A CASA DE BETÃO QUE GANHOU UM PRÉMIO DE … · cionalidade de um rectângulo deitado, deixado...

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denso de uma antiga quinta prevista vir a constituir-se no futuro parque urbano da Afurada. Uma prateleira generosa corre ao longo da janela assim obtida, criando um “parapeito” interior que é tanto uma enorme balcão corrido para as brincadeiras ou estudo das duas crianças da casa como um banco informal, encostado de um lado ao outro, satisfazendo a estadia de muitos visitantes na, afinal, pequena sala. Nos espaços destinados a quartos, já os vãos são tratados com maior recato, enfiados a pontos pre- cisos da paisagem envolvente e criando, dentro, a ne- cessária opacidade dos planos cegos que orientam as possibilidades de ocupação. Diferente é a relação dos compartimentos directamente ligados ao pátio; aí, do lado da casa, a cozinha/espaço de refeições e, do lado do atelier, uma sala de trabalho/reunião, abrem-se em grandes envidraçados, num frente-a-frente a que o desnivelamento do espaço aberto garante, ainda, a desejável independência. A luz apanhada é sempre muito bonita; o pátio fica voltado a norte, mas a inten- cionalidade de um rectângulo deitado, deixado alto na parede oposta, introduz uma dança de sol verdadeiro através da cozinha, ao longo das manhãs; sol que uma expedita rede militar de camuflagem, depois, trans- muta na memória de sombras de árvores de verão. Há, ainda, as claraboias a que o miolo do piso superior recorre, para trazer luz zenital ao espaço de banho, à escada, ao divertido corredor “roupeiro”, e que um engenhoso jogo de pequenos janelos altos faz aparecer depois, também, nas divisões contíguas. A própria torção do volume da galeria- istmo se fica a dever, não a um tique de desenho, mais ou menos “koolhaasiano”, mais ou menos arbitrário, mas à intenção de fazer entrar sol no pátio, desde cedo, nos dias de inverno. Esta galeria é, em si, também, um interessante espaço dúplice: corredor de “aproximação” entre as duas unidades diferentes da casa, constitui-se, em simultâneo e contraditoriamente, num espaço de clara distanciação entre os dois corpos, quer pela decidida profundidade quer pela subtil torção que sofre, em resultado da operação estabelecida fora, em busca de outros objectivos; é, ainda, finalmente, no plano simbólico, de novo um elo de ligação entre a casa e o atelier, já que guarda, densa e misturadamente, a biblioteca da ficção e do pensamento com aquela das monografias, dos ensaios e das revistas de arquitectura. “Tentámos, aqui, resolver um dos dilemas dos arquitectos: onde guardar os livros e as revistas? Em casa ou no escritório?”, lembrou Marta Rocha, rindo, enquanto nos guiava na visita ao conjunto. Poderíamos, talvez, acusar a casa de excessiva informalidade, na ausência sistemática de portas que permitam encerrar os espaços finais, resultantes da ocupação mais marcada central; mas estaríamos a incorrer num erro de avaliação: não só privaríamos as crianças, enquanto crescem, de um magnífico pretexto para as mais inventivas brincadeiras circu- lares como nos teríamos esquecido que, mais tarde, quando entendido necessário, as portas poderão vir a ser instaladas, conferindo ao todo essa gravidade que, por ora, os habitantes da casa crêem dispensável. As casas que os arquitectos desenham para os próprios serão muito diferentes das casas que dese- nham para os outros? Por vezes, talvez assim aconte- ça; sobretudo, quando os arquitectos não exigirem de si o diálogo crítico que Marta Rocha e Fabien Vacelet souberam instalar, entre os dois, para a resolução de um problema que, neste caso, lhes era comum. Os arquitectos não serão muito diferentes das outras pessoas no que respeita às necessidades do habitar mas as casas que desenham para eles próprios são, só por si, um tema interessante de reflexão. [Esqueçamos, para já, as limitações orçamentais, até porque, nesse campo, a casa própria será sempre um magnífico exercício para garantir aos arquitectos uma endurance que só lhes poderá vir a ser útil na gestão posterior das limitações dos outros.] Concentram-se, certamente, nas pequenas idiossincrasias pessoais ou familiares para estabelecerem os seus programas e estes surgem- -lhes, então, muito mais detalhados que aqueles que recebem ou deduzem dos seus clientes. Mais detalhados e, por aí, menos genéricos, mais circunstanciais, mais apegados ao que, no momento do projecto, lhes parece ser o quadro, com alguma dose de estabilidade, em que pretendem vir a viver. Os quadros de vida, porém, raramente são estáveis, por muito que os arquitectos se queiram apegar a rotinas, e as casas podem ficar reféns do que lhes parecia, a dado momento, uma mais que suficiente previsão de futuro. Dificilmente, a princípio, reconhecerão os erros de avaliação que a sua nervosa