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AA CCaassaa ddaa PPrraaiiaa ddoo AAççúúccaarr

The House at Sugar Beach

Helene Cooper

Copyright © 2008 by Helene Cooper

Reservados todos os direitos para esta edição

Tradução: Pedro Garcia Rosado

Copyright da tradução portuguesa © QuidNovi, 2009

Revisão: Mafalda Mendonça

Design e produção: QuidNovi

Impressão e acabamento: Tipografia Peres (www.tipografiaperes.com)

1.ª edição: Abril de 2009

ISBN: 978-989-628-134-2

Depósito legal: 290.184/09

QUIDNOVI

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TRADUÇÃO

Pedro Garcia Rosado

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Monróvia, Setembro de 2003

Ao olhar para baixo, para a densa floresta tropical que rodeia Roberts-field, a partir do avião da Ghana Airways onde viajava, só via mato.

Na edição do ano de 2003 de Os Locais Mais Perigosos do Mundo,Robert Young Pelton fez uma lista com vinte e quatro países e regiõesque considerou serem os locais mais inseguros do Mundo. O primeirolugar – com uma classificação de cinco estrelas – estava reservado paratrês países em suficiente mau estado para garantirem o direito à eti-queta «Apocalypse Now»: Chechénia, Colômbia e Libéria.

O capítulo de Pelton sobre a Libéria é uma sinopse adequada a ummanual para estudantes, incluindo os pontos mais baixos da história daLibéria e dando destaque especial aos anos que passaram desde o afas-tamento do Povo do Congo do poder. Pelton incluiu referências gené-ricas aos pitorescos «generais» considerados rebeldes, como o generalNu-em-Pêlo, o general Fode-Me-Depressa e o general Sem-Mamã--Nem-Papá. O general Nu-em-Pêlo chefiava a Brigada Nu em Pêlo,composta por crianças-soldados, muitas das quais ele raptava e acabavapor matar. A sua indumentária de combate incluía ténis, uma pistola e,às vezes, uma mala de mulher. Fora isso, o general andava nu, emboraos seus soldados vestissem frequentemente roupas femininas e vestidosde noiva e usassem cabeleiras louras. O general Nu-em-Pêlo chegou a

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dizer aos jornalistas que, por vezes, ia nadar para as lagoas onde haviacrianças a brincar, mergulhando para apanhar uma delas e, depois, par-tir-lhe o pescoço.

«Chamar “guerra civil” ao que aconteceu na Libéria nos anos no-venta é dar-lhe um crédito de organização e propósito que não existiu»,disse Pelton. «A realidade foi a dos massacres dos habitantes das aldeiaspelas milícias tribais que, como cães a urinarem numa árvore, marca-vam os seus territórios com as caveiras das suas vítimas.»

Em Setembro de 2003, Charles Taylor – o mais recente homem forteque conseguiu dar cabo da Libéria, arquitecto de três guerras civis naSerra Leoa e na Guiné, o homem que fez campanha nas eleições presi-denciais liberianas de 1997 com a palavra de ordem «Ele matou a minhamãe, ele matou o meu pai, mas, de qualquer modo, eu votarei nele» –teve de sair do país devido ao seu desejo avassalador de se manter vivo.Os soldados rebeldes haviam chegado a Monróvia, uma anémica forçamilitar composta por vinte e três fuzileiros navais dos EUA (aos olhos dosliberianos, era uma força militar temível) aterrara em Mamba Point ecerca de cinco mil soldados de manutenção da paz, oriundos de outrospaíses da África Ocidental, estavam colocados no terreno. A Nigéria ofe-receu a Taylor um salvo-conduto para deixar a cidade e, a 11 de Agosto,ele aceitou a oferta e partiu. Foi o vigésimo primeiro cessar-fogo desdeque Taylor deu início à sua guerra, em 1989.

