireis. Em vossas mos levareis ramos de oliveira e direis ao rei Carlos Magno que por seu Deus tenha misericrdia de mim. Ele no ver passar este primeiro ms sem que eu me junte a ele com mil dos meus fiis, e receberei a lei crist e serei seu vassalo com todo o amor e toda a f. Se quiser refns, ele os ter de fato. Blancandrino disse: Obtereis assim um excelente acordo. 7 (versos 89 a 95) Marsilio mandou trazer dez mulas brancas que o rei de Suatilia12 lhe tinha enviado. Os freios so de ouro, as selas ornadas de prata. Os portadores da mensagem esto montados; nas mos levam ramos de oliveira. Eles chegaram a Carlos que domina a Frana. Ele no pode se defender: eles o enganaro. B A assemblia dos Franceses 8 (versos 96 a 121) O imperador est alegre e satisfeito: ele tomou Cordres. Desuniu as cinco muralhas. Com suas mquinas, abateu as torres. Um imenso saque est nas mos de seus cavaleiros: ouro, prata, preciosas armaduras. Na7

O maniquesmo do poema atribui aos pagos muulmanos o esteretipo de falsos e traidores, j que no seguem a lei de Cristo. 8 Observar a homologia entre os dois exrcitos em luta: Carlos Magno tambm ter sua assemblia da corte. Outros elementos aparecero igualmente em espelho no poema, mostrando, por parte do poeta cristo, a ignorncia quanto ao sistema social e militar dos rabes. 9 Cidade perto de Lrida, na Catalunha. 10 Talvez Crdoba, jamais conquistada por Carlos Magno. 11 Verso idntico ao da estrofe anterior. A repetio prpria do estilo pico. 12 Pode ser Sevilha, na Espanha, ou a Siclia, na Itlia.

cidade no restou nenhum pago que no tivesse sido morto ou feito cristo. O imperador est num grande vergel; perto dele, Rolando e Olivier13, o duque Samson e Anses, o orgulhoso, Geoffroy de Anjou, portaestandarte do rei, e l tambm estavam Gerino e Gerier14, e no mesmo lugar havia tambm muitos outros. De Doce Frana, so quinze milhares. Em brancos tapetes esto sentados estes cavaleiros. Para se divertir, jogam dados e os mais espertos e os mais sbios jogam xadrez e os jovens fidalgos geis esgrimam. Debaixo de um pinheiro, perto de uma roseira silvestre, instalaram um trono todo feito de ouro puro. L est sentado o rei que domina a Doce Frana. Ele tem a barba branca e a cabea florida, o corpo belo, o porte altivo. Se o procuram, no preciso design-lo. E os mensageiros apearam e o saudaram com todo o amor e todo o bem. 9 (versos 122 a 138) Blancandrino falou em primeiro lugar. Ele disse ao rei: Salve em nome de Deus Glorioso, que ns todos devemos adorar! Eis o que vos envia o rei Marsilio, o bravo. Ele meditou muito sobre a lei que salva. Ele quer vos dar muitos de seus bens, ursos e lees, ces de caa presos coleira, setecentos camelos e mil aores j com as penas mudadas, quatrocentos mulos carregados de ouro e prata, cinqenta carros que mandareis carregar. Haver tantas moedas de ouro fino que podereis pagar fartamente a vossos soldados. Vs permanecestes bastante tempo neste pas. Convm retornar a Aix, na Frana. Meu senhor afirma que vos encontrar l. 0 imperador estende as mos para Deus, abaixa a cabea e pe-se a pensar. 10 (versos 139 a 156) O imperador mantm a cabea abaixada. Jamais sua palavra foi apressada: tal seu costume, ele fala com calma. Quando se ergueu, seu rosto exprimia uma imensa altivez. Ele disse aos mensageiros: Falastes bem. O rei Marsilio meu grande inimigo: em que medida poderei estar seguro das palavras que acabastes de pronunciar? Pelos dez, quinze ou vinte refns que tereis, disse o Sarraceno. Eu enviarei um filho meu ainda que ele possa perecer, e, creio, recebereis outros ainda mais nobres. Quando estiverdes em vosso palcio senhoria!, na grande festa de So Miguel do Perigo, meu senhor afirma que vos encontrar l. nas guas termais que Deus fez para vs15, que ele quer tornar-se cristo. Carlos responde: Ele ainda pode ser salvo. 11 (versos 157 a 167)13

Rolando e Olivier, com personalidades opostas, so personagens recorrentes na literatura de cordel brasileira, onde aparecem com os nomes de Roldo e Oliveiros. A histria desta amizade contada em outra cano de gesta, a Cano de Girart de Vienne, que lutava contra seu suserano Carlos Magno. No combate decisivo deviam defrontar-se Olivier, sobrinho de Girart, e Rolando, sobrinho de Carlos Magno. Rolando venceu Olivier, obtendo como prmio e reconciliao a mo de Alda, irm de Olivier. 14 Os personagens aparecem freqentemente aos pares, como Rolando e Olivier, Gerino e Gerier, Basan e Baslio, Ivon e Ivrio. 15 Os romanos j conheciam as fontes termais de Aix-la-Chapelle, cujo nome deriva do latim aqua e hoje se encontra em territrio alemo, chamando-se Aachen. O poeta segue aqui uma tradio popular segundo a qual estas fontes surgiram por milagre.

A tarde estava bela e o sol claro. Carlos manda colocar os dez mulos no estbulo. No grande vergel o rei manda armar uma tenda para abrigar os dez mensageiros; doze servidores se encarregaram de cuidar bem deles. Eles permanecem toda a noite at o amanhecer do dia claro. De madrugada o imperador se levantou, assistiu missa e s matinas. Foi para debaixo de um pinheiro; convoca seus bares para uma assemblia: pelos de Frana quer ser guiado em todas as coisas. 12 (versos 168 a 179) O imperador foi para debaixo de um pinheiro; ele convoca seus bares para uma assemblia da Corte, o duque Ogier e o arcebispo Turpino16, Ricardo o Velho e seu sobrinho Henrique, e o bravo Acelino, conde de Gasconha, Thibaud de Reims e Milon, seu primo. Vieram tambm Gerier e Gerino; e com eles o conde Rolando e Olivier, o bravo e o nobre; so mais de um milhar de Francos de Frana; veio Ganelo, que fez a traio. Ento comea a assemblia a que devia se seguir uma grande desgraa. 13 (versos 180 a 192) Senhores bares, diz o imperador Carlos, o rei Marsilio me enviou seus mensageiros. Ele quer me dar uma boa parte de seus bens, ursos e lees e ces de caa presos coleira, setecentos camelos e mil aores j com as penas mudadas, quatrocentos mulos carregados de ouro da Arbia, e alm disso mais de cinqenta carros. Mas ele pede que eu v para a Frana: ele me encontrar em Aix, em minha residncia, e receber a nossa lei, a mais redentora; ele ser cristo e de mim ter seus marquesados: mas no sei qual a sua verdadeira idia a este respeito. Os Franceses dizem: Convm desconfiarmos!17 14 (versos 193 a 213) O imperador desenvolveu seu ponto de vista. O conde Rolando, que no concorda, pe-se de p e apresenta sua contestao. Ele diz ao rei: para vossa desgraa que acreditareis em Marsilio! H sete anos completos ns chegamos Espanha. Conquistei para vs Noples e Comibles; tomei Valterne e a terra de Pina, e Balaguer e Tudela e Sezinha18: o rei Marsilio ento agiu inteiramente como um traidor. Enviou quinze dos seus pagos e cada um levava um ramo de oliveira; eles pronunciaram as mesmas palavras que agora. A esse respeito vs pedistes o conselho dos Franceses; e eles vos aconselharam com alguma leviandade. Vs enviastes dois de vossos condes aos pagos, um era Basan, o outro Basilio. Na montanha, em Haltilia, ele lhes cortou a cabea. Fazei a guerra como comeastes. Levai a Saragoa vosso exrcito reunido por uma16

