A CARTA AOS FILIPENSES Para mim o viver é Cristo … · A CARTA AOS FILIPENSES I. INTRODUÇÃO...

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A CARTA AOS FILIPENSES Para mim o viver é Cristo INTRODUÇÃO Caros Irmãos Para dar continuidade também em 2006 à linha operativa 1.1.1 do VIII Capítulo Geral, entrego à vossa meditação a carta aos Filipenses do nosso Pai São Paulo. A elaboração redacional compreende uma apresentação de caráter histórico-crítico que leva em consideração os mais recentes estudos bíblicos sobre a carta aos Filipenses, intercalada com a proposta de algumas perguntas para a assimilação pessoal e comunitária a partir dos vários aspectos que caracterizam nossa vida. A seguir, temos a referência à leitura e ao uso da carta feitos pelo bem-aventurado Tiago Alberione. A última parte, partindo de alguns trechos da carta, elabora uma interpretação que leva em conta o contexto social, eclesial, comunicativo e de Congregação que vivemos hoje. O título Para mim o viver é Cristo é tirado de 1,21 dessa carta. O texto preparado foi expressamente desejado como um conjunto de itinerários de reflexão orante que deseja estimular o interesse de cada Paulino e de cada uma das comunidades de nossas Circunscrições para um aprofundamento em que todos colaborem. Se o fruto da meditação complexiva de todos confluir num fórum telemático do nosso site, creio que poderia ser um bom exemplo de um “pensamento coletivo” acerca de nosso pai e modelo São Paulo, necessário ao dinamismo da Congregação para “lançar-se para a frente”. O exemplo e as palavras do Primeiro Mestre nos estimulam nessa obra de crescimento espiritual contínuo: “Todas as almas que tomaram gosto na leitura de S. Paulo tornaram-se almas robustas. Quem lê S. Paulo, quem se familiariza com ele, pouco a pouco adquire um espírito semelhante ao dele” (Às Filhas de São Paulo, 1934-1939, p. 315). Na audiência de 1° de outubro de 2005, o Papa Bento 16 nos exortou: “Vosso apostolado é de vanguarda num vasto e complexo campo, que oferece tantas oportunidades e, ao mesmo tempo, não poucos problemas. (...) Que cada um de vós faça próprio o espírito e o estilo que caracterizavam o Apóstolo das gentes, atualizando, também nesta época pós-moderna, sua obra missionária”. Pe. Silvio Sassi Superior geral Roma, 25 de janeiro de 2006, Conversão de São Paulo

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A CARTA AOS FILIPENSES Para mim o viver é Cristo INTRODUÇÃO Caros Irmãos Para dar continuidade também em 2006 à linha operativa 1.1.1 do VIII Capítulo Geral, entrego à vossa meditação a carta aos Filipenses do nosso Pai São Paulo. A elaboração redacional compreende uma apresentação de caráter histórico-crítico que leva em consideração os mais recentes estudos bíblicos sobre a carta aos Filipenses, intercalada com a proposta de algumas perguntas para a assimilação pessoal e comunitária a partir dos vários aspectos que caracterizam nossa vida. A seguir, temos a referência à leitura e ao uso da carta feitos pelo bem-aventurado Tiago Alberione. A última parte, partindo de alguns trechos da carta, elabora uma interpretação que leva em conta o contexto social, eclesial, comunicativo e de Congregação que vivemos hoje. O título Para mim o viver é Cristo é tirado de 1,21 dessa carta. O texto preparado foi expressamente desejado como um conjunto de itinerários de reflexão orante que deseja estimular o interesse de cada Paulino e de cada uma das comunidades de nossas Circunscrições para um aprofundamento em que todos colaborem. Se o fruto da meditação complexiva de todos confluir num fórum telemático do nosso site, creio que poderia ser um bom exemplo de um “pensamento coletivo” acerca de nosso pai e modelo São Paulo, necessário ao dinamismo da Congregação para “lançar-se para a frente”. O exemplo e as palavras do Primeiro Mestre nos estimulam nessa obra de crescimento espiritual contínuo: “Todas as almas que tomaram gosto na leitura de S. Paulo tornaram-se almas robustas. Quem lê S. Paulo, quem se familiariza com ele, pouco a pouco adquire um espírito semelhante ao dele” (Às Filhas de São Paulo, 1934-1939, p. 315). Na audiência de 1° de outubro de 2005, o Papa Bento 16 nos exortou: “Vosso apostolado é de vanguarda num vasto e complexo campo, que oferece tantas oportunidades e, ao mesmo tempo, não poucos problemas. (...) Que cada um de vós faça próprio o espírito e o estilo que caracterizavam o Apóstolo das gentes, atualizando, também nesta época pós-moderna, sua obra missionária”. Pe. Silvio Sassi Superior geral Roma, 25 de janeiro de 2006, Conversão de São Paulo

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A CARTA AOS FILIPENSES I. INTRODUÇÃO Como fizemos com 1Ts, antes de entrar no estudo e aprofundamento de Filipenses, tentaremos conhecer brevemente a história da cidade de Filipos, a perspectiva de Lucas ao narrar a chegada de Paulo e fundando comunidades, além de informações acerca da própria carta. 1. A cidade No tempo de Paulo, Filipos era a principal cidade de uma região da província romana da Macedônia (At 16,12). Situava-se a 13 quilômetros do mar Egeu, no golfo de Neápolis. Por ela passava a Via Egnatia, principal estrada romana, que ligava a capital do império a Bizâncio (Constantinopla). A arqueologia descobriu antigos monumentos e construções da cidade: o foro, templos, banhos, biblioteca, necrópoles, aquedutos, fontes, pórticos e bairros residenciais. Situava-se num vale cercado de montanhas. Numa dessas montanhas, a leste, no maciço Orbelos, situava-se a acrópole. Ao norte estão os planaltos balcânicos, ao sul o monte Symbolon, e o Pangaion a oeste. Antes de se chamar Filipos, seu nome era Krenídes, talvez por causa das abundantes fontes e poços de água. Em 356 a.C., Filipe II, rei da Macedônia (359-336), transferiu a esse lugar muitos migrantes, ampliou a cidade e deu-lhe o nome de Filipos. Esse rei construiu a muralha, o teatro e a acrópole da cidade. Em 167 a.C., o cônsul romano L. Aemilius Paulus dividiu a Macedônia em 4 regiões; Filipos tornou-se cidade principal de sua região (At 16,12). A cidade recorda fatos históricos importantes, como a batalha que leva seu nome. Foi aí que em 42 a.C. Bruto e Cássio foram derrotados por Antônio e Otávio. Depois desses acontecimentos, Antônio instalou aí muitos ex-combatentes romanos. A seguir, Q. Paquius Rufus transformou Filipos em colônia romana (At 16,12), mudando-lhe o nome: Colonia Victrix Philippensium. Dizer que Filipos era colônia romana significa afirmar que era administrada segundo a política dos romanos (cf. At 16,19.35.38: magistrados, estrategos e litores; Fl 1,1: epíscopos e diáconos). No ano 30 a.C., Otávio espoliou muitos romanos que haviam lutado contra ele e a favor de Antônio, e os transferiu para Filipos, mudando o nome da cidade para Colonia Julia Philippensis. Três anos depois (27 a.C.), o senado romano conferiu a Otávio o título de Augusto (é o início daquilo que se chamará mais tarde de “culto ao imperador”), e isso repercutiu no nome da cidade, que passou a se chamar Colonia Augusta Julia Philippensis. Para os padrões daquele tempo, Filipos era uma cidade de porte médio. Sua população, como já podemos imaginar, é miscigenada e multicultural: há nativos (trácios), gregos trazidos por Filipe II, romanos aí transferidos por Antônio e Otávio, e pessoas de outras regiões (Lídia era de Tiatira, na Ásia Menor), como podemos deduzir a partir do universo religioso da cidade. De fato, é um pequeno panteão: deuses trácios (o deus Líber Pater = Baco?, a deusa Bendis), a deusa grega Atenas, os deuses romanos Júpiter e Marte, o culto ao imperador, a deusa Cibele (da Anatólia), e divindades egípcias – Ísis, Serápis e Harpócrates. São poucas as informações acerca da economia e da sociedade de Filipos. A menção de “colônia romana”, de ex-combatentes – mantidos pelo império – e de seus descendentes, fornece uma vaga idéia de como seria a vida da cidade. Os bairros residenciais descobertos pela arqueologia fazem pensar numa parcela de população com certo teor de vida, diferentemente de Corinto, onde não há vestígios de casas, sinal de que o povo devia ser bem pobre. Com certa cautela, tomamos Lucas e a descrição que faz da vida na cidade. Descobrimos que aí habitava Lídia, identificada como “negociante de púrpura, da cidade de Tiatira” (At 16,14). Ela é “adoradora de Deus” – pagã que aceita o Deus único do judaísmo, mas não segue nos detalhes a religião dos judeus. Lídia comercializava tinturas – púrpura – uma tinta cara extraída de um molusco. As roupas dos pobres, naquele tempo, eram todas da mesma cor. Ter roupas tingidas com púrpura denotava certa posição social. Lídia e seus clientes, portanto, não eram pobres. Além disso, o fato de poder hospedar em sua casa a comitiva de Paulo (Silas, Timóteo e talvez Lucas) denota

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que era proprietária de uma casa grande (as casas dos pobres tinham um só cômodo). O carcereiro de Filipos tinha menos posses que Lídia. Tudo leva a crer que sua casa estava construída sobre o calabouço em que foram jogados Paulo e Silas (At 16,34). Lucas narra um exorcismo de Paulo em Filipos (At 16,16-18). Ele liberta uma jovem de dupla servidão: está possuída por um espírito de adivinhação (uma espécie de possessão demoníaca, na perspectiva de Lucas) e é economicamente explorada por patrões inescrupulosos que enriquecem com isso. 2. A fundação da comunidade na perspectiva de Lucas A chegada de Paulo e companheiros à cidade de Filipos é extremamente importante na perspectiva de Lucas. Ele organizou a seu modo as viagens de Paulo, construindo a narrativa em torno de pelo menos 4 elementos comuns. Em cada viagem, Paulo faz uma pregação (discurso), realiza um milagre, sofre uma tribulação e enfrenta um episódio de magia/superstição. Cada uma das viagens encerra esses elementos, sem uma ordem pré-determinada. Além disso, Lucas atribui a cada viagem uma peculiaridade. Estamos por volta do ano 50, durante a segunda viagem de Paulo (At 15,39-18,22). Nota-se em Lucas a preocupação de mostrar logo Paulo sendo convidado por um macedônio (At 16,9-10). Lucas tem pressa. Quer situar Paulo em Trôade. Por isso resume em poucas palavras a visita às comunidades fundadas durante a primeira viagem (Listra, Derbe, Icônio, Antioquia da Pisídia). Praticamente ignora a passagem de Paulo pela Galácia. O motivo é claro: com a chegada de Paulo a Filipos, o Evangelho está entrando no continente europeu. E esta é para Lucas a grande peculiaridade da segunda viagem. Ele ignora um dado histórico importante: a essas alturas, Roma já havia recebido o anúncio de Jesus Cristo. (A expulsão dos judeus – e dos cristãos Áquila e Priscila – da cidade de Roma, por ordem de Cláudio, situa-se no ano 41.) Para o autor de Atos, quando os pés de Paulo tocam a Macedônia, então o Evangelho chega à Europa. O momento é extremamente importante – e o tempo dará razão a Lucas. Não fosse o pioneirismo de Paulo, o movimento de Jesus (ainda não se fala de cristianismo) poderia acabar sufocado na Palestina e na Ásia Menor. Entende-se, com isso, a mudança de rota descrita em At 16,7. O Espírito é quem conduz a missão; ele é quem abre caminhos novos, superando fronteiras. Lucas descreve abundantemente a estada de Paulo e seus companheiros em Filipos e arredores (note-se que são três ou quatro, mas quem vai para a prisão são somente Paulo e Silas. Timóteo – e talvez Lucas – estariam em outra cidade, não mencionada em Atos). Ele dá mais atenção à fundação das comunidades de Filipos (16,11-40) do que as de Tessalônica, capital da Macedônia (17,1-9), ou da grande metrópole e capital da Acaia, Corinto (18,1-17). O motivo parece evidente. Dizíamos que Lucas esquematizou as viagens de Paulo em torno de 4 elementos. Três deles acontecem em Filipos: o confronto com a magia e o milagre (Paulo exorciza uma jovem possuída por espírito de adivinhação) e a tribulação (Paulo e Silas são flagelados e postos na cadeia). O exorcismo faz pensar na prática de Jesus, e a flagelação remete ao que Jesus havia dito (cf. Lc 12,11; 21,12-13). A libertação dos apóstolos é descrita de modo épico sob a imagem de uma teofania – o terremoto. Se nos apegarmos à letra do texto não conseguiremos explicar várias questões. 1. O texto dá a entender que o terremoto aconteceu apenas no cárcere, o que é inverossímil. 2. Se o terremoto abalou os alicerces da prisão, como se explica que ninguém se tenha ferido? 3. Como explicar que um terremoto dessa intensidade abra as portas da cadeia e solte as correntes de todos os presos? 4. Como explicar que nenhum dos presos tenha fugido? 5. Se a casa do carcereiro estava construída sobre o calabouço, como justificar que não tenha sido abalada? 6. O carcereiro leva Paulo e Silas para cima, lava-lhes as feridas, oferece jantar, é batizado com toda a família e quando, de manhã, as autoridades mandam soltar os dois, o texto dá a entender que Paulo e Silas ainda estão presos. Como explicar isso? 7. Por que somente depois de apanhar e de passar a noite na prisão é que Paulo se dá a conhecer como cidadão romano? O que teria acontecido realmente? Lucas tomou um fato bruto e elaborou uma narração fantástica. O fato bruto é narrado por Paulo: “Sabeis que sofremos e fomos insultados em Filipos.

