A Centralidade Da Politica Democratica: ensaios sobre habermas

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Organizado por Leno Danner, "A centralidade da política democrática: ensaios sobre habermas"

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  • Os textos reunidos neste livro, escritos entre os anos de 2012 e de 2013, esto dirigidos ao estudo do pensamento poltico de Habermas, tentando integrar algo que basilar para se compreender os trabalhos do referido pensador, a saber: sua interao constante entre filosofia e sociologia, bem como entre teoria e prtica, conferindo centralidade poltica democrtica, s instituies pblicas e aos prprios movimentos sociais enquanto os artfices da evoluo social, levada a efeito politicamente que o real significado de sua noo de poltica radical como herdeira da modernidade cultural. Tendo isso como base, os artigos aqui reunidos procuram ligar os desenvolvimentos tericos de Habermas permanente ateno dele com questes polticas atuais, prprias da segunda metade do sculo XX em diante. Entre estas questes polticas genuinamente contemporneas, ganham central ateno o Estado de bem-estar social e sua crise, o confronto entre social-democracia e neoliberalismo, a disputa entre direita e esquerda, a compreenso da modernizao ocidental, os direitos sociais, a globalizao econmica, a relao entre partidos polticos e movimentos sociais, a dialtica entre institucionalizao e espontaneidade no que tange realizao da poltica democrtica, a esfera pblica democrtica e seu potencial poltico para a atualidade, etc.

    Desse modo, o ttulo deste livro, A centralidade da poltica democrtica, quer significar exatamente esse carter basilar conferido por Habermas poltica, tanto em termos de institucionalizao quanto no que tange prpria nfase nas foras poltico-culturais condensadas em movimentos sociais e em iniciativas cidads localizados na sociedade civil, que oferecem complemento normativo e realizam uma crtica radical ao poder institucionalizado. A poltica a base para a evoluo da sociedade, o lugar do confronto e da escolha

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    do tipo de projeto terico-prtico, sociocultural e poltico-econmico a ser encabeado tanto em nvel de cada sociedade democrtica quanto em termos de globalizao econmico-cultural. Nelas, as lutas por poder entre os mais diversos grupos sociais, os contedos normativos de uma sociedade democrtica ou os ideais humanistas de abrangncia universal e as vozes as mais diversas explodem, digladiam-se e acabam definindo de maneira direta e poderosa o tipo de constituio sociocultural e poltico-econmica a ser construdo ao longo do tempo como plataforma a partir do qual os processos de socializao e de subjetivao, a vida de cada um de ns, acontecem e acontecero. Daqui advm essa centralidade da poltica democrtica, enquanto o lugar e o instrumento por excelncia da evoluo social, envolvendo lutas por poder e normatividades que, nos seus confrontos por hegemonia, definem o tipo de sociedade que temos e que queremos.

  • Sumrio

    Esfera Pblica e Poltica Radical: apontamentos a partir de Habermas.....13

    Habermas e a Ideia de Reformismo Radical: justia poltica em

    tempos de ps-socialismo e de crise do capitalismo..39

    Habermas e a Ideia de Continuidade Reflexiva do Projeto de Estado de

    Bem-Estar Social.75

    Habermas e Giddens sobre a Crise da Esquerda Ocidental: consideraes

    em torno crise do Estado de Bem-Estar Social.115

    Habermas: da globalizao da economia globalizao da poltica145

    Habermas sobre a Materializao do Direito: do paradigma jurdico liberal

    ao paradigma jurdico do Estado de Bem-Estar Social................................169

  • ESFERA PBLICA E POLTICA RADICAL: APONTAMENTOS A PARTIR DE

    HABERMAS1

    Argumento central do texto

    O texto discute a noo de esfera pblica tematizada nos trabalhos habermasianos, defendendo que a ntima associao entre esfera pblica e democracia permite pensar-se um modelo de poltica radical no qual a aproximao entre Estado burocrtico e partidos polticos profissionais com os movimentos sociais e as iniciativas cidads poderia superar a reduo da prxis poltica a poltica partidria, concedendo a devida importncia aos impulsos normativos e aos interesses generalizveis advindos da sociedade civil rumo ao poltico, recuperando tambm uma concepo de esfera pblica no desvirtuada por formas de comunicao ideolgicas ou distorcidas, inclusiva e crtica do poder. Para isso, entretanto, a prxis poltica necessitaria, correlatamente quela aproximao, dar um passo alm da prpria esfera pblica concentrada na mdia corporativa e monopolizada nas instituies polticas e pelos partidos polticos, adentrando nas esferas pblicas informais desenvolvidas pelos movimentos sociais e pelas iniciativas cidads. Com efeito, as acusaes, por Habermas, de subverso da esfera pblica das democracias de massa contemporneas somente poderia ser superada a partir de uma maior nfase em tais esferas pblicas informais, que tambm poderiam dinamizar uma organizao administrativo-partidria atualmente marcada pelo distanciamento e pela

    1 Artigo aceito para publicao em Trans/Form/Ao (ISSN: 0101-3173), no primeiro nmero de 2015.

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    sobreposio em relao sociedade civil situao possibilitada, em grande medida, pela mdia corporativa e pela burocracia e elitismo partidrios.

    Do solapamento da esfera pblica possibilidade de uma democracia radical

    Analisando-se cronolgica e sistematicamente os trabalhos de Habermas, sintomtica a percepo de que a noo de esfera pblica desempenhe, conforme penso, um papel fundamental em todos os seus escritos polticos, seja enquanto categoria sociolgica, seja que o que interessa-me aqui enquanto categoria filosfico-normativa. Ela apareceu pela primeira vez em Mudana Estrutural da Esfera Pblica em ambos os sentidos, de modo a, por um lado, servir de paradigma sociolgico orientador de avaliaes empricas da dinmica da Realpolitik das sociedades democrticas do sculo XX (em termos de capitalismo tardio) e, por outro, permitindo diagnsticos em um sentido normativo sobre a autoconstituio de tais sociedades enquanto democracias. O modelo de esfera pblica burguesa, por conseguinte, serviu para a idealizao de uma concepo de publicidade poltica que, enquanto instrumento normativo, permitia a comparao com processos correntes de justificao institucional em sua relao com a participao (ou no) dos cidados e dos grupos sociais nas tomadas de deciso possibilitadas (ou no) pelos sistemas sociais contemporneos constitudos, conforme dito acima, como democracias. Note-se, em relao a isso, que um dos significados mais especficos do conceito de democracia remete-se publicidade das (e ao grau de incluso possibilitado pelas) tomadas de deciso institucionais que a rigor deveriam no apenas ser levadas a conhecimento do pblico de cidados, mas tambm justificadas permanentemente aos mesmos e contando com sua participao efetiva.

    Nesse diapaso, duas constataes Mudana Estrutural da Esfera Pblica consagrou nas posies de Habermas, que tiveram e tm eco em todos os seus trabalhos da advenientes: (a) as revolues burguesas modernas instauraram uma ideia de justificao pblica que

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    transladou o ncleo do poder, anteriormente congregado na instituio Estado ou monarca enquanto fim em si mesmo, para o centro da arena poltica constituda pela esfera pblica, dinamizada por uma sociedade civil altamente contraposta ao poder do Estado ou do rei e exigente de uma permanente justificao das aes governamentais a partir da segunda metade do sculo XIX, os movimentos proletrio-socialistas assumiram esse ideal de uma esfera pblica poltica enquanto arena de uma poltica radical servindo de contraponto e de complemento ao poder administrativo-partidrio, normativamente enraizada, colocando-a como o cerne de suas lutas por emancipao, to importante quanto a prpria esfera administrativo-parlamentar2; e (b) as democracias de massa contemporneas estariam sendo marcadas por um processo de solapamento desse potencial poltico da sociedade civil, na medida em que a esfera pblica e seu ideal de publicidade como fundamento do poder teriam sido fragilizados tanto pela fora da mdia de massas, presa a uma dinmica comercial totalizante e despolitizante, quanto pela submisso dessa mesma mdia de massas a interesses corporativos e partidrios, que retirariam aquela autonomia que ela possua frente ao poder institucionalizado no Estado e, posteriormente, nos partidos polticos profissionais3.

    A mudana estrutural da esfera pblica, por conseguinte, estaria em que, de um modo geral, a esfera pblica das democracias de massa do sculo XX, concentrada eminentemente na mdia corporativa e ligada ao Estado burocrtico e aos partidos polticos profissionais, ao mesmo tempo em que enredada em uma dinmica comercial dependente de investimentos do capital privado, teria no apenas perdido sua autonomia frente aos interesses de classe em conflito na sociedade, seno que, enquanto quarto poder, transformou-se, ela mesma, na instituio ponta-de-lana no que tange legitimao da prpria luta de classes, cujo controle determinaria, em grande medida,

    2 HABERMAS, 1984, 08, p.84-85; HABERMAS, 1987, p.83; GOODE, 2005, p.5-12.

    3 HABERMAS, 1970, p.20; HABERMAS, 2002, p.197; HABERMAS, 2003b, p.268.

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    a prpria hegemonia poltico-cultural dos grupos de poder privados. Em seu surgimento, a esfera pblica burguesa constitua-se enquanto espao social no qual indivduos e grupos privados discutiam assuntos ligados sociedade de um modo geral, em uma postura aberta de crtica ao poder, de fiscalizao do mesmo e exigente de sua legitimao; sua tendncia subverso (mudana estrutural concebida em um sentido negativo, como massificao, alienao, solapamento do potencial de crtica da esfera pblica por meio da associao entre tecnocracia e cultura de massas), a partir do sculo XX, transformou-a em um espao ideolgico de legitimao de interesses privados que pretendiam-se pblicos e, portanto, que buscavam hegemonia na sociedade como um todo funo que, como acredita Habermas, a mdia corporativa assumiu de maneira exemplar, tanto em termos comerciais quanto em termos polticos, correlatamente consolidao de uma postura tecnocrtica em termos de administrao estatal e ao engessamento burocrtico e elitista dos partidos polticos em relao massa dos cidados.