A única forma de chegar ao aeroporto de Robertsfield era por inter-médio de um dos países vizinhos da África Ocidental. Assim, voei deWashington para Accra, no Gana, e passei aí a noite antes de me pôroutra vez a caminho do aeroporto, mais de três horas antes da hora pre-vista para o voo destinado a Robertsfield, nessa manhã, porque era oque devia fazer em Accra quem quisesse entrar no avião. À volta do bal-cão da Ghana Airways havia uma enorme multidão de liberianos, apedirem atenção. Estavam trinta e dois graus, mas uma mulher, atrásde mim, não despia o casaco de pele. Outra vestia uma indumentáriaprópria para ir à igreja, com um chapéu roxo com penas, um véu natesta e botas de couro negro envernizado. Toda a gente estava vestida a

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rigor e eu era a única excepção. Sandálias de salto alto de tiras, saias tra-vadas feitas de tecido «nativo» colorido e um punhado de sarongues.

A maior parte destas pessoas eram desalojadas vindas dos camposde refugiados do Gana que estavam a tentar regressar à Libéria.

Fui de imediato engolida por empurrões, pessoas a puxarem umaspelas outras e por uma rajada de inglês liberiano. Tentei mudar para omeu modo de repórter, em que observo e ouço sem falar, mas era-medifícil não responder a partir do momento em que o som dolorosa-mente familiar do inglês liberiano me cercou.

O voo estava atrasado, apesar de a mulher da Ghana Airways queemitia os bilhetes insistir, inexplicavelmente, em dizer às pessoas que oavião já partira. Acabei por avistar uma pessoa que conhecia: AumuoAbdallah, a irmã mais nova de Cherif Abdallah, por quem Eunice tiverauma paixão. «Nem posso acreditar como cresceste», disse-lhe, maravi-lhada, para logo depois me sentir uma idiota.

Fomos conversando na fila de espera, enquanto eu lhe admirava ossapatos. Ela estava vestida mais informalmente do que os outros passa-geiros, com calças de ganga de marca e sandálias de salto alto, masainda me batia aos pontos, perante as minhas pesadas botas de cami-nhada da Timberland e as minhas calças ao estilo militar.

Finalmente, Aumuo e eu chegámos ao balcão dos bilhetes. «O aviãojá partiu», anunciou a mulher da Ghana Airways, olhando-nos com umar carrancudo. Um dos homens do grupo de refugiados empurrou-me.«O avião não partiu nada, não», disse. «Essa mulher só está a falar yenkenh.»

Depois de passarmos cerca de dez minutos a discutir com a mulherdos bilhetes, ela acabou por conceder que o avião, na verdade, aindanão descolara, dando cartões de embarque a mim e a Aumuo, e reco-lhendo a nossa bagagem. Assustou-me o facto de lhe entregar os meussacos de viagem. No interior, havia coisas que, de um momento para ooutro, se haviam tornado muito queridas e muito importantes. E, alémdisso, também lá estava o meu colete anti-balas, da guerra do Iraque.Com ou sem cessar-fogo, a Libéria ainda era uma zona de guerra e, porisso, achara preferível trazer o meu Kevlar.

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– Isto é de loucos – sussurrei a Aumuo.Aumuo riu-se e fez um gesto que abarcou o caos que nos rodeava:– Estás a ver isto tudo? Quando chegares a Robertsfield, vai ser dez

vezes pior.Toda a gente sabia que o aeroporto de Robertsfield era controlado

por gangs de rebeldes transformados em salteadores e por soldados leaisao Governo, que se dedicavam a extorquir dinheiro aos recém-chega-dos. Ninguém de perfeito juízo se arriscaria a chegar lá sem qualquertipo de protecção. Ainda na semana anterior, o Washington Post descre-vera a situação como «um torvelinho de agressões».

O avião acabou por aparecer às três e meia da tarde, com quatrohoras de atraso. Estávamos no aeroporto desde as sete horas. Aumuo eeu já nos encontrávamos na cabeça de fila quando uma nossa conhe-cida, Rose Tolbert, se aproximou de nós, seguida por um homem deaspecto estranho. O recém-chegado apresentou-se, com um sotaqueamericano, como Alex St. James. Vestia um fato azul-escuro de empre-sário, de duas peças, com aspecto de ter sido muito caro e que pareciadeslocado no meio daquele mar colorido de roupas liberianas queenchia a zona das partidas.

– O que faz? – perguntei-lhe.– Não lhe posso dizer – respondeu ele. – Sei que é jornalista.Aumuo fez uma cara de quem está a esforçar-se para não se rir. Não

demorámos muito a compreender que ele era um liberiano que deixarao país em 1979 e que estava agora a regressar, como membro da equipapolítica de Nat Barnes, o ministro das Finanças de Charles Taylor queera candidato à presidência da Libéria.