No sistema feudal aos membros do clero cabe orar. Embora no incio da Idade Mdia religiosos participassem dos embates em campo de batalha, isto no ocorre no sculo VIII. Aqui h um anacronismo, talvez decorrente da poca das cruzadas, quando havia ordens religiosas e guerreiras, como a dos Templrios. 17 Conforme se ver, Marsilio j deu vrias provas de infidelidade palavra empenhada, da a desconfiana em relao a ele. 18 Localidades difceis de identificar. Reconhece-se porm: Valterne (Valtierra), Pina (perto de Saragoa), Balaguer (na Catalunha), Tudela (Toledo), Sezilha (talvez Sevilha). Noples seria a fortaleza de Nopal, nos Pirineus.

convocao, sitiai-a, ainda que seja para durar toda a vossa vida, e vingai aqueles que o infiel fez perecer. 15 (versos 214 a 229) Imediatamente o imperador abaixou a cabea. Ele acaricia a barba, torce o bigode, no responde sim nem no ao sobrinho. Os Franceses se calam, exceto Ganelo. Ele se pe de p e vem diante de Carlos; muito altivo, desenvolve seu pensamento e diz ao rei: para vossa desgraa que acreditareis num louco, eu ou qualquer outro, se ele no falar movido por vosso interesse. Quando o rei Marsilio voz diz com as mos juntas que se tornar vosso vassalo e guardar toda a Espanha como um dom de vossa parte e ento receber a lei que observamos, aquele que vos aconselha rejeitarmos este acordo, senhor, importa-se pouco de que morte ns morreremos. No justo que prevalea um conselho ditado pelo orgulho; deixemos os loucos e atenhamo-nos aos sbios! 16 (versos 230 a 243) Depois deles, adiantou-se Naimes19 : no havia na Corte melhor vassalo, e ele disse ao rei: Vs ouvistes bem a resposta que vos deu o conde Ganelo: ela sensata; basta acat-la. O rei Marsilio est vencido nesta guerra: vs lhe tomastes todos os castelos; com vossas catapultas, quebrastes suas muralhas, queimastes suas cidades e vencestes seus homens. Hoje, que ele vos pede misericrdia, fazer pior seria um pecado. J que ele vos quer dar refns como garantia, esta guerra no deve se prolongar. Os Franceses dizem: O duque falou bem! 17 (versos 244 a 251) Senhores bares, que enviaremos a Saragoa, ao rei Marsilio? O duque Naimes responde: Eu irei, com vosso consentimento! Dai-me logo a luva e o basto. O rei disse: Sois um homem de grande sabedoria: por minha barba e meu bigode, no ireis to longe de mim este ano. Sentaivos, pois ningum vos solicita! 18(versos252a263) Senhores bares, quem poderemos enviar a Sarraceno que domina Saragoa? Rolando responde: Posso muito bem ir! Certo que no, contesta o conde Olivier. Vosso corao terrvel e orgulhoso: eu prprio temeria que brigsseis. Se o rei quiser, eu posso ir. O rei responde: Calai ambos sobre este assunto! Nem vs nem ele poreis l os ps. Por esta barba que vedes branca, desgraa para quem achar que um dos pares deve ir! Os Franceses se calam. Ei-los desconcertados. 19 (versos 264 a 273) Turpino de Reims se levanta de sua fileira e diz ao rei: Deixai vossos Francos em repouso; vs permanecestes sete anos neste pas. Senhor, dai-me o basto e a luva; irei eu ao Sarraceno de Espanha; irei ver um pouco como ele feito. Mas o imperador responde encolerizado:19

Este conselheiro de Carlos Magno chama-se duque de Nem no cordel. Ganelo Galalo ou Galalau, Baligante o Almirante Balo.

Sentai-vos neste tapete branco e no faleis mais, a menos que eu ordene. 20 (versos 274 a 295) Cavaleiros Francos, disse o imperador Carlos, escolhei um baro de meu marquesado para levar ao rei Marslio minha mensagem. Rolando diz: Ser Ganelo, meu padrasto.20 Os Franceses dizem: Perfeitamente, ele pode muito bem fazer isso. Se no o aceitardes, no enviareis outro mais sbio. O conde Ganelo ficou tomado de angstia; sacode dos ombros as grandes peles de marta e fica com a tnica de seda. Ele tem os olhos cambiantes21 e o rosto altivo; tem o corpo bem feito e o peito largo. to belo que todos os seus pares o admiram. Diz a Rolando: Louco, que fria te toma? Sabe-se muito bem que sou teu padrasto e me designas para ir a Marslio! Se Deus me permitir voltar, eu te causarei um mal to grande que durar toda a tua vida. Rolando responde: As palavras que ouo so pretensiosas e loucas. Sabe-se muito bem que no tenho medo de ameaas. Mas para esta embaixada preciso um homem sbio. Se o rei consentir, estou pronto a ir em vosso lugar. 21 (versos 296 a 302) Ganelo responde: Tu no irs por mim. No s meu vassalo e eu no seu teu senhor. Carlos me ordena que faa seu servio: eu irei a Marslio em Saragoa; mas farei alguma loucura antes de acalmar minha grande clera.22 Quando Rolando ouve, comea a rir. 22 (versos 303 a 309) Quando Ganelo v que Rolando ri dele, sente uma dor to grande que pensa estourar de raiva; falta pouco para perder a cabea. Ele diz ao conde: Eu no vos amo; fizestes recair sobre mim esta escolha prfida. Justo imperador, eis-me aqui presente; quero cumprir vossa ordem. 23 (versos 310 a 318) Sei que devo ir a Saragoa. Quem vai l pode no voltar. Senhor, lembrai que minha mulher vossa irm e que dela eu tenho um filho: no se pode encontrar algum mais belo. Balduino, que ser um bravo. A ele deixo minhas propriedade e meus feudos. Cuidai dele, pois os meus olhos no o vero mais.23 Carlos responde: Tendes o corao fraco. Deveis ir, pois eu ordeno. 24 (versos 319 a 330) O rei diz: Ganelo, avanai e recebei o basto e a luva. 24 Vs ouvistes, os Franceses vos designam. Senhor, diz Ganelo, foi Rolando20