    Assim, se no modelo sociolgico e filosfico-normativo de esfera pblica burguesa, tematizado por Habermas, um ideal de publicidade apontava para a percepo de que seria possvel justificar interesses pblicos enquanto interesses de toda a sociedade e de seus grupos constituintes (racionalmente concebidos), que deveriam servir como parmetro para a avaliao tanto do poder estatal e partidrio quanto das aes dos prprios grupos privados em suas pretenses frente s instituies pblicas, a degenerao da esfera pblica das democracias de massa contemporneas teria imprimido a esse mesmo ideal de publicidade uma descaracterizao ideolgica que solapou, em grande medida, a possibilidade de estabelecer-se padres objetivos no que tange definio de interesses genuinamente universalistas, pblicos, frente s posies de classe privadas. Na verdade, a esfera pblica concentrada e detonada a partir da mdia corporativa levaria ao ofuscamento dessa possibilidade de definir-se padres pblicos de justificao e de discusso acerca das tomadas polticas de deciso, tanto pelo seu distanciamento em relao aos grupos sociais (e em particular dos grupos sociais em situao de marginalizao) quanto pelo seu enraizamento em uma dinmica diretamente comercial. No mesmo sentido, a primazia poltica dos partidos profissionais e dos

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    polticos carreiristas, como j afirmava Weber4, teria afastado a sociedade civil, com suas iniciativas cidads e seus movimentos sociais, da esfera pblica e, em particular, da possibilidade de um contato mais efetivo com o mbito da poltica parlamentar5. Com isso, a ideia de uma poltica radical, nas democracias de massa contemporneas, teria perdido muito da sua eficcia, devendo encontrar outro substrato normativo e um renovado impulso sociocultural que no ficassem presos ou monopolizados nem na estrutura estatal e partidria e nem naquela esfera pblica canalizada pela mdia corporativa. Ora, a sociedade civil, em seus movimentos sociais e suas iniciativas cidads, juntamente com formas de organizao poltica marginais e mdias alternativas, favoreceria o surgimento de esferas pblicas informais, eminentemente crticas do poder, que poderiam oferecer complemento normativo e sociocultural ao poder centralizado no Estado e dinamizado pelos partidos polticos profissionais. E essas esferas pblicas informais, marginais, seriam utilizadas por iniciativas cidads e movimentos sociais que no estariam diretamente ligados a interesses de classe (no sentido marxiano) e nem mobilizados pela busca do poder a qualquer custo, mas sim orientados para o bem comum, em uma atitude solidria frente s suas comunidades e mais alm.

    Da legitimao normativa do poder democrtico

    Para Habermas, uma poltica radical a exigncia de uma esfera pblica renovada. Essa poltica radical, na verdade, teria sido possibilitada exatamente pelas revolues burguesas e proletrias modernas (enquanto complemento, como acredita o referido pensador)6, calcadas no poder emancipatrio emanado da sociedade civil que, desde a modernidade, com seus atores polticos e servindo como arena poltica, daria a tnica da evoluo das sociedades

    4 WEBER, 1968, p.63-67.

    5 HABERMAS, 2001a, p.33; MILIBAND, 1972, p.147-178.

    6 HABERMAS, 2001b, p.505-509.

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    ocidentais, em processo de democratizao. Nesse aspecto, a sociedade civil moderna representaria o impulso poltico-cultural e o fundamento normativo do prprio poder institucionalizado no Estado e nos partidos polticos profissionais. Se, de um lado, tanto Estado quanto partidos polticos assumiriam como aconteceu ao longo do sculo XX a prerrogativa no que tange conduo administrativo-legislativa da evoluo social, de outro lado a sociedade civil e seus atores polticos mantiveram essa tarefa de legitimar permanentemente, com base em interesses generalizveis e em argumentos normativos, a autoconstituio e o exerccio do prprio poder. aqui, por conseguinte, que uma poltica democrtica radical e a esfera pblica poltica imbricam-se ferreamente: pois no se pode fazer poltica sem um processo permanente de justificao pblica que as administraes e os partidos polticos tm de realizar perante a sociedade civil e seus atores polticos uma justificao que, diga-se de passagem, no meramente tcnica, como uma prestao de contas pura e simplesmente, seno que adquire, no mais das vezes, uma ligao direta com a fundamentao normativa desse mesmo poder, baseada em interesses generalizveis. O fundamento do poder institucionalizado e da hegemonia poltica partidria advm do processo de justificao que, em uma situao de publicidade, conecta os grupos aspirantes ao poder com as expectativas sociais e os interesses dos cidados e dos grupos sociais, permitindo que suas propostas sejam submetidas ao escrutnio dos mesmos e, nesse aspecto, dissecadas em seus princpios mais bsicos, complementadas e, conforme sua situao, aperfeioadas ou descartadas. O fato que, conforme penso, a necessidade de justificao pblica, com base em argumentos normativos e interesses generalizveis, faz com que tanto as administraes pblicas quanto principalmente os partidos polticos adequem suas programticas s aspiraes sociais e a um ideal de eticidade que diminui sua tendncia burocracia e corrupo, na medida em que o ponto mais importante para sua permanente hegemonia relaciona-se com o modo como so vistos e avaliados em suas aes pela populao.

    Alm disso, a esfera pblica permite uma poltica radical porque retirou do Estado e dos partidos polticos a capacidade de bastarem-se no que tange justificao de suas polticas em particular e de seus

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    conchavos de uma maneira geral. Em primeiro lugar, eles no bastam-se em termos de justificao pelo fato bvio de que necessitam do apoio majoritrio do corpo de cidados, devendo, por isso, conforme se disse acima, moldarem sua programtica, seus valores e suas aes de um modo o mais universalista possvel e sempre com base em argumentos normativos. Dito de outro modo, os partidos polticos devem ser absolutamente idneos e ter uma programtica vinculada socialmente esses dois pontos podem conceder ou retirar completamente sua hegemonia pblica, para no se falar de sua legitimidade moralmente falando (que, no pblico de cidados de um modo geral, devm do grau de incorruptibilidade e de comprometimento que os mesmos apresentam). Em segundo lugar, portanto, pode-se perceber que a justificativa das administraes e dos partidos polticos no interna aos mesmos nem independente dos procedimentos democrticos de discusso e de validao, mas sim vinculada publicidade e ao grau de aproximao que eles tm em sua relao com a sociedade civil e seus atores polticos. Nesse sentido, as administraes e os partidos polticos devem ir praa pblica com aes, valores e argumentos normativos consistentes, justificando aos cidados que trabalharam e que trabalharo para os mesmos e que agem com base em valores universalistas e interesses generalizveis. Esse ponto, por mais ideal ou mesmo simples que seja, parece-me importante para considerar-se a estruturao das democracias contemporneas em sua relao com o poder institucionalizado no Estado e com os partidos polticos em busca de hegemonia: a sociedade civil, com seus mltiplos grupos de crena, com as mais gerais e especficas aspiraes de seus cidados e mesmo com seus (enquanto sociedade democrtica) interesses generalizveis, monopoliza a justificao normativa do poder, fazendo com que ela com seus atores polticos e parmetros normativos seja a instncia que referenda ou deslegitima a validade desse mesmo poder e a hegemonia partidria.

    E isso conduz a um terceiro ponto: que a desconstruo e, na verdade, a retirada da legitimidade do poder do prprio mbito interno aos meandros do Estado e dos partidos polticos, com seu translado para a e monopolizao na sociedade civil constituda a partir da esfera pblica poltico-cultural, esvaziaram a autoridade

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    institucional da capacidade no apenas de bastar-se a si mesma, mas tambm de detonar um processo de validao de suas decises que possa ser independente e autnomo da esfera pblica dinamizada pelos movimentos sociais e pelas iniciativas cidads. A autoridade poltica, conforme penso, foi to ou mais afetada que a autoridade religiosa e tradicional pelo processo de secularizao, no sentido de que ela, por meio das atividades poltico-culturais dos cidados e dos grupos sociais, foi completamente desconstruda em sua validade e em sua pureza internas. Desconfia-se permanentemente da autoridade e do poder institucionalizado, debocha-se e caricatura-se deles e com eles, deixa-se com muita facilidade de confiar neles e, principalmente, muda-se de posio de acordo com a avaliao pessoal que se faz das aes e dos valores que eles propugnam e realizam. Essas aes, levadas a efeito pelos grupos poltico-culturais presentes na sociedade civil, especificam o quanto o poder institucionalizado perdeu a autoridade em termos de justificao perante o pblico democrtico: o ceticismo que sente-se em relao ao poder acompanhado de uma necessidade cada vez mais premente que as administraes e os partidos polticos tm de legitimarem-se normativamente perante os cidados e os grupos sociais, sem os quais eles nada so ou alcanam.

    Ora, o aspecto mais importante da dinmica hodierna em termos de sociedade civil, que estes exemplos procuraram captar, est em que ela possui uma significao mais ampla do que aquele sentido moderno, enfatizado sobremaneira por Hegel e Marx, de uma esfera das necessidades determinada pela dinmica do mercado capitalista7 o que, por sua vez, fortalece o argumento que defendo aqui, a saber, de que a esfera pblica poltica das nossas democracias permite pensar-se um modelo de poltica radical altamente emancipatrio e socioculturalmente inclusivo. Com efeito, consoante Habermas, a sociedade civil hodierna apresenta novo significado e, conforme quero enfatizar neste artigo, renovado alcance poltico-cultural que a colocam, com suas foras poltico-culturais e suas arenas no vinculadas ao poder estrutural do Estado, dos partidos polticos e das grandes corporaes econmicas (esferas pblicas informais que

    7 HABERMAS, 2003b, p.99.

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    tambm so alternativas em relao mdia corporativa), como ponta-de-lana de uma prxis poltico-cultural emancipatria, que tem condies de dinamizar a evoluo de nossas democracias.