Ao contrário do que acontecera comigo, Alex St. James perdera, ouparecia ter perdido, todo o inglês liberiano. Parecia estar ali completa-mente desajustado, a falar à branco e vestido como se fosse um ban-queiro americano de investimentos. Eu não o podia criticar – eu tam-bém parecia americana, com a roupa que tinha usado no Iraque. Maspelo menos eu ainda conseguia falar o inglês liberiano.

– É bem melhor que ele deixe de falar à branco – murmurei a Aumuo.

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No avião, Alex St. James viajou em primeira classe e, muito aoestilo dos homens liberianos, mandou a hospedeira de bordo ir ter con-nosco à classe económica, para nos oferecer vinho. «Não, obrigada»,respondi, cautelosamente, arrependendo-me de imediato ao ver a hos-pedeira dar um copo de vinho branco a Rose, que aceitara a oferta.

Os refugiados que viajavam no avião eram barulhentos. E o aviãonão parava de fazer um ruído parecido com o da buzina de um carro –bip bip.

Do outro lado do corredor, um homem gritou: «Ouçam! Que coisa!Estão a buzinar no ar para quê?» E, a meio da viagem, berrou: «Adeus,Gana! Fiquem com a vossa terra seca, que nós vamos para casa!»

A viagem demorou menos de uma hora. Eu mantive o rosto coladoà janela, enquanto descíamos para a Libéria. O país parecia verde, luxu-riante e completamente desabitado, com a costa batida pelas ondasbrancas e ferozes do Atlântico.

– Ali em baixo não há casas. Só árvores – disse a mulher que via-java no banco por detrás de mim.

Era precisamente o que eu estava a pensar. Aquilo que eu estava aver, na descida para Robertsfield, fazia-me pensar que estava a regredirno tempo, em vez de estar a regressar tantos anos depois. Não haviaprédios novos, ou casas novas, ou os sinais habituais de progresso, quese notam quando regressamos a qualquer sítio depois de passarmosmuito tempo longe. Aquilo que víamos eram a selva verde e as ondasbrancas do oceano.

Sentia o coração na boca. Estava a fazer uma coisa que já devia terfeito mais de mil vezes. Cada vez que entrava num avião para voarpara Genebra para cobrir conversações sobre comércio para o WallStreet Journal, ou quando me metia num avião para Londres, para irvisitar os meus amigos num fim-de-semana, ou quando organizavaviagens ao Amazonas, no Brasil, eu devia era estar a dirigir-me para aLibéria.

Era para aqui que devia vir, para a Libéria, para encontrar Eunice.

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Avistei, finalmente, o que restava de Robertsfield, quase escondidopor uma violenta tempestade tropical. Mas não era tão mau como eupensara. Na pista havia um velho avião da era soviética a apodrecer,algumas cabanas com telhados de chapa e diversas construções inaca-badas. O avião deslizou pela pista e acabou por parar, soando nessaaltura a campainha que indica que já podemos levantar-nos. As pessoasprecipitaram-se, todas ao mesmo tempo, para o corredor. Depois, ficoutoda a gente aí apertada, durante um quarto de hora, enquanto o pes-soal do aeroporto trazia a escada para junto do avião. O meu coraçãosaltava. E, finalmente, uma das hospedeiras de bordo abriu a porta.

A minha garganta reconheceu, de imediato, o cheiro dos lumes acarvão misturado com a humidade da chuva. Ao descer a escada, respi-rei fundo várias vezes, receando habituar-me ao cheiro e deixar de darpor ele. Encheu-me a garganta e percorreu-me todo o corpo, com umafamiliaridade dolorosa.

Corremos, debaixo de chuva, para aquilo que fazia as vezes de ter-minal de chegadas, onde um monte de gente, que conseguira pagar ounegociar a entrada com os seguranças do aeroporto, estava à espera dosviajantes que, por sua vez, tinham conseguido arranjar algum tipo de«segurança» que os ajudasse a passar pelo controlo de imigração libe-riano. Viam-se alguns soldados com os uniformes verdes das forças demanutenção da paz da África Ocidental.