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Decidimos, contudo, confiados em nosso Deus, anunciar-vos o Evangelho de Deus, no meio de grandes lutas” (1Ts 2,2). A descrição fantástica é obra de Lucas. Escrevendo esse episódio cerca de 35 anos mais tarde, insere-o nas grandes intervenções do Deus que liberta (muitos episódios do Antigo Testamento) e no comando irresistível do Espírito Santo, que conduz a missão em meio aos conflitos. O Evangelho entra na Europa, quem guia a missão é o Espírito, nada nem ninguém se lhe opõe, até que o testemunho de Jesus Cristo chegue aos confins da terra (cf. At 1,8). Há pontos de contato entre a entrada do Evangelho na Europa e a entrada dos hebreus na Terra Prometida (livro de Josué). Tudo leva a crer que em Filipos não há sinagoga. Se houvesse, essas mulheres, entre as quais está a adoradora de Deus Lídia – iriam à sinagoga rezar, e não à beira do rio. O fato de não haver sinagoga foi providencial, um desafio que a providência e Paulo superam com criatividade. De fato, Lídia recebe o batismo com toda a família e acolhe em casa os apóstolos: surge assim a primeira igreja da Europa, uma igreja doméstica, chefiada por uma mulher. Ainda hoje, nas sinagogas dos judeus, são necessários 10 varões para que haja assembléia e celebração. As mulheres não contam. Note-se, pois, a grande novidade: não mais a sinagoga, mas a casa; não mais a exigência de 10 varões, mas pessoas, em sintonia com o que Jesus disse: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome...” (Mt 18,20); não mais uma assembléia androcêntrica, mas uma assembléia de iguais (cf. Gl 3,28); não mais uma assembléia dependente de raça, mas uma comunidade de irmãos (Lídia era pagã e acolhe em sua casa judeus). Desde já podemos perguntar-nos que função tinham na comunidade Evódia e Síntique, citadas por Paulo em Fl 4,2. A segunda igreja doméstica da Europa nasce na casa do carcereiro pagão, que se torna tipo de todo catecúmeno. Os vv. 29-34 apresentam as etapas da catequese. 1. O desejo, expresso na pergunta “O que preciso fazer para ser salvo?” 2. Anúncio da palavra. 3. Batismo. 4. Alegria por ter acreditado. (É o esquema já usado por Lucas na conversão do eunuco etíope – 8,26-40.) Uma igreja doméstica chefiada por uma mulher e outra sob a liderança de um homem. É assim que os Atos apresentam o surgimento do Evangelho no continente europeu. 3. A carta aos Filipenses Antes de aprofundar a carta, convém recordar algumas interrogações, como a data em que foi escrita, o lugar, as condições em que Paulo se encontrava, e a hipótese – largamente aceita – de termos três cartas em uma. Trata-se claramente de uma carta do cativeiro (Fl 1,12ss), e seu portador é um cristão de Filipos, chamado Epafrodito (2,25). As comunidades filipenses o haviam enviado ao encontro de Paulo prisioneiro, levando-lhe ajuda material (4,10-20). Epafrodito enfrentou grandes dificuldades – uma doença que o pôs às portas da morte (2,27), mas recobrou a saúde e expressou o desejo de voltar a Filipos (2,26). Paulo pede que as comunidades lhe dêem boa acolhida, contornando o provável mal-estar dos que o queriam como representante das comunidades junto a Paulo prisioneiro (2,29-30). No entanto, Paulo planeja enviar Timóteo a Filipos (2,19-24). Esse trânsito de pessoas que vêm e que voltam levanta a questão do lugar em que a carta foi escrita. Pelos Atos, conhecemos dois cativeiros de Paulo, cada um de dois anos: Cesaréia (anos 59-60) e Roma, logo em seguida. Contudo, Cesaréia e Roma estão muito longe de Filipos, ao passo que a carta dá a impressão que a comunicação entre Paulo e os filipenses era relativamente fácil e rápida. Surge, assim, a hipótese de um lugar mais próximo a Filipos, numa data mais antiga. A hipótese – aceita por quase todos os estudiosos – é Éfeso, a 8 dias de viagem de Filipos, durante a terceira viagem de Paulo. Os Atos afirmam que ele se deteve por quase três anos nessa cidade (19,10; 20,31). É bem provável que essa longa estada nessa cidade se deva também a um período de cadeia. Lucas, contudo, não a menciona. Por esse período Paulo escreve grande parte de suas cartas. É desse tempo a correspondência com Corinto. Em 2Cor 6,5 e 11,23 ele fala de “prisões” (no plural), sendo que até esse ponto Lucas relatou apenas uma noite de cadeia, por ocasião da fundação das comunidades filipenses, como vimos.

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A estada de Paulo em Éfeso deve ter sido mais conflituosa de quanto a apresentam os Atos. O quadro pintado por Paulo é mais dramático. 1Cor 15,32 relata que teve de lutar contra “homens-feras”, e 2Cor 1,8-9 é ainda mais incisivo: “Não queremos, irmãos, que o ignoreis: a tribulação que padecemos na Ásia acabrunhou-nos ao extremo, além das nossas forças, a ponto de perdermos a esperança de sobreviver. Sim, recebêramos em nós mesmos a nossa sentença de morte, para que a nossa confiança já não se pudesse fundar em nós mesmos, mas em Deus, que ressuscita os mortos”. Por esses motivos – e por outros, como a simplicidade da carta, que a aproxima muito de 1Ts – é que os estudiosos hoje se posicionam a favor de Éfeso como lugar de onde foi escrita, durante a terceira viagem, entre os anos 54-56. “Pretório” (1,13) pode referir-se a qualquer uma das três cidades envolvidas, bem como a expressão “casa do Imperador” (4,22), que deve ser tomada em sentido amplo = os que estão a serviço do Imperador. No século passado levantou-se a hipótese – hoje amplamente partilhada – de que a atual carta aos Filipenses é, na verdade, um acervo de três cartas distintas, escritas em breves intervalos de tempo. Essa hipótese se encaixa bem na de Éfeso como lugar de sua redação, por causa da relativa proximidade entre as duas cidades – ao contrário do que aconteceria se tivesse sido escrita em Cesaréia ou Roma. Há vários indícios literários que conspiram a favor de três cartas, por exemplo, o início do capítulo 3. Temos a impressão de que a carta está para terminar, mas, em vez de concluir, Paulo arremete com um tema polêmico, alertando contra os cães: “Finalmente, irmãos, regozijai-vos no Senhor. Escrever-vos as mesmas coisas não é penoso e é seguro para vós. Cuidado com os cães...”. Note-se como passa da alegria ao alarme em poucos segundos... A mesma coisa acontece no capítulo 4. As recomendações (4,1-9) denotam que o fim da carta chegou; contudo, em 4,10 entra novo tema, o reconhecimento pela ajuda material que os filipenses enviaram a Paulo (4,10-20). Seguindo a hipótese das três cartas e superando alguns transtornos, poderemos saborear melhor essa carta autêntica de Paulo, sentindo de perto sua alma e sua paixão pelo Senhor Jesus e pela missão. A hipótese é a seguinte: Primeira carta (4,10-20). Sabendo que Paulo estava preso, os filipenses lhe enviaram, por meio de

Epafrodito (4,18), uma ajuda para lhe aliviar as necessidades (4,16). É um bilhete de agradecimento. A introdução e conclusão devem ter sido eliminadas, restando apenas o núcleo.

Segunda carta (1,1-3,1a + 4,2-7.21-23). Paulo continua na prisão. Nesse espaço de tempo, Epafrodito ficou doente, à beira da morte, e se recupera. Paulo decide devolvê-lo às comunidades de Filipos. Ele próprio leva a segunda carta.

Terceira carta (3,1b-4,1 + 4,8-9). Já não se fala de prisão. Paulo está em liberdade, mas toma conhecimento dos conflitos provocados por falsos missionários. São os “judaizantes” (palavra que não aparece no Novo Testamento): judeu-cristãos que pretendem impor a Lei de Moisés como condição para a salvação. E a circuncisão é a porta de entrada – tema que provocou a carta aos Gálatas. Também nesta carta, a introdução e a conclusão devem ter sido eliminadas no arranjo final.

No aprofundamento seguiremos essa seqüência.

Sugestões para uma leitura paulina: 1. Partilhar e aprofundar a geografia missionária do Bem-aventurado Pe. Tiago Alberione. Como Paulo, guiado pelo Espírito, abriu novas fronteiras (as fundações). 2. Recordar a epopéia de Paulo e Silas e compará-la com a de nossas fundações. 3. Comparar os inícios das fundações (começar do presépio) com o surgimento das comunidades de Filipos (à beira do rio, no cárcere, nas casas). 4. Comparar a relação Paulo e a mulher em Filipos com a relação Alberione-mulheres. 5. Há outros temas ou pontos de contato daquilo que vimos com a história da Família Paulina? Quais?