paixão precipitou e tenderão a deixar-se usar pela arquitectura mais ou menos autoritária que conceberam. Como a arquitectura não deve ser feita para nos usar mas, pelo contrário, para ser usada por nós, em momentos de maior lucidez, os arquitectos poderão reescrever o espaço que inauguraram e, com algum engenho, fixar, então, as casas, em situações mais libertas, lassas, afastadas de qualquer monolitismo equivocado inicial. Mas, para tal, terá sido necessário vencer a inércia, testar o uso do espaço, admitir dolorosamente os enganos, maldizer a falta de um cliente muito chato que pudesse ter funcionado como contraponto às soluções só aparentemente geniais que teimaram em pôr à experiência. Gostar da ideia de que “uma coisa sirva para muitas coisas”, por exemplo, poderá ser um modo de evitar ter que se voltar atrás. Uma casa que sirva para muitas coisas será uma casa que suporte diferenciados tipos de situação, usos diversos, inesperadas apropriações, adequações imprevistas; uma casa com uma espacialidade que ampare a complexidade da vida, a surpresa da vida, a fluidez da vida, a imprevisibilidade da vida. A excessiva concentração num único problema pode também acabar por gerar uma situação aberta, claro, mas, as mais das vezes, aperta os significados em gestos unidireccionais que irão limitar a possibilidade de outras oportunidades, de outras disposições, de outras maneiras. G.K.Chesterton, em 1910 1 , falava-nos do canivete e do afiador de lápis: com o primeiro poderíamos cortar queijo, maçãs, limpar as unhas, suicidar-nos, para além de aparar os lápis; com um “especializado” afiador, dizia, não conseguiríamos nunca matar uma galinha. E Lenine, reflectindo sobre o objecto “copo”, obriga-nos, também, a reflectir com ele sobre a polissemia dos artefactos banais: “É incontestável que o copo é tanto um cilindro em vidro como um instrumento que serve para beber. Mas o copo não possui apenas estas duas propriedades ou estas duas características; possui, pelo contrário um número imenso de propriedades, características, lados, relações recíprocas e ‘mediações’ com o conjunto do mundo exterior. O copo é, primeiro que tudo, um objecto pesado, podendo ser utilizado como instrumento de arremesso; pode também servir de pisa-papéis ou ainda de recipiente para uma borboleta que queiramos imobilizar; pode também ter um valor enquanto objecto de arte, gravado ou pintado, indiferentemente de ser em vidro, da sua forma ser cilíndrica ou de estar destinado a servir de instrumento para beber ou não, etc.” 2 Este gosto pelos vários significados, pela ambiguidade de que já nos falou Venturi 3 , por um certo desprendimento “funcional”, por uma certa indiferença quanto a uma hipótese de “eficácia” unidimensional, estará na origem, certamente, de muita da melhor arquitectura que se terá produzido ao longo dos tempos. Subsiste alguma confusão, contudo, quanto aos limites que cercam este “certo desprendimento”. Um certo desprendimento em relação à ditadura da “funcionalidade” não deveria pressupor inadequação aos usos mais correntes e previsíveis nem um descontrolo na escala dos espaços nem (e falamos de casas), grande afastamento de uma ideia de domesticidade, de uma compartilhada noção de conforto, aconchego, envolvimento, protecção. Por isso, são geralmente tão irritantes as casas muito envidraçadas, em excesso acrítico de vistas sem recorte; montras que a noite encontrará pânicas, a partir do dentro iluminado, sem ideia do que se passa no fora escuro. Não é o caso dos espaços nem dos vãos muito intencionais que encontraremos na Casa RV 4 . A casa, que ganhou o Prémio Nacional de Arquitectura em Madeira de 2015 (PNAM’15) 5 , situa-se na freguesia do Canidelo (Vila Nova de Gaia), na descida para o Douro, já muito perto do lugar da Afurada. Orientada nascente-poente, olha, então, de um lado, o Porto, o rio e a Ponte da Arrábida, e vê, do outro, nos intervalos do casario, o mar e os molhes da foz. O lote é muito estreito (seis metros), encaixado entre duas ruas paralelas, distantes cerca 30 metros, e que mantêm uma diferença de cota, entre si, equivalente a um piso e meio. A casa organiza-se em dois corpos com funcionalidades distintas: no lado poente, foram construídos dois pisos destinados a atelier; a nascente, na cota mais baixa, surge-nos a habitação, que se distribui por três pisos. Estes dois corpos são separados por um generoso pátio, com uma espécie de pequeno anfiteatro de acerto, e para onde, com cuidado intimismo, se abre a maior parte dos vãos dos dois volumes. Existe, contudo, uma galeria corredor, alteada, encostada ao limite sul, que irá permitir uma ligação interior directa entre estas duas alas e que cria um espaço protegido para uma circulação idêntica ao nível do pátio. A cobertura, em duas águas rematadas a zinco, unifica o conjunto, sempre