    Para o referido autor, a sociedade civil das democracias hodiernas caracterizada por dois pontos que so fundamentais, conforme penso, para formular-se um modelo de poltica radical que permita a viabilizao de uma forma de evoluo social efetiva e o mais abrangente e participativa possvel. Ela consiste, por um lado, em um contexto poltico-cultural caracterizado por iniciativas cidads, por movimentos sociais e por associaes e organizaes as mais diversas, que renem-se a partir de vieses poltico-culturais heterogneos que, no obstante em muitas situaes remeterem-se diretamente proteo dos prprios interesses pessoais e da comunidade de que fazem parte, reafirmam permanentemente a vinculao dos mesmos a interesses universalizveis e argumentos normativos afirmados enquanto o ncleo tico da democracia. Aqui, por conseguinte, a atuao desses atores polticos liga-se diretamente aos valores universalistas prprios de uma sociedade democrtica e, o que mais importante, no podem afirmar-se sem correlatamente afirmarem o prprio ncleo normativo e universalista da democracia a validade dos seus interesses liga-se diretamente validade e ao fortalecimento dos interesses genuinamente democrticos. Por outro lado, como consequncia, a sociedade civil das atuais democracias perpassada pela horizontalidade no que tange ao acesso e legitimao do poder, diferentemente da estrutura administrativo-partidria e da constituio do mercado capitalista, que so marcados por uma estrutura hierrquica e vertical em termos de acesso ao poder e de status quo8.

    Nesse sentido, a cooperao entre iniciativas cidads, movimentos sociais e grupos culturais os mais diversos, intermediada solidariamente, imprime uma dinmica democratizante ao poder e o enquadra a partir dessa perspectiva solidria, horizontal e universalista. Tais iniciativas cidads, movimentos sociais e grupos culturais, situados equitativamente uns frente aos outros e utilizando-

    8 HABERMAS, 2003b, p.99.

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    se de espaos pblicos informais e de mdias alternativas, permitem concomitantemente o diagnstico de problemas sociais, a tematizao de questes poltico-culturais e uma crtica radical do poder e dos grupos aspirantes ao poder, que os obrigam irremediavelmente a voltarem ateno para as questes de integrao sociocultural e para os desafios polticos em termos de evoluo democrtica, fazendo-os adentrarem a praa pblica para justificarem-se frente a esse amplo pblico de cidados, de movimentos sociais e de grupos culturais9. Afirma-se, com isso, o ponto nodal de uma organizao democrtica, isto , a horizontalidade, a igualdade no acesso ao poder, por parte de todos os cidados, sem a qual a democracia comea a ser solapada.

    Como acredita Habermas, a questo fundamental a ser considerada em relao ao significado contemporneo da esfera pblica a partir da qual organiza-se e dinamiza-se a sociedade civil consiste exatamente em que os movimentos sociais, as iniciativas cidads e os grupos culturais mantm uma postura poltico-cultural de autonomia frente ao poder administrativo-partidrio e aos interesses econmicos das grandes corporaes, o que lhes possibilita essa capacidade de crtica radical ao poder, to necessria para fazer-se publicizar tanto os problemas estruturais da sociedade e de suas instituies quanto para trazer luz sua justificao e as possibilidades de transformao que podem ser pensadas a partir dos interesses, das foras poltico-culturais e das condies sociais encontradas. O fato de a sociedade civil ser composta de iniciativas cidads, de movimentos sociais e de grupos e associaes culturais, que dinamizam esferas pblicas autnomas e crticas dos poderes e do status quo constitudos e consolidados, oferecendo alternativas de espaos pblicos mdia corporativa, confere dinamismo evoluo democrtica, que, por conseguinte, no fica presa e nem dependente da e conduzida apenas pela esfera administrativo-partidria e, como acontece frequentemente, a partir do direcionamento dado pelos lobbies econmicos. Isso tambm significa a democratizao do prprio acesso ao espao pblico, por parte de grupos mais frgeis da

    9 HABERMAS, 2003a, p.333; HABERMAS, 2000, p.119.

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    sociedade, que no conferem audincia a uma mdia seletiva daquilo que deve ou no aparecer como pblico.

    Para a prtica da autodeterminao dos cidados pressupe-se uma base na sociedade civil, autnoma, independente da administrao pblica e do comrcio privado mediado pelo mercado, a qual preserva a comunicao poltica de ser absorvida pelo aparelho do Estado ou de ser assimilada estrutura do mercado. [...] a esfera pblica poltica e a sociedade civil, como a sua base, obtm um significado estratgico; elas devem garantir prtica de entendimento dos cidados sua fora de integrao e de autonomia. O desacoplamento da comunicao poltica da sociedade econmica corresponde, em nossa terminologia, a uma religao do poder administrativo ao poder comunicativo resultante da formao poltica da opinio e da vontade10.

    A sociedade civil, no seu novo significado contemporneo, como horizonte poltico-cultural, constituda por iniciativas cidads, por movimentos sociais e por grupos culturais autnomos em relao ao poder institucionalizado em termos de Estado e de partidos polticos, bem como no vinculados ao poder econmico pura e simplesmente, ao realizarem uma crtica permanente do poder, recolocam a evoluo democrtica em bases normativas e vinculam (ou pelo menos problematizam incansavelmente) seja o poder administrativo-partidrio, seja a prpria dinmica econmica, a interesses generalizveis que revitalizam o processo democrtico de evoluo social, ramificando-o em todos os setores da sociedade, passando da poltica para a cultura e adentrando na economia. Assim, tendncia ao permanente solapamento da esfera pblica por parte das grandes corporaes econmicas, do Estado burocrtico e dos partidos polticos profissionais, utilizando-se da mdia corporativa, esse poder horizontal e calcado na solidariedade, dinamizado pelos atores poltico-culturais advenientes dessa sociedade civil anrquica, no domesticada por tais poderes estruturais e nem comprada por eles, oferece um espao inclusivo, atores polticos e oportunidades

    10 HABERMS, 2003a, p.33; os grifos so de Habermas. Conferir ainda: HABERMAS, 1997, p.452-455; DEAN, 1996, p.220-242.

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    equitativas de participao que complementam o poder institucionalizado e purificam-no da influncia nefasta do dinheiro na poltica. Com isso, essa mesma evoluo democrtica retorna s ruas, aos becos, de onde ela havia gentica e normativamente sado, tornando-se acessvel ao cidado comum, aos movimentos sociais e aos grupos culturais que acreditam nela e querem efetivamente participar dela.

    Esfera pblica, sociedade civil e democracia radical: por uma poltica s margens

    Como oferecer-se um contraponto subverso da esfera pblica poltica e ao distanciamento e sobreposio dos poderes institucionalizados frente sociedade civil? Alm disso, que alternativa poderia ser encontrada influncia burocrtica e elitista dos partidos polticos profissionais e que, ao mesmo tempo, refreasse a influncia econmica na poltica? Se, evidentemente, no possvel abdicar deles (e at desses conflitos de classe, por assim dizer, que seriam o pathos das democracias contemporneas), como complement-los com outros espaos pblicos e atores polticos democrticos? Como trazer normatividade poltica, minimizando a influncia do dinheiro? A tarefa principal bifurca-se em dois pontos que esto imbricados: ela consiste, primeiramente, em levar-se a srio essa mudana acontecida na modernidade poltica, caracterizada pela substituio do Estado ou do rei enquanto ncleo do poder e sua (desse mesmo ncleo do poder) transposio para o mbito da sociedade civil e da esfera pblica por ela dinamizada; em segundo lugar, ela aponta para a complementao, em termos de prxis poltica, da atuao dos partidos polticos profissionais com movimentos sociais, iniciativas cidads e grupos culturais os mais diversos, de modo a aproximar aqueles partidos polticos com as bases sociais, ao mesmo tempo em que, com isso, haveria a possibilidade de instaurar-se esferas pblicas informais que no estivessem presas dinmica totalizante da mdia corporativa politizando novamente a esfera pblica.

    Ora, quando Habermas analisa o processo de modernizao ocidental utilizando-se, para isso, de Marx e de Weber (e conferindo,

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    para o estudo do padro de desenvolvimento das sociedades contemporneas, maior importncia ao segundo) , as possibilidades emancipatrias e as patologias psicossociais desse mesmo processo de modernizao aparecem como sendo originados no apenas pela infraestrutura econmica, como queriam Marx e o marxismo tradicional11, mas tambm e principalmente, como acreditava Weber, pela tendncia burocratizao da poltica e apropriao comercial e partidria da mdia, que subverteriam a esfera pblica poltica: no primeiro caso, a poltica enquanto ideal moral seria subvertida pela ideia de uma poltica orientada para a conquista do status quo, marcada pelos conchavos entre polticos profissionais cujo propsito central seria o carreirismo e at o sucesso econmico a partir da utilizao da mquina pblica e de seu oramento, substituindo a participao das bases pela manipulao das massas de eleitores, que teriam sua importncia poltico-cultural solapada pelos burocratas e pelas elites dos partidos; no segundo caso, a mdia seria utilizada, em muitas situaes, com vistas a uma estetizao da poltica, concebida em carter negativo, como manipulao ideolgica de ideias, de prticas e de opinies, com vistas exatamente hegemonia partidria, despolitizando e tornando prescindveis, politicamente falando, indivduos e grupos sociais a rigor fundamentais para garantir uma evoluo social equalizada entre todos e para todos12.

    Com isso, ainda segundo Weber, a poltica contempornea andaria em maus lenis; e mesmo ele, que se recusava enfaticamente, como homem de cincia, a dar prognsticos sobre o futuro, via a evoluo das sociedades democrticas hodiernas com grande pessimismo, exatamente devido ao fato de a poltica que seria o fundamento dessa evoluo estar degenerada, deturpada, tanto no sentido de uma nfase como que exclusiva na poltica parlamentar, cada vez mais burocratizada e afastada de suas bases sociais, quanto no sentido de que essa mesma poltica parlamentar bastaria enquanto uma estetizao da poltica, levada a efeito com o auxlio da mdia

    11 Conferir em: HABERMAS, 1990; HABERMAS, 1999.

    12 Conferir em: WEBER, 1968, p.79-104; HABERMAS, 2001b, p.428-543.

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    corporativa13. A poltica estaria perdendo seu carter participativo e consolidando um carter aclamativo, caracterizado basicamente pela conquista da lealdade das massas e sua despolitizao, com a substituio das mesmas pela camada burocrtica (tanto em termos de democracias liberais quanto em termos de sociedades comunistas, ainda segundo Weber). Para Habermas, por conseguinte, nessa esteira aberta por Weber, tanto as debilidades quanto as incrveis possibilidades de emancipao detonadas pelas sociedades democrticas contemporneas apontariam diretamente para a poltica como o mdium a partir do qual tais sociedades alcanariam uma transformao qualitativa ou regrediriam a uma situao de caos social. Com isso, como prxis poltico-cultural renovada que se pode retomar um ideal democrtico de emancipao social.