II. A CARTA E SEUS TEMAS PRINCIPAIS

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1. Primeira carta (4,10-20). Solidariedade, a nova liturgia Paulo está na prisão e passa necessidade. Os filipenses já o haviam ajudado na viagem anterior, quando estava em Tessalônica (4,16). Agora tomam conhecimento dos fatos e, após várias tentativas de socorrer o apóstolo na tribulação, conseguem por intermédio de Epafrodito fazer chegar a ele uma ajuda financeira. Não se sabe o montante dessa ajuda, mas nota-se satisfação em Paulo. Devemos lembrar que o prisioneiro Paulo pôs em movimento uma rede de colaboradores que percorriam as cidades vizinhas fundando e animando comunidades. Ele continua evangelizando com as cartas, e isso tem custos que às vezes não imaginamos: pergaminhos, copistas, viagens dos portadores... Ele não precisava de ajuda apenas para o sustento pessoal. Em vez de simplesmente dizer “muito obrigado”, aproveita esse fato aparentemente simples para construir uma reflexão. Ele não faz teologia a partir do abstrato, mas da realidade. Nesse trecho não temos a palavra “agradecimento”, sinal de que ele quis dizer algo mais. Prefere chamar os filipenses de syn-koinoné-santes (v. 14) – palavra que, como se vê, contém o termo koinonia = comunhão, participação, solidariedade. Os filipenses tornaram-se solidários com Paulo em suas necessidades materiais e em seus projetos apostólicos. Isso ultrapassa o simples dar dinheiro e se torna uma liturgia, um serviço que, no fundo, se presta a Deus. Note-se a linguagem litúrgica e cultual do v. 18: a ajuda dos filipenses é recebida como perfume de suave odor (osmén euodías, que recorda o aroma dos sacrifícios no Antigo Testamento; cf. Ex 29,18.25; Lv 2,12; 4,31; 6,14; 8,21; 17,4.6 etc.), sacrifício aceito e agradável a Deus (thysían dektén, euáreston to Theo, que substitui os sacrifícios antigos; cf. Lv 17,4; 19,5 etc.). Na perícope percebe-se um intercâmbio e comunhão solidária entre os filipenses e Paulo. A análise literária permite perceber a alternância entre o vós e o eu, culminado em Deus: uma comunhão/solidariedade que culmina em Deus e que Deus saberá retribuir. Paulo, que se declara devedor de todos (Rm 1,14), não tem como retribuir, e por isso convoca Deus para que se torne provedor dos filipenses (vv. 19-20). A expressão “o meu Deus proverá” (v. 19a) faz pensar no sacrifício de Abraão (Gn 22,8.14), tão grande era o apreço de Paulo pela solidariedade dos filipenses. No v. 17 usa-se linguagem comercial (brindes, crédito, conta), mas Paulo inverte completamente os padrões comerciais. Solidariedade não é comércio. Quem dá sai lucrando, na linha do que costumamos afirmar: “Quem dá aos pobres empresta a Deus”, ou, como diz Eclo 35,4, “dar esmola é oferecer sacrifício de comunhão”. É interessante deter-nos no perfil de Paulo. Está preso, mas demonstra grande alegria pela “liturgia” dos filipenses. A alegria é um tema recorrente em toda a carta, a ponto de ser chamada de “a carta da alegria” (pode-se lê-la por inteiro nessa perspectiva). Não é uma alegria qualquer, mas “no Senhor”, e apesar de tantas tribulações. O apóstolo não se sente refém dos sofrimentos e necessidades. De fato, demonstra possuir os ideais morais dos mais respeitados grupos filosóficos daquele tempo – estóicos, por exemplo – com os princípios da autarchéia (v. 11: autárkes = ser auto-suficiente) e da ataraxia (imperturbabilidade, v. 13: “Tudo posso naquele que me fortalece”). Sua força vem do Senhor, e não se perturba por causa da carência nem por causa da abundância, os dois extremos que podem fazer perder a fé e a confiança em Deus. É cômodo não se perturbar quando se tem recursos. E quando se está na penúria? Paulo alcançou o equilíbrio do homem sábio. Vale a pena recordar a oração do homem sábio e equilibrado de Pr 30,7-9: “Duas coisas eu te pedi; não mas negues antes de eu morrer... não me dês nem riqueza e nem pobreza, concede-me o meu pedaço de pão; não seja eu saciado, e te renegue, dizendo: ‘Quem é Iahweh?’ Não seja eu necessitado e roube, e blasfeme o nome de meu Deus”. Mateus 10,10 (Lc 10,7) contém um mandato do Senhor muito caro ao grupo conservador de Jerusalém, que monopolizava o título de apóstolo. Ao enviar os Doze em missão, Jesus garantiu-lhes o sustento: o operário merece seu salário. Em Lucas isso é estendido a todos os evangelizadores – compreendidos no número 72. Paulo, contudo, nunca fez da evangelização seu ganha-pão. Preferiu trabalhar com as próprias mãos, garantindo sustento para si e seus companheiros. A ajuda que recebe dos filipenses não é vista como um “toma lá, dá cá”. Eles o ajudam espontaneamente mais de uma vez, depois que ele deixou Filipos (Fl 4,16; 2Cor 11,8-9).

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Esse “depois” confirma que ele nunca misturou evangelização com dinheiro. Longe dos filipenses e passando necessidade é que aceita ajuda. Ele cria, dessa forma, uma fronteira que preserva sua independência e liberdade diante dos bens. E faz de tudo para preservá-las. À primeira vista, parece fácil responder ao por que Paulo aceitou a ajuda dos filipenses e até constrói uma teologia da solidariedade. As dificuldades surgem quando perguntamos por que não fez o mesmo com os coríntios e na região da Acaia (2Cor 11,10). A recusa obstinada em não aceitar ajuda material dos coríntios rendeu-lhe duros conflitos, descritos longamente em 2Cor 10-13. Estes parecem ser os motivos principais que o levaram a ter um relacionamento especial com as comunidades de Filipos: 1. A condição social das pessoas (Lídia e outros) e das próprias comunidades, e a provável ausência (ou quase) de pobres, ao contrário de Corinto, onde a maioria era pobre (cf. 1Cor 1,26. Se isso for verdade, seria interessante desenvolver o tema “Paulo e os pobres”, tão importante para os projetos apostólicos). 2. A presença (e liderança) de mulheres nas comunidades de Filipos – Lídia, Evódia e Síntique.

Sugestões para uma leitura paulina: O texto pode ser abordado de vários ângulos e iluminar muitos aspectos da vida. Aqui estão alguns. 1. Há na província (região, comunidade) solidariedade para com os necessitados? Como acontece essa “liturgia”? Pe. Alberione gostava de lembrar Pedro e João diante do paralítico (At 3,1ss). O que oferecemos a essas pessoas? 2. Paulo alcançou o ideal moral dos estóicos – a autarchéia e a ataraxia – que faz pensar no voto de pobreza. Agimos na abundância do mesmo modo que na penúria? 3. O que significam para nós a independência e a liberdade de Paulo quanto ao dinheiro? 4. É possível aumentar a solidariedade entre os paulinos? De que forma? 5. Para Paulo, a ajuda financeira dos filipenses tinha também escopo apostólico. Como contribuir, com nosso apostolado, para diminuir a miséria no mundo? 6. Numa dimensão interpessoal, valorizar os pequenos gestos de solidariedade (para com os idosos, doentes...), cientes de quem dá sai lucrando.

2. Segunda carta (1,1-3,1a + 4,2-7.21-23) a. Endereço, saudação e ação de graças (1,1-11). Os autores são dois – Paulo e Timóteo – mas já não temos aqui o coletivismo de 1Ts. Paulo assume toda a responsabilidade, e Timóteo é citado no início porque Paulo pensa enviá-lo a Filipos (2,19). Os dois se apresentam como servos. Na carta não encontramos a palavra apóstolo, sinal de que Paulo tem preferência pelo servo. Anunciar o Evangelho não foi escolha sua. Foi uma ordem que recebeu (1Cor 9,16-18), por isso se considera servo obediente. Há em Fl estreito paralelismo entre Jesus-servo e Paulo-servo. Ambos se despojam, enfrentam a morte e caminham para a ressurreição. Os cristãos de Filipos são chamados de santos (comparar com 1Ts 4,3) em virtude do batismo que receberam como resposta de fé ao anúncio de Jesus Cristo (cf. a fé ativa dos tessalonicenses – 1Ts 1,5). O batismo nos introduziu no caminho da santidade, caminho apenas iniciado. Os santos de Filipos são comunidades de fé e de vida. Têm seus dirigentes: epíscopos (supervisores) e diáconos (servidores), cf. 1Ts 5,12. As comunidades filipenses são saudadas com o binômio presente em todas as cartas de Paulo: graça e paz. A graça (cháris) recorda a hésed do AT, e representa o amor entranhável de Deus. A paz (eiréne – shalom) é a plenitude dos bens que garantem a vida. Não é pouca coisa o que Paulo deseja aos santos de Filipos. Quem doa graça e paz e as garante são “Deus nosso Pai e o Senhor Jesus Cristo”. Como na maioria de suas cartas (exceção feita a Gl), Paulo inicia agradecendo (e, em seguida, suplicando) – vv. 3-11. A ação de graças/súplica do servo prisioneiro é marcada pela assiduidade com que reza e pela alegria que caracteriza a oração. (É a primeira vez que aparece a palavra alegria.) O motivo da constante e alegre ação de graças acompanhada de súplica é a caminhada de fé perseverante das comunidades filipenses, desde o primeiro dia. Aceitaram o Evangelho anunciado, tornaram-se missionárias (cf. 1Ts 1,6-8) e solidárias (a ajuda enviada – cf. a 1ª carta), “participantes da graça”. A participação da graça tem dois aspectos, interno e externo: interno pela

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fé, externo pelo compromisso missionário. Olhando para o futuro – para “o dia de Cristo Jesus”, o servo prisioneiro tem certeza de que as comunidades filipenses não decepcionarão, pelo contrário, terão alcançado a perfeição. Paulo já está pensando nos problemas internos e externos desses santos, dos quais falará adiante. Antes de entrar nesse assunto, faz uma declaração de amor (v. 8): “Deus me é testemunha de que vos amo a todos com a ternura de Cristo Jesus” (compare com 1Ts 2,6-12). Dado o exemplo do amor, insere na ação de graças uma súplica (a Deus), exatamente acerca do amor, propondo-lhe um itinerário exigente “até o dia de Cristo” (vv. 9-11; cf. 1Ts 5,1ss): crescer cada vez mais (compare com 1Ts 4,1.10) em conhecimento e sensibilidade, levando ao discernimento (compare com 1Ts 5,21), à pureza e irrepreensibilidade (Fl 3,6), plenamente maduros na justiça.

Sugestões para uma leitura paulina: O texto oferece várias perspectivas. Eis algumas: 1. A carta (= nosso apostolado) é fruto de trabalho coletivo: pensar juntos, rezar juntos, num corpo social (a comunidade) apostólico. 2. Nosso apostolado é um serviço que prestamos ao Reino, na Igreja, na sociedade. Sentimo-nos à vontade com o título de “servo” como nos sentimos à vontade com o de “apóstolo”? O que a autoridade representa para nós? 3. O batismo fez-nos santos a caminho da santidade. Onde nos situamos nessa caminhada? 4. O que desejamos aos outros quando nos saudamos com “graça e paz”? 5. Em clima de alegre ação de graças, percorrer a própria caminhada de fé (e de consagração) – ou a caminhada da comunidade (região, província). Agradecer a dimensão missionária, solidária, a “participação na graça”. 6. Olhando para o futuro (para o “dia de Cristo Jesus”), pedir por si (pela comunidade...). 7. Somos capazes de dizer-nos mutuamente “eu te amo com a ternura de Jesus Cristo”?

b. “Para mim, o viver é Cristo e o morrer é lucro” (1,12-26). Terminada a ação de graças/súplica, Paulo fala de sua situação na cadeia. Aqui também, constrói uma reflexão teológica a partir dos acontecimentos – neste caso, tribulações – com visão positiva (v. 18: alegria) e de fé. Os filipenses provavelmente souberam da possibilidade de Paulo conquistar a liberdade. Nem todos viram com bons olhos esse fato, pois para alguns o martírio era o ápice do testemunho. Evangelizava-se mais com ele do que com palavras. Paulo enfrenta essa questão. Sua prisão tornou-se oportunidade de testemunho (Mt 10,18), pois em todo o Pretório e por toda parte se falava desse prisioneiro e do motivo de sua detenção. Também para Paulo “há males que vêm para o bem”. Seus companheiros, longe de desanimar com a prisão, encheram-se de ousadia, de modo que a Palavra não pode ser acorrentada (cf. 2Tm 2,9). A isso Paulo chama de “progresso do Evangelho” (v. 12). Nem sempre a evangelização acontece em águas serenas. A turbulência vem de fora, mas pode vir de dentro também. Alguns cristãos se alegraram com a prisão de Paulo e, para provocar-lhe inveja, entregaram-se com todas as energias ao anúncio da Boa Notícia. Como Paulo vê essa rivalidade e concorrência dentro da comunidade? Sem se pronunciar por ora acerca da competição (cf. 2,3), ele desconsidera os métodos (e as pessoas) e se concentra nos resultados: “De qualquer maneira – ou com segundas intenções ou sinceramente – Cristo é proclamado, e com isso me regozijo” (v. 18b). Ele crê que “Deus escreve direito por linhas tortas”. E, olhando para o próprio amanhã, tem certeza de que tudo contribui para sua salvação (cf. Rm 8,28): prisão, tribulação, anúncio, oração dos filipenses e ajuda do Espírito. Diante disso, relativiza tudo: a própria vida, a morte, estando aberto a qualquer eventualidade (cf. Rm 8,35-39), morrer ou viver. Usando linguagem do mundo da economia (lucro, cf. 3,7ss), considera vantagem morrer e estar com Cristo – “para mim o viver é Cristo” (cf. Gl 2,20). Devendo escolher entre dois bens (o mais vantajoso, de cunho pessoal, é morrer), escolhe o bem coletivo, menos vantajoso, porém mais útil às comunidades e à evangelização: viver e continuar anunciando Jesus Cristo. Sua vida, portanto, está em função da missão. Vale a pena viver enquanto é útil ao “progresso do Evangelho”. O que dá sentido à vida é a missão, o ser-para-os-outros; o prêmio ou bem maior (estar com Cristo) virá como conseqüência.

