A cegueira da visão

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A cegueira da visão Alves Grapiúna Era cego. Não sabia o que era luz ou treva, claro ou escuro. Não tinha qualquer ideia do que era ser cego, mas era. Todos diziam que ele era cego. Nascera cego. Nunca tivera a oportunidade de ver qualquer cor. Sua vida era uma noite onde ele se movia muito bem. Aprendera desde muito cedo a transformar isso que nas pessoas que enxergam parece uma falha, em algo melhor. Era mais capaz que muitos que possuíam visão, mesmo em atividades que a exigia. Para não dizer que nunca experimentara a sensação de ver uma luz, algumas vezes pressionava o dedo sobre a pálpebra do canto interno do olho, e no lado oposto, o mais próximo à lateral do rosto, aparecia uma luz amarelada, o que para um cego não quer dizer nada. Essa era a única sensação, relativamente à visão, que comungava com os outros que enxergavam, embora ele não soubesse explicar o que sentia ou via nesta ação. Não teve muita dificuldade em ter uma vida quase normal, como as demais pessoas. Aliás, só seria uma anormalidade vista por alguém de fora, ele mesmo se sentia bem acomodado no mundo, como se este tivesse sido feito só para cegos. Fizera tudo que poderia ter feito. Dentre suas extravagâncias, gostava de assistir futebol pela televisão, não pelo rádio (o que seria mais próprio a alguém com esta condição física). Torcia. Já sabia o uniforme de todos os times. E quase sempre acertava, mesmo quando o time jogava com o segundo uniforme. Uma mistura de intuição e boa memória auditiva. Guardava as características da voz do locutor, quando este dizia: “o Brasil joga hoje com uniforme azul”. Acho que os cegos são especializados em identificar alterações na voz das 1

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A cegueira da visão

Alves Grapiúna

Era cego. Não sabia o que era luz ou treva, claro ou escuro. Não

tinha qualquer ideia do que era ser cego, mas era. Todos diziam que ele

era cego. Nascera cego. Nunca tivera a oportunidade de ver qualquer

cor. Sua vida era uma noite onde ele se movia muito bem. Aprendera

desde muito cedo a transformar isso que nas pessoas que enxergam

parece uma falha, em algo melhor. Era mais capaz que muitos que

possuíam visão, mesmo em atividades que a exigia. Para não dizer que

nunca experimentara a sensação de ver uma luz, algumas vezes

pressionava o dedo sobre a pálpebra do canto interno do olho, e no lado

oposto, o mais próximo à lateral do rosto, aparecia uma luz amarelada, o

que para um cego não quer dizer nada. Essa era a única sensação,

relativamente à visão, que comungava com os outros que enxergavam,

embora ele não soubesse explicar o que sentia ou via nesta ação.

Não teve muita dificuldade em ter uma vida quase normal, como as

demais pessoas. Aliás, só seria uma anormalidade vista por alguém de

fora, ele mesmo se sentia bem acomodado no mundo, como se este

tivesse sido feito só para cegos. Fizera tudo que poderia ter feito. Dentre

suas extravagâncias, gostava de assistir futebol pela televisão, não pelo

rádio (o que seria mais próprio a alguém com esta condição física).

Torcia. Já sabia o uniforme de todos os times. E quase sempre acertava,

mesmo quando o time jogava com o segundo uniforme. Uma mistura de

intuição e boa memória auditiva. Guardava as características da voz do

locutor, quando este dizia: “o Brasil joga hoje com uniforme azul”. Acho

que os cegos são especializados em identificar alterações na voz das

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pessoas. Suspeito que eles poderiam ser utilizados para desmascarar

mentirosos. Possuem essa qualidade melhor que qualquer outra pessoa.

Parece uma exploração desse universo de intuição e memória do qual

falei.

Este caso que estou tentando relatar foi muito comentado, de modo

que talvez você ainda se lembre. Muitas coisas foram especuladas na

época, e muitas dúvidas ficaram no ar. Durante algum tempo (esse em

que a imprensa escarafuncha uma notícia até aparecer outra tão

espetacular quanto), muitos especialistas foram chamados a emitir

opinião sobre o caso: neurologistas, fisiologistas, neuro-fisiologistas,

psiquiatras, um delegado de polícia e muitos outros. Não me lembro se

chegaram a algum consenso, mas foram muitos embates que serviram

para clarear um pouco a opinião pública, manter a audiência em níveis

desejáveis e criar na cabeça do homem comum crendices

desnecessárias. Na opinião do delegado, Deus o fez cego para não o

perder de vista, posto que era um futuro assassino. O fisiologista

considerou que Deus, então, poderia tê-lo feito fosforescente, obtendo

dessa forma melhor êxito. Os noticiários mudaram o foco da notícia

principal e pegaram um atalho: a blasfêmia do fisiologista. A opinião

pública deu razão ao delegado.