Eu tinha pedido a uma amiga da nossa família, Marie Parker, queme enviasse alguém para me ajudar a sair de Robertsfield. E vi o senhorGreene com um letreiro na mão, com o meu nome. Corri para ele eabracei-o – embora nunca o tivesse visto na vida –, entusiasmada pornão ter de atravessar sozinha o controlo de imigração.

O senhor Greene apressou-se a levar-me para um gabinete, onde jádera um dólar a um funcionário, para me carimbarem o passaporte.Olhei para o carimbo.

– Só é válido durante quarenta e oito horas, porquê? – perguntei. –Tenho um visto de seis meses que me foi dado na embaixada liberianaem Washington.

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O funcionário sorriu.– Esse é só o visto de entrada. Agora, tem de ir à Imigração, em

Monróvia, para o seu visto de estadia. – A seguir, olhou melhor paramim. – Você não é uma mulher americana.

– E depois? – repliquei.– O que trouxe para o seu patrício?O senhor Greene puxou por mim, para atravessarmos a multidão

em direcção à alfândega. Mas um homem baixo e magro, com umacamisa a que faltavam três botões, calções rasgados e descalço, correupara a porta e fechou-a no momento exacto em que estávamos prestesa passar, dando a volta à chave. O senhor Greene olhou para ele. «Nãose lembra da gorjeta que lhe dei?», perguntou-lhe. O homem sorriu eabriu a porta.

Estranhamente, os meus sacos de viagem já estavam na recolha debagagem, que era uma sala de espera pequena e abafada, cheia de pas-sageiros, pessoal do aeroporto e muitos penduras, todos a gritarem unscom os outros. Indiquei o saco azul ao senhor Greene, que pegou nele,e eu peguei no verde, onde estavam os meus tesouros.

Champô e amaciador Pantène, leite de amêndoas doces Jergens,condicionador e gel para duche e banho Optima – tudo para Eunice.Eram as mesmas coisas que eu sempre lhe trazia, quando éramos miú-das e ela ficava na Praia do Açúcar enquanto eu ia de férias para Espa-nha; eram, também, as mesmas coisas que eu lhe enviara, pela minhamãe, quando ela regressou.

Esperava que ainda as quisesse.Uma mulher de uniforme, da Alfândega, aproximou-se.– Prove que esses sacos de viagem são seus – disse-me.Mostrei-lhe o meu cartão de recolha de bagagem.– Esse cartão não é verdadeiro – retorquiu a mulher.Ficámos num impasse. Se ela pensava que ia ficar com a minha

bagagem, estava doida. Eu ainda estava surpreendida pelo facto de osmeus sacos de viagem terem chegado ali intactos. Mas agora já não iaseparar-me deles.

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– Esse cartão é falsificado – insistiu a mulher. Estendeu a mão etentou tirar-me o saco de viagem. Afastei-lhe a mão.

Foi então que, subitamente, rebentou uma discussão do ladoesquerdo da mulher de uniforme. Assim que ela voltou a cabeça para vero que se passava, o senhor Greene deitou a mão ao meu saco verde e desa-tou a correr. Eu segui-o, agarrando bem a mala com o meu computador.

– Sacki, vamos, vamos! – gritou o senhor Greene ao motorista,assim que saímos do terminal. Sacki saltou do seu posto, num parale-lepípedo de cimento, e correu para um Mitsubishi Pajero, ligando omotor. Atirámos os sacos de viagem para o interior e o veículo arran-cou, deixando para trás Robertsfield e uma nuvem de poeira.

Bem-vinda a casa.

Na viagem de Robertsfield para Monróvia, vimos as crianças a cor-rerem entre a estrada e pequenas povoações feitas de choupanas. Esta-vam mais sujas e os seus olhares eram mais desesperados do que os dascrianças nativas da minha juventude. O mato parecia verde, de umverde impossível. Havia buracos a marcar os locais onde as árvorestinham sido abatidas, durante as várias guerras, por pessoas famintasem busca de comida. Depois de cerca de meia hora de uma viagemfeita aos solavancos para evitar os buracos da estrada, chegámos ao des-vio que fora, em tempos, a estrada para a Praia do Açúcar. Fora sempreimpossível avistar a casa da estrada principal, e ainda era assim. Agora,com o desvio coberto por mato e por heras, quase nem se percebia quehavia ali uma estrada. A palmeira de três troncos, que servia de pontode referência, desaparecera.