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Pergunta-se por que Paulo tem tanta certeza de continuar vivendo, sair do cárcere e voltar a rever seus amados filipenses. Alguns – apoiados na informação de Lucas de que Paulo seria cidadão romano (At 16,37; 22,25ss) – suspeitam que o prisioneiro declararia sua cidadania e seria libertado. Não explicam, contudo, por que não o fez até agora, após ter enfrentado o dilema morrer/viver. Paulo, em suas cartas, nunca menciona sua possível cidadania romana, e nós devemos ficar de sobreaviso. A certeza de ser solto decorre disto: por todo o Pretório e arredores, corre a notícia de que ele está preso por causa de Jesus Messias, e isso não constitui nenhum crime para a legislação romana. Nisso concordam os Atos, que declaram sucessivamente inocente após sua prisão em Jerusalém. Daí sua convicção de ser libertado brevemente “para proveito vosso e para alegria de vossa fé” (v. 25b).

Sugestões para uma leitura paulina: 1. Quais as tribulações para o “progresso do Evangelho”? Vêm de fora ou de dentro? 2. As rivalidades numa comunidade são fatores positivos ou negativos à evangelização? Quais as conseqüências da competição? 3. O apostolado paulino determina ou não a minha vida? 4. que lugar ocupa em minha vida o ser-para-os-outros? 5. Padre Alberione usou muito a frase “o meu viver é Cristo”. Essa expressão está ligada à espiritualidade, ao apostolado ou às duas coisas? Existe sintonia entre Pe. Alberione e Paulo nesse aspecto? 6. Além desses temas, o que merece aprofundamento nessa perícope?

c. Conduta conforme o Evangelho (1,27-2,5). Após ter falado de sua situação, Paulo exorta os filipenses a viverem como “cidadãos do Evangelho” (a expressão “vivei vida”, em grego, é construída sobre a palavra polítes = cidadão). A norma (ou paradigma) para esse tipo de cidadania não é oferecida pela pólis (cidade), mas pelo Evangelho. Mencionam-se adversários das comunidades, sinal que há conflitos vindos de fora. Diante disso aconselham-se duas coisas: 1. união (um só espírito, uma só alma) e 2. destemor (“em nada vos deixais atemorizar”). Na vivência da fé e na expansão da mensagem, as comunidades filipenses encontram a mesma resistência e oposição sofridas por seu fundador (comparar com 1Ts 1,6; 2,13-16). A linguagem dos vv. 28-30 é tomada do campo militar para caracterizar a militância dos seguidores de Jesus. As comunidades não enfrentavam apenas problemas vindos de fora. Dentro delas também havia tensões e conflitos (Fl 4,2-3). Paulo não se havia pronunciado acerca da competição entre os membros. Agora toca neste e noutros pontos críticos da vida “intra muros”. Lendo 2,2-4 pelo avesso, notamos pelo menos 4 sintomas: 1. desunião e desacordo entre as pessoas; 2. competição; 3. atitudes de superioridade e 4. individualismo. A exortação de Paulo não podia ser mais forte. Faz calorosos apelos ao conforto que há em Cristo, à consolação que há no amor, à comunhão no Espírito, por toda ternura e compaixão. Para a desunião o remédio é a concórdia de sentimentos e pensamentos, num só amor e numa só alma. Para vencer a competição e a atitude de grandeza recomenda a humildade, que faz considerar os outros mais importantes (cf. Rm 12,16). Para combater o individualismo sugere a co-responsabilidade. Em outras palavras, ser “cidadão do Evangelho” é ter as atitudes de Jesus Cristo, fazer próprias as disposições de vida (sentimentos) dele (v. 5). Vem, por isso, um dos mais importantes hinos cristológicos do Novo Testamento; quer mostrar aos filipenses como ser “cidadão do Evangelho”.

Sugestões para uma leitura paulina: 1. A perícope sugere fazer uma leitura de nossas comunidades. Como está nossa luta “pela fé do Evangelho”? Há conflitos vindos de fora? Como enfrentá-los? 2. A exortação de Paulo revela tensões internas: desunião, mania de grandeza e superioridade, individualismo. Quais são as tensões de minha comunidade? Como avalio as iniciativas apostólicas individuais? 3. Paulo apresenta alguns valores inalienáveis para que a comunidade subsista e seja fermento na sociedade: união, humildade, co-responsabilidade. Quais valores há em minha comunidade e quais estão em falta?

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d. A opção de vida de Jesus (2,6-11). O hino cristológico de Fl 2,6-11 é um texto poético denso de significado, muito estudado e com várias interpretações. Há quem diga que não é de Paulo, e que ele o teria encaixado aqui e acrescentado algumas palavras (“morte sobre uma cruz” – v. 8b). Evitando essas especulações, pode-se afirmar o seguinte: O hino, para falar da opção de vida de Jesus, certamente se inspira no quarto canto do servo de Iahweh (Is 52,13-53,12), com o duplo movimento: de esvaziamento, em que o sujeito é Jesus (estando na forma de Deus, despojou-se, tomando a forma de escravo, semelhante aos homens, abaixou-se, obediente até a morte de cruz) e de exaltação, tendo Deus como agente (ressuscitou-o, deu-lhe um nome soberano...). Seu oposto é Adão: em lugar do movimento de esvaziamento ele provoca o de auto-exaltação (criado à imagem e semelhança de Deus, exaltou-se, querendo ser como Deus, não quis obedecer...); e em lugar do movimento de exaltação temos o aniquilamento (em vez de ressurreição, a morte...). Nesse sentido, Jesus é o Homem Novo, o começo de Nova Humanidade, portador de novo paradigma. Nesse sentido é verdadeiro Caminho para a Vida (cf. Jo 14,6). Podemos ainda pôr esse hino em paralelo temático com a segunda parte do Evangelho de João (13-20), sobretudo o episódio do lava-pés (13,1ss): movimento de esvaziamento: Jesus levanta-se da mesa, tira o manto (despojou-se), toma uma toalha (insígnia do escravo), abaixou-se, lavou os pés...; movimento de exaltação: retoma o manto, senta-se à mesa... Detalhe significativo: o lava-pés se consuma na cruz, quando Jesus diz “Tudo está consumado”, e termina na ressurreição. De qualquer modo, esse hino é fundamental para Paulo, e mostra Jesus encarnado nas realidades humanas menos apreciadas: esvaziamento, despojamento, serviço, obediência e morte de cruz (sentença dada a criminosos). O caminho do cristão está traçado por Cristo. É por isso que Paulo procura identificar-se com ele. De fato, enquanto fariseu irrepreensível desfrutava de status invejável (Fl 3,6; Gl 1,13-14), mas despojou-se, esvaziou-se, considerando tudo isso perda, esterco (3,7-8), fez-se servo (1,1), disposto a morrer (1,21) para alcançar a ressurreição (3,10-14). É por isso que pode pedir aos filipenses: “Sede meus imitadores, irmãos, e observai os que andam segundo o modelo que tendes em nós” (3,17).

Sugestões para uma leitura paulina: 1. O hino cristológico explica em parte por que, nesta carta, Paulo não recorre ao título de apóstolo, mas prefere chamar-se servo, identificando sua vida com a de Jesus servidor. Quais as conseqüências disso para mim, para minha comunidade, para a missão? 2. Jesus servidor encarnou-se numa cultura, ocupando o lugar dos excluídos. Paulo também. O que significa encarnar-se numa cultura da comunicação hoje? 3. O que significa ser hoje imitadores de Paulo? Quais opções de vida animam meu ser paulino?

e. Conseqüências (2,12-18). O “portanto” (v. 12) une estreitamente o que já vimos (hino) com o que virá. Paulo apresenta conseqüências para a vida cristã. A perícope começa falando da ausência de Paulo em Filipos (v. 12) e termina com a possibilidade de ter de enfrentar o martírio (v. 17). De qualquer modo, ele se alegra e pede que os filipenses se alegrem com ele (v. 18). A alegria, nessa carta, extrapola os acontecimentos felizes, pois o próprio martírio por causa da missão é motivo de regozijo (cf. Rm 12,12; 1Ts 2,19). Quais são para nós as conseqüências da opção de vida de Jesus servidor? Observando os verbos no imperativo, nota-se que os filipenses são chamados à obediência em dois pontos: 1. “Operai a vossa salvação com temor e tremor”, e 2. “fazei tudo sem murmurações nem reclamações”. O primeiro ponto mostra o dinamismo do itinerário cristão, feito em parceria com Deus. A salvação é dom divino que se alcança com o empenho humano qualificado. Deus opera na pessoa o querer e o agir (vontade e ação), e a pessoa responde à vontade de Deus operando a própria salvação com temor e tremor. A vida é o canteiro de obras em que construímos nossa salvação ou perdição. O segundo ponto explicita o novo modo de agir (“fazei tudo...”), diferente de como agiu o povo hebreu no deserto, quando murmurou contra Deus e Moisés. O novo modo de fazer as coisas projeta luz para fora da comunidade, fermentando a sociedade (“geração má e perversa”) e iluminando-a (“no meio da qual brilhais como astros no mundo”), como portadores da novidade cristã (“mensageiros da Palavra de vida”).

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Paulo-servo olha para o fim da caminhada (Dia de Cristo) e se vê como atleta (v. 16b; cf. 2Tm 4,7) cuja corrida ganha sentido se os filipenses se mantiverem firmes. Para isso, não importa se ele tiver de enfrentar o martírio. Seu sangue derramado é libação. (Nos sacrifícios judaicos, libação era uma porção de azeite, vinho ou água derramada sobre a vítima – Ex 29,40; Nm 28,7; cf. 2Tm 4,6.) O sangue que Paulo irá derramar fará aumentar e incrementar a evangelização. E isso é motivo de alegria.