à mesma altura, espelhando, para os dois lados do terreno, volumes aparentemente idênticos que só se diferenciam na chegada ao solo. Esta forma sólida, prismática, una, mescla-se bem no conjunto diferenciado dos telhados que des- cem a rua, apesar do ressalto cromático que o zinco in- troduz na mancha cor de barro que aguarela a encosta. O partido construtivo-estrutural é muito curioso e pouco comum, ainda que de grande simpli- cidade: todo o invólucro exterior do conjunto – lajes térreas, paredes, coberturas –, é em betão, termica- mente isolado pelo lado de fora com um revestimento de cortiça, posteriormente rebocado e pintado de cinzento claro, sendo forrado a zinco nas coberturas; no interior, esse mesmo betão aparece-nos à vista, explicitando bem tratar-se do verso de uma “casca”. Ficando assim definidas as duas “caixas”, bem como o istmo que as relaciona, os interiores foram, desde os barrotes que estruturam os pisos às escadas que os interligam, desde as paredes divisórias que encerram os núcleos centrais aos variadíssimos arrumos que guardam a domesticidade, resolvidos em madeira (ou derivados) de pinho e bétula. Também as paredes que confinam com o pátio (encarado aqui como um semi-interior) aparecem revestidas a tabuado de madeira. Temos, assim, que o contraste interior/exterior nos surge muitíssimo enfatizado e surpreendente, na alternância dos dois materiais dominantes, ênfase a que apenas o contraditório reaparecimento da madeira no alçado de rua do corpo poente vem perturbar o que quiséssemos testar de coerência conceptual. A luz, o modo como a luz chega à casa, aos diversos espaços, o modo como a luz ilumina diferentemente os diferentes ambientes, terá sido uma das mais sensíveis preocupações desta dupla de arquitectos. Mas os vãos de janela não servem só para nos fazer chegar a luz, sabemo-lo, e Marta Rocha e Fabien Vacelet, também. Os vãos, a sua proporção e desenho e o seu posicionamento, recortam-nos as vistas, enquadram-no-las, aumentam-nos o mistério de olhar e ver, enquanto nos fazem entrar o sol, directo ou rebatido; mas também enquanto nos escrevem, fora, a imagem da casa, do abrigo fechado com os buracos certos para interromper a massa das paredes – para texturar a massa das paredes –, e a tornar amável, delicada, urbana: aberta, quanto baste, também, ao olhar da cidade. É muitíssimo feliz, por exemplo, o rasgo que topeja o espaço de estar, no lado nascente do conjunto: é um vão baixo e comprido, disposto a toda a largura da parede exterior, propositadamente baixo, também, na sua relação com o pavimento da sala. De pé, os adultos têm uma visão mergulhante sobre o empedrado da rua e os quintais confinantes; sentados, o olhar desdobra-se muito longe, vendo o rio, a cidade grande na outra margem e o arvoredo A CASA DE BETÃO QUE GANHOU UM PRÉMIO DE ARQUITECTURA EM MADEIRA MANUEL GRAÇA DIAS* CASA RV Canidelo, Vila Nova de Gaia, Portugal (2010/2014) PROJECTO (2010/2012) Arquitectura: Marta Rocha e Fabien Vacelet Estruturas e instalações hidráulicas: Ana Vale & Bárbara Rangel, Lda. Instalações eléctricas e telecomunicações: Gatengel, Projectos de Engenharia, Lda. AVAC: GET, Gestão de Energia Térmica, Lda. Acústica: Alfaengenharia. Alexandra Barbosa, Unipessoal, Lda. CONSTRUÇÃO (2012/2014) Demolições: Costa Almeida, Demolições Betão e construção geral: Manuel de Oliveira Leite, Lda. Carpintarias: Filipe Afonso e Irmão, Lda. Electricidade: Electro-Ibis Climatização: Instavac – Instalações Térmicas, Lda. Canalizações: Barros Pereira, Unipessoal, Lda. Zinco: Asa, Revestimentos de Zinco e Cobre, Lda. Pinturas: Rocha & Proença, Lda. Revestimentos exteriores Madeiras: ermowood – Banema, madeiras e derivados S.A Instalação: Conde Revis, Sociedade Revestimentos, Lda. 1. Alçados: nascente/rua; poente/pátio; nascente/pátio; poente/rua 2. Plantas: piso 0; piso 1; piso 2; cobertura 3. Cortes: transversal pela escada da casa; longitudinal pela galeria de ligação entre os corpos 1 2 3 1. Gilbert Keith Chesterton (1874-1936). What’s wrong with the world. London, New York, Toronto & Melbourne: Cassel and Company, Limited, 1910. 2. Vladimir Ilyich Ulyanov [Lenin (1870-1924)]. “Le verre à boire”.1921 in Marcel Mariën (Ed.). Les lèvres nues (#1), Bruxelles, Abril 1954. 3. Robert Venturi (n. 1925). Complexity and contradiction in architecture. New York: e Museum of Modern Art, 1966. 4. Casa RV: Marta Rocha e Fabien Vacelet, Canidelo (Vila Nova de Gaia), 2010/2014. 5. O PNAM’15 constituiu a terceira edição de um Prémio trianual, atribuído à arquitectura portuguesa, coorganizado entre a Associação das Indústrias de Madeira e Mobiliário de Portugal (aimmp), a Confederação Portuguesa da Construção e do Imobiliário (CPCI) e a Ordem dos Arquitectos (OA). Fotografias: © MGD * Manuel Graça Dias escreveu este artigo a convite da Banema

