A Certeza Da Influência

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7/26/2019 A Certeza Da Influência http://slidepdf.com/reader/full/a-certeza-da-influencia 1/13 A certeza da influência DA REDAÇÃO 08.12.96  A Folha realizou entrevistas por escrito com os três principais representantes do concretismo, Décio Pignatari, Haroldo de Campos e  Augusto de Campos. Nas respostas -as perguntas foram as mesmas para todos-, eles conceituam o movimento, comentam -e criticam- as avaliações que receberam e analisam a poesia brasileira atual. * Folha - Qual a mais sucinta definição da poesia concreta? O que faz um poema ser concreto e não, por exemplo, expressionista, dadaísta, surrealista etc? Um poema concreto "stricto sensu" é necessariamente visual? Décio Pignatari - Em 1907, Picasso conclui o quadro sobre aquelas senhoritas da rua Avignon, em Barcelona. Imagine-se -40 anos depois- alguém perguntando: "M. Picasso, que é cubismo?". Uma das respostas possíveis, dentre as bem-educadas, poderia ser: "Connais pas". Ou então: "Pergunte ao Raynal (Maurice). Ou ao Read (Herbert). Ou (daqui a alguns anos), ao Greenberg (Clement)".  Aos interessados de verdade (que não constituem multidão), lembro que há mais de três décadas pode ser encontrado na praça o volume "Teoria da Poesia Concreta" (Brasiliense), devidamente atualizado, de nossa autoria. Quanto à segunda pergunta dentro da pergunta: por que Brasília não é Nova York? Quanto à terceira: a ênfase inicial no visual deveu-se à idéia de assinalar a ruptura com a unidade-padrão tradicional da poesia, o verso. Visual básico: "lettering & layout". Acrescentem-se: voz, som, cor, movimento, materialidade real (objetos, esculturas), materialidade virtual (holografia), elementos não-verbais (icônicos). Haroldo de Campos - A melhor e mais sintética definição de "poesia concreta" (correspondente à fase "geométrica" ou, como se pode reconhecer a posteriori, "minimalista" do movimento, aquela que traduz na prática as propostas do plano piloto de 58) é a formulada por Octavio Paz em "Transblanco" (Siciliano, págs. 110-111): "Os senhores descobriram -ou inventaram- uma verdadeira topologia

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A certeza da influência 

DA REDAÇÃO

08.12.96

 A Folha realizou entrevistas por escrito com os três principaisrepresentantes do concretismo, Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos. Nas respostas -as perguntas foram as mesmaspara todos-, eles conceituam o movimento, comentam -e criticam- asavaliações que receberam e analisam a poesia brasileira atual.*Folha - Qual a mais sucinta definição da poesia concreta? O que fazum poema ser concreto e não, por exemplo, expressionista, dadaísta,surrealista etc? Um poema concreto "stricto sensu" é necessariamentevisual?Décio Pignatari - Em 1907, Picasso conclui o quadro sobre aquelassenhoritas da rua Avignon, em Barcelona. Imagine-se -40 anosdepois- alguém perguntando: "M. Picasso, que é cubismo?". Uma dasrespostas possíveis, dentre as bem-educadas, poderia ser: "Connaispas". Ou então: "Pergunte ao Raynal (Maurice). Ou ao Read (Herbert).

Ou (daqui a alguns anos), ao Greenberg (Clement)". Aos interessados de verdade (que não constituem multidão), lembroque há mais de três décadas pode ser encontrado na praça o volume"Teoria da Poesia Concreta" (Brasiliense), devidamente atualizado, denossa autoria.Quanto à segunda pergunta dentro da pergunta: por que Brasília nãoé Nova York?Quanto à terceira: a ênfase inicial no visual deveu-se à idéia de

assinalar a ruptura com a unidade-padrão tradicional da poesia, overso. Visual básico: "lettering & layout". Acrescentem-se: voz, som,cor, movimento, materialidade real (objetos, esculturas), materialidadevirtual (holografia), elementos não-verbais (icônicos).Haroldo de Campos - A melhor e mais sintética definição de "poesiaconcreta" (correspondente à fase "geométrica" ou, como se podereconhecer a posteriori, "minimalista" do movimento, aquela quetraduz na prática as propostas do plano piloto de 58) é a formulada porOctavio Paz em "Transblanco" (Siciliano, págs. 110-111): "Ossenhores descobriram -ou inventaram- uma verdadeira topologia