Ganelo casado com Berta, me de Rolando e irm de Carlos Magno. Ganelo e Berta tm um filho, Balduno. Ganelo um dos traidores em Tristo e Isolda. 21 No original o termo para os olhos de Ganelo vair, que significa cambiante, um dos traos de beleza na Idade Mdia. Homnimo de vert (verde), cor de olhos atribuda aos traidores. Alis, desde a estrofe 12 j se sabe que ele traidor, procedimento comum no estilo pico. 22 A fria de Ganelo e a ameaa explcita a Rolando deixam prever a vingana que ocorrer. Tal procedimento anunciador, prprio do estilo pico, reduz a tenso da narrativa. 23 Temeroso por seu destino, Ganelo faz seu testamento antes de partir para a misso perigosa. 24 Estes objetos so signos materiais de que Ganelo parte como embaixador de Carlos Magno.

quem fez tudo; jamais o amarei em toda minha vida, nem Olivier, porque seu companheiro, nem os doze pares, porque o amam tanto. Eu os desafio, diante de vossos olhos. O rei lhe diz: Tendes clera demais, vs ireis com certeza, pois eu ordeno. Eu posso ir, mas no terei nenhuma proteo, tanto quanto no tiveram Basilio e seu irmo Basan. 25 (versos 331 a 336) O imperador estende a Ganelo a luva com sua mo direita, mas o conde bem que gostaria de no estar l; no momento em que devia segur-la, a luva cai no cho25 e os Franceses dizem: Deus, que pressgio este? Esta mensagem resultar em grande desgraa para ns. Senhores, diz Ganelo, vs terei notcias. 26 (versos 337 a 341) Senhor, diz Ganelo, da-me a permisso de partir; j que tenho que ir, no adianta demorar. O rei diz: Ide, com a permisso de Jesus e a minha! Com a mo direita, absolve-o e faz o sinal-da-cruz. Depois, d-lhe o basto e o breve. 27 (versos 342 a 365) O conde Ganelo vai para o seu acampamento: trata de se enfeitar com os melhores adornos que pode encontrar. Nos ps colocou esporas de ouro: na cintura cingiu a espada Murgleis. Montou em seu corcel Tachebrun. Seu tio Guinemer lhe segurou o estribo. Ali vereis chorar tantos cavaleiros que lhe diziam: Que desgraa para vs, o valente! Na Corte do rei permanecestes longo tempo. Sois considerado como um nobre vassalo. Carlos Magno no poder proteger nem salvar aquele que julgou que vos caberia ir. O conde Rolando no deveria ter tido esta idia, pois descendeis de uma linhagem muito alta. Em seguida dizem: Senhor, levai-nos. Ganelo responde: No agrada ao Senhor Deus! melhor que eu morra s do que seguido por tantos bons cavaleiros. Senhores, vs ireis para a Doce Frana: saudai por mim minha mulher e Pinabel, meu amigo e meu par, e Balduino, meu filho, que vs conheceis; dai-lhe vossa ajuda e tomai-o por vosso senhor. Ele se pe a caminho e partiu. C A embaixada de Ganelo 28 (versos 366 a 376) Ganelo cavalgava entre altas oliveiras; ele se juntou aos mensageiros sarracenos e a Blancandrino, que diminui a marcha; ambos trocam palavras cheias de malcia: Carlos um homem maravilhoso, diz Blancandrino: ele conquistou a Aplia e a Calbria26, atravessou o mar salgado e ganhou para So Pedro o tributo da Inglaterra. Mas o que vem buscar em nosso marquesado? a vontade dele, diz Ganelo; jamais25 26

Sinal de mau agouro. Os feudos da Aplia e da Calbria, protetorados de Carlos Magno, foram conquistados em 1509 pelo normando Robert Guiscard. A Inglaterra jamais pertenceu ao territrio de Carlos Magno, mas sua conquista em 1066 pelo normando Guilherme o Conquistador explica que se atribua ao imperador que viveu no sculo VIII faanhas praticadas por outros, mais prximos da poca da composio do poema (sculo XII).

haver um homem de molde a se medir com ele. 29 (versos 377 a 391) Blancandrino diz: Os franceses so muito nobres! Mas estes duques e condes fazem grande mal ao seu senhor dando-lhe tais conselhos. Eles o esgotam e levam perda dele e de outros com ele. Ganelo responde: Que eu saiba, isto no verdade para ningum, a no ser para Rolando, que um dia se arrepender! No outro dia, o imperador estava sentado sombra; viu o sobrinho vestido com a cota de malhas; ele tinha feito um saque perto de Carcassonne. Na mo segurava uma ma vermelha: Pegai, caro senhor, eu vos ofereo a coroa de todos os reis. Seu orgulho deveria lev-lo perda, pois cada dia ele se expe morte. Se viesse algum que o matasse, teramos paz completa. 30 (versos 392 a 401) Blancandrino diz: Rolando to terrvel que quer reduzir sua merc todas as naes e reivindicar todas as terras. Com quem conta ele para querer fazer tanto? Ganelo responde: Com os Franceses! Eles o amam tanto que jamais lhe faltaro. Ele lhes d tanto ouro e prata, tantos mulos, corcis, tecidos de seda e armaduras! O prprio imperador tem tudo o que quer. Ele conquistar a terra daqui at o Oriente. 31 (versos 402 a 413) Tanto cavalgaram Ganelo e Blancandrino que acabaram por unir suas idias e prometer que procurariam fazer Rolando morrer. Tanto cavalgaram por vias e caminhos que, chegados a Saragoa, apearam junto a uma rvore. sombra de um pinheiro se encontra um trono recoberto de seda de Alexandria; l est o rei que domina toda a Espanha; em volta dele, vinte mil Sarracenos, mas ningum diz nem sussurra nenhuma palavra, de tal modo tm pressa de ouvir as notcias. Enfim, eis Ganelo e Blancandrino. 32 (versos 414 a 424) Blancandrino avana diante de Marslio, segura o conde Ganelo pelo pulso e diz ao rei: Salve, em nome de Maom e de Apolo, de quem seguimos as santas leis! Levamos vossa mensagem a Carlos; ele levantou as duas mos para o cu, louvou seu Deus, sem dar nenhuma resposta. Ele vos envia um de seus nobres bares, homem de Frana e muito poderoso. Atravs dele sabereis se tereis a paz ou no. Que ele fale, diz Marsilio, e ns o ouviremos. 33 (versos 425 a 440) Mas o conde Ganelo havia pensado longamente: comea a falar com muita arte, como um homem hbil em fazer isso. Diz ao rei: Salve em nome de Deus, do Glorioso a quem devemos adorar! Eis o que vos manda dizer Carlos Magno, o bravo: vs recebereis o santo batismo, ele vos dar como feudo a metade da Espanha. Se no consentirdes neste acordo, sereis preso e amarrado fora, levado at Aix, a capital, e l um julgamento por fim vossa vida; vs morrereis de morte vergonhosa e vil. O rei Marsilio ficou horrorizado; pegou uma flecha emplumada com