Transcript of A CASA DE BETÃO QUE GANHOU UM PRÉMIO DE … · cionalidade de um rectângulo deitado, deixado...

denso de uma antiga quinta prevista vir a constituir-se no futuro parque urbano da Afurada. Uma prateleira generosa corre ao longo da janela assim obtida, criando um “parapeito” interior que é tanto uma enorme balcão corrido para as brincadeiras ou estudo das duas crianças da casa como um banco informal, encostado de um lado ao outro, satisfazendo a estadia de muitos visitantes na, afinal, pequena sala.

Nos espaços destinados a quartos, já os vãos são tratados com maior recato, enfiados a pontos pre-cisos da paisagem envolvente e criando, dentro, a ne-cessária opacidade dos planos cegos que orientam as possibilidades de ocupação. Diferente é a relação dos compartimentos directamente ligados ao pátio; aí, do lado da casa, a cozinha/espaço de refeições e, do lado do atelier, uma sala de trabalho/reunião, abrem-se em grandes envidraçados, num frente-a-frente a que o desnivelamento do espaço aberto garante, ainda, a desejável independência. A luz apanhada é sempre muito bonita; o pátio fica voltado a norte, mas a inten-cionalidade de um rectângulo deitado, deixado alto na parede oposta, introduz uma dança de sol verdadeiro através da cozinha, ao longo das manhãs; sol que uma expedita rede militar de camuflagem, depois, trans-muta na memória de sombras de árvores de verão.

Há, ainda, as claraboias a que o miolo do piso superior recorre, para trazer luz zenital ao espaço de banho, à escada, ao divertido corredor “roupeiro”, e que um engenhoso jogo de pequenos janelos altos faz aparecer depois, também, nas divisões contíguas.

A própria torção do volume da galeria-istmo se fica a dever, não a um tique de desenho, mais ou menos “koolhaasiano”, mais ou menos arbitrário, mas à intenção de fazer entrar sol no pátio, desde cedo, nos dias de inverno. Esta galeria é, em si, também, um interessante espaço dúplice: corredor de “aproximação” entre as duas unidades diferentes da casa, constitui-se, em simultâneo e contraditoriamente, num espaço de clara distanciação entre os dois corpos, quer pela decidida profundidade quer pela subtil torção que sofre, em resultado da operação estabelecida fora, em busca de outros objectivos; é, ainda, finalmente, no plano simbólico, de novo um elo de ligação entre a casa e o atelier, já que guarda, densa e misturadamente, a biblioteca da ficção e do pensamento com aquela das monografias, dos ensaios e das revistas de arquitectura. “Tentámos, aqui, resolver um dos dilemas dos arquitectos: onde guardar os livros e as revistas? Em casa ou no escritório?”, lembrou Marta Rocha, rindo, enquanto nos guiava na visita ao conjunto.