    E essa prxis poltico-cultural renovada encontraria seu substrato normativo e seu dinamismo nos espaos pblicos alternativos e nos atores polticos emanados da sociedade civil enquanto esfera poltico-cultural normativamente estruturada e crtica do poder conforme seu significado contemporneo, salientado acima. Com efeito, as esferas pblicas informais, detonadas por iniciativas cidads, movimentos sociais e grupos culturais os mais diversos, que no esto presas ao poder administrativo-partidrio nem ligadas a interesses econmicos estruturais, possuem tanto independncia quanto radicalidade para lidar com os desafios do processo de modernizao e, em particular, tambm para assumir interesses generalizveis que essa mesma modernidade, com sua cultura poltica explosiva e crtica dos poderes institucionalizados, instituiu como prprios a uma condio humana de liberdade e de igualdade, segundo padres universalistas e mesmo democrticos. Nesse sentido, essa poltica s margens da estrutura administrativo-partidria representaria, conforme Habermas, tanto o substrato normativo do poder quanto, em termos de Realpolitik, seu complemento, no sentido de que, por meio dessa crtica radical do poder, dessa profanao permanente dos poderes institudos (no sentido de sua desconstruo e chamada justificao cotidiana), abrir-se-ia espao para a correo das

    13 WEBER, 1968, p.104-105.

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    instituies e de seus procedimentos, correlatamente resoluo daquele problema que, comeando com Weber, passando por Horkheimer e Adorno e chegando a Habermas, afetaria a evoluo democrtica das sociedades contemporneas, a saber, a autonomizao e a sobreposio do aparato administrativo-partidrio em relao sociedade civil, que levaria subverso da esfera pblica poltica. O carter selvagem das esferas pblicas informais da sociedade civil hodierna, com seus grupos e iniciativas eminentemente contrapostos ao poder estrutural (burocracia, partidos polticos, dinheiro, mdia corporativa), levaria exatamente ao prprio enquadramento dessa esfera pblica desestruturada, concomitantemente fragilizao da independncia e da sobreposio do aparato administrativo-partidrio em relao sociedade civil e seus atores polticos.

    Os fluxos comunicacionais, em princpio ilimitados, perpassam as esferas pblicas organizadas no interior de associaes, as quais formam componentes informais da esfera pblica geral. Tomados em sua totalidade, eles formam um complexo selvagem, que no se deixa organizar completamente. Devido sua estrutura anrquica, a esfera pblica geral est, de um lado, muito mais exposta aos efeitos de represso e de excluso do poder social desigualmente distribudo, da violncia estrutural e da comunicao sistematicamente distorcida, do que as esferas pblicas organizadas do complexo parlamentar, que so reguladas por processos. De outro lado, porm, ela tem a vantagem de ser um meio de comunicao isento de limitaes, no qual possvel captar melhor novos problemas, conduzir discursos expressivos de auto-entendimento e articular, de modo mais livre, identidades coletivas e interpretaes de necessidades. A formao democrtica da opinio e da vontade depende de opinies pblicas informais que idealmente se formam em estruturas de uma esfera pblica poltica no-desvirtuada pelo poder14.

    O ponto importante, aqui, para o modelo de poltica radical em questo, consiste no fato de que Habermas considera a esfera pblica

    14 HABERMAS, 2003b, p.33. Conferir ainda em: HABERMAS, 2002, p.283; PINZANI, 2009, p.151-153; MUNNICHS, 2002, p.185-187.

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    como a antessala do sistema parlamentar, como a periferia que inclui o centro representado pelo Estado15. Trata-se, conforme penso, de um duplo aspecto no que tange possibilidade desse modelo de poltica radical. Um aspecto consiste no fato de que o sistema administrativo-partidrio no independente nem est sobreposto em relao sociedade civil, seno que faz parte do horizonte aberto por ela, tanto em termos de programticas a serem realizadas quanto no que diz respeito aos interesses generalizveis e aos argumentos normativos que justificariam a prpria possibilidade de uma prxis poltica conforme democracia. O segundo aspecto, em continuao, est em que a atuao poltica partidria torna-se incapaz de, por si s, realizar uma prxis poltica substantiva, sobrepondo-se s ruas, isto , s iniciativas cidads, aos movimentos sociais e aos grupos culturais os mais diversos: a voz, os interesses e os ideais da estrutura administrativo-partidria precisam estar em consonncia com as vozes, os interesses e os ideais das ruas16. Na verdade, em relao a este ponto, fica patente a necessidade de um processo cooperativo que faa os partidos polticos retornarem s suas bases na sociedade civil: sem tal contato estreito, a burocratizao e a corrupo daro a tnica de uma poltica que, ao invs de dinamizar a evoluo democrtica, emperra-a, porque, centralizada nos partidos polticos profissionais e nas instncias burocrticas da administrao estatal de ocasio, distanciou-se e sobreps-se sociedade civil e aos seus atores poltico-culturais17. A esfera pblica, por conseguinte, representaria a antessala da poltica parlamentar porque ali que tanto a fundamentao quanto os atores polticos e os contedos prticos so trazidos publicidade, discutidos e fundamentados de acordo com o prprio sentido de uma cultura democrtica, que inclusiva, aberta e igualitria entre todos e para todos.

    15 HABERMAS, 2003b, p. 187; o grifo meu. Conferir ainda em: HABERMAS, 2009, p.141; SCHEUERMAN, 2002, p.64-66; BENHABIB, 1997, p.85-88; FRASER, 1997, p.111.

    16 HABERMAS, 2003a, p.340.

    17 HABERMAS, 2003b, p.25; MACCARTHY, 1998, p.137; WOLFE, 1980, p.331-345.

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    A democracia faz-se por meio da publicidade e da participao ampliada de iniciativas cidads, de movimentos sociais e de grupos culturais em parceria com os partidos polticos. Esse foi o princpio mais bsico da tenso entre esfera pblica burguesa e esfera pblica proletria que, desde o sculo XIX, demarcou muito da dinmica poltico-cultural das sociedades ocidentais em processo de democratizao. Hodiernamente, a herana que recebemos dessas lutas modernas em torno esfera pblica poltica, enquanto cidados de sociedades democrticas relativamente estveis (ainda que marcadas por crises polticas, sociais, culturais, econmicas, et.), consiste exatamente na fora e na centralidade de uma esfera pblica poltica que, dinamizada por iniciativas cidads, movimentos sociais e grupos culturais radicalmente crticos dos poderes vigentes, impede a autonomia e a sobreposio da estrutura administrativo-partidria em relao sociedade civil, oferecendo contrapontos poderosos esfera pblica centralizada na mdia corporativa. A crtica radical do poder, em tudo isso, transladou-se, em poderosa medida, dos parlamentos para as ruas, dos partidos polticos profissionais para os movimentos sociais, as iniciativas cidads e os grupos culturais, que, a partir das esferas pblicas informais por eles dinamizadas e das mdias sociais por eles utilizadas, enquadram o poder com base em interesses generalizveis e argumentos normativos. As ruas, e no mais o parlamento, so a base da democracia pelo menos a base normativa, o substrato da eticidade da mesma, mas tambm enquanto foras polticas que enquadram a atuao das administraes e dos partidos polticos. No modelo de poltica radical habermasiano, a prxis poltica dinamizada exatamente a partir da normatividade detonada pelas fontes espontneas originadas da sociedade civil e de seus atores polticos em sua tentativa de influir nas decises partidrias, oferecendo formas de resistncia e temas aos mesmos, evitando que a prxis poltica seja apenas um tema de elites burocrticas e dinamizada preponderantemente pelo poder do dinheiro18. A efetiva politizao da esfera pblica poltica, assim, tem por motor os movimentos sociais, as iniciativas cidads e os grupos culturais os mais diversos, com suas formas de resistncia, com seus argumentos,

    18 HABERMAS, 2003b, p.295.

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    com sua fora poltico-cultural e com sua criatividade eles fazem com que a poltica volte s ruas e democratize-se, bem como permitem, com suas denncias e atuaes autnomas, separar interesses generalizveis e interesses econmicos oligrquicos.

    A centralidade da poltica democrtica: consideraes finais

    Acredito, guisa de concluso, que qualquer tentativa filosfico-sociolgica de pensar-se uma mudana estrutural da esfera pblica, ao estilo habermasiano, precisa estar atenta a uma transformao que, nas ltimas dcadas do sculo XX em diante, aconteceu em nossas sociedades democrticas e mesmo, por assim dizer, em termos de um espao pblico internacionalizado, devido tanto ao surgimento, como o prprio autor j chamava ateno em Teoria da Ao Comunicativa, de movimentos sociais e iniciativas cidads no mais diretamente ligados aos conflitos de classe em sentido estritamente econmico, quanto democratizao do acesso s mdias e s tecnologias de informao. No primeiro caso, esses movimentos sociais e iniciativas cidads organizam-se em formas de resistncia e de participao que centralizam sua dinmica nas ruas e nos becos do cotidiano, mas direcionando-se sensibilizao do aparato administrativo-partidrio e da esfera econmica em relao a problemas sociais, culturais, ecolgicos, bem como no que tange a possveis aes com vistas resoluo desses problemas. No segundo caso, que o que interessa-me agora, pode-se perceber que as mdias sociais possibilitam a consolidao de espaos poltico-culturais alternativos, informais e espontneos, nos quais movimentos sociais, iniciativas cidads e grupos culturais os mais diversos podem construir arenas de debates, projetar aes e definir programticas que, em conquistando adeptos, podem influenciar e efetivamente influenciam aes polticas emancipatrias, que melhoram as condies sociais do contexto em questo.