ouro; quer ferir Ganelo, mas os seus o seguram. 34 (versos 441 a 450) O rei Marsilio mudou de cor, brandiu sua flecha; Ganelo v isso, leva a mo espada e tira-a da bainha cerca de dois dedos. Depois diz: Minha espada, sois bela e clara; enquanto eu vos tiver, na Corte deste rei, o imperador da Frana no poder dizer que morri sozinho em terra estrangeira, pois antes de morrer os melhores de vs pagaro com a vida. Os pagos dizem: Impeamos a batalha. 35 (versos 451 a 467) Os melhores Sarracenos pediram tanto a Marsilio que ele voltou a sentar-se no trono. O califa disse: Vs vos colocais em m situao ao querer atacar o Francs: deveis ouvi-lo. Senhor, diz Ganelo, consinto em suportar esta afronta; mas por todo o ouro que Deuz fez e por todos os tesouros deste pas, se me derem a oportunidade, no deixarei de dizer a mensagem que Carlos, o rei todo-poderoso, envia por mim a seu mortal inimigo. Ganelo estava vestido com um manto de zibelina, forrado de seda de Alexandria. Joga-o por terra e Blancandrino o recebe; mas evita soltar a espada e a segura na mo direita pelo punho dourado. Os pagos dizem: Eis um nobre baro. 36 (versos 468 a 484) Ganelo se aproxima do rei e lhe diz: Vs vos irritais toa; pois eis o que vos manda dizer Carlos, que domina a Frana: recebei a f crist, ele vos dar como feudo a metade da Espanha e seu sobrinho Rolando ter a outra metade: tereis a um vizinho orgulhoso. Se no consentirdes neste acordo, Carlos vai sitiar Saragoa: sereis preso e amarrado fora e levado diretamente a Aix, a capital. No tereis nem palafrm nem corcel nem mulo nem mula para cavalgar. Sereis colocado numa pobre besta de carga; um julgamento vos condenar a ter a cabea cortada. Nosso imperador vos envia este breve. E ele o estende ao pago, com a mo direita. 37 (versos 485 a 500) Marsilio empalideceu de raiva: rompe o sinete, tira a cera, olha o breve e v seu contedo: Carlos, que domina a Frana, manda-me lembrar de sua dor e sua clera: trata-se de Basan e seu irmo Basilio, cujas cabeas mandei cortar nas montanhas de Haltilia. Se eu quiser salvar a vida de meu corpo, preciso enviar-lhe o califa meu tio, pois de outro modo ele no me amar mais. Ento o filho do rei Marsilio toma a palavra e diz ao rei: Ganelo falou como um louco. Ele agiu to mal que no tem o direito de viver. Entregai-o a mim e eu farei justia. Quando Ganelo ouve isso, brande a espada e vai se apoiar no tronco do pinheiro. 38 (versos 501 a 511) O rei Marsilio vai para seu vergel; leva consigo os melhores vassalos e Blancandrino de cabelos brancos e Jurfaret, seu filho e herdeiro, e o califa, seu tio e fiel. Blancandrino diz: Chamai o Francs, ele me deu a palavra que serviria a nossa causa. O rei responde: Ide procur-lo.

Blancandrino segura Ganelo pelos dedos da mo direita, e leva-o ao vergel, at o rei. Ali, eles discutem a infame traio. 39 (versos 512 a 519) Caro senhor Ganelo, diz o rei Marsilio, agi convosco meio tolamente quando em meu arrebatamento quis atacar-vos. Vou-me redimir, oferecendo-vos estas peles de zibelina; seu ouro vale mais de quinhentas libras. Antes de amanh tarde pagar-vos-ei uma bela compensao. No recuso, diz Ganelo; que Deus vos recompense, se for sua vontade. 40 (versos 520 a 536) Marsilio diz: sabeis, Ganelo, que em verdade estou propenso a vos amar muito; quero vos ouvir falar de Carlos Magno; ele tem mais de duzentos anos! Ele levou seu corpo atravs de tantas terras! Recebeu tantos golpes no escudo! Reduziu tantos reis mendicncia! Quando renunciar guerra? Ganelo diz: Carlos no assim; quem o v e sabe conhec-lo s pode dizer: o imperador um bravo. Eu no saberia elogilo e louv-lo o bastante diante de vs, pois em lugar algum existe maior honra nem maior bondade. Quem poderia descrever seu grande valor? Deus o distingue com tal virtude que ele preferiria morrer a faltar a seus bares. 41 (versos 537 a 549) O pago diz: Carlos Magno para mim causa de grande encantamento; ele est velho e encanecido, que eu saiba ele tem duzentos e tantos anos! Ele atormentou seu corpo por tantas terras! Recebeu tantos golpes de lana e de maa! Reduziu tantos reis mendicncia! Quando renunciar guerra? Certamente no enquanto viver seu sobrinho, diz Ganelo. Debaixo do cu, ningum to bravo; um verdadeiro bravo, tanto quanto Olivier, seu companheiro; os doze pares27, que Carlos tanto ama, formam a vanguarda com vinte mil cavaleiros. Carlos est tranqilo, no teme homem algum. 42 (versos 550 a 562) O Sarraceno diz: Carlos Magno para mim causa de grande encantamento; ele est encanecido e branco; que eu saiba, ele tem mais de duzentos anos. Ele passou por tantas terras conquistando-as! Recebeu tantos golpes de boas lanas cortantes! Matou e venceu no campo de batalha tantos reis poderosos! Quando renunciar guerra? Certamente no enquanto viver Rolando, diz Ganelo; daqui at o Oriente, no h bravo igual a ele; um verdadeiro bravo tanto quanto Olivier, seu companheiro! Os doze pares, que Carlos Magno tanto ama, formam a vanguarda com vinte mil Franceses. Carlos est tranqilo e no27

No direito feudal os pares eram originalmente os vassalos de um mesmo suserano. Mais tarde o termo designou os vassalos mais poderosos, que formavam junto ao suserano uma espcie de corte e de conselho. Trata-se de um anacronismo: transpe-se ao perodo carolngio uma instituio da poca feudal. Os doze pares de Carlos Magno, em homologia com o nmero de apstolos, so: Rolando, Olivier, Gerino, Gerier, Berenger, Othon, Samson, Engelier, Ivon, Ivrio, Anses, Gerard de Roussillon. Esta lista pode mudar de um poema a outro. No cordel entende-se par como dupla, surgindo ento vinte e quatro cavaleiros.