Sugestões para uma leitura paulina: 1. Do hino cristológico, Paulo tira duas conseqüências para os filipenses e uma para si (martírio). Elas servem também para nós? Quais conseqüências acrescentaríamos? 2. “Querer e operar” eram temas importantes na vida e palavras do Fundador. Isso repercute em nós? 3. Minha comunidade é fermento, luz e mensageira da Palavra de vida para a “geração má e perversa”? 3. Partilhar e contemplar a vida e a entrega dos paulinos que ofereceram a própria vida como “libação”.

f. Partilhando a vida (2,19-3,1a + 4,2-7.21-23). O restante da segunda carta são notícias (2,19-30), recomendações (3,1a; 4,2-7) e saudação final (4,21-23). Paulo aprecia as notícias entre ele e suas comunidades, notícias por carta e por intermédio de pessoas. Timóteo está para ser enviado a Filipos a fim de trazer notícias para Paulo prisioneiro. As notícias provocarão nele alegria. Não deve ter sido pouca coisa a viagem de Timóteo a Filipos (distância, tempo, gastos etc.) só para receber notícias boas. A ida de Timóteo a Filipos não está decidida, pois depende do rumo que os acontecimentos irão tomar. Talvez o próprio Paulo, libertado, possa fazer a viagem. A precariedade e as incertezas não impedem uma vida alegre. Paulo elogia Timóteo: é a pessoa mais sintonizada com seus projetos, como filho junto ao pai. Timóteo se mostra preocupado não só com Paulo, mas também com os filipenses. Isso se torna ainda mais importante a partir do fato de haver entre os companheiros de Paulo pessoas que só pensam em si e nos próprios interesses (2,21; cf. 2,4). Antes da ida de Timóteo, quem retorna a Filipos é Epafrodito, que trouxe a ajuda financeira das comunidades a Paulo prisioneiro (1ª carta). A carta não poupa elogios do mensageiro filipense: irmão, colaborador e companheiro de lutas (cf. Fm 2). Ele certamente retorna aos seus com a 2ª carta. Os filipenses o haviam escolhido como seu representante junto a Paulo, e isso demonstra o carinho que essas comunidades nutriam por seu fundador. Acontece que Epafrodito ficou gravemente doente, aumentando as preocupações de Paulo e das próprias comunidades. Decide-se, então, que ele deve retornar logo a Filipos. Paulo – temendo talvez algum descontentamento com o retorno – aconselha a recebê-lo com toda alegria e estimá-lo como merece. Há, nos vv. 25-30 um clima de profunda fraternidade, carinho, preocupação recíproca, saudades, alegria. A doença de Epafrodito causou preocupação e tristeza em todos; sua morte seria acumular tristeza sobre tristeza. Paulo valoriza o sentimento da saudade e sabe reconhecer os riscos que as pessoas correm para socorrer os outros, o tempo dedicado aos companheiros (cf. Rm 16,1-4; 12,10.15-16; 13,8). Concluídas as notícias, vêm as exortações (3,1a; 4,2-7). A primeira é para todos e reforça um dos temas importantes da carta, a alegria: “Finalmente, irmãos, regozijai-vos no Senhor”. As condições adversas para Paulo e as incertezas vividas pelas comunidades não podem sufocar o sentimento de alegria. A segunda exortação destina-se às lideranças, duas mulheres (Evódia e Síntique) e um homem (Sízigo). Há quem pretenda ver aí nomes fictícios, mas é preferível crer que se trata de pessoas concretas, provavelmente lideranças, que brigam entre si. Às duas mulheres pede-se que sejam unânimes (to autó fronein), como em 2,2 (to autó fronountes). A Sízigo se pede que as auxilie, reforçando o que foi recomendado em 2,4, a recíproca preocupação e ajuda. Às vezes focalizamos apenas a desunião dessas duas mulheres, ofuscando o modo positivo com que Paulo as trata: pedindo a Sízigo que as ajude porque elas ajudaram Paulo e outros na luta pelo Evangelho. A terceira exortação é geral (4,4-7) e é motivada pela proximidade do Senhor (cf. 1Ts 5,1-11). Se em 1Ts recomendava-se a consolação recíproca, aqui recomenda-se – com certa ênfase – a alegria. A proximidade do Senhor não é motivo de perturbação; pelo contrário, aconselha-se um dos

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valores mais estimados pelos estóicos – a ataraxia (imperturbabilidade). Paulo não desdenha as coisas boas em quem não é cristão, ao contrário do que faziam os fariseus com os não-judeus. A imperturbabilidade supõe dificuldades, tensões, conflitos. O modo certo de evitar a perturbação é apresentar a Deus as necessidades nas diversas formas que as comunidades conhecem: invocando-o, suplicando-o e agradecendo-lhe, para alcançar a paz de Deus. A saudação final (4,21-23) encerra a carta com um clima de fraternidade geral entre os santos (cristãos) de Filipos e os de Éfeso. Chama a atenção que especialmente os cristãos “da casa do Imperador” também mandem saudações. Esteja onde estiver (Cesaréia, Roma ou Éfeso), o prisioneiro Paulo conseguiu levar à fé todo o pessoal empregado a serviço do Imperador (cf. 1,13).

Sugestões para uma leitura paulina: 1. As notícias, exortações e saudações são uma partilha de vida. Costumamos partilhar com alegria as coisas boas de nossas comunidades? 2. Paulo reconhece a dedicação de Timóteo e Epafrodito, avaliando-os positivamente. Acontece o mesmo conosco? 3. Paulo expressa atenção especial pelos doentes. E nós? 4. Há entre o grupo de Paulo e os filipenses um clima de profunda fraternidade, carinho, preocupação recíproca, saudades, alegria. Isso sugere algo para nossas comunidades? 5. Qual o perfil de minha comunidade: alegre, indiferente, amargurada? Isso repercute na pastoral vocacional? 6. É possível viver mais unidos ou nos conformamos com as desuniões? 7. O que significa para nós “não vos inquieteis com nada”? A oração confiante no Senhor nos ajuda nisso? 8. O mundo que nos cerca tem valores a nos oferecer? 9. Há outros aspectos da 2ª carta que não foram contemplados?

3. Terceira carta (3,1b-4,1 + 4,8-9): “Sede meus imitadores” A terceira carta já não fala de prisão e nem de planos para visitar as comunidades filipenses. Desapareceu o tema da alegria, apesar de Paulo estar livre. O texto é polêmico, Paulo se torna agressivo, chama os adversários de cães, maus operários e mutilados, escreve chorando (3,18), alerta (3 vezes “cuidado com...”), pede para que o imitem... Tudo isso e outros fatores nos põem diante de nova situação. Esta carta está muito próxima a Gálatas quanto à temática e provavelmente também quanto à data. Por Filipos certamente passaram cristãos de origem e cultura judaicas – que costumamos chamar de judaizantes. Conseguiram perturbar a vida das comunidades (cf. 4,6), semeando confusão. A tese defendida por esses judeu-cristãos pode ser resumida com a citação de At 15,1b: “Se não vos circuncidardes segundo a norma de Moisés, não podereis salvar-vos”. A circuncisão era, portanto, a condição para a salvação. Com isso, garante Paulo, inutiliza-se a cruz de Cristo (Gl 5,2), e os que agem dessa forma são inimigos da cruz de Cristo (Fl 3,18b). Mais ainda, sendo a circuncisão a porta de entrada para a primeira aliança, o circuncidado é obrigado a cumprir inteiramente a Lei (cf. Gl 5,3). Conseqüência grave: para ser cristão seria preciso antes tornar-se judeu, judaizar-se, assumir inteiramente o judaísmo e sua cultura. Religião, portanto, não seria a expressão da fé na cultura de cada povo, mas a expressão da fé através da cultura judaica. Paulo se irrita enormemente, tratando com deboche os judaizantes. Os judeus radicais chamavam os pagãos de “cães” (porque os cães comem qualquer coisa e por isso eram catalogados entre os mais impuros animais). A carta torce o sentido, chamando os judaizantes de “cães” e advertindo contra eles (deve-se recordar que os cristãos de Filipos são de origem pagã). Chama-os de “maus operários” e de “mutilados” (depreciação da circuncisão. Homens e animais mutilados eram respectivamente inaptos e impróprios para o culto). Como em Gálatas, Paulo desmascara os judaizantes, afirmando que têm objetivos escusos, não-revelados, que desejam marcar o corpo dos homens (circuncisão) para se gloriarem (Gl 6,13; Fl 3,19). A tudo isso que vimos Paulo chama de “carne” (3,3-4) – normas que os fariseus tinham em elevado apreço. Há uma nova circuncisão, já anunciada pelos profetas (Jr 4,4), selo de nova aliança (31,31-35) que se expressa em nova liturgia e novo culto (Fl 3,3).

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Para ressaltar a excelência da novidade, Paulo descreve detalhadamente o tempo em que viveu na “carne”, alcançando o grau de fariseu irrepreensível. São 7 títulos (vv. 5-6; compare com Gl 1,13-14). Usando linguagem comercial (lucro/perda), considera esterco sua carreira de fariseu irrepreensível. Os fariseus tinham catalogado 613 importantes mandamentos. Quem os praticasse escrupulosamente alcançaria a irrepreensibilidade e, de certo modo, obrigaria Deus a intervir em seu favor. Os fariseus pensavam que quando todos estivessem praticando os 613 mandamentos, Deus enviaria o Messias como prêmio pela “justiça que há na Lei”. Paulo descobre que, apesar de serem todos pecadores, o Messias veio e amou tanto a humanidade a ponto de entregar a vida na cruz (Rm 5,8; Gl 2,20; Jo 3,16). Ele então se pergunta: de que me serviu ser fariseu irrepreensível? De nada, é esterco, pois não é a justiça do homem que provoca o amor de Deus. O Messias não veio como prêmio da justiça humana, mas como prova de que o amor divino é soberano e se antecipa sempre ao amor humano. A compreensão disso matou o fariseu que havia em Paulo. Como fariseu irrepreensível, Paulo se considerava perfeito, acabado, estacionado. Como seguidor de Jesus Cristo considera-se atleta que corre atrás do Senhor, pois Jesus caminha à frente, e lá no fim o aguarda com o prêmio da ressurreição. Ser cristão, portanto, é dinamismo que se opõe ao fixismo farisaico. Paulo se considera alcançado por Jesus e ultrapassado. Como atleta, corre para ver se o alcança, esquece o que fica para trás (o fariseu irrepreensível) e projeta-se para frente. E convida as comunidades a fazerem como ele (3,15-17). O prêmio é a ressurreição, a cidadania celeste (vv. 20-21; cf. 1Cor 15,47-49; 2Cor 5,1-10), quando seremos transfigurados à semelhança do corpo glorioso de Cristo (cf. 1Cor 15,23-28; compare com 1Ts 4,13-18). Por isso Paulo convoca os filipenses à constância (4,1). É uma exortação geral cheia de ternura e alegria, sinal de que, como vimos na 2ª carta, é possível ser alegre na tribulação, terno na luta. A carta caminha para o fim (“finalmente”, 4,8) com outra exortação geral. Em vez de 613 mandamentos a serem praticados, um horizonte aberto e uma conduta marcada pelo bem. Paulo cita 7 valores da moral dos filósofos daquele tempo: tudo o que é verdadeiro, nobre, justo, puro, amável, honroso e virtuoso, ou seja, tudo o que merece louvor, seja preocupação e ocupação de todos. Paulo emprega o verbo logízomai, que não supõe as coisas prontas de antemão, vindas de fora, e sim brotadas de dento, fruto do discernimento (cf. 1Ts 5,21). Paulo se mostra nisso educador (“aprendestes”), pai (“herdastes”), mestre (“ouvistes”) e exemplo (“observastes em mim”). E conclui: “Então o Deus da paz estará convosco”.

Sugestões para uma leitura paulina: 1. Fl 3 é um dos capítulos mais citados pelo Fundador. Partilhe isso na sua comunidade. 2. Nesse capítulo contemplamos a morte de Paulo fariseu irrepreensível e o surgimento do cristão atleta e dinâmico. Como isso repercute em minha vida e comunidade? E na missão? É possível associar isso com as novas tecnologias e novas linguagens de comunicação? 3. Comente com exemplos a seguinte afirmação: A imposição de uma cultura aborta as vocações autóctones. 4. Quem, na sua opinião, seriam os modernos judaizantes e quais as suas propostas? 5. O que seria, hoje, tornar inútil a cruz de Cristo? 6. Paulo não deixa de ser carinhoso e terno na luta e no conflito. Isso ilumina nossa relação com os destinatários da missão? 7. Paulo não fornece um elenco de mandamentos, mas abre o horizonte, fixando-se “naquilo que merece louvor”. Isso ajuda na escolha dos conteúdos e valores? 8. Na sua opinião, há pontos que merecem mais atenção e aprofundamento? 9. Em quais aspectos você mais se identificou com Paulo? 10. Que avaliação você faz deste estudo de Filipenses? 11. A divisão em três cartas ajudou no aprofundamento?

III. O BEM-AVENTURADO ALBERIONE E A CARTA AOS FILIPENSES Após termos meditado diretamente aquilo que Paulo escreve aos Filipenses, com o

auxílio dos resultados obtidos pelos estudos exegéticos e com algumas perguntas para

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aplicar a nós Paulinos a riqueza dos conteúdos dos textos, observemos como o nosso Fundador meditou e valorizou a carta aos Filipenses. Haurindo da Opera omnia dos escritos de Padre Alberione, as citações que seguem não têm a pretensão de exaurir, antes, desejam ser um início a ser completado com o conhecimento pessoal e comunitário do Primeiro Mestre. Elencamos a seguir as citações da carta aos Filipenses mais usadas pelo Padre Alberione.