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poética. À parte dessa função de exploração e invenção, a poesiaconcreta é por si mesma uma crítica do pensamento discursivo e,assim, uma crítica de nossa civilização. Essa crítica é exemplar. (...) Anegação do discurso pelo discurso é talvez o que define toda a grande

poesia do Ocidente, desde Mallarmé até nossos dias. (...) A poesiamoderna é a dis-persão do curso: um novo dis-curso. A poesiaconcreta é o fim desse curso e o grande re-curso contra esse fim".Em outros termos, a poesia concreta seria a réplica "verbivocovisual",numa língua alfabética, da poesia ideogrâmica chinesa, re-imaginadae atualizada no horizonte da modernidade. O sinólogo e comparatistaEugene Eoyang (Bloomington, Indiana) pôde por isso escrever: "Ochinês é, de todas as línguas modernas, a mais concreta. O que o

poeta concreto contemporâneo empenha-se em realizar éprecisamente o que muitos poetas da tradição chinesa efetuaramnaturalmente por séculos". Augusto de Campos - Tecnicamente, poesia concreta é adenominação de uma prática poética, cristalizada na década de 50,que tem como características básicas: a) a abolição do verso; b) aapresentação "verbivocovisual", ou seja, a organização do textosegundo critérios que enfatizem os valores gráficos e fônicosrelacionais das palavras; c) a eliminação ou rarefação dos laços dasintaxe lógico-discursiva em prol de uma conexão direta entre aspalavras, orientada principalmente por associações paronomásticas.Tal prática concentra e radicaliza propostas anteriores quepercorreram difusamente os movimentos de vanguarda do início doséculo (futurismo e dadaísmo, em especial), retomados nos anos 50com mais rigor construtivista. Essa é mais ou menos a fisionomia comque nasceu a poesia concreta, tal como praticada pelos brasileiros dogrupo Noingandres e por Eugen Gomringer (este, menos interessado

na dimensão sonora).Posteriormente, ela abriu espaço para outras modalidades de poesiavisual, que passaram a incluir elementos não-verbais (desenhos,fotos, grafismos). A poesia concreta brasileira, que consubstanciouuma das práticas mais ortodoxas e construtivistas, aventurou-setambém por essas sendas (ex: os poemas sem palavras -os"semióticos" de Pignatari ou o meu "olho por olho", experiências dosanos 60), diferentemente do caso de Gomringer, o qual, que eu saiba,

se manteve sempre fiel à ortodoxia da fase inicial.Folha - Haroldo de Campos, em entrevista ao programa "Roda Viva",

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na TV Cultura de São Paulo, optou por uma definição ampla, segundoa qual toda grande poesia seria concreta. Isso não é muito genérico,tornando o movimento da poesia concreta sinônimo de algo como"movimento da grande poesia em geral"?

Décio - Parafraseando Borges: todo movimento poético inovador criaos seus próprios precursores. A poesia concreta utilizou aportestecnológicos e radicalizou vetores da arte literária experimental destesúltimos cem anos (em 1997 celebra-se o centenário de "O Lance deDados", de Mallarmé). Em função dessa operação, criou também umcrivo seletor das manifestações poéticas do passado. Dessa forma,pode-se falar não de concretismo, mas da concretude de certos lancesda produção literária passada ou contemporânea.

Folha - Segundo sua definição restrita, um poema concreto pode serruim, ou o rótulo já garante sua qualidade? Um mau poema concreto énecessariamente melhor, mais moderno, mais afinado com a históriado que um bom soneto, ambos escritos hoje?Décio - Qualquer obra específica, mesmo quando derivada de um bomprograma ou boa proposta, pode ser ruim. Trata-se do processo depassagem de uma estrutura para uma conjuntura, de um desgaste da"tradução" de uma informação de alto repertório para outra derepertório restrito.O mundo está cheio de medíocres obras simbolistas, cubistas,dodecafônicas, neoplasticistas, concretistas, cinemanovistas,nuvelevaguistas, eletroacústicas, cagistas, surrealistas. Atenção,porém: é preciso estar atento e forte. Há casos de "naifs" devanguarda, de primitivos avançados, mesmo na área literária, quemerecem consideração. A própria poesia concreta pode apresentarum caso desses: trata-se de Ronaldo Azeredo, o Rousseau da poesiaconcreta (aos leigos: o Henri Rousseau, amigo dos cubistas, não o