teme nenhum homem vivo. 43 (versos 563 a 579) Caro senhor Ganelo, diz o rei Marsilio, tenho um belo exrcito: no podereis ver mais belo que este; posso ter quatrocentos mil cavaleiros; posso assim combater Carlos e os Franceses? Ganelo responde: No desta vez. Vs perdereis os vossos melhores pagos. Deixai a loucura de lado, atei-vos sabedoria. Dai tantas riquezas ao imperador que todos os Franceses fiquem maravilhados; com vinte refns que enviardes o rei voltar para a Doce Frana. Deixar atrs de si a retaguarda. O conde Rolando, seu sobrinho, l estar, creio, e com ele Olivier, o bravo e o corts. Se acreditardes em mim os dois condes estaro mortos. Carlos ver cair seu grande orgulho e nunca mais desejar vos combater. 44 (versos 580 a 595) Caro senhor Ganelo, diz o rei Marsilio, como fazer para matar Rolando? Ganelo responde: Sei dizer-vos; o rei estar nos melhores desfiladeiros de Ciza28, atrs de si, deixar a retaguarda. Seu sobrinho, o poderoso conde Rolando, l estar, e Olivier, em quem ele tanto confia; tero consigo vinte mil Franceses. Enviai contra eles cem mil de vossos pagos; que travem uma primeira batalha. A gente de Frana ficar ferida e morta. No digo que no haver tambm um grande massacre dos vossos. Depois, igualmente, travai uma segunda batalha; de uma ou de outra Rolando no escapar; realizareis uma bela proeza e no tereis mais guerra em toda a vossa vida. 45 (versos 596 a 602) Quem fizer Rolando perecer tirar a Carlos o brao direito do corpo. Adeus exrcitos maravilhosos! Carlos no mais reunir tantas foras e a Grande Terra29 ficar tranqila. Quando Marsilio ouve Ganelo, abaixa o pescoo; depois, comea a mostrar seus tesouros. 46 (versos 603 a 608) Marsilio diz [...]:30 Um acordo s bom se for garantido. Jurai-me trair Rolando, se ele vier c. Ganelo responde: Que seja como quiserdes! Sobre as relquias de sua espada Murgleis31, ele jura a traio: o delito est realizado. 47 (versos 609 a 616) Havia um trono todo de marfim. Marsilio mandou solenemente trazer um livro: ele contm a lei de Maom e de Tervagante. O Sarraceno de Espanha jurou que se encontrar Rolando na retaguarda combater a ele e a todos os seus homens e, se puder, mat-lo- de verdade. Ganelo responde: Que vosso desejo se cumpra.28 29

Regio da Navarra perto de Roncesvales. a terra dos ancestrais, expresso tambm empregada pelos de Espanha. 30 Manuscrito alterado. 31 Habitualmente colocava-se alguma relquia sagrada no punho da espada.

48 (versos 617 a 626) Eis que chega um pago, Valdabron. Ele se aproxima do rei Marsilio. Com seu riso claro diz a Ganelo: Tomai minha espada; ningum tem outra melhor: s a sua guarda vale mais de mil moedas. Por amizade, caro senhor, dou-a a vs, para que nos ajudeis a propsito de Rolando, o bravo, para que possamos encontr-lo na retaguarda. Assim ser feito, responde o conde Ganelo. Depois eles se beijam no rosto e no queixo. 49 (versos 627 a 633) Em seguida veio um pago, Climborino; rindo muito ele diz a Gamelo: Tomai meu elmo, jamais vi melhor do que este, e ajudai-nos a propsito de Rolando, o marqus32, de modo que possamos desonr-lo. Assim ser feito, responde o conde Ganelo. Depois eles se beijaram na boca e no rosto. 50 (versos 634 a 641) Ento veio a rainha Bramimonda: Eu vos amo muito, senhor, disse ela ao conde, porque meu senhor e todos os seus homens vos apreciam muito. A vossa esposa enviarei dois colares; so de ouro puro, ametistas, jacintos; valem mais que todo o ouro de Roma; vosso imperador jamais teve to belos assim. Ele os pegou e guardou na polaina. 51 (versos 642 a 646) O rei chama Mauduit, seu tesoureiro: Os tesouros de Carlos esto preparados? E ele responde: Sim, senhor, do melhor possvel: setecentos camelos carregados de ouro e prata, e vinte refns, dos mais nobres que h debaixo do cu. 52 (versos 647 a 660) Marsilio segurou Ganelo pelo ombro e lhe disse: s bravo e sbio. Por esta lei que tomais pela mais segura, evitai afastar de ns vosso corao! Quero vos dar grandes quantidades dos meus bens, dez mulos carregados do mais fino ouro da Arbia; no se passar um ano sem que eu vos d outro presente semelhante. Eis as chaves desta grande cidade: apresentai todas as suas riquezas ao rei Carlos, em seguida garanti-me a retaguarda para Rolando. Se eu puder encontr-lo em algum desfiladeiro ou passagem, lutarei com ele at a morte. Ganelo responde: Minha opinio que me atraso! Depois montou a cavalo e foi-se a caminho. D A designao de Rolando para a retaguarda 53 (versos 661 a 668) O imperador se aproxima de seu pas. Ele veio da cidade de Galne.33 O conde Rolando a tomou e destruiu. Deste dia em diante ela ficou deserta por cem anos. O rei espera notcias de Ganelo e o tributo de Espanha, a Grande Terra. Numa manh, alvorada, quando o dia32

Rolando exatamente marqus, isto , governador de uma marca ou marquesado (provncia de fronteira). tambm conde do marquesado da Bretanha, bem como baro. Um nobre podia ter vrios ttulos de nobreza ao mesmo tempo. 33 No se sabe onde fica.

clareava, o conde Ganelo chegou ao acampamento. 54 (versos 669 a 702) O imperador se levantou de madrugada. O rei assistiu missa e s matinas. Estava de p na relva verde diante de sua tenda. Rolando ali estava e Olivier, o bravo, Naimes, o duque, e muitos outros. Ganelo chega, o infiel, o traidor. Com grande astcia comea a falar. Diz ao rei: Salve da parte de Deus! Trago-vos as chaves de Saragoa; guardai-as bem! E vinte refns: mandai guard-los bem! E o rei Marsilio, o valente, vos pede que no o censureis quanto ao Califa, pois com meus prprios olhos vi quatrocentos mil homens armados, vestidos com a cota de malhas, alguns com o elmo preso, cingidos de espadas com punhos de ouro esmaltado, que o levaram at o mar. Eles se afastaram de Marsilio por causa da f crist, que no queriam ter nem observar. Antes de navegarem quatro lguas, houve ventania, tempestade e borrasca: assim se afogaram. Jamais vereis um s deles! Se o Califa estivesse vivo, eu o teria trazido. Quanto ao rei pago, senhor, acreditai de fato que no vereis passar este primeiro ms sem que ele vos siga ao reino de Frana e l receber a lei que observais, com as mos juntas seguir vossas ordens. de vs que ele receber todo o reino de Espanha. O rei diz: Que Deus vos agradea! Agistes bem! Tereis grande recompensa! No meio do exrcito, soaram mil clarins. Os Francos levantam o acampamento. Carregam as bestas de carga. Todos se encaminham para a Doce Frana. 55 (versos 703 a 716) Carlos Magno devastou a Espanha, tomou os castelos, penetrou nas cidades. O rei declarou que sua guerra estava terminada. O imperador cavalga para a Doce Frana. O conde Rolando fixou as insgnias. Do alto de um outeiro elevou-as ao cu. Os Francos se instalam por toda a regio. Vestiram as cotas de malha e as couraas, prenderam os elmos e cingiram as espadas, os escudos pendem ao pescoo, as lanas esto empunhadas. Deus! Que pena que os Francos no saibam!34 56 (versos 717 a 724) O dia acaba e a noite escurece; Carlos, o poderoso imperador35, adormece. Sonha que est nos largos desfiladeiros de Ciza e que segura nas mos a lana de freixo; e ento o conde Ganelo a arranca, sacode-a e empunha-a, com tal furor que as centelhas voam para o cu. Carlos dorme: ele no acorda.36 57 (versos 725 a 736) Depois desta viso teve uma outra: est na Frana, em Aix, em sua capela; um urso cruel morde seu brao direito, e do lado das Ardenas ele v um leopardo que ousadamente ataca seu prprio corpo. Mas da sala corre um galgo, que chega at Carlos a galope e aos pulos, corta a orelha34