    Portanto, a mudana estrutural da esfera pblica, que Habermas tematizou no livro de mesmo nome, deve ser percebida e trabalhada tendo-se em vista o fato de que, hoje, ela, ainda que vigente enquanto tendncia da mdia corporativa e do aparato administrativo-partidrio,

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    foi grandemente enfraquecida pela proliferao de movimentos sociais, de iniciativas cidads e de grupos culturais participativos da vida poltico-cultural e crticos dos poderes institucionais. Eles consolidam esferas pblicas informais que, devido sua fora, freiam qualquer tentativa de centralizao do espao pblico nessa mdia partidria e corporativa, impedindo, da mesma forma, a monopolizao desse mesmo espao pblico por tal mdia corporativa e partidria. Isso significa, por conseguinte, a consolidao de espaos pblicos plurais e, no mais das vezes, informais, no ligados diretamente aos poderes estruturais da esfera administrativo-partidria e do mbito econmico na verdade, esses espaos pblicos informais so radicalmente crticos dos poderes estruturais, oferecendo arenas de debates e de aes inclusivas, universalistas e contrapostas a qualquer forma de segregao social, poltica e cultural. No mero acaso, nesse sentido, que Habermas coloque todo o peso da fundamentao normativa, no que tange evoluo das sociedades democrticas, exatamente nestes espaos pblicos informais detonados por meio de iniciativas cidads, movimentos sociais e grupos culturais da sociedade civil, que, utilizando-se de mdias alternativas e formas de prxis poltico-culturais no enquadradas pelos poderes estruturais (Estado, partidos polticos, dinheiro e mdia corporativa), tm de, inevitavelmente, lanar mo de interesses generalizveis e argumentos normativos. Com isso, esses espaos pblicos informais e os atores polticos que os utilizam comprometem-se com o universalismo moral prprio da modernidade, herdando o carter radicalmente crtico do poder que as revolues burguesas e os movimentos proletrios modernos conferiram sociedade civil e esfera pblica poltica por ela instaurada.

    Hodiernamente, a democracia, enquanto prxis poltico-cultural inclusiva, torna-se cada vez mais uma realidade em nossas sociedades, na medida em que d-se tal alargamento e pluralizao dos espaos pblicos, o que correlatamente implica na proliferao e no aumento da participao de iniciativas cidads, movimentos sociais e grupos culturais na problematizao do processo de evoluo social. Isso, como disse acima, publiciza tanto os dficits quanto as potencialidades apresentadas por nossas sociedades, a partir de uma perspectiva plural, que no fica monopolizada por poderes estruturais

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    centralizados no mbito administrativo-partidrio e nem enquadrada pura e simplesmente pelo dinheiro. Da mesma forma, a existncia de espaos de opinio e de discusso plurais descentraliza e retira o monoplio da mdia corporativa em relao ao espao pblico, possibilitando a confrontao de diagnsticos e de posies, to fundamental para o processo democrtico de evoluo social. Evita-se, ainda, neste ltimo caso, uma estetizao pura e simples da poltica, naquele sentido comentado acima, de uma correlata massificao miditica do poltico quanto de uma sua deslegitimao dele, o que levaria despolitizao das questes pblicas: a problematizao da poltica a partir destes espaos pblicos plurais, levada a efeito por diferentes iniciativas cidads, movimentos sociais e grupos culturais, faz saltar as justificaes e as justificaes esprias em particular da prxis poltica e, ao mesmo tempo, explicita a dramaticidade das situaes reais de injustia, de sofrimento e de corrupo, tornando-as pblicas e, com o tempo, absolutamente inaceitveis para cada um de ns, cidados. Rompe-se, aqui, por fim, o privatismo civil, na medida em que vemo-nos com possibilidades de influncia e de participao mais abrangentes, e cremo-nos com o direito de falar sobre a res publica uma conquista importantssima das redes sociais e dos espaos pblicos informais abertos pelas mais variadas iniciativas, movimentos e associaes.

    Tal exigncia de espaos pblicos informais e de movimentos sociais e iniciativas cidads que possam orientar o aparato administrativo-partidrio para transformaes estruturais torna-se, correntemente, cada vez mais premente. A crise econmica atual, o decrscimo da economia produtiva e o desemprego estrutural praticamente incontrolvel acirram novamente, conforme penso, a contraposio entre dois modelos polticos que digladiaram-se de maneira frrea ao longo dos ltimos trinta anos do sculo XX: social-democracia versus neoliberalismo. A disputa que ora torna-se cada vez mais aguda consiste, de um lado, na nfase em um poder poltico capaz de, por sua centralidade, garantir uma evoluo social planejada institucionalmente e calcada em interesses generalizveis advenientes da sociedade civil e fundados em argumentos normativos, que refreiam o processo de acumulao, direcionando-o realizao de metas sociais e de processos de integrao material. Aqui, a retomada

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    de um Estado diretivo da evoluo social adquire primazia esta, inclusive, a base da programtica da social-democracia europeia em particular e da esquerda de um modo geral, hoje, em termos de democracias ocidentais. De outro lado, tem-se a nfase em polticas de austeridade, por parte de posies neoconservadoras, que apontam o neoliberalismo atual como alternativa crise socioeconmica. Aqui, tem-se a primazia do laissez-faire econmico e, por conseguinte, a necessidade de respeitar-se a dinmica prpria dos mercados, que ficam solapados pelas intervenes estatais e pelas exigncias em termos de direitos sociais de cidadania. A ideia de uma evoluo social conduzida politicamente, para estas posies neoconservadoras, deveria ser substituda por polticas de austeridade (um termo muito em voga, atualmente, como programtica para a resoluo da crise) que suavizam o Estado de compromissos sociais ampliados. Quer dizer, a crise socioeconmica seria causada pelo Estado de bem-estar social ineficiente, que, por isso mesmo, deveria ser enxugado em suas funes, tendo-se afirmada a prpria dinmica econmica como elemento fundamental para a resoluo da crise, muito mais do que a esfera poltica um argumento que j Hayek defendia enfaticamente na segunda metade do sculo XX.

    Neste contexto, assiste-se ao fortalecimento da poltica s margens frente poltica institucionalizada e miditica, isto , das vozes das ruas e dos becos, que exigem um debate mais apurado e inclusivo sobre as causas e as possveis solues dessa crise socioeconmica, e que buscam fazer-se ouvir pelos poderes institucionalizados e por uma mdia corporativa que, de um modo geral, d por assentada tanto a crise quanto a causa poltica e em termos de direitos sociais para tal crise, em uma clara tentativa de despolitiz-la e aos prprios movimentos de protesto. Da mesma forma, nesse mesmo contexto, percebe-se a consolidao de uma esfera pblica informal que, se de um lado no est institucionalizada em termos administrativos e partidrios, e nem conta com um espao pblico ao estilo da mdia corporativa, pretende-se, de outro lado, to importante, na discusso sobre a crise, quanto o prprio espao administrativo-partidrio. Tomando partido pela importncia da diretiva poltica da evoluo social, penso que a hegemonia de foras polticas comprometidas com um projeto de emancipao que coloca exatamente a poltica social

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    como fundamental precisa escorar-se em tais grupos e espaos pblicos alternativos, correlatamente apropriao de seus argumentos normativos e sensibilizao para suas necessidades sociais. A poltica institucionalizada no Estado e nos partidos polticos somente pode sobreviver como forma poltica adotada em nossas sociedades, rompendo ainda com sua tendncia burocrtica e elitista e refreando o poder do dinheiro na prpria poltica, se der um passo alm de si mesma, adentrando nas esferas pblicas informais radicalmente crticas dos poderes e do status quo vigentes, interagindo com as iniciativas cidads e com os movimentos sociais advenientes da sociedade civil consolidando, de maneira correlata, formas de comunicao pblica e de participao social ampliadas, que levem em conta as necessidades sociais e os anseios da populao comum, que, de um modo geral, no consegue fazer-se ouvir politicamente com tanta fora. As polticas de austeridade, nesse aspecto, andam na contramo dessa tendncia aberta pelas condies socioculturais contemporneas de uma poltica mais radical, abrangente e inclusiva, eminentemente dependente dos impulsos sociais, na medida em que (tais polticas de austeridade) fecham-se s vozes das ruas e alimentam-se de uma mdia corporativa que, com suas funes despolitizadoras ou mesmo com sua estetizao da poltica, apaga os espaos alternativos de discusso e de publicidade, bem como os atores polticos dinamizadores destes espaos pblicos informais. Superar tal ciso o desafio permanente de nossas sociedades.

    Crise e retomada da poltica: eis a situao sui generis de nossa poca. Crise da poltica devido ao fato de que a atual crise socioeconmica carrega de maneira escancarada o fato de que a poltica posta em xeque: a tenso real que est por trs da crise socioeconmica e das foras terico-polticas que digladiam-se em vrios pases ocidentais consiste exatamente na reformulao da poltica, tanto para aqueles que ainda acreditam que o especfico das sociedades modernas seja a afirmao da poltica e do Estado enquanto foras diretivas da evoluo social quanto para aqueles que, ao contrrio, creem que a caracterstica eminentemente moderna de nossas sociedades consista na afirmao do mercado como o horizonte garantidor da evoluo social. Para os segundos, representados pelo neoliberalismo, a anulao da poltica equivale

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    anulao da sociedade civil enquanto arena poltico-cultural de carter normativo e radicalmente crtica do poder, que no possuiria interesses generalizveis nem fundamentao normativa enquadradores do poder administrativo-partidrio. Para os primeiros, representados pela esquerda de um modo geral, a reafirmao de uma poltica forte e diretiva da evoluo social somente pode ser feita se, correlatamente, aproxima-se a prxis poltica dos movimentos sociais e das iniciativas cidads advenientes da sociedade civil, nas esferas pblicas informais que estes instauram frente estrutura administrativo-partidria, ao mercado e mdia corporativa. Retomada da poltica, portanto, devido a dois motivos: o primeiro deles que a resoluo da crise acontecer politicamente, ou pela retomada de uma poltica forte, ou pela anulao da poltica enquanto instncia diretiva da evoluo social; e, com isso, como segundo deles, porque a crise socioeconmica hodierna acirra a tenso acima comentada, entre laissez-faire econmico versus poltica forte e diretiva da evoluo social, de modo que, para impor-se uma alternativa poltica crise, h de buscar-se apoio poltico-cultural em termos de sociedade civil e, aqui, afirmando-se uma poltica radical como prpria de uma sociedade democrtica caracterizada por padres universalistas e normativos de integrao social. No existem muitas alternativas para uma democratizao efetiva e para a afirmao de uma poltica forte: uma evoluo social democrtica deve fazer-se como poltica radical, como aproximao estreita entre poder administrativo-partidrio e argumentos normativos e interesses generalizveis emanados das esferas pblicas informais dinamizadas pelos movimentos sociais, pelas iniciativas cidads e pelos grupos culturais da sociedade civil.