A mulher ele havia conhecido no jornal onde trabalhava. Era bonita e

simpática. Muito tímida. Encantou-se quando o viu. Ele estava no melhor

do seu vigor físico e intelectual. Era um sujeito bem humorado e que tinha

sempre uma piada para qualquer situação. Já estava lá há três anos

quando ela chegou. Ela era recém-formada. Não parecia muito com as

mulheres que escolhem jornalismo como profissão, mas, enfim, estava lá.

O conhecera, cada dia ficavam mais íntimos. Ele estava radiante, não

deu tempo para ponderações. Casaram-se rapidamente. Tendo tudo

corrido aparentemente muito bem até aquele dia fatal.

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Para alguém que vê, talvez não seja fácil explicar ou entender,

porém, a explicação que ele dera a seu advogado foi que ele notou algo

de diferente na mulher nos últimos dois anos. Ela falava diferente, se

comportava diferente e se vestia de maneira muito diferente daqueles

anos todos. E ninguém poderia confirmar, exceto ele próprio. Ele alegava

que ela falava com ele com negligência. Percebia isso na entonação, nas

pausas e (é muito difícil para quem vê julgar isso) no tom um pouco mais

grave do que sempre fora sua voz. Isso foi tudo que alegou em sua

defesa. Uma defesa frágil, diante do conhecimento que temos hoje

dessas possibilidades. No futuro...

Ela entrara no quarto. Ele não sabe dizer se era tarde ou cedo. Era

feriado e ele não fora trabalhar (o que lhe tirava esta noção mais ordinária

do tempo). Ela não falara com ele ao entrar. Sabia que era ela apenas

pelos passos. E sabia que não era a empregada, pois, esta não viera

trabalhar no feriado, e também ela sempre o cumprimentava ao entrar no

quarto, perguntando sobre o jogo do dia anterior, mesmo sem ter havido

jogo. Ela saiu, ele ouviu mais passos na sala. Talvez sussurros. Ela

entrou novamente no quarto, pegou algo e saiu. Foi nesse momento

(esse raio que é disparado em nosso cérebro naquela infinitesimal fração

de segundo das ações invulgares) que ele teve certeza. Pegou um

pequeno punhal que guardava na gaveta e ficou atrás da porta, ouvindo

os ruídos mais sutis. Os passos foram se aproximando e ele quase sem

respirar, ouviu-a entrar mais uma vez. Ao sentir o vento do cabelo dela

em seu rosto, agarrou-a pelas costas violentamente e, pressionando as

suas costas contra o seu peito, desferiu um único golpe, mais certeiro

que muitos dos quais se pode desferir olhando. Um grito abafado se

ouviu, também passos e um outro grito maior vindo do corredor. Louco!

Você está louco! gritava em desespero. Ele, atordoado (sem saber

exatamente o que estava acontecendo), a agarrou pelo cabelo, como se

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fosse para ele a reprise da cena anterior, e desferiu mais um golpe nela,

sem saber que era a primeira vez que a atingia. Ela caiu sobre a filha.

Ainda gritou mais uma vez, já sem conseguir se fazer ouvir, a voz

misturada com sangue. Ele correu, parou, correu novamente e,

encostado na parede, se deixou escorregar até o chão, chorando. Voltou

até o quarto e deitou-se sobre os cadáveres.

Eles foram encontrados na terça-feira, ainda na mesma posição.

Ficaram assim todo o feriado e o fim de semana. A polícia fora chamada.

Todos estavam sem entender o que se havia passado ali. Os corpos

manchados de sangue. Ele estava fraco, mas vivo. Ele levantou-se, e,

como se já tivesse visto isso num filme estadunidense, estendeu os

braços para frente e disse: fui eu.

Provaram que ele sofreu um distúrbio agudo, associado às severas

perturbações que um mundo extremamente visual impõe aos que não

vêem, um mal moderno ainda não identificado. Estava agora duplamente

condenado. De um lado, sem enxergar o mundo exterior; do outro,

carregava dentro de si imagens e visões terríveis que jamais

desapareceriam de sua mente.

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