Interferncia do narrador, que exprime seus sentimentos sobre o que narra. Esta ocorrncia se repetir outras vezes. 35 poca do episdio de Roncesvales (15/8/778) Carlos Magno apenas rei de Frana. S ser imperador em 800. Anacronismo do poeta. 36 Primeiro sonho premonitrio de Carlos Magno.

direita do urso e, cheio de clera, agarra o leopardo. Grande batalha! dizem os Franceses, mas no sabem quem alcanar a vitria. Carlos dorme, ele no acorda. 58 (versos 737 a 750) A noite passa e a clara alba aparece; o imperador cavalga orgulhosamente no meio do seu exrcito. Senhores bares, diz o imperador Carlos, vede os desfiladeiros e as estreitas passagens, escolhei quem ficar na retaguarda! Ganelo responde: Rolando, meu enteado. No tendes baro de maior bravura. O rei ouve e olha duramente para ele: Vs sois o prprio demnio, diz ele, uma ira mortal entrou em vosso corpo; e quem estar diante de mim, na vanguarda? Ogier da Dinamarca, responde Ganelo, no tendes baro que o faa melhor do que ele.37 59 (versos 751 a 760) O conde Rolando, quando se ouve designar, fala como um perfeito cavaleiro: Senhor padrasto, devo agradecer-vos muito38; vs me designastes para a retaguarda. Carlos, o rei que domina a Doce Frana, no perder, que eu saiba, nem palafrm39 nem corcel, nem mulo nem mula que deva cavalgar, nem rocim nem besta de carga sem que as espadas lutem por eles. Ganelo responde: Dizeis a verdade, sei muito bem. 60 (versos 761 a 765) Quando Rolando ouve que estar na retaguarda, fala irado ao padrasto: Ah! Patife, homem ruim de raa vil! Pensavas que eu ia deixar cair a luva, como tu deixaste o basto diante de Carlos?40 61 (versos 766 a 773) Justo imperador, diz Rolando, o baro, dai-me o arco que empunhais. Tenho certeza que no me censuraro por deix-lo cair, como fez Ganelo com o basto quando o recebeu na mo direita. O imperador tem a cabea abaixada; puxa a barba, torce o bigode: no pode se impedir de chorar. 62 (versos 774 a 782) Em seguida veio Naimes; no h na Corte melhor vassalo. Ele diz ao rei: Vs ouvistes. O conde Rolando est muito irado; a retaguarda lhe foi designada e no tendes baro que possa substitu-lo. Dai-lhe o arco que tendes e encontrai quem muito o ajude. O rei d o arco e Rolando o recebe.

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Esta estrofe mostra o papel do rei no sistema feudal: ele comanda em tempo de guerra, mas deve receber dos nobres vassalos auxlio (homens, armas, vveres) e conselho para as decises e julgamentos, pois no tem fora para fazer isto sozinho. 38 Problema de honra feudal: se o nobre indicado para uma misso for reconhecido apto para ela no poder recus-la, sob pena de ser considerado covarde. 39 A hierarquia da sociedade feudal tambm se transpe para os cavalos. 40 Notar que o tratamento entre os personagens oscila do vs (estrofe 59) ao tu (estrofe 60).

63 (versos 783 a 791 O imperador se dirige ao sobrinho Rolando: Caro senhor sobrinho, sabeis de fato que vos quero dar a metade de meu exrcito; guardai-a convosco, ela garantir vossa salvao. Nada farei, diz o conde. Deus me castigue se eu trair minha raa! Ficarei com vinte mil Franceses muito bravos. Passai os desfiladeiros em segurana; no deveis temer ningum enquanto eu viver!41 64 (versos 792 a 803) O conde Rolando monta em seu corcel; perto dele vem o companheiro Olivier, depois Gerino e o bravo conde Gerier, e depois Oton e Berenger, e Astor e Anses o velho, o orgulhoso Gerard de Roussillon e Gaifier o poderoso duque. Por minha conscincia eu irei, diz o arcebispo. E eu irei convosco, diz o conde Gautier. Sou vassalo de Rolando e no devo lhe faltar. Entre eles, escolhem vinte mil cavaleiros. 65 (versos 804 a 814) O conde Rolando chama Gautier de Hum42: Tomai mil Franceses de Frana, nossa terra, e ocupai os desfiladeiros e as alturas para que o imperador no perca nem um s de seus homens. Gautier responde: Devo fazer isto por vs. Com mil Franceses de Frana, sua terra, Gautier sai das fileiras e vai pelos desfiladeiros e pelas alturas. Por piores que sejam as notcias, ele no descer antes que inmeras espadas estejam desembainhadas. Nesse dia o rei Almaria do reino de Belferne 43 travar com eles uma rude batalha. 66 (versos 815 a 824) Altos so os montes e tenebrosos os vales, as rochas sombrias e os desfiladeiros terrificantes. Nesse mesmo dia os Franceses os atravessaram com grande dificuldade. A quinze lguas dali ouvia-se o clangor de sua marcha. E quando chegaram Grande Terra viram a Gasconha, terra de seu senhor. Ento se lembraram dos feudos e propriedades, das filhas e das nobres mulheres: no houve quem no chorasse de ternura. Mais do que todos os outros, Carlos est cheio de angstia: nos desfiladeiros de Espanha deixou o sobrinho; cheio de dor, no pode se impedir de chorar. 67 (versos 825 a 840) Os doze pares ficaram na Espanha: vinte mil Franceses lhes fazem companhia: no tm medo nem temor da morte. O imperador volta para a Frana; esconde a angstia debaixo do manto. Junto dele cavalga o duque Naimes; ele diz ao rei: Que angstia vos atormenta? Esta pergunta ultrajante, responde Carlos, minha dor to grande que preciso chorar. Ganelo vai arruinar a Frana! Esta noite eu tive uma viso que um anjo enviou. Vi Ganelo que me quebrava a lana entre as mos, Ganelo que designou meu sobrinho para a retaguarda. E eu deixei Rolando num marquesado estrangeiro! Deus! Se o perder, no encontrarei ningum semelhante a ele!41 42

Bravata de Rolando: recusa ajuda consubstanciada em maior nmero de homens. Talvez seja o Gauvain das lendas da Tvola Redonda. 43 Ignorado.