Poderíamos, talvez, acusar a casa de excessiva informalidade, na ausência sistemática de portas que permitam encerrar os espaços finais, resultantes da ocupação mais marcada central; mas estaríamos a incorrer num erro de avaliação: não só privaríamos as crianças, enquanto crescem, de um magnífico pretexto para as mais inventivas brincadeiras circu-lares como nos teríamos esquecido que, mais tarde, quando entendido necessário, as portas poderão vir a ser instaladas, conferindo ao todo essa gravidade que, por ora, os habitantes da casa crêem dispensável.

As casas que os arquitectos desenham para os próprios serão muito diferentes das casas que dese-nham para os outros? Por vezes, talvez assim aconte-ça; sobretudo, quando os arquitectos não exigirem de si o diálogo crítico que Marta Rocha e Fabien Vacelet souberam instalar, entre os dois, para a resolução de um problema que, neste caso, lhes era comum.

Os arquitectos não serão muito diferentes das outras pessoas no que respeita às necessidades do habitar mas as casas que desenham para eles próprios são, só por si, um tema interessante de reflexão.

[Esqueçamos, para já, as limitações orçamentais, até porque, nesse campo, a casa própria será sempre um magnífico exercício para garantir aos arquitectos uma endurance que só lhes poderá vir a ser útil na gestão posterior das limitações dos outros.]

Concentram-se, certamente, nas pequenas idiossincrasias pessoais ou familiares para estabelecerem os seus programas e estes surgem--lhes, então, muito mais detalhados que aqueles que recebem ou deduzem dos seus clientes. Mais detalhados e, por aí, menos genéricos, mais circunstanciais, mais apegados ao que, no momento do projecto, lhes parece ser o quadro, com alguma dose de estabilidade, em que pretendem vir a viver.

Os quadros de vida, porém, raramente são estáveis, por muito que os arquitectos se queiram apegar a rotinas, e as casas podem ficar reféns do que lhes parecia, a dado momento, uma mais que suficiente previsão de futuro.

Dificilmente, a princípio, reconhecerão os erros de avaliação que a sua nervosa paixão precipitou e tenderão a deixar-se usar pela arquitectura mais ou menos autoritária que conceberam.

Como a arquitectura não deve ser feita para nos usar mas, pelo contrário, para ser usada por nós, em momentos de maior lucidez, os arquitectos poderão reescrever o espaço que inauguraram e, com algum engenho, fixar, então, as casas, em situações mais libertas, lassas, afastadas de qualquer monolitismo equivocado inicial. Mas, para tal, terá sido necessário vencer a inércia, testar o uso do espaço, admitir dolorosamente os enganos, maldizer a falta de um cliente muito chato que pudesse ter funcionado como contraponto às soluções só aparentemente geniais que teimaram em pôr à experiência.

Gostar da ideia de que “uma coisa sirva para muitas coisas”, por exemplo, poderá ser um modo de evitar ter que se voltar atrás. Uma casa que sirva para muitas coisas será uma casa que suporte diferenciados tipos de situação, usos diversos, inesperadas apropriações, adequações imprevistas; uma casa com uma espacialidade que ampare a complexidade da vida, a surpresa da vida, a fluidez da vida, a imprevisibilidade da vida. A excessiva concentração num único problema pode também acabar por gerar uma situação aberta, claro, mas, as mais das vezes, aperta os significados em gestos unidireccionais que irão limitar a possibilidade de outras oportunidades, de outras disposições, de outras maneiras.

G.K.Chesterton, em 19101, falava-nos do canivete e do afiador de lápis: com o primeiro poderíamos cortar queijo, maçãs, limpar as unhas, suicidar-nos, para além de aparar os lápis; com um “especializado” afiador, dizia, não conseguiríamos nunca matar uma galinha.