1. “Para mim, com efeito, o viver é Cristo” (1,21). Paulo, após a experiência do

caminho de Damasco, encontra em Cristo o sentido pleno de toda a sua existência. Padre Alberione, fascinado pela centralidade de Cristo na vida de Paulo, recorre freqüentemente a esse texto para indicar a natureza da espiritualidade paulina: a cristificação progressiva é o conteúdo, o método e o objetivo da santificação e do apostolado. A espiritualidade de Cristo Mestre Caminho, Verdade e Vida qualifica o estilo de vida paulina como plena conformidade ao Cristo integral (dogma, moral e culto) da totalidade da pessoa (mente, coração, vontade). “A minha vida é Cristo”, dizia São Paulo; …Viva em nós Cristo Caminho, Verdade e Vida! Então não será mais o homem a querer, a pensar, a amar, mas será Jesus Cristo que pensará, agirá, amará no homem. O erro está em seccionar Jesus Cristo. Houve quem admirou as sublimes verdades como Rousseau, mas sem aceitar sua moral e sem viver unido a Jesus Cristo; houve quem lhe admira as outras virtudes e há quem reduz o cristianismo a um sentimentalismo. Ao contrário, é preciso acolher com fé a sua palavra e imitar seus santos exemplos e ter em nós a vida sobrenatural da graça” (Às Filhas de São Paulo,1946-1949, p. 598s).

2. “Estou em apuros por causa desta alternativa: por um lado, o desejo de partir e de

estar com Cristo…” (1,23). O viver e o morrer são levados em conta por Paulo somente a partir de sua relação com Cristo; a morte permitiria a realização plena da união com o Cristo glorioso. Freqüentemente citado em latim, “cupio dissolvi et esse cum Christo”, o desejo de morrer de Paulo para estar para sempre com o Cristo é valorizado pelo bem-aventurado Tiago Alberione sobretudo nos momentos dos Exercícios espirituais e toda vez que tenciona sublinhar o papel das verdades eternas (morte, juízo, inferno e paraíso) para imprimir à vida paulina uma vigorosa tensão sobrenatural.

“Propusemo-nos, neste curso de Exercícios, obter três fins: 1) sentir mais vivamente a nossa fé naquele artigo do Creio que diz: ‘Credo vitam aeternam’; 2) que os nossos corações se dirijam para o céu e amem Jesus, Deus, ‘Cupio dissolvi et esse cum Christo’, e o Paraíso para estar unidos a Cristo; 3) a escolha dos meios para alcançar aquele belo Paraíso que nos espera” (Às Filhas de São Paulo, 1940-1945, p. 478). “O pensamento do Céu deve destacar-nos da terra e fazer-nos usar tudo como meio; tornar-nos fervorosos, ... preparar-nos o desejo do céu, cupio dissolvi, e esse desejo tornar-se o rei dos desejos, produzindo sede de méritos, de perfeição, de almas” (Donec formetur Christus in vobis, n.33).

3. “Tende em vós o modo de sentir próprio dos que estão em Cristo Jesus”. Na

concórdia de um só “modo de sentir em Cristo Jesus”, Paulo indica o critério inspirador para resolver todo problema de relacionamentos dentro da comunidade cristã. O “sentir de Cristo” é indicado pelo bem-aventurado Tiago Alberione como regra da caridade fraterna, das relações entre as Instituições da Família Paulina e como estímulo pelo anseio de chegar às almas no apostolado.

“E há almas que compreenderam o mistério da redenção: ‘Hoc enim sentite in vobis quod et in Cristo Jesu’. Com quais pensamentos, com quais sentimentos o bom Pastor se imolava sobre a cruz!” (Às Irmãs de Jesus Bom Pastor, 1963, p. 60).

4. “…tornando-se obediente até a morte e morte de cruz” (2,8). “Esvaziar-se” da

condição divina para tornar-se plenamente homem e viver em contínua obediência à

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missão que o Pai lhe confiou, constitui para Paulo o evento central da vida de Cristo e o modelo de toda existência vivida em relação a Cristo. A obediência de Cristo à vontade do Pai é constantemente indicada pelo bem-aventurado Tiago Alberione para viver a fidelidade à vocação religiosa e ao apostolado paulino. O itinerário de Cristo, da condição divina à morte na cruz, é o modelo de referência da obediência paulina que tem como origem a vontade do Pai e como beneficiários os destinatários de nossa missão.

Convidando a unir a própria vida ao sacrifício eucarístico, Padre Alberione esclarece: “Sim, temos que oferecer ao Pai celeste não apenas Jesus Cristo, mas oferecer a nós próprios, sobretudo oferecer-lhe a nossa vontade, a firme vontade, a vontade constante, usque ad mortem como Jesus Cristo: qualquer coisa que desejas, Pai celeste, faze de mim o que te apraz” (Às Irmãs de Jesus Bom Pastor, 1959, p. 147).

5. “…esquecendo o que está atrás e lançado para aquilo que está à frente, corro em

direção à meta” (3,13). A referência exclusiva a Cristo na vida de Paulo permite uma visão diferente dos meios de santificação: a perfeição que agrada a Deus não é o resultado da observância escrupulosa da Lei, mas o crescimento constante no ato de assemelhar-se a Cristo. No processo de cristificação não existe uma meta fixa que possa justificar a parada por ter alcançado a meta: trata-se de constante lançar-se adiante, como a corrida de um atleta em tensão permanente.

O dinamismo de Paulo foi fortemente interiorizado pelo bem-aventurado Tiago Alberione, que viveu e deixou como característica imutável do carisma paulino o contínuo “lançar-se para a frente”.

Promulgando o primeiro curso de Exercícios espirituais de um mês (1960), Padre Alberione traça um rápido balanço dos primeiros 45 anos da Congregação (1914-1959): “Enquanto houver algo a ser feito, nada fizemos; ‘esquecendo o bem feito, lanço-me para a frente’: no espírito, no saber, no apostolado, na pobreza. Muitas vezes sequer foi solicitado o repouso necessário; trabalhemos, trabalhemos, descansaremos no paraíso’ ” (San Paolo, abril-maio de 1959).

6. “Tornai-vos todos juntos meus imitadores, irmãos, olhai aqueles que se

comportam segundo o exemplo que tendes em nós” (3,17). Paulo não hesita em propor-se como modelo de imitação de Cristo porque de um lado tem clara consciência da vocação recebida, e de outra parte consegue individuar com lucidez comportamentos contrários a Cristo. O bem-aventurado Tiago Alberione aplica a si mesmo e convida todos os Paulinos aa tornar própria a premente exortação de Paulo para que o imitem: “Sempre o estudo, o amor, a devoção a S. Paulo: ele que ilumina para a vida, o apostolado, o zelo, ele que se fez fôrma para os seus, para nós que somos os seus: ‘habetis formam nostram’ ” (San Paolo, novembro de 1958).

7. “Nossa cidadania está nos céus” (3,20). Descrevendo a diferença entre os

verdadeiros e os falsos imitadores de Cristo, Paulo utiliza o contraste entre um sentir “voltado às coisas da terra” e uma “cidadania nos céus”. Para manter a vida orientada para o céu, o bem-aventurado Tiago Alberione recomenda a visita eucarística: “Oh, sim, o nosso modo de pensar, de viver, de raciocinar, de nos comportarmos, de falar etc. sempre inspirado pelas verdades da fé. Isto quer dizer ter fervor” (Às Irmãs de Jesus Bom Pastor, 1959, p. 73).

A presença abundante dos novíssimos (morte, juízo, inferno e paraíso) na reflexão e no ensinamento do bem-aventurado Tiago Alberione tem escopo salutar positivo: alimentar a perseverança das intenções: “O pensamento do Paraíso deve tornar-nos corajosos. Há dias em que tudo é agradável e fácil, ao passo que em outros tudo é fadigoso e difícil, eis então que o pensamento do céu nos anima…Quando o dever exige esforço e renúncia, o pensamento do prêmio que nos espera – se está vivo em nós – nos anima, nos dá força e

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nos faz vencer tudo, pois não há proporção entre o prêmio futuro e as dificuldades presentes” (Às Filhas de São Paulo, 1934-1939, p. 655).

8. “Alegrai-vos no Senhor, sempre; repito: alegrai-vos!” (4,4). O convite à alegria é

como o clima espiritual dos textos escritos por Paulo à comunidade de Filipos; a presença da alegria é justificada pela referência ao Senhor, ao qual nos confiamos com a oração, e pela paz que caracteriza a vida comunitária quando fundada em Deus. Mesmo estando a par das dificuldades, é freqüente nas palavras do bem-aventurado Tiago Alberione o convite à alegria pessoal (“fique contente!”) e comunitária (“sede contentes e alegres!”) como conseqüência de uma vida inteiramente dedicada a Deus.

Comentando Fl 4,4 numa pregação às Filhas de São Paulo, o bem-aventurado Tiago Alberione explica: “Se nós compreendêssemos o que significa a nossa vida em Cristo, estaríamos sempre contentes, cheias de entusiasmo, de coragem, de alegria. Então a vida se torna mais bela, apesar de estar repleta de dores. Porém são necessárias as intenções de Jesus Cristo, seu olhar, seus pensamentos seus desejos” (Às Filhas de São Paulo, 1934-1939, p. 667).

“ ‘Ficai alegres, repito-o, ficai alegres’, diz S. Paulo. Onde não há alegria, ou há o diabo, ou está para entrar... Alegria individual e alegria de família. Haja em cada casa quem tem a nota da alegria santa: ajudará a saúde e dará lenitivo também nas fadigas mais duras e provas dolorosas... Alegria no apostolado, especialmente no vosso apostolado que vos coloca em contato contínuo com o mundo... Mostrar que somos felizes em servi-los e em fazer o bem. A alegria transparece e produz impressões salutares. Almas alegres, família alegre, apostolado alegre. As almas alegres tornam-se também mais rapidamente santas. Um santo triste é um triste santo” (Às Filhas de São Paulo, 1946-1949, p. 502).

9. “De resto, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é nobre, tudo o que é justo,

tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é honroso, tudo o que se chama virtude, aquilo que merece louvor, isto tomai em consideração” (4,8). O projeto de vida cristã indicado por Paulo inclui também a adoção de valores elaborados pela filosofia grega e que são estimados e respeitados na vida social. Com regularidade constante, o bem-aventurado Tiago Alberione citou este texto paulino para motivar a necessidade de estimar os valores humanos positivos em si próprios e como preparação para a evangelização direta.

Falando da ordem dos conteúdos editoriais, o Primeiro Mestre recorda: “Edições em espírito paulino, expresso nas palavras de São Paulo que, após ter indicado o que é essencial: ‘viver em Cristo’, acrescenta aos Filipenses: ‘De resto, irmãos etc.’ ” (Abundantes divitiae gratiae suae, n. 70). E ainda: “Dar em primeiro lugar a doutrina que salva. Penetrar todo o pensamento e saber humano com o Evangelho. Não falar só de religião, mas de tudo falar cristãmente” (Id., n. 87).

No texto que Padre Alberione escreve por ocasião da inauguração da rádio no Japão, cita expressamente Fl 4,8: “O programa das transmissões desta estação de rádio é o que foi assinalado por São Paulo na carta aos Filipenses” (San Paolo, julho de 1949).

10. “Sei viver na penúria, sei viver na abundância; estou acostumado a tudo em

qualquer situação, estar saciado, estar com fome, encontrar-me na abundância e a encontrar-me na indigência. Tudo posso naquele que me dá força” (4,12-13). Enquanto elogia e agradece a generosidade dos Filipenses, Paulo detalha suas intenções em receber a ajuda: ele alcançou a sabedoria de saber contentar-se em qualquer condição por causa do auxílio que lhe vem de Cristo. Falando da pobreza religiosa, muitas vezes o bem-aventurado Tiago Alberione cita explicitamente esta passagem de São Paulo: “Depois do Divino Mestre, o nosso pai S. Paulo nos deu exemplos de pobreza religiosa. Ele, de fato,

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dizia: ‘Eu sei viver na abundância e nos apertos’ ” (Às Filhas de São Paulo, 1934-1939, p. 275).