68 (versos 841 a 860) Carlos Magno no pode se impedir de chorar. Cem mil44 Franceses tomam-se de ternura por ele e de um estranho temor por Rolando. Ganelo o infiel o traiu; do rei pago recebeu grandes presentes, ouro e prata, tecidos e roupas de seda, cavalos, camelos e lees. Marslio convocou por toda a Espanha bares, condes, viscondes, duques e dignitrios, os emires e os filhos dos nobres. Reuniu quatrocentos mil em trs dias. Em Sagaroa soam os tambores e sobre a mais alta torre expese a imagem de Maom45 cada pago reza a ele e o adora. Depois, todos cavalgam em marcha forada, atravs da Terra Certa46, pelos vales, pelos montes: enfim avistam os estandartes da Frana. A retaguarda dos doze companheiros no deixar de travar batalha. E Preparativos dos Sarracenos 69 (versos 861 a 873) O sobrinho de Marsilio avanou para um mulo e o tocou com o basto. Disse ao tio rindo muito: Caro senhor rei, servi-vos tanto tempo e s obtive sofrimentos e tormentos. Travei batalhas e ganhei-as! Como feudo concedei-me abater Rolando! Eu o matarei com minha lana cortante. Se Maom me der seu apoio, libertarei toda a terra de Espanha, desde os desfiladeiros at Durestante.47 Carlos se cansar, os Franceses se rendero. Nunca mais tereis guerra em toda vossa vida. O duque Marsilio lhe d a luva. 70 (versos 874 a 884) O sobrinho de Marsilio segura a luva na mo, dirige-se ao tio em termos altivos: Caro senhor meu rei, vs me destes um grande presente. Escolhei doze de vossos bares48; e assim eu combaterei os doze pares. A isto responde em primeiro lugar Falseron, irmo49 do rei Marsilio: Caro senhor meu sobrinho, iremos vs e eu. certo que travaremos esta batalha. Diz-se que dizimaremos a retaguarda do grande exrcito de Carlos. 71 (versos 885 a 893) Do outro lado vem o rei Corsalis: rei da Barbrie e muito entendido em artes malficas. Falou maneira de um bom vassalo: por todo o ouro de Deus, no queria se comportar como um covarde. Mas eis Malprimis de Brigante esporeando a montaria: a p ele mais rpido que um cavalo. Diante de Marsilio ele grita bem alto: A Roncesvales me dirijo; se encontrar Rolando no o largarei sem abat-lo.44

Tudo grandioso, da o nmero avantajado. Isto tambm mostra que na Idade Mdia o chefe no um indivduo isolado, tudo o que ele faz se reflete no grupo a que pertence. 45 A hegemonia do cristianismo, cujo culto admite imagens, atribui caractersticas idnticas aos muulmanos, desconhecendo por completo as peculiaridades desta religio. 46 Expresso pouco clara. 47 Pequena cidade da Espanha, liberdade do poeta quanto geografia. 48 Homologia entre os dois exrcitos: doze pares de cada lado. H outras. 49 A guerra assunto de cls e linhagens, por isso em ambos os lados as famlias participam.

72 (versos 894 a 908) L est o emir de Balaguer. Tem o porte nobre, o rosto altivo e claro. Quando est a cavalo, tem aparncia altiva com suas armas. Sua coragem altamente renomada. Se fosse cristo, seria um famoso baro! Diante de Marsilio ele gritou: A Roncesvales vou expor minha vida! Se encontrar Rolando, ele morrer e Olivier e todos os doze pares. Os Franceses morrero com grande pesar e grande vergonha. Carlos Magno est velho e caduco; ele se cansar de fazer sua guerra. Assim, a Espanha tranqila ficar para ns. O rei Marsilio lhe agradeceu muito. 73 (versos 909 a 915) Chega o Emir de Moriane50: no existe maior infiel na terra de Espanha. Ele se pavoneou diante de Marsilio: A Roncesvales levarei os meus, vinte mil homens usando escudos e lanas. Se encontrar Rolando, garanto sua morte. No se passar um dia sem que Carlos Magno chore por ele. 74 (versos 916 a 930) De outro lado vem Turgis de Tortelosa51: ele conde e esta cidade dele. Quer maltratar os cristos. Assim, diante de Marsilio, concordou com os outros e disse ao rei: No deveis absolutamente vos emocionar! Maom vale mais do que So Pedro de Roma: se servis a ele, a honra da batalha ser nossa. A Roncesvales irei encontrar Rolando. Contra a morte no h nenhuma proteo. Vede minha espada que boa e longa: vou experiment-la contra Durindana52, sabereis bem quem ganhar. Os Franceses morrero se se aventurarem contra ns; Carlos o Velho ter pesar e vergonha. Nunca mais usar a coroa neste mundo! 75 (versos 931 a 939) De outro lado eis Escremiz de Valterne: ele Sarraceno e Valterne sua terra. Diante de Marsilio ele grita a fortes brados: A Roncesvales irei abater o orgulho. Se encontrar Rolando, l ele deixar a cabea, e tambm Olivier, que comanda os outros. Os doze pares esto todos marcados para a morte. Os Franceses morrero: a Frana ficar desprovida deles. Carlos ter falta de bons vassalos. 76 (versos 940 a 954) De outro lado eis um pago, Esturgante: est acompanhado de Estramariz, seu companheiro. Todos os dois so infiis, traidores danados. Marsilio diz: Aproximai-vos, senhores! A Roncesvales ireis, passagem dos desfiladeiros, e ajudareis a comandar os meus! Eles respondem: s vossas ordens! Vamos tomar de assalto Olivier e Rolando; ningum proteger os doze pares da morte. Nossas espadas so boas e cortantes; ns as tornaremos vermelhas de sangue quente. Os Franceses morrero e Carlos sofrer. Ns vos oferecemos a Grande Terra de presente. Vinde, rei,50 51

Talvez seja a terra dos Mouros. No confundir com Maurienne, na Savia francesa. Talvez Tortosa, na embocadura do Ebro, rio de Espanha. 52 A espada de Rolando se chama Durendal em francs. Adotou-se a traduo Durindana porque este termo j figura nos Lusadas.