grande pensador do Iluminismo francês). Aqueles que se classificamacima da mediocridade adoram (re) descobrir esses talentososmarginais.Prestam, em verdade, importante serviço cultural, mas não derivam asconsequências necessárias de seu entusiasmo e de suasdescobertas. Exemplo: os cineastas brasileiros se recusam a filmarroteiros elaborados por outros. Resultado: o Brasil não tem, nempreza, os roteiristas, em qualquer área. Transponha-se o fenômeno

para a MPB: ou o letrista-roteirista se mata (Torquato Neto), ou viracronista de jornal (Aldir Blanc). Mas o grande Orestes Barbosa é o

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patrono deles. Outro exemplo: as histórias em quadrinhos nãoavançam no Brasil porque não há roteiristas. E os cartunistas equadrinistas estão cada vez piores... Mas são coisas nossas os poetasmusicais: Noel, Maísa, Vinicius, Caetano, Chico. Até Jobim fez um

prodígio neste país de bacharéis e analfabetos: "Águas de Março". Alguém não se dispõe a contar a história dos nossos compositorespuros? Augusto - Um mau poema (concreto ou não) é um mau poema é ummau poema. Agora, as formas também se esgotam e se convertemem fórmulas. Há procedimentos da poesia concreta que já seexauriram e tendem à repetição. Mas ainda maior é a exaustão deformas e fórmulas do passado, que foram exercitadas ao longo de

muitos séculos pelos maiores poetas de todas as línguas. O soneto éuma delas. Quem o quiser praticar, hoje, tem que se medir com Dante,Camões, Shakespeare, Mallarmé, Rimbaud, Hopkins, FernandoPessoa, Augusto dos Anjos etc. etc. etc.Não há maior pecado para um poeta do que refazer em linguagemmedíocre o que já foi feito melhor por outros. Só o humor e ametalinguagem podem dar vida, hoje, a uma forma já tão recorrida eesquadrinhada. O soneto sob o signo da paródia. É o que eu chameide "soneterapia"... Ou, quem sabe, algum derradeiro sopro, algum"antique" reciclado em linguagem moderna, como os que contrafezCummings (um último competentíssimo competidor), desmontando arelojoaria do soneto com os seus deslocamentos sintáticos e as suasatomizações vocabulares. O soneto tem muito passado e poucofuturo.Por outro lado, é inegável que as estruturas formais propostas, não sópela poesia concreta, mas por toda a prática da poesia damodernidade, têm muito mais sintonia com a ambiguidade espaço-

temporal, os ritmos, os conceitos e as provocações da nossa era. Detodo modo, eu nunca preferiria um mau poema concreto a um bomsoneto. O difícil é encontrar um soneto escrito, hoje, com aoriginalidade que se requer de qualquer bom poema.Folha - A poesia concreta era a única opção historicamente certa ouhavia e há outras possibilidades igualmente válidas? Se valer aprimeira alternativa, então a poesia brasileira contemporânea seriamelhor do que as outras que não optaram por esse caminho? Caso

contrário, quais seriam as outras opções que teriam dado certo,inclusive no Brasil?

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Décio - "O gênio é um erro do sistema", disse Klee. Mas eu tenhoquase pronta uma quase-teoria dos Impulsos Criativos Contextuais(ICC), segundo a qual todo e qualquer indivíduo ou grupo podeotimizar a sua capacidade de competência e desempenho se os

tempos, os locais e as circunstâncias forem propícios. É uma espéciede teoria da anunciação-sem-deus: quando algo novo se revela, noespírito ou na técnica, as aves da criatividade voam pelas portas e janelas abertas da gaiola da ignorância e da conformância.Qual teria sido a outra opção para a bossa nova? Ou para Brasília?Ou para o Sputnik? Ou Pelé e o primeiro título mundial de futebol? Ouo Masp, o MAM, a Bienal, a Vera Cruz, o TBC (Teatro Brasileiro deComédia)? Ou a condessa Pereira Carneiro, o "JB", o Mário Faustino?