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  • 36

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    HABERMAS, Jrgen. Direito e Democracia: entre Facticidade e Validade (Vol. 2). Traduo de Flvio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003b.

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    WEBER, Max. A Poltica como Vocao. In: WEBER, Max. Cincia e Poltica: Duas Vocaes. Traduo de Lenidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. So Paulo: Editora Cultrix, 1968.

    WOLFE, Alan. Los Lmites de la Legitimidad: Contradicciones Polticas del Capitalismo Contemporneo. Traduccin de Teresita Eugenia Carb Prez. Madrid: Siglo Veintiuno, 1980.

  • HABERMAS E A IDEIA DE REFORMISMO RADICAL: JUSTIA POLTICA EM TEMPOS

    DE PS-SOCIALISMO E DE CRISE DO CAPITALISMO1

    Argumento central do texto

    Com a ideia de reformismo radical, analiso o pensamento poltico de Habermas de modo a defender dois pontos: (a) desde seus primeiros trabalhos, em sua crtica ao projeto social-democrata de Estado de bem-estar social, Habermas propugnava, como superao do carter burocrtico do Estado e dos partidos polticos, e do carter administrado da democracia de massas, a ampliao dos procedimentos democrticos a todos os mbitos da sociedade, passando da economia, para a cultura e para a poltica; e (b), a partir da dcada de 1980, apontava para uma reafirmao do projeto social-democrata de Estado de bem-estar social, momento de crise da social-democracia e de hegemonia neoliberal, o que levaria afirmao, por Habermas, de que a continuidade reflexiva do projeto de Estado de bem-estar social e a correlata afirmao da social-democracia representariam, aps o colapso do socialismo real, a alternativa e a postura terico-poltica por excelncia para uma esquerda ocidental no-comunista. Com isso, um modelo atual de justia sociopoltica centrar-se-ia exatamente na reafirmao do Estado de bem-estar social enquanto o centro poltico diretivo de nossas sociedades democrticas contra o laissez-faire econmico e as polticas de austeridade que o legitimam.

    1 Artigo aceito para publicao na Revista Estudos Polticos (ISSN: 2177-2851), para publicao no segundo nmero de 2014, que est no prelo.

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    Consideraes iniciais

    Neste artigo, analisarei a ideia habermasiana de reformismo radical, defendendo que, com ela, seria possvel pensar-se um duplo aspecto da teoria poltica contempornea e sua imbricada ligao com a realpolitik hodierna, a saber: a questo da justia poltica e econmica em um contexto de crise do modelo de desenvolvimento capitalista de um modo geral e Estado de bem-estar em particular; e o desafio de um projeto terico-poltico de esquerda diante da falncia do socialismo real e da hegemonia neoliberal ao longo das dcadas de 1980 e de 1990 ou seja, neste caso, a definio de uma programtica e de um iderio prprios de uma esquerda ocidental que tambm j no compartilha de um modelo similar ao socialismo real. Ambos os pontos, como procurarei demonstrar ao longo do texto, fazem parte das ponderaes habermasianas desde longa data, definindo o sentido de seus trabalhos polticos, podendo, inclusive, como o farei na parte final do artigo, ser utilizados como referencial terico para compreender-se muito da dinmica da atual crise socioeconmica, em particular, conforme penso, para a necessria reafirmao da poltica social-democrata e do modelo representado pelo Estado de bem-estar social, como forma no apenas de combater-se o desemprego estrutural e a deteriorao da qualidade e da valorizao do trabalho nas sociedades contemporneas, mas tambm enquanto alternativa a uma generalizada poltica de austeridade, que tornou-se jargo comum em posies neoconservadoras, reascendendo o discurso neoliberal contra o Estado e contra os direitos sociais.

    Desenvolvi, em trabalho anterior (DANNER, 2011), a tese de que, para Habermas, h um dficit democrtico no projeto social-democrata de Estado de bem-estar social que ensombrece muito do bem-sucedido processo de integrao material levado a efeito pela social-democracia e em temos de Estado de bem-estar social. Esta tese ser tomada como pressuposto, aqui. Basicamente e de um modo geral, ela significa que a constituio das democracias de massa contemporneas, tendo como contedo poltico o Estado de bem-estar social, teria sido marcada por altos nveis de integrao material correlatamente ao solapamento do processo de democratizao poltica do poder, seja por meio de uma mudana estrutural da esfera

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    pblica (sua concentrao monopolstica, sua insero da dinmica de mercado, sua assimilao pelo Estado burocrtico e pelos partidos polticos profissionais, etc.), seja por meio da burocratizao das estruturas administrativo-partidrias, seja mesmo por causa da programtica do Estado de bem-estar social, caracterizada, em poderosa medida, pela juridificao e pelo paternalismo de bem-estar.

    A ideia de reformismo radical, tendo-se presente tal situao, serviria como problematizao, de um lado, desse dficit democrtico do projeto de Estado de bem-estar social e, aqui, como crtica social-democracia; de outro lado, entretanto, ela tambm aponta para a retomada da social-democracia e do projeto de Estado de bem-estar social enquanto genunos representantes de uma esquerda ocidental no-comunista e sua programtica terico-poltica, mas reformulados reflexivamente e complementados pelo ideal de uma democracia de base, radical, que aproximaria a esfera administrativo-partidria em relao aos movimentos sociais e s iniciativas cidads, abrindo espao, ao mesmo tempo, para que esferas pblicas marginais ganhassem importncia frente s esferas pblicas centralizadas na mdia de massas. E essa retomada do projeto social-democrata de Estado de bem-estar social, como acredita Habermas, tornou-se cada vez mais premente desde os anos 1980, quando a crise do Estado de bem-estar social e a hegemonia neoliberal significaram poderoso golpe ao modelo de desenvolvimento das sociedades do primeiro mundo (capitalismo de bem-estar) e mais alm.

    Defenderei, ainda, tendo como base tais consideraes, que estes primeiros anos do sculo XXI so marcados pela radicalizao da crise do capitalismo de um modo geral e do capitalismo de bem-estar em particular, com o crescimento dos processos de pauperizao material, de desemprego estrutural e de endividamento pblico em vrias sociedades. E a crise econmica atual acirra a disputa entre uma posio social-democrata e uma posio neoliberal, ou seja, a nfase, no primeiro caso, na poltica forte e diretiva da evoluo social (o que aponta para a importncia estratgica do Estado de bem-estar social) e, no segundo caso, a primazia das polticas de austeridade e a nfase no laissez-faire econmico. Por isso, um modelo de justia poltica e econmica marcado pela reafirmao do Estado de bem-estar social

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    em suas funes interventoras e compensatrias, concomitantemente necessria aproximao do Estado e dos partidos polticos profissionais com os movimentos sociais e as iniciativas cidads, representaria um passo necessrio resoluo da atual crise socioeconmica, sem abandonar-se o universalismo moral prprio da modernizao ocidental e base para a autoconstituio e para a evoluo de nossas democracias, o que tambm implica no reforo da prxis poltica enquanto elemento fundamental para a evoluo das sociedades democrticas.

    Reformismo radical contra a burocracia e o laissez-faire: por uma democracia ampliada

    Desde os seus primeiros textos, ao tratar do dficit democrtico do projeto de Estado de bem-estar social, Habermas defendia que a superao tanto do carter tecnocrtico do poder administrativo-partidrio quanto da subverso da esfera pblico-poltica somente poderia ser realizada por meio da radicalizao dos processos polticos mais democracia poltica, por conseguinte, seria a soluo para a despolitizao crescente das esferas pblicas democrticas contemporneas, correlatamente aproximao dos partidos polticos profissionais e das administraes pblicas aos anseios e aos argumentos normativos oriundos dos movimentos sociais e das iniciativas cidads prprios de uma sociedade democrtica ou em vias de democratizao. Nesse sentido, o diagnstico weberiano do processo de modernizao ocidental, que apontava para a crescente burocratizao da vida pblica correlatamente ao solapamento da esfera pblica democrtica por causa da tecnocracia e da hegemonia dos partidos polticos profissionais, bem como pela sua (da esfera pblica) determinao frrea pela mdia de massas, diagnstico esse que o ponto de partida da teoria da modernidade de Habermas, seria resolvido exatamente pela nfase em uma poltica forte, marcada pelo contato estreito entre administraes e partidos polticos com os movimentos sociais e as iniciativas cidads, estendendo, por conseguinte, a prxis poltica para todas as esferas da sociedade, levando a uma problematizao abrangente acerca de todas as esferas

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    dessa mesma sociedade. Com efeito, o reformismo radical encontrava aqui o seu sentido. Ele diz:

    O nico modo que eu vejo levar transformao estrutural da conscincia em um sistema organizado pelo Estado de bem-estar autoritrio o reformismo radical. O que Marx chamou de atividade crtico-revolucionria deve ser entendido hoje neste sentido. Isso significa que ns devemos promover reformas para clarear e publicamente discutir objetivos, mesmo e especialmente se eles tm consequncias que so incompatveis com o modo de produo do sistema estabelecido2.