O senhor Greene olhou para mim, aninhada no banco de trás.– A casa da sua família não era ali atrás? – perguntou.Acenei com a cabeça, mas não disse nada.Depois, passámos a velha bomba de gasolina do meu pai, que era

agora uma esquadra de polícia com a fachada esburacada. Depois, aELWA, a estação de rádio cristã. Passada a esquina, do lado direito, oestádio de futebol da Libéria, que era agora um campo de refugiados.

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À esquerda, diante de uma casa de zinco, uma menina gorda, decabelo despenteado e estômago inchado, estava de pé numa pequenabanheira de borracha amarela. Chapinhava na água, atirando-a ao ar,com gritinhos e risos de alegria. Atrás dela, uma mulher jovem sen-tada numa cadeira esfregava-lhe as costas com uma esponja cheia deespuma. Era uma cena doméstica estranha, no meio da destruiçãodeixada pela guerra.

O cruzamento de Paynesville apareceu-nos pela frente, de repente,antes de eu perceber que já lá estávamos. Não tinha havido ali umsemáforo? O cruzamento de Paynesville foi sempre um marco da maiorimportância na nossa viagem da Praia do Açúcar para a cidade: era umsinal de que a civilização estava ali, mesmo ao virar da esquina. Assina-lava o começo do centro populacional de Monróvia, com o mercadobarulhento de um lado e as duas bombas de gasolina, que eram con-correntes, uma em frente da outra, do outro lado.

Mas agora não havia bombas de gasolina. O que ali havia era maispessoas, a dormir no cimento, sentadas em caixas de cartão, em pé e agesticular aos carros que passavam.

Voltámos à esquerda no cruzamento de Paynesville e dirigimo-nosa Congo Town. Onde estavam as palmeiras? Não conseguimos evitaruma cratera no meio da estrada e eu fui atirada ao ar, sem conseguirevitar o impacto. Finalmente, achámo-nos em Congo Town. Olhandopara o lado esquerdo, esforcei-me por avistar a nossa velha casa, mas elaficava na Estrada das Traseiras de Congo Town e não era visível daestrada principal.

Por fim, entrámos na Avenida Tubman, em direcção ao que passavapor ser a nossa capital.

Mesmo para quem quisesse ignorar os danos causados pela guerra– os buracos das balas e da artilharia nos prédios e nas casas, os cartu-chos de balas à beira da estrada, os campos de desalojados e os postosde controlo das forças de manutenção da paz – Monróvia parecia uminferno. O país deixara de ter electricidade ou água corrente em 1992.As ruas da cidade estavam cobertas de lixo e fervilhavam com pessoas

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a pé, fugindo das zonas de guerra do interior para Monróvia. Órfãos deguerra escanzelados, os olhos parecendo enormes nos rostos mirrados,corriam para o nosso carro, de mãos estendidas.

Eu estremecia cada vez que via uma criança a correr para o Pajeroque, como todos os outros veículos, estava a andar depressa demaispara conseguir parar a tempo se alguma das crianças tropeçasse e caísseà nossa frente. Nenhum dos semáforos de Monróvia funcionava e, porisso, só parávamos quando chegávamos a um posto militar de controlo.Sempre que parávamos, homens mais novos vinham a empurrar nanossa direcção cadeiras de rodas, e até carrinhos de supermercado, commulheres muito velhas e de aspecto débil, de mãos estendidas. Maseram ignorados tanto pelo senhor Greene como por Sacki.

Os cheiros misturados da urina, do lixo e das carcaças de animaisencheram-me o nariz. Mas ainda havia esse cheiro familiar, de que eutanto gostava, da erva e do carvão queimados.

O que eu estava a ver, à medida que Sacki nos conduzia, alimen-tava-me como se também eu fosse uma refugiada com fome.

Lá estava a Primeira Igreja Metodista Unida, estabelecida em 1922,com um buraco numa parede, onde um foguete a perfurara. Lá estavao Complexo Parker, onde haviam morado Philip e Richard e onde eutivera lições de piano. A tinta das quatro casas estava a despegar-se dasparedes e os telhados tinham caído. Três das casas estavam reduzidas àestrutura interna, e pareciam esqueletos depois de as pessoas terem delá retirado todos os materiais que acharam úteis. E lá estava a Gelatariada Sophie, coberta de trepadeiras.