Ou a Cinemateca e o Festival Stroheim? Ou os primeiros sonseletroacústicos trazidos por Koellreuter? Ou a presença de Max Bill,Boulez, Calder? Ou Lúcio Meira e a indústria automotiva? Augusto - Seria pretensioso dizer que a poesia concreta era a únicaopção. Nem me cabe, como um dos protagonistas do movimento,fazer eu próprio esse tipo de avaliação ou de julgamento.É certo, porém, que a poesia concreta não nasceu por geraçãoespontânea ou mera idiossincrasia. Nem foi algo tão isolado. Aocontrário, foi um movimento internacional, translinguístico, que teveressonância em poetas de muitos países, do Ocidente ao Oriente. Anovidade é que os brasileiros estiveram, desde a primeira hora,envolvidos com essa experiência, como fundadores do movimento,que surgiu de uma necessidade histórica -a da retomada, na décadade 50, das propostas das primeiras vanguardas. A renovação da linguagem artística, operada entre o fim do século 19e o início deste, fora interrompida pela intervenção traumática dasduas grandes conflagrações mundiais. Após a Segunda Guerra houve

em todos os campos artísticos um movimento no sentido de recuperaraquelas propostas que o nazismo e o stalinismo haviam marginalizadocomo "arte degenerada" e "arte decadente". Em música, se deu areabilitação da Escola de Viena e da obra pioneira de Ives, Varèse eoutros, tendo o minimalismo radical de Webern como ponto de partida.Em artes visuais houve a retomada das propostas radicais da artenão-representativa.Em poesia cumpria resgatar a revolução iniciada por Mallarmé ("Un

Coup de Dés") e ampliada por Pound, Joyce, Stein, Cummings, Apollinaire e os movimentos de vanguarda das primeiras décadas.

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Tratava-se de prosseguir na desmontagem das estruturas verbais dodiscurso contratual, insuficiente para abranger o universo daimaginação e da sensibilidade. Desautomatizar a linguagem (a"revolução surrealista" deixara intactas as estruturas do discurso...) e

revivificar as palavras, a partir da sua materialidade elementar, visuale sonora. Sintonizar a prática poética com o nosso tempo, no limiar daera tecnológica. É possível que a própria "excentricidade" da poesiabrasileira em relação aos grandes centros universais nos tenha dadouma perspectiva diferenciada e peculiar, pois, na verdade, nos anos50, os poetas franceses e hispano-americanos continuavamsurrealistas, ignorando Mallarmé, e os norte-americanos, os "beat",também tendiam ao surrealismo, sem levar em conta o objetivismo de

Pound ou Cummings.Sem pretender que a poesia concreta tivesse sido o único caminho,não posso recusar a evidência de que demos uma contribuiçãooriginal, paradoxalmente mais avançada do que a de muitos outroscentros importantes, onde a consciência desses novos processospoéticos só se afirmaria no fim dos anos 60 e nem sempre com avitalidade do movimento brasileiro.Folha - Que poetas, hoje, de filiação não-concretista o sr. consideradignos de atenção?Décio - Antes da poesia, a prosa, essa infeliz ugandense damiserabilidade criativa brasileira. 1956: data de lançamento conjuntoda poesia concreta e de "Grande Sertão: Veredas", de GuimarãesRosa, artefatos espaciais, avançados da cultura brasileira, revoluçãoliterária na América Latina, abominados até hoje pelos nacionalóides,stalinistas ou não.Rosa safou-se via consumo da oralidade caipira e do anedótico de umamor gay no sertão do século passado. Ninguém aprendeu-lhe a lição

de fundo (Homero, Euclides, Joyce), excetuados os concretos, diretaou indiretamente trabalhando nas catacumbas da prosa brasileira,para preservar a linha-linguagem que vinha de Machado, Euclides,Oswald, Mário, a saber: a "proesia", das "Galáxias", de Haroldo;"Catatau", a melhor obra de Leminski; "O Mez da Grippe", de ValêncioXavier, o primeiro romance icônico brasileiro; os meus contos sobre aocultação do cadáver da estória, de "O Rosto da Memória", que inclui,de quebra, uma violenta peça teatral, "Aquelarre" (= campo do bode,

em basco = sabá de bruxas, entre nós, cf. Goya), e "Panteros", umromance que acaba no meio (os três últimos estão a merecer novas