    Como se percebe pela passagem, o carter autoritrio do Estado de bem-estar social, que Habermas tematiza incansavelmente desde Mudana Estrutural da Esfera Pblica at Direito e Democracia, caracteriza-se pelo distanciamento e pela sobreposio das administraes estatais e dos partidos polticos em relao massa da populao, seja por meio da tecnocracia, seja por meio da subverso da esfera pblico-poltica. Com isso, arrefecido, no seio da prpria poltica democrtica, certo carter conservador em relao s vozes das ruas, ecoadas por movimentos sociais e por iniciativas cidads os mais diversos, possibilitando-se, assim, entre outras coisas, a legitimao do sistema econmico por meio da assimilao das massas no prprio sistema (consumismo, clientelismo e trabalho assalariado), alm da monopolizao da vida poltica pelos partidos polticos profissionais e da centralizao da dinmica poltica dentro dos legislativos e das administraes pblicas hegemnicas em cada momento, imunizados e arredios a um contato mais estreito com movimentos sociais e iniciativas cidads. E isto que precisaria ser combatido: o solapamento da democratizao poltica do poder administrativo-partidrio enquanto um dos problemas mais graves das democracias contemporneas. Ora, notrio que este reformismo radical conduz a uma problematizao sociopoltica abrangente, que se estende para alm da esfera burocrtico-administrativa, adentrando, por conseguinte, na prpria esfera econmica. Com efeito, na continuao desta passagem, Habermas chama ateno para o fato de que a

    2 HABERMAS, 1970, p.49; grifos meus.

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    legitimidade de um sistema econmico no pode ser resumida ao crescimento da produtividade e ao aumento do bem-estar material que ele propicia (e no grau em que o propicia), mas viabilidade e efetividade dos processos democrticos tomados nos mais diversos horizontes da sociedade e no apenas restritos, portanto, ao mbito da esfera poltica. Quer dizer, processos amplos de democracia, que atingem tambm a esfera econmica.

    A superioridade de um modo de produo em relao a outro no pode tornar-se visvel sob as condies estruturais dadas da tecnologia e da estratgia militar, enquanto o crescimento econmico, a produo de bens de consumo e a reduo do tempo mdio de trabalho em resumo, progresso tcnico e bem-estar privado so os nicos criteria para a comparao de sistemas sociais competitivos. Contudo, se ns no consideramos insignificantes os objetivos, as formas e os contedos da vida comunal e social humana, ento a superioridade do modo de produo pode apenas ser medida, nas sociedades industriais, no que diz respeito ao potencial que ele possibilita para uma democratizao dos processos de tomada de deciso em todos os setores da sociedade3.

    importante mencionar que Habermas tem em mente, nesse contexto dos anos 1960 e como caminhos da modernizao, tanto o capitalismo ocidental (o padro das sociedades industriais desenvolvidas, em particular) quanto o socialismo real a crtica habermasiana ao solapamento dos processos de democratizao poltica do poder, nesse sentido, pode ser estendida tambm a este ltimo. Um comentrio feito pelo autor ao conceito de liberdade poltica defendido por Hannah Arendt pode auxiliar a entender isso. Na seo dedicada a ela, em Perfis Filosfico-Polticos, Habermas afirma que precisamente aquele vetusto conceito de liberdade poltica, legado pela tradio grega e to apreciado e ardentemente defendido por Arendt, cujo sentido estava em que a liberdade somente torna-se efetiva quando da participao cidad ativa nos assuntos pblicos, que levaria a aguar o olhar para o mais atual dos perigos, a saber: para a conciliao, tanto no capitalismo quanto no socialismo,

    3 HABERMAS, 1970, p.49; os grifos so meus.

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    entre bem-estar material e solapamento da democracia poltica. De fato, aquele conceito de liberdade poltica alertaria

    [...] para o perigo de que a revoluo possa trair sua inteno propriamente dita quando aparentemente est colhendo xitos. Tanto no Leste quanto no Ocidente o impulso revolucionrio inicial se esgota nos objetivos de uma eliminao eficaz da misria e na manuteno administrativa de um crescimento econmico isento de conflitos sociais. Tais sistemas podem estar estruturados como democracias de massa sem por isso garantir nem sequer um mnimo de liberdade4.

    Por isso, a temtica da emancipao sociopoltica adquire nova tnica em Habermas. Ela j no pode, por causa dessa sui generis associao, prpria das sociedades industriais desenvolvidas, entre desenvolvimento econmico e solapamento do processo de democratizao poltica, ser entendida, em primeira linha, como resoluo da pobreza material, seno que aponta para a democratizao do poder como o seu objetivo fundamental (e englobando aquele outro objetivo).

    Quando mais se consolida, nas sociedades desenvolvidas, a possibilidade de conciliar a represso com o bem-estar, isto , de satisfazer as demandas que se fazem ao sistema econmico sem necessidade de satisfazer as demandas genuinamente polticas, tanto mais se desloca o acento da eliminao da fome emancipao5.

    Ora, a prpria nfase, que defendi em minha tese doutoral, em um dficit democrtico do projeto de Estado de bem-estar social, que Habermas tematiza insistentemente, denota essa percepo de que, nas democracias de massa ocidentais (em particular, como acredita Habermas, nas sociedades desenvolvidas), a pobreza material teria sido eliminada ou diminuda sensivelmente correlatamente ao engessamento do processo de democratizao poltica do poder. Inclusive, nesse contexto, no haveria um nexo automtico entre a

    4 HABERMAS, 1986, p.204. Conferir ainda em: WELLMER, 2001, p.99.

    5 HABERMAS, 1986, p.328-329. Conferir ainda em: MACCARTHY, 2001, p.298-299; HONNETH, 2007, p.129-148.

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    resoluo do problema da pobreza material e a consolidao de processos democrticos na esfera do poder poderia haver democracia social, ou um grau considervel de justia social, sem que houvesse concomitantemente a consolidao da democracia poltica. A emancipao significaria, em tal situao especfica, [...] uma transformao participativa nas estruturas de deciso6. Note-se isso muito importante para meu argumento que as estruturas de deciso necessitadas de democratizao so mais abrangentes do que as estruturas administrativo-legislativas.

    A questo fica mais evidente na retomada, por Habermas, logo no incio de Direito e Democracia7, de uma sua afirmao feita em Teoria e Prxis. Esta passagem faz referncia quele argumento, tecido antes, de que tanto o capitalismo ocidental quanto o socialismo real seriam marcados por um impressionante processo de crescimento econmico, concomitantemente consolidao de um complexo monetrio-administrativo de carter totalizante, que determinaria a realizao correlata de integrao social e de solapamento da democratizao poltica do poder. O socialismo real faria isso de um modo explcito e direto, por meio da nfase em uma ditadura de partido nico e em um Estado autoritrio; nas sociedades capitalistas desenvolvidas, esse processo de integrao social e de solapamento da democracia poltica aconteceria de modo indireto, atravs da consolidao de um carter tecnocrtico do Estado e dos partidos polticos profissionais e da desestruturao e da subverso da esfera pblico-poltica. Assim reza a passagem de Teoria e Prxis, retomada logo no incio de Direito e Democracia:

    Marx [...], como herana para o marxismo posterior, desacreditou to eficazmente, por meio da crtica ideolgica do Estado de direito burgus, a ideia da legalidade mesma e, por meio da dissoluo sociolgica da base dos direitos naturais, a inteno do direito natural enquanto tal que, desde ento, o liame entre direito natural e revoluo foi desfeito. Os partidos de uma guerra civil internacionalizada dividiram o legado de

    6 HABERMAS, 1986, p.331. Conferir ainda em: WELLMER, 2001, p.69-72.

    7 HABERMAS, 2003a, p.12-13.

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    um modo fatalmente unvoco: uma parte recebeu a herana da revoluo; a outra, a ideologia do direito natural8.

    Na tradio terico-poltica do liberalismo clssico, retomada pelo neoliberalismo, os direitos individuais de carter negativo e centralizados no conceito de propriedade lockeano dariam o tom da prxis terico-poltica; no marxismo, a revoluo contra o Estado de direito burgus seria a tnica. Ambas as posies separariam direitos fundamentais e democracia, no sentido de solaparem processos amplos de democratizao. No primeiro caso, ter-se-ia uma reduo desta ltima como forma de proteo daqueles direitos, de modo a afirmar-se um Estado guarda-noturno e uma esfera econmica autorreferencial, arredia no apenas ao controle poltico, mas tambm socializao, marcada pelo individualismo possessivo; no segundo caso, ter-se-ia uma radicalizao da revoluo contra o sistema dos direitos, na medida em que a ditadura do partido nico contrape-se democratizao das estruturas de poder, blindando o Estado e a poltica contra a democracia de base.

    Com isso, o socialismo real, que ficou com a herana da revoluo, destruiu os direitos em nome dela; e o liberalismo, legatrio do direito natural, travou a revoluo (entendida enquanto democratizao poltico-econmica progressiva) em nome dos direitos. Ora, o que vem a ser isso? No contedo normativo das revolues modernas em especial naquela que se tornou o paradigma da modernidade poltica, isto , a Revoluo Francesa, estilizada em suas duas cartas magnas: Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado (1786) e Constituio Francesa (1791) , a emancipao humana implicaria uma revoluo poltica e social: progressiva democratizao das estruturas de poder e equalizao das condies sociais e, com isso, das hierarquias (ou do status quo) entre os cidados. E tais revolues estariam justificadas tanto pela percepo do carter histrico e classista das instituies e das hierarquias sociais quanto pela universalizao dos direitos. O liame entre direito natural e revoluo, portanto, apontava para um processo correlato de universalizao dos direitos e de democratizao do poder poltico e

    8 HABERMAS, 1987, p.116; os grifos so meus.

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    equiparao das condies sociais entre todos ou seja, para uma democracia ampliada, em termos polticos, socioeconmicos e culturais.

    Pois bem, como quer Habermas, da compreenso da modernidade por liberais e socialistas exatamente o nexo interno entre direitos naturais e revoluo que foi perdido, isto , o ideal de uma progressiva democratizao poltica do poder e da vida social foi parcialmente assumido pelos dois grupos, mas apenas no que diz respeito ao quesito da integrao material. No caso dos socialistas, de um modo geral, a democracia burguesa geralmente foi entendida pura e simplesmente como superestrutura calcada na reproduo do domnio de classes originada da esfera econmico-social, ao passo que, no caso dos liberais (ao estilo lockeano), a defesa dos direitos individuais fundamentais, baseados na promoo do bourgeois, apontava para uma concepo reducionista dos direitos, que conduziria ao estabelecimento de uma concepo negativa de poltica e a um Estado restrito funo de guarda-noturno, com a primazia do laissez-faire econmico (os direitos individuais seriam erigidos contra a poltica e contra o Estado). Assim posto, no caso do liberalismo, a concepo restritiva dos direitos descambaria para o conservadorismo poltico e para a reduo da esfera econmica ao laissez-faire e ao individualismo possessivo, que deslegitimariam tanto a possibilidade de a sociedade influir politicamente sobre si mesma quanto o ideal de socializao e de equalizao econmica para todos, ao passo que, no caso do socialismo, a evoluo poltica democrtica seria destruda pela nfase na ditadura do partido nico.