E Lenine, reflectindo sobre o objecto “copo”, obriga-nos, também, a reflectir com ele sobre a polissemia dos artefactos banais:

“É incontestável que o copo é tanto um cilindro em vidro como um instrumento que serve para beber. Mas o copo não possui apenas estas duas propriedades ou estas duas características; possui, pelo contrário um número imenso de propriedades, características, lados, relações recíprocas e ‘mediações’ com o conjunto do mundo exterior. O copo é, primeiro que tudo, um objecto pesado, podendo ser utilizado como instrumento de arremesso; pode também servir de pisa-papéis ou ainda de recipiente para uma borboleta que queiramos imobilizar; pode também ter um valor enquanto objecto de arte, gravado ou pintado, indiferentemente de ser em vidro, da sua forma ser cilíndrica ou de estar destinado a servir de instrumento para beber ou não, etc.”2

Este gosto pelos vários significados, pela ambiguidade de que já nos falou Venturi3, por um certo desprendimento “funcional”, por uma certa indiferença quanto a uma hipótese de “eficácia” unidimensional, estará na origem, certamente, de muita da melhor arquitectura que se terá produzido ao longo dos tempos.

Subsiste alguma confusão, contudo, quanto aos limites que cercam este “certo desprendimento”. Um certo desprendimento em relação à ditadura da “funcionalidade” não deveria pressupor inadequação aos usos mais correntes e previsíveis nem um descontrolo na escala dos espaços nem (e falamos de casas), grande afastamento de uma ideia de domesticidade, de uma compartilhada noção de conforto, aconchego, envolvimento, protecção. Por isso, são geralmente tão irritantes as casas muito envidraçadas, em excesso acrítico de vistas sem recorte; montras que a noite encontrará pânicas, a partir do dentro iluminado, sem ideia do que se passa no fora escuro.

Não é o caso dos espaços nem dos vãos muito intencionais que encontraremos na Casa RV4.

A casa, que ganhou o Prémio Nacional de Arquitectura em Madeira de 2015 (PNAM’15)5, situa-se na freguesia do Canidelo (Vila Nova de Gaia), na descida para o Douro, já muito perto do lugar da Afurada. Orientada nascente-poente, olha, então, de um lado, o Porto, o rio e a Ponte da Arrábida, e vê, do outro, nos intervalos do casario, o mar e os molhes da foz.

O lote é muito estreito (seis metros), encaixado entre duas ruas paralelas, distantes cerca 30 metros, e que mantêm uma diferença de cota, entre si, equivalente a um piso e meio. A casa organiza-se em dois corpos com funcionalidades distintas: no lado poente, foram construídos dois pisos destinados a atelier; a nascente, na cota mais baixa, surge-nos a habitação, que se distribui por três pisos. Estes dois corpos são separados por um generoso pátio, com uma espécie de pequeno anfiteatro de acerto, e para onde, com cuidado intimismo, se abre a maior parte dos vãos dos dois volumes. Existe, contudo, uma galeria corredor, alteada, encostada ao limite sul, que irá permitir uma ligação interior directa entre estas duas alas e que cria um espaço protegido para uma circulação idêntica ao nível do pátio. A cobertura, em duas águas rematadas a zinco, unifica o conjunto, sempre à mesma altura, espelhando, para os dois lados do terreno, volumes aparentemente idênticos que só se diferenciam na chegada ao solo.

Esta forma sólida, prismática, una, mescla-se bem no conjunto diferenciado dos telhados que des-

cem a rua, apesar do ressalto cromático que o zinco in-troduz na mancha cor de barro que aguarela a encosta.

O partido construtivo-estrutural é muito curioso e pouco comum, ainda que de grande simpli-cidade: todo o invólucro exterior do conjunto – lajes térreas, paredes, coberturas –, é em betão, termica-mente isolado pelo lado de fora com um revestimento de cortiça, posteriormente rebocado e pintado de cinzento claro, sendo forrado a zinco nas coberturas; no interior, esse mesmo betão aparece-nos à vista, explicitando bem tratar-se do verso de uma “casca”.

Ficando assim definidas as duas “caixas”, bem como o istmo que as relaciona, os interiores foram, desde os barrotes que estruturam os pisos às escadas que os interligam, desde as paredes divisórias que encerram os núcleos centrais aos variadíssimos arrumos que guardam a domesticidade, resolvidos em madeira (ou derivados) de pinho e bétula. Também as paredes que confinam com o pátio (encarado aqui como um semi-interior) aparecem revestidas a tabuado de madeira. Temos, assim, que o contraste interior/exterior nos surge muitíssimo enfatizado e surpreendente, na alternância dos dois materiais dominantes, ênfase a que apenas o contraditório reaparecimento da madeira no alçado de rua do corpo poente vem perturbar o que quiséssemos testar de coerência conceptual.