A colaboração em resposta ao dom da fé se expressa também com a plena confiança em Deus: “É preciso que sobre a terra nos enriqueçamos sempre de méritos, a fim de que um dia possamos ir gozar nosso Deus no Paraíso. Mas os nossos méritos valem pouco: quem nos salvará será Jesus Cristo. Feliz aquele que com os anos aumenta a confidência nos infinitos merecimentos de Jesus! Em companhia de Jesus poderemos tudo. São Paulo dizia: ‘Omnia possum in eo qui me confortat’ ” (Às Filhas de São Paulo, 1946-1949, p. 389).

Com acurada pesquisa na Opera omnia é possível acrescentar outras referências do

Primeiro Mestre à carta aos Filipenses: “convencido como estou de que Aquele que começou em vós uma boa obra, a levará a cumprimento, até o dia de Cristo Jesus” (1,6); “vos levo no coração” (1,7); “rezo para que o vosso amor aumente sempre e ainda mais em conhecimento e toda espécie de discernimento” (1, 9); “em qualquer caso, tende um estilo de vida digno do Evangelho de Cristo” (1,27); “nada façais por rivalidade, nada por vanglória, mas com humildade considerai os outros superiores a vós mesmos; ninguém procure o próprio interesse, mas cada qual também o dos outros” (2,3-4); “operai a vossa salvação com temor e tremor” (2,12) etc.

A assimilação do pensamento de São Paulo na carta aos Filipenses por parte do bem-aventurado Tiago Alberione confirma a importância do Apóstolo para nós Paulinos: “São Paulo é o nosso modelo. Ele se apresenta como exemplo, mas não um exemplo absoluto, mas na forma, no modo segundo o qual ele imitava Jesus Cristo, verdadeiro e absoluto exemplo de toda perfeição. Vede, diz ele, eu me fiz fôrma para vós (Fl 3,17). O que quer dizer fôrma? Quando compusestes um livro e o paginastes, colocais a fôrma na máquina. E quer dizer que sobre aquela fôrma, sobre aquela composição, serão impressas as cópias. Ele é a fôrma sobre a qual devem ser impressos os Paulinos, as Paulinas, todos segundo essa divina fôrma... Conformai-vos ao vosso Pai, ou seja, sede impressos sobre a mesma fôrma” (Pr SP 290-291).

IV. OS PAULINOS DE HOJE E A CARTA AOS FILIPENSES A interpretação da carta aos Filipenses feita pelo bem-aventurado Tiago Alberione é

para nós um ensinamento indispensável e, ao mesmo tempo, representa um encorajamento para prosseguir, como Congregação inteira espalhada pelos cinco continentes e composta de gerações diversas, a manter vivo o testemunho de São Paulo no contexto social, eclesial e comunicativo no qual vivemos o carisma paulino. O tema do VIII Capítulo geral nos lembra a necessidade de uma fidelidade criativa para Ser São Paulo vivo hoje. Uma Congregação que se lança para a frente. Apliquemos a nós Paulinos de hoje algumas passagens que Paulo escreveu aos Filipenses.

1. “Pois para mim o viver é Cristo” (1,21). Tudo o que São Paulo escreve acerca de

Jesus na carta aos Filipenses é fruto da sua constante e completa experiência de Cristo: após o encontro no caminho de Damasco, tudo se tornou um “lixo” em comparação com “Cristo, meu Senhor” (3,8). A cristologia de Paulo é a descrição de uma relação que teve um começo, que incidiu de modo radical a ponto de mudar uma vida e que de agora em diante permanece sempre presente para dar sentido ao viver e ao morrer. A experiência de Cristo nasceu de um evento de comunicação e dura como uma contínua relação interpessoal para toda a vida do Apóstolo.

Cada Paulino e a totalidade das comunidades da Congregação encontram na cristologia vivida e descrita por Paulo o exemplo de uma relação de fé que deve alimentar a nossa vida individual, comunitária e apostólica. O Fundador nos deixou a cristologia de Cristo

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Mestre, Caminho, Verdade e Vida, indicando-nos em São Paulo o modelo que melhor viveu e pensou essa identidade.

Tendo em conta necessidades concretas da Congregação, desejo sugerir algumas responsabilidades que temos em relação à cristologia de Paulo, entendida como relação vital completa, tendo bem presente a interpretação que o Primeiro Mestre fez para nós Paulinos mediante a formulação da espiritualidade de Cristo Mestre Caminho, Verdade e Vida.

1.1. O exame dos conteúdos e do estilo redacional para apresentar, no material para a proposta vocacional, a espiritualidade de Cristo Mestre Caminho, Verdade e Vida pode ajudar-nos a compreender que não é suficiente escrever e falar desta definição cristológica alberioniana ou reproduzir a imagem de uma estátua ou de um quadro para que possa tornar-se a proposta de uma espiritualidade fascinante para um jovem de hoje.

A dificuldade para transmitir algo de interessante é confirmada também pelos primeiros tempos de formação paulina com os aspirantes: antes de entrar em contato com os Paulinos, é bem rara, senão inexistente, uma experiência de Cristo apresentado como Mestre Caminho, Verdade e Vida ou como definição ou como representação em imagem. Tive oportunidade de escutar pessoas contando as reações de surpresa por parte de aspirantes frente a nossa definição cristológica, que não é de assimilação imediata, para expressar uma relação envolvente de fé.

No entanto, sobretudo as gerações mais adultas, conhecem bem o pensamento do bem-aventurado Tiago Alberione sobre a espiritualidade por ele elaborada e proposta aos Paulinos de todos os tempos. Percebe-se, a partir do que Padre Alberione narra em Abundantes divitiae gratiae suae (nn.159-160) a seriedade de sua pesquisa para dar-nos uma espiritualidade adequada à missão apostólica na comunicação. Os sistemáticos convites que o Fundador fazia após a redação de obras consagradas à nossa espiritualidade, são o sinal de que não se encontrou o aprofundamento adequado para aquilo que ele esboçou.

Resta a sua determinação quando fala da espiritualidade paulina: “Não é uma bela expressão, não é um conselho: é a substância da Congregação; é ser ou não ser Paulinos” (PrDM 72-73). E ainda: “Tal devoção não se reduz à simples oração ou a algum canto, mas investe toda a pessoa. …A nossa devoção ao Mestre Divino deve ser aprendida para a seguir aplicá-la ao trabalho espiritual, ao estudo, ao apostolado e a toda a vida religiosa” (PrDM 80).

Para aprofundar, viver e propor a espiritualidade de Cristo Mestre Caminho, Verdade e Vida, sinto-me na obrigação de alertar para a validade permanente de duas publicações: Eredità cristocentrica de Don Alberione (Atas do seminário internacional sobre a espiritualidade paulina, Ariccia 16-27 de setembro de 1984) e Gesù, il Maestro ieri, oggi e sempre (Atas do seminário internacional sobre “Gesù, il Maestro”, Ariccia 14-24 de outubro de 1996).

1.2. Além da responsabilidade de propor e formar para a espiritualidade paulina as gerações jovens, há também o dever de saber comunicá-la em nossa editoria medial, multimídia e em rede. “Como estamos em relação ao apostolado? Antes de tudo: mantenhamos o princípio geral de dever dar Jesus Cristo Caminho, Verdade e Vida, ou seja: com Ele é: tudo. Ele é a Verdade: portanto dar a doutrina clara; Ele é o Caminho: portanto, dar ao mundo as virtudes, isto é, ensinar a imitação de Jesus Cristo; Ele é a Vida: e a vida haurimos dele, dos Sacramentos” (PrA 88).

O outro princípio da editoria paulina, como já foi recordado, que o Primeiro Mestre hauriu da carta aos Filipenses (4,8): “Não falar somente de religião, mas de tudo falar cristãmente”, inspirou o VIII Capítulo Geral a aprovar a opção apostólica preferencial: Humanizar para cristianizar.

O Governo geral, apropriando-se e integrando um texto preparado pelo Comitê Técnico Internacional do Apostolado (= CTIA), para responder ao pedido da linha operativa 3.2.1. do VIII Capítulo Geral, aprovou as Linhas editoriais, conteúdos, destinatários do

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apostolado Paulino que devem, de agora em diante, inspirar a redação de cada Projeto apostólico das Circunscrições.

1.3. Nós, Paulinos de hoje, além de assimilar a espiritualidade de Cristo Mestre, Caminho, Verdade e Vida no significado desejado pelo Padre Alberione, devemos sentir também a responsabilidade de manter viva a sensibilidade do Primeiro Mestre para aprofundar o significado desta herança, tentando formas novas de expressão. Durante a sua existência, Padre Alberione pediu a alguns Paulinos e Paulinas que fizessem pesquisas acerca de nossa espiritualidade; essas pesquisas deram origem a publicações sobre Jesus Mestre que podemos ler com proveito; idealizou e mais de uma vez traçou os conteúdos da revista Magisterium, e esboçou um amplo projeto para uma enciclopédia de Jesus Mestre; pessoalmente realizou uma pesquisa de leque internacional para propor à Santa Sé a extensão da festa de Jesus Mestre a toda a Igreja.

A reflexão que, em nível de pesquisa universitária e na pastoral, há tempo está sendo elaborada acerca de Cristo, perfeito comunicador, poderia constituir para nós uma oportunidade para repensar e reexprimir a nossa espiritualidade com os valores e as categorias do fenômeno da comunicação. A nossa editoria e os nossos centros de formação em comunicação poderiam, no espírito dos art. 74-76 das Constituições e Diretório, favorecer a pesquisa e a circulação de uma espiritualidade para o Paulino comunicador e para quantos, na comunidade eclesial, se interessam em viver o empenho na comunicação como uma missão apostólica.

2. “Tende em vós o modo de sentir próprio dos que estão em Cristo Jesus” (2,5). É da

experiência vital com Cristo que São Paulo haure os critérios necessários para montar um estilo de vida cristã comunitária: da cristologia ele faz brotar também a eclesiologia.

2.1. Na comunidade de Filipos há, entre os próprios cristãos, conflitos surgidos por causa de egoísmos, rivalidades e vanglória. Para indicar a solução apropriada, Paulo não recorre a uma série de regras de convivência, mas à vida terrena de Jesus: “Cristo fez-se obediente até a morte, e morte de cruz” (2,1-11). A regra de vida da comunidade cristã é o exemplo, “o modo de sentir” que guiou a encarnação, a morte e a ressurreição de Cristo.

Acolhendo o convite do Apóstolo, a elaboração e a prática do Projeto comunitário deveriam inspirar-se no dinamismo da existência de Cristo, vivida em obediência ao Pai. O empenho para ter “o mesmo modo de sentir no Senhor” (4,2) é prioritário em relação a todo o resto; não é o elenco das coisas feitas em comum que define em perspectiva teológica as nossas comunidades, mas a preocupação principal de todos: “para mim viver é Cristo”. A motivação sobrenatural, vivida com renovado empenho com o passar dos anos, é a primeira colaboração à construção da vida comunitária.

A obediência de Cristo à vontade do Pai nos permite considerar as nossas relações de religiosos Paulinos e a nossa comum atividade apostólica valorizando o voto de obediência, entendido como disponibilidade total a Deus, vida fraterna onde não se “procure o próprio interesse, mas cada um também o dos outros”, escuta atenta das necessidades dos destinatários do nosso apostolado. A obediência de Cristo, que Paulo propõe aos cristãos de Filipos, conduz à ressurreição e à exaltação; a obediência na vida paulina visa à construção da Congregação como corpo místico.

2.2. O dinamismo da obediência de Cristo sublinhado por Paulo produz outro efeito na vida da comunidade eclesial: a busca da perfeição não como resultado de um esforço pessoal, mas relação sempre mais íntima com Cristo. Paulo descreve com vigor sua radical mudança em relação à perfeição: não a justiça conquistada com a observância da lei, mas a justiça que deriva de Deus em Cristo.