O sinal, com manchas de tinta azul, do cinema Relda ainda lá seencontrava, tal como o sinal onde estava escrito «Relda». Mas o telhadocaíra. No entanto, o Relda ainda parecia ser o centro da acção em Mon-róvia. O parque de estacionamento, à frente do cinema, estava cheio dedesalojados, alguns deles a remexerem no lixo e outros a aproveitarema sombra da fachada do Relda.

Eu estava no meu país e o meu país era o Inferno.E, no entanto...

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Havia alguma coisa mais. Orgulho. Não perante aquilo em queMonróvia se tornara, mas pelo facto de a cidade ainda lá estar, pois issoprovava que eu tinha uma origem.

O senhor Greene e Sacki levaram-me ao Hotel de Mamba Point,onde se alojavam quase todos os jornalistas que estavam a cobrir a guerrana Libéria. Ficava próximo da embaixada americana e possuía um gera-dor e, por isso, dispunha com frequência de electricidade. O proprietá-rio era libanês e sabia qual era a maneira de atrair jornalistas em zonasde guerra: com um bar digno de confiança. Quando cheguei, vi nopátio um grupo de funcionários da ONU e de organizações de ajudahumanitária.

O funcionário que estava na recepção do hotel chamou um por-teiro para me ajudar a transportar a bagagem. Depois de pousar ossacos de viagem no chão do meu quarto, no segundo andar, o porteirovoltou-se, para se ir embora.

– Espera – disse-lhe eu, falando o inglês liberiano, enquanto procu-rava uma nota de cinco dólares na minha carteira. – Eh, ouve uma coisa.

O porteiro olhou para mim, surpreendido. Sabia o que ele estava apensar. Eu parecia uma jornalista americana – nenhuma mulher libe-riana que tivesse um mínimo de respeito por si própria usaria botas decaminhada – mas falava inglês liberiano?

– Ma, como se chama? – perguntou o porteiro.– Helene Cooper.Ele sorriu, voltou-se e saiu do quarto, fechando a porta suavemente

atrás de si.Sentei-me na cama, finalmente sozinha, e respirei fundo.Nas últimas semanas, refugiara-me nos formalismos: tratar do voo,

encontrar um sítio onde ficar, obter um visto liberiano, organizar-me,instalar o telefone-satélite para o poder utilizar no meu novo computa-dor portátil – o anterior ficara esmagado durante o acidente no Hum-vee, no Iraque – e, até, como agora, dar uma gorjeta ao paquete do hotel.Mas a partir daqui havia um número muito menor de coisas para fazerentre o meu aqui-e-agora e aquilo que, na realidade, eu queria fazer.

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Todavia, ainda adiei por mais um dia, recorrendo à justificação deque devia encontrar um carro e um motorista para a minha estadia naLibéria. Passei a jornada a fazer o que toda a gente faz em Monróvia:a andar de um lado para o outro. Primeiro, precisei de encontraralguém disposto a alugar-me o seu carro (a quarenta dólares por dia).Depois, precisei de ir à Imigração para obter o visto de estadia. A seguir,fui à empresa de telemóveis para arranjar um cartão SIM utilizávelapenas na Libéria, para o telemóvel que comprara recentemente. NaLibéria não havia linhas de telefone fixas e, por isso, a única forma decomunicar telefonicamente era através de um telemóvel. E carregar abateria de um telemóvel obrigava a encontrar alguém que dispusessede um gerador.

Depois de passar um dia inteiro nisto, cheguei exausta ao hotel,onde o recepcionista me entregou um pequeno papel cor-de-rosa.«Aquele tipo Parker veio cá para a ver», disse-me.

Sorri, sentindo-me, por um momento, outra vez com treze anos.Philip e eu havíamos mantido contacto ao longo dos anos e Richard, oirmão de Philip, que vivia no Gana, continuava a ser um dos meusmelhores amigos. Aliás, passei a noite com Richard durante a minhaestadia em Accra, quando fiz escala na viagem para a Libéria.