    Desse modo, o legado do socialismo e do liberalismo teria sido o da dissociao entre democracia social e democracia poltica, isto , eles teriam conquistado altos patamares de desenvolvimento material correlatamente ao solapamento do processo de democratizao poltica do poder (e no meramente do poder estatal). Em um e outro caso, processos amplos de democracia so impossibilitados, por causa da subsuno da sociedade civil frente exagerada importncia das instituies tecnocrticas e dos partidos burocratizados e mesmo, ainda no caso do liberalismo, pela autorreferencialidade da economia, que no poderia sofrer interveno de fora, a partir de mecanismos

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    polticos, seno que, dotada de uma lgica prpria, no-poltica e no-normativa, travaria o alcance da esfera poltica e ficaria como que imune aos interesses generalizveis advindos do social.

    Ao retomar aquela passagem no contexto de Direito e Democracia, Habermas tem ante seus olhos o ocaso do socialismo real, o que denota, de maneira evidente, o fracasso do partido perdedor: ele no soube integrar democraticamente a sociedade; ele socializou a produo, mas blindou o poder poltico-administrativo desses mesmos processos de socializao democrtica por isso, seu ideal morreu com ele. Mas Habermas, por outro lado, tem diante de si os dficits de um processo de modernizao econmico-social que estaria pondo em perigo a integrao social das democracias do Ocidente e, na verdade, da sociedade integrada mundialmente em termos de globalizao econmica. Com efeito, neste segundo caso, a dcada de 1990 a dcada de uma consolidada desestruturao do Estado de bem-estar social e de uma hegemnica globalizao econmica, s quais o referido autor faz meno, com grande preocupao, no contexto da retomada, em Direito e Democracia, daquela passagem de Teoria e Prxis.

    Em virtude disso, o partido vencedor o Ocidente capitalista e o liberalismo poltico seu arauto no pode comemorar demasiado o seu triunfo frente ao socialismo real; e no o pode pelo fato de que, tambm neste caso, a dissociao entre desenvolvimento econmico e democratizao poltico-social imprime a marca da atualidade para diagnsticos marxistas-socialistas que j beiram dois sculos: os fenmenos de pobreza material e de solapamento da democracia poltica, como j acusava o marxismo, prejudicam severamente processos efetivos de promoo da dignidade humana de amplas parcelas da populao e tambm imprimem a marca da tragdia esfera poltica, que, por meio de um conservadorismo mesquinho, trava os processos poltico-sociais de emancipao em favor do status quo9. Nesse caso, a vitria do Ocidente liberal-capitalista frente ao socialismo no pode fazer esquecer que aquele possui problemas especficos que no so eliminados pelo fim do socialismo real a

    9 FLICKINGER, 2003, p.11-15.

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    crise do Estado de bem-estar social, a falncia da sociedade do trabalho e a globalizao econmica desigual chamam a ateno para o fato de que, tambm no Ocidente, a dissociao entre progresso econmico-social e democracia poltica faz-se presente em alguma poderosa medida.

    Esse dado muito importante. Em uma entrevista de meados da dcada de 1980, no que diz respeito crise do Estado de bem-estar social e falncia da sociedade do trabalho, Habermas esclarecia que um duplo desafio colocava-se, naquele contexto, a uma prxis poltico-democrtica emancipatria: de um lado, radicalizao dos processos de democratizao das estruturas de poder poltico; de outro, a extenso desses processos democrticos ao mbito do mercado de trabalho.

    O problema parece ser, na verdade, o de como seria possvel expandir amplamente as capacidades de auto-organizao dos mbitos autnomos do pblico, de forma que os processos de formao da vontade objetivos de um mundo vital orientado pelo valor de uso limitem os imperativos sistmicos do poder econmico e do aparato do Estado [...]. No consigo imaginar como se pode fazer isso sem uma abolio do mercado capitalista de trabalho e sem uma implantao democrtica e radical dos partidos polticos em seus mbitos do pblico10.

    Em relao ao segundo ponto, isto , aproximao por meio de focos de democracia de base entre sociedade civil, seus movimentos sociais e suas iniciativas cidados, e os partidos polticos profissionais, a questo-chave consistiria em evitar que o dficit democrtico do projeto de Estado de bem-estar social, que fundado exatamente no engessamento tecnocrtico da prxis poltica, na conquista de lealdade da populao ao e por parte do sistema administrativo, emperre o controle e a influncia democrticos da sociedade sobre si mesma, substituindo a participao popular efetiva pela tecnocracia e pelos partidos polticos. Em uma era de poltica inteiramente secularizada, segundo Habermas, somente processos de democracia radical podem garantir a legitimidade e o sustento do poder partidrio-

    10 HABERMAS, 1997, p.221-222.

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    administrativo, bem como a viabilidade da prpria evoluo social: a democracia, na verdade, existe por causa da interrelao entre as vozes e os argumentos normativos das ruas em sua ligao com as instituies, e no apenas por causa das instituies burocrticas, administrativas e partidrias, na medida em que estas, sem as vozes e a participao das ruas, no podem garantir a efetividade da democracia, que uma questo de poltica, de participao poltica.

    Desse modo, no que diz respeito crise do Estado de bem-estar social, processos de democracia radical poderiam colocar em novas bases a prpria prossecuo da modernizao econmico-social, que e essa a grande preocupao de Habermas tem acontecido de modo praticamente autnomo ao controle democrtico. A crise do processo de modernizao, em algum aspecto poderoso, uma crise de ausncia de radicalidade democrtica nos procedimentos polticos de tomada de deciso, o que refora, direta ou indiretamente, tanto a autonomia das instituies e dos partidos polticos profissionais (que acabam sendo influenciados preponderantemente pelo poder de classe, de modo a transformar a poltica em refm do dinheiro) quanto o status quo de uma sociedade desigual e profundamente dividida e que volta a enfrentar tal problema.

    Em relao ao primeiro ponto, a abolio do mercado de trabalho capitalista como condio de uma extenso dos procedimentos democrticos esfera econmica, para alm da esfera administrativa, soa deveras instigante. O que ela quer significar? Instaurao do comunismo no pode ser, na medida em que Habermas no acredita que a socializao pura e simples dos meios de produo possa resolver os dficits ligados modernizao econmica para no se falar de todos os problemas poltico-econmicos enfrentados, nesse quesito, pelo socialismo real, que no podem ser desconsiderados. De outro lado, entretanto, perfeitamente claro que a crise da sociedade do trabalho (em seu ideal de garantir o pleno emprego) subverte o sentido da cultura produtivista e meritocrtica que esteve por trs da programtica do Estado de bem-estar social e que j era o fundamento do modelo liberal de sociedade e de homem.

    Nesse caso, na medida em que o trabalho assalariado j , no contexto das sociedades industrializadas desenvolvidas, um bem

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    escasso, precisa ser reconfigurada toda a cultura produtivista que embasa o modelo de modernizao econmico-social em sua relao com a democracia de massas e isso implica que os programas de seguridade social, ainda que importantes, no sejam suficientes. Ora, a extenso de processos de democracia econmica para o mbito da esfera produtiva aponta, por exemplo, para formas solidrias de cooperao, para a dissociao entre renda e trabalho, consumo e trabalho, entre outros. No discutirei possveis alternativas de um modo mais especfico. O que me interessa salientar que, de acordo com Habermas, a crise da sociedade do trabalho escancara, radicaliza a premncia de formas democrticas de gesto da produo e processos de integrao social que no mais estejam calcados de maneira pura e simples na cultura produtivista e individualista liberal uma forma nova de distribuio da riqueza tambm encontraria, aqui, o seu sentido. Tal ponderao torna-se mais clara com uma passagem de Direito e Democracia, na qual o autor, ao recusar a viabilidade de uma volta, conforme defendido pelo neoliberalismo como forma de superao da crise da sociedade do trabalho, a certos princpios de laissez-faire, acusa a social-democracia de ter reduzido a integrao social exatamente promoo do direito privado.

    correto afirmar que o Estado de bem-estar social no deve reduzir a garantia da emergncia da autonomia privada s realizaes de seguro e de previdncia por parte do Estado; e de nada adianta a evocao da compreenso da liberdade do Ocidente liberal. Pois a crtica fundamentada, dirigida autocompreenso terica do direito formal burgus, probe o retorno ao paradigma liberal do direito. De outro lado, as fraquezas do Estado de bem-estar social poderiam ser explicadas pelo fato de que ele ainda est muito preso a essa crtica e, desse modo, s premissas redutoras do direito privado11.

    Ora, precisamente o reducionismo do direito privado liberal que leva quela dissociao entre desenvolvimento econmico e democracia radical, na medida em que concebe a esfera econmica

    11 HABERMAS, 2003b, p.145; o grifo de Habermas. Conferir ainda em: HONNETH & HARTMANN, 2009, p.412-419.

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    no apenas como central em termos de evoluo social (o que, de fato, ela ), mas tambm como estando determinada fundamentalmente pelo direito privado. Com isso, a esfera econmica, enquanto esfera privada, seria despolitizada e, alm disso, perpassada pelo individualismo e pelo produtivismo, calcados na figura do bourgeois. As consequncias mais imediatas, da advenientes, estariam em que a prxis democrtica seria afastada da vida econmica, correlatamente a quaisquer ideais de socializao da produo, que, na argumentao liberal, poriam em perigo a liberdade individual, a propriedade individual (propriedade, alis, entendida basicamente enquanto individual), determinadas basicamente pela meritocracia do trabalho. Mas por que a socializao est em contraposio pura e simples propriedade individual? Ou, por outras palavras: a economia capitalista avessa democracia, pelo