Os caminhos traçados pelos Iter formativos e pelos Planos de formação contínua, devem saber integrar com sabedoria a metodologia vivida e recomendada por Paulo para o trabalho espiritual que deveria caracterizar a vida intera de cada Paulino.

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É mais fácil motivar os jovens Paulinos em formação para que aceitem um percurso de maturação humana, tanto com o exercício pessoal quanto com a ajuda de especialistas. Torna-se mais complicado iniciar alguém num processo de maturação espiritual onde o elemento motor não é uma sucessão de etapas programáveis, mas ao contrário o abandono progressivo numa relação interpessoal com o Cristo, movidos pelo Espírito. A tentação de viver a fé em Cristo limitando-se a uma escrupulosa observância de normas torna vã uma fidelidade que de fato é igualmente rigorosa, mas que se funda sobre a liberdade de uma relação de amor.

Pode servir-nos de ajuda aquilo que o bem-aventurado Tiago Alberione escreve sobre o desenvolvimento da personalidade: “Talvez houve excesso de liberdade, motivo pelo qual alguém abusou, com as conseqüências que daí derivam. Esse modo exige – é verdade – profunda persuasão: porém instrução, profundas convicções, uso dos Sacramentos, direção espiritual, pensamento dos novíssimos, mantêm a pessoa no caminho reto, ou se se desviou, a conduzem de volta. É um modo mais cansativo e longo, porém mais útil” (Abundantes divitiae gratiae suae, nn. 148-149).

2.3. A fé entendida como relação viva com o Cristo imprime um dinamismo permanente à vida pessoal e comunitária: “esquecendo o que fica para trás e lançado para a frente, corro rumo à meta” (3,13).

Colhendo a herança do Fundador, que hauriu de Paulo a determinação de um constante “lançar-se para a frente” realizável também com o empenho de “progredir um pouco cada dia”, nós Paulinos devemos valorizar sempre melhor esse elemento constitutivo e imutável do nosso carisma.

Lançar-se para a frente como característica do Paulino que em nenhum aspecto da sua vocação e missão se deixa fossilizar pelo tempo que passa.

Lançar-se para a frente como atitude das nossas comunidades que com a ajuda de uma formação contínua querem estar à altura dos tempos.

Lançar-se para a frente como Congregação capaz de se renovar em seus projetos, de assimilar as mudanças na Igreja, de adotar as novas formas de comunicação, de perceber as mutações na sociedade, de conservar o espírito de pioneiros, de ser conscientes da tarefa de agir como laboratório de fronteira para pregar Cristo hoje.

Lançar-se para a frente na fidelidade criativa ao carisma paulino, sabendo unir um conhecimento documentado do pensamento e da obra do Primeiro Mestre com a lucidez de análise sobre o contexto histórico no qual Deus nos chama a viver; o duplo conhecimento é motivado pela necessidade de pregar o Cristo total em toda a comunicação de hoje.

3. “…as vicissitudes que me sobrevieram são sobretudo para o progresso do

Evangelho” (1,12). Estando na prisão, Paulo garante aos Filipenses que seus cepos não acorrentaram a

pregação do Evangelho: “a minha condição de prisioneiro por causa de Cristo tornou-se conhecida em todo o pretório e a todos os demais” (1,13). A relação vital de Paulo com Cristo, inclusive na prisão, se torna ocasião de evangelização: a cristologia inspira a obra de evangelização.

3.1. Paulo não somente evangelizou com a palavra e as cartas, mas também com suas cadeias; ser preso “por causa de Cristo” transforma também o sentido da vida na prisão e das sessões nos tribunais, que se tornam ocasiões para a pregação.

A habilidade de Paulo para pôr tudo a serviço do Evangelho deve constituir uma garantia para nós Paulinos acerca da validade da indicação do bem-aventurado Tiago Alberione: “A Sociedade São Paulo procura para o seu apostolado os meios mais frutuosos e mais rápidos que o engenho humano propicia à pregação do Evangelho” (Unione Cooperatori Apostolato Stampa [1938], n. 9. p. 196). Com prudência operosa, a Congregação que deseja ser São Paulo vivo hoje, é convidada a abrir-se à adoção de toda a comunicação: sem descurar o empenho no papel impresso, é preciso valorizar

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mais as iniciativas multimídias, a presença na comunicação em rede e uma liderança de pensamento na pesquisa em comunicação e na opinião pública.

As cadeias de Paulo a serviço do Evangelho nos ajudam a valorizar também todas as formas de apostolado que caracterizam a Família Paulina: apostolado da comunicação, apostolado da Sociedade Bíblica Católica Internacional, apostolado da oração, apostolado da vida interior, apostolado eucarístico, apostolado litúrgico, apostolado do serviço sacerdotal, apostolado da paróquia, apostolado das vocações, apostolado da reparação, apostolado do testemunho e apostolado do sofrimento. Com o passar do tempo, a Congregação vive com maior intensidade a condição da ancianidade e do sofrimento e nos estimula a tornar nosso e a valorizar na prática o convite do Fundador: “O sofrimento seja mudado em apostolado. ...Então se sente que também num leito se trabalha largamente no coração da Igreja” (Prediche del Primo Maestro 5 [1957], pp. 103s).

3.2. Paulo, na prisão por Cristo, envolve em sua pregação também os cristãos de Filipos: “…carrego-vos no coração, vós todos, que sois co-participantes da graça que me foi dada, quer na prisão quanto na defesa e afirmação do Evangelho” (1,7); a sua força de acorrentado sustém a pregação de outros: “…a maioria dos irmãos recobrou confiança no Senhor justamente por causa de minha condição de prisioneiro, e se encorajam em fazer ressoar sem temor a palavra” (1,14).

Neste tempo da Congregação, o exemplo da “condição de prisioneiro” de Paulo que permite “a muitos recobrar confiança no Senhor e os impele a pregar”, pode fazer pensar, com uma certa liberdade de associação, na responsabilidade que temos de vigiar nossa identidade de apóstolos da comunicação.

A comunidade eclesial a partir sobretudo do Vaticano II, tanto na reflexão – partindo do decreto Inter mirifica (04.12.1963) até a Carta apostólica de João Paulo II O rápido desenvolvimento (24.01.2005) –, quanto nas iniciativas pastorais concretas, valoriza a comunicação para pregar Cristo. A beatificação de Padre Alberione propiciou à comunidade cristã ver nele um Apóstolo moderno da comunicação, estimulando assim o desejo de conhecer melhor seu pensamento e sua obra na Igreja.

É responsabilidade de todos os Paulinos conhecer bem, viver e promover uma ampla informação do bem-aventurado Tiago Alberione como pessoa suscitada por Deus, para que a comunidade eclesial tome a sério a comunicação como forma moderna de pregação.

Ao apresentar a complexidade da figura do bem-aventurado Tiago Alberione como Apóstolo da comunicação, não podemos esquecer: a unidade inseparável entre a espiritualidade de Cristo Mestre Caminho, Verdade e Vida e a adoção da comunicação como ato de testemunho; a comunicação entendida como autêntica nova forma de pregação do Evangelho ao lado da pregação oral; a certeza que se pode dizer Deus com todos os meios da comunicação e, portanto, o convite para assumi-los todos.

3.3. A situação de Paulo na prisão estimula em outros crentes a pregação do Evangelho, porém “alguns, é verdade, anunciam Cristo por inveja e rivalidade, outros, pelo contrário, o fazem por amor, sabendo que estou aqui para a defesa do Evangelho; aqueles, ao invés, por interesse proclamam o Cristo, mas com intenções não limpas; pensam, com efeito, provocar mais uma prova à minha condição de prisioneiro” (1,15-17).

Observando a variedade de pregadores na comunidade eclesial, Paulo conclui: “Mas que importa? Somente isto: que de qualquer modo, com pretensões ou com sinceridade, Cristo é proclamado. E eu com isso me alegro e continuarei a alegrar-me” (1,18).

Palavras muito diferentes usa Paulo para descrever e condenar o trabalho de outros pregadores: “Cuidado com os cães! Cuidado com os maus operários! Cuidado com a mutilação! (...) De fato, muitos, eu vo-lo disse várias vezes, e agora o repito em lágrimas, se comportam como inimigos da cruz de Cristo” (3, 2.18).

A pregação do Evangelho pode ser realizada “por amor, por inveja e rivalidade” e como “inimigos da cruz de Cristo”; para os primeiros, Paulo tolera com alegria a diversidade de

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intenções que salvam o resultado final de algum modo louvável; para os outros, Paulo suplica chorando para que a comunidade os rechace com decisão.

Refletindo sobre a variedade do testemunho que nós Paulinos damos com as iniciativas de comunicação nas Igrejas dos cinco continentes, estou convicto de que realizamos uma pregação “por amor” e não para fins menos sobrenaturais. As acusações de comércio com intenção de lucro econômico que às vezes nos fazem – augurando-nos que nunca tenham fundamento –, de fato não foram poupadas também na época do Fundador, que repetia com freqüência: “Preocupação e vigilância devem ser tomadas para que o apostolado se mantenha naquela elevação pastoral que está nas cartas de São Paulo. O amor a Jesus Cristo e às almas nos fará distinguir e separar bem aquilo que é apostolado daquilo que é indústria e comércio” (em Carissimi in San Paolo, p. 59).

Merece muita prudência de nossa parte a atitude de estar na Igreja “com o espírito de Paulo”. A vida das primeiras comunidades cristãs descrita nos Atos dos Apóstolos, a redação dos quatro evangelhos, as cartas de Paulo, a história da patrística e a variedade das escolas teológicas, de moral e de espiritualidade, nos garantem que a fé pode ser vivida e expressa com variedade de sensibilidade e culturas. O verdadeiro drama seria se, sobretudo mediante a nossa editoria, não fosse possível reconhecer-nos como Paulinos ou, pior, dada a variedade contraditória, fosse simplesmente impossível identificar-nos.

3.4. Apesar de prisioneiro, ao escrever aos Filipenses Paulo manifesta várias vezes e com participação seus sentimentos e convida seus leitores a viver na alegria: “É com grande alegria que eu rezo por causa da vossa participação no Evangelho” (1,4); “carrego-vos no coração” (1,7); “Deus me é testemunha da saudade que tenho de todos, com a ternura de Cristo Jesus” (1,8); “e eu me alegro e continuo a alegrar-me” (1,18); “completai a minha alegria” (2,2); “alegro-me e partilho minha alegria com todos vós. Da mesma forma, também vós alegrai-vos e partilhai a alegria comigo” (2,17); “Alegrai-vos no Senhor” (3,1); “Alegrai-vos no Senhor, repito, alegrai-vos... O Senhor está perto” (4,4).

Descrevendo sua condição de prisioneiro, que pode ser condenado à morte, e pensando nos relacionamentos com os cristãos de Filipos, Paulo insere tudo num contexto de alegria que tem sua principal razão na comunicação da fé. Paulo está alegre porque recebeu “graça” de Cristo e se alegra porque, pela sua pregação, os Filipenses estão em Cristo.

Aplicando a nós a experiência dos sentimentos que Paulo partilha com os Filipenses, reflitamos sobre a presença de todos os destinatários aos quais o nosso apostolado chega com suas múltiplas formas de expressão. Não podemos reduzir nossos destinatários ao simples contato comunicativo de “usuários” ou à troca comercial de “clientes”. Os destinatários do apostolado, “as almas” no ensinamento do Primeiro Mestre, devem fazer parte da nossa oração, de todas as etapas da formação paulina, da redação adequada que leva em conta as diversas necessidades, do cuidado na realização técnica, do encontro no momento difusivo, da recompensa eterna.

“Vós, ó almas salvadas por nós, sois minha coroa (Fl 4,1) e a minha glória, dizia S. Paulo. …Levantem os olhos ao céu todos aqueles que sentem ardor de almas. …Grandíssimo é o prêmio que as aguarda, pois aquele que tiver feito e ensinado, será grande no reino dos céus. Muitos são os apostolados, mas importantíssimo é aquele que Deus vos pôs entre as mãos e que tendes como instrumento de méritos e de glória: o apostolado da imprensa. E S. Paulo entre os apóstolos é modelo também neste apostolado” (Às Filhas de São Paulo, 1929-1933, p. 203).