A luz, o modo como a luz chega à casa, aos diversos espaços, o modo como a luz ilumina diferentemente os diferentes ambientes, terá sido uma das mais sensíveis preocupações desta dupla de arquitectos.

Mas os vãos de janela não servem só para nos fazer chegar a luz, sabemo-lo, e Marta Rocha e Fabien Vacelet, também. Os vãos, a sua proporção e desenho e o seu posicionamento, recortam-nos as vistas, enquadram-no-las, aumentam-nos o mistério de olhar e ver, enquanto nos fazem entrar o sol, directo ou rebatido; mas também enquanto nos escrevem, fora, a imagem da casa, do abrigo fechado com os buracos certos para interromper a massa das paredes – para texturar a massa das paredes –, e a tornar amável, delicada, urbana: aberta, quanto baste, também, ao olhar da cidade.

É muitíssimo feliz, por exemplo, o rasgo que topeja o espaço de estar, no lado nascente do conjunto: é um vão baixo e comprido, disposto a toda a largura da parede exterior, propositadamente baixo, também, na sua relação com o pavimento da sala. De pé, os adultos têm uma visão mergulhante sobre o empedrado da rua e os quintais confinantes; sentados, o olhar desdobra-se muito longe, vendo o rio, a cidade grande na outra margem e o arvoredo

A CASA DE BETÃO QUE GANHOU UM PRÉMIO DE ARQUITECTURA EM MADEIRAMANUEL GRAÇA DIAS*

CASA RVCanidelo, Vila Nova de Gaia, Portugal (2010/2014)

PROJECTO (2010/2012)Arquitectura: Marta Rocha e Fabien VaceletEstruturas e instalações hidráulicas: Ana Vale & Bárbara Rangel, Lda.Instalações eléctricas e telecomunicações: Gatengel, Projectos de Engenharia, Lda.AVAC: GET, Gestão de Energia Térmica, Lda.Acústica: Alfaengenharia. Alexandra Barbosa, Unipessoal, Lda.

CONSTRUÇÃO (2012/2014)Demolições: Costa Almeida, DemoliçõesBetão e construção geral: Manuel de Oliveira Leite, Lda.Carpintarias: Filipe Afonso e Irmão, Lda.Electricidade: Electro-IbisClimatização: Instavac – Instalações Térmicas, Lda.Canalizações: Barros Pereira, Unipessoal, Lda.Zinco: Asa, Revestimentos de Zinco e Cobre, Lda.Pinturas: Rocha & Proença, Lda.Revestimentos exterioresMadeiras: Thermowood – Banema, madeiras e derivados S.AInstalação: Conde Revis, Sociedade Revestimentos, Lda.

1. Alçados: nascente/rua; poente/pátio; nascente/pátio; poente/rua2. Plantas: piso 0; piso 1; piso 2; cobertura3. Cortes: transversal pela escada da casa; longitudinal pela galeria de ligação entre os corpos

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1. Gilbert Keith Chesterton (1874-1936). What’s wrong with the world. London, New York, Toronto & Melbourne: Cassel and Company, Limited, 1910. 2. Vladimir Ilyich Ulyanov [Lenin (1870-1924)]. “Le verre à boire”.1921 in Marcel Mariën (Ed.). Les lèvres nues (#1), Bruxelles, Abril 1954.3. Robert Venturi (n. 1925). Complexity and contradiction in architecture. New York: The Museum of Modern Art, 1966.4. Casa RV: Marta Rocha e Fabien Vacelet, Canidelo (Vila Nova de Gaia), 2010/2014.5. O PNAM’15 constituiu a terceira edição de um Prémio trianual, atribuído à arquitectura portuguesa, coorganizado entre a Associação das Indústrias de Madeira e Mobiliário de Portugal (aimmp), a Confederação Portuguesa da Construção e do Imobiliário (CPCI) e a Ordem dos Arquitectos (OA). Fo

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CASA RVCanidelo, Vila Nova de Gaia, Portugal (2010/2014)Fotografias a cores: © Tiago Casanova / Fotografias a preto e branco: © Marta Rocha

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