Telefonei a Philip. Ele atendeu-me com uma exclamação: «Cooper!»Combinámos jantar nessa noite. No meu quarto, tirei o estojo de

maquilhagem da bagagem e franzi a testa. Em que estivera eu a pensar,ao fazer as malas? Só tinha rímel e batom. Apliquei os dois, muito cui-dadosamente, e encaracolei o cabelo com o ferro de frisar. Depois, descipara o bar do hotel, onde fiquei à espera de Philip. Não podia compe-tir com a maioria das mulheres liberianas que estavam no bar, de saltosaltas e saias justas. Os vinte e três anos passados nos Estados Unidoshaviam-me feito esquecer um dogma fundamental da mulher liberiana:vestir bem.

Mas pelo menos trocara as botas de caminhada pelas minhas san-dálias Teva. E consolei-me ao olhar para as unhas dos pés, pintadas devermelho: felizmente tinha ido à pedicura antes de sair dos EUA.

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HELENE COOPER

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De repente, Philip estava de pé à minha frente, com um sorriso.Parecia exactamente a mesma pessoa que eu havia conhecido. Vestiacalças de ganga e uma camisa bordeaux de colarinhos com botões e osolhos também sorriam quando me pegou nas mãos e me deu um beijoem cada face.

– Olá, Cooper.– Olá, P.C.Senti um sorriso a nascer-me no estômago e pouco tardou para que

também eu lhe sorrisse.Nessa noite, ao jantar, tivemos a nossa primeira conversa a sério. Eu

já não era a adolescente com uma paixoneta pelo seu herói, mas simuma pessoa adulta, tal como ele.

Philip não voltara as costas à Libéria, apesar de o pai ter sido exe-cutado. Ele e o irmão haviam deixado o país pouco depois de nós par-tirmos e Philip fora fazer um curso de engenharia na Universidade doMassachusetts, em Amherst. Depois de se licenciar, regressou à Libéria.Nunca duvidara de que o seu lugar era na Libéria.

– Mas como podes viver aqui, sabendo o que fizeram ao teu pai?– perguntei-lhe.

Philip perdeu um pouco da sua animação e ficou silencioso. Receeiter ido demasiado longe – vira-o várias vezes, ao longo dos anos, nassuas visitas aos Estados Unidos, mas nunca abordara com ele o assuntoda execução.

Finalmente, e com uma voz muito lenta, começou a falar. Contouque, em 1984, depois de ter regressado à Libéria, fora à igreja com amãe. O então presidente Doe, que mandara executar o pai na praia,entrou com um grupo e sentou-se quatro filas à frente da fila onde Phi-lip se encontrava. Durante cerca de uma hora, Philip ficou paralisado,a ser consumido pela cólera. Com os seus vinte e um anos, quis saltarpor cima dos bancos da igreja e desfazer Doe. O ódio que o movia eratão intenso que ele nem conseguia mexer-se.

Contudo, «em algum momento daquele serviço religioso, percebique tinha de largar», disse Philip. «Queria mesmo viver na Libéria.

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A CASA DA PRAIA DO AÇÚCAR

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Aqui não sou apenas um número da Segurança Social. E eu sabia quenão conseguiria viver aqui se deixasse que o ódio me consumisse.»

Fiquei a olhar para ele, admirada. De facto, não desperdiçara aminha primeira paixão numa pessoa sem valor.

– Então, Cooper, o que te fez finalmente voltar para casa? – per-guntou-me Philip. – Estás a fazer notícias?

– Não sei... – comecei mas não terminei a frase. Não sabia o quehavia de dizer. Finalmente, murmurei – Sim, estou a fazer notícias.

Nessa noite, voltei para o meu quarto de hotel e sentei-me na cama.Tinha o estômago embrulhado. Revivi as imagens do meu passado, demim própria com treze anos e dos meses antes do golpe, antes que tudomudasse de vez.

Recordei-me de Eunice a rir-se comigo, no meu quarto, enquantoescolhíamos o que eu iria levar vestido para o baile de Sadie Hawkins,e, depois, a escutar-me com toda a paciência, quando cheguei a casa arebentar de excitação por ter dançado com Philip. Partilhámos os nos-sos dias uma com a outra, dormindo todas as noites no mesmo quarto,e, depois, deixámos de comunicar durante quinze anos.

Tive medo, tive muito medo de ter desperdiçado quinze anos. Nemsequer sabia se ela quereria ver-me, agora. O meu estômago entrou emconvulsões.

Não podia adiar mais. Chegara a altura de ir à procura da minha irmã.

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