vs vereis de fato! Ns vos daremos o imperador de presente! 77 (versos 955 a 974) Chega correndo Margariz de Sevilha. Ele domina a terra at Cazmarina.53 Sua beleza lhe vale o favor das damas. Todas desabrocham diante dele! Vendo-o, nenhuma pode deixar de sorrir! Nenhum pago to bom cavaleiro; na multido ele grita mais forte que os outros: No vos perturbeis! A Roncesvales irei matar Rolando e Olivier deixar l sua vida. Os doze pares ficaram para o martrio. Vede minha espada, cuja guarda de ouro! um presente do emir de Primes. Prometo-vos que o sangue vai tingi-la de vermelho. Os Franceses morrero, a Frana ficar desonrada. No se passar um dia sem que Carlos o Velho, da barba florida, tenha pesar e amargura. Antes de um ano, a Frana ser um bem nosso. Poderemos dormir no burgo de So Dinis.54 O rei pago se inclina profundamente. 78 (versos 975 a 993) De outro lado vem Chernuble de Munigre: sua cabeleira flutua e cai at o cho. Quando por brincadeira lhe d vontade, pode carregar uma carga mais pesada do que a que quatro mulas suportam. Diz-se que na terra de onde ele vem o sol no brilha e o trigo no pode crescer: a chuva no cai, o orvalho no se forma, no h pedra que no seja toda negra. Alguns dizem que os demnios moram l. Chernuble diz: Cingi minha boa espada. Em Roncesvales dar-lhe-ei uma pintura vermelha. Se em meu caminho encontrar o bravo Rolando e no o tomar de assalto, ento no confieis mais em mim. Com minha espada vou conquistar Durindana. Os Franceses vo morrer e a Frana ficar sem eles. Com estas palavras, os doze pares se renem. Com eles, levam cem mil Sarracenos que ardem por combater e se apressam. Vo todos para um pinheiral vestir as armas. 79 (versos 994 a 1016) Os pagos vestem suas cotas sarracenas, que em geral tm tripla espessura de malhas; prendem seus bons elmos de Saragoa; cingem as espadas de ao vienense. Tm belos escudos, lanas de Valena, estandartes brancos e azuis e vermelhos. Deixam os mulos e todos os palafrns, montam os corcis e cavalgam em filas cerradas. O dia estava claro e o sol radioso55: todas as armaduras brilham. Soam mil clarins, para que fique mais bonito. Grande o barulho e os Franceses o ouvem. Olivier diz: Senhor companheiro, acho que poderemos ter uma batalha com os Sarracenos. Rolando responde: Que Deus nos conceda! Devemos permanecer aqui por nosso rei. Por seu senhor deve-se sofrer desgraas e suportar o maior calor, o maior frio, deve-se perder o couro e o plo. Que cada um se esforce em dar grandes golpes, para que no faam canes53 54

Talvez Camarinas, porto da Galcia, a 50 km de Santiago de Compostela. Trata-se de Paris, cujo primeiro bispo foi S. Dinis, apstolo das Glias, no sculo III. 55 Segundo o cronista Eginardo (770-840), autor da Vida de Carlos Magno, a obscuridade justamente comeava: informado de uma revolta de saxes ao norte, Carlos sai do territrio rabe; o duque Loup da Gasconha, chefiando bascos e rabes, fez o ataque no desfiladeiro de Roncesvales, no qual morreu Rolando. O duque foi enforcado.

maldosas sobre ns!56 Os pagos esto no erro e os cristos no bom direito.57 Jamais um mau exemplo vir de mim. II A BATALHA (versos 1017 a 2396) A Disputa entre Rolando e Olivier 80 (versos 1017 a 1027) Olivier subiu a um monte elevado, olha direita na direo de um vale cheio de plantas; v chegar a gente pag. Chama Rolando, seu companheiro: Que rudo ouo vir do lado da Espanha! Quantas alvas cotas de malhas, quantos elmos flamejantes! Nossos Franceses vo entrar em grande fria. Ganelo sabia disso, o traidor que nos designou diante do imperador. Cala-te, Olivier, responde o conde Rolando, meu padrasto; no quero que fales nada contra ele. 81 (versos 1028 a 1038) Olivier subiu a um monte elevado; v o reino de Espanha e os Sarracenos reunidos em grande quantidade. Brilham os elmos com gemas de ouro, e os escudos, e as cotas de malhas bordadas de amarelo, e as lanas, e os estandartes presos s lanas. Olivier sozinho no consegue contar os batalhes deles: h tantos que ele no sabe a quantidade. Ele prprio fica completamente desnorteado; desceu como pde a montanha, foi aos Franceses e lhes contou tudo. 82 (versos 1039 a 1048) Olivier diz: Vi os pagos; jamais na terra se viu em maior quantidade. So cem mil diante de ns, com escudos, elmos presos e alvas cotas de malhas, dardos firmes, brilhantes lanas brunidas! Tereis uma batalha como jamais houve. Senhores Franceses, que Deus vos d fora: sede firmes no combate, para que no sejamos vencidos! Os Franceses dizem: Maldito seja quem fugir! Se for preciso morrer, nenhum de ns faltar! 83 (versos 1049 a 1058) Olivier diz: Os pagos tm uma grande fora e ns Franceses parece que somos bem poucos. Companheiro Rolando, tocai ento a trompa. Carlos ouvir e o exrcito voltar. Rolando responde: Isto seria loucura! Na Doce Frana eu perderia minha fama. Vou imediatamente dar grandes golpes com Durindana: a lmina ficar ensangentada at o ouro da guarda. Os infiis pagos vieram aos desfiladeiros para sua desgraa. Garanto-vos que estaro todos marcados para a morte. 84 (versos 1059 a 1069) Companheiro Rolando, tocai vosso olifante. Carlos ouvir e mandar o exrcito voltar; o rei e seus bares viro nos socorrer. Rolando56

Prtica freqente, proibida em 764. O temor destas canes persegue os guerreiros, pois o suserano exige coragem e bravura e a sociedade despreza os covardes. 57 Esta frase denota explicitamente o maniquesmo dos cristos.

responde: No agrada ao Senhor Deus que por minha falta meus parentes sejam censurados e que a Doce Frana caia na humilhao. Mas eu darei grandes golpes com Durindana, minha boa espada que est cingida aqui do lado. Vereis sua lmina toda ensangentada. Os infiis pagos se reuniram aqui para sua desgraa; garanto-vos que esto todos condenados a morrer. 85 (versos 1070 a 1081) Companheiro Rolando, tocai vosso olifante. Carlos, que est na passagem dos desfiladeiros, ouvir, garanto que os Franceses voltaro. No agrada a Deus, responde Rolando, que um homem vivo jamais possa dizer que eu toquei a trompa por causa de pagos! Jamais se far tal crtica a meus parentes. Quando eu estiver em plena batalha, darei mil e setecentos golpes, vereis o ao de Durindana todo ensangentado. Os Franceses so bravos, eles lutaro bravamente. Os homens da Espanha no escaparo morte. 86 (versos 1082 a 1092) Olivier diz: No vejo como se poderia censurar-vos, eu vi os Sarracenos da Espanha; os vales e os montes esto cobertos deles, e as charnecas e todas as plancies. Grande o exrcito do povo estrangeiro; e ns s temos uma tropa bem pequena. Rolando responde: Meu ardor aumenta! No agrada a Deus nem a seus anjos que a Frana jamais perca a honra por minha causa. Mais vale a morte que a vergonha! por nossos belos golpes que o imperador nos tem to alto em seu amor. 87 (versos