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edições, devidamente corrigidas).Os poetas: a) coetâneos nossos, bem conhecidos, que aceitaram odesafio e abriram raia própria de performance, entre o verso, a poesiaconcreta e a poesia visual (Afonso Ávila, José Paulo Paes); b) poetas

da geração seguinte, a de Leminski, com versos recortados edecupados epigramaticamente, às vezes abeirando-se do que seriauma letra para música pop-brasileira (Sebastião Uchoa Leite, DudaMachado, Carlos Ávila, Antônio Risério); c) adeptos programáticos da"poesia visiva", como Sebastião Nunes; d) poetas de requintadametalinguagem hipotática, como Nelson Ascher; e) poetas de volátildiscurso logopaico, desenvolvendo o que denomino de "semânticamusical" (Carlito Maia, Marco Antônio Saraiva). Mas o levantamento

organizado da produção poética dos anos 80-90 está por ser feito.Haroldo - A "poesia concreta" é o caso-limite da poética damodernidade. Isto não implica uma consideração axiológica (um juízode valor), mas um critério histórico-literário, de evolução crítica deformas. Há poemas concretos de primeira linha, como também hádiluições frouxamente concretas, tanto no Brasil quanto nos váriospaíses para os quais o movimento se exportou.Por outro lado, há poetas de grande nível artesanal, como nossosaudoso companheiro Mário Faustino, que desenvolveram,contemporaneamente à "fase heróica" do movimento, uma poesia emversos de alta qualidade, só no detalhe afetada pelo repertório detécnicas da poesia concreta (a qual, sem a ela vincular-se, eleprestigiou e promoveu em estudo memorável).Folha - Na sua opinião o que ocasionou a dissensão neocroncretista? As divergências foram sobretudo ideológicas ou estéticas? Como o sr.avalia hoje a produção poética de Ferreira Gullar?Décio - Enigma. Hipóteses vagas. Quem sabia algo um pouco mais

sólido era Mário Faustino, que morreu pouco depois, sem deixardepoimento, que eu saiba. Mas o José Lino Grunewald, carioca dagema, pó-de-arroz das Laranjeiras, deu-me algumas dicas.

Claro, preciso informar que o Zé Lino considera brega e aventureiraqualquer pessoa que pinte no Rio em busca de praia ou empregopúblico ou notoriedade -ou tudo isso junto: maranhenses, baianos,americanos, paulistas, mineiros, paranaenses, gaúchos, gente dazona norte (Saenz Peña). Abria algumas exceções: Fritz Lang, Ênio

Silveira e -principalmente- Chaplin (que tem por superior a Eisenstein),

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Bergman (guru-mor dos seus anos de tenista do Fluminense) eGodard (graças a quem sorri do alto para Julio Bressane), se por alichegassem.Nunca me teve em altíssima conta, mas condescendeu em aceitar-

me, quando soube que, em 1944, no Amarelinho, eu adolescente,enquanto um crepúsculo parisiense caía sobre a avenida Rio Branco,tomava um solitário chope encantado, porque atrás de mim, emanimada mesa, estavam Almirante, Lamartine Babo e Zezé Fonseca.O Zé Lino jamais vai à praia, ponto de honra. Tal como o fazia NelsonRodrigues, tal como fazia Mário Reis, seus amigos. Em resumo, disseo Zé Lino: "Olhe, Décio, enquanto não acabar esse flaflu entre Rio eSão Paulo, a cultura brasileira não prospera".

Folha - Quais as críticas mais pertinentes feitas ao movimentoconcretista e ao sr. em particular? O sr. reveria alguma posiçãosustentada taticamente pelo movimento? O sr. não teme que ocorracom o concretismo o mesmo que aconteceu com outras vanguardas,ou seja, tornar-se apenas um marco histórico e ter sua produçãopoética apenas por isso avaliada?Décio - As críticas sempre foram impertinentes: alienada, formalista,elitista. Mas os ectoplasmas desses nosferáticos vagabundos docarreirismo tupiniquim desfaziam-se no ar à luz do nascer do sol, anteo corpo da virgem impoluta chamada poesia concreta.Nada posso fazer para impedir esse lastimável congelamento históricoda fervente e fervorosa revolução que foi e é a poesia concreta.Consola-me saber que, em 2006, talvez possa haver mais umacomemoração. Uma coisa é certa: grandes eventos estão sendopreparados para a comemoração dos cem anos de "Um Lance deDados", de Mallarmé, no ano próximo. Não é extraordinário que sefesteje o centenário de UM poema?

Haroldo - Com raras e notáveis exceções (as críticas de MárioFaustino e Mário Pedrosa, por exemplo; a recepção sensível deManuel Bandeira), a poesia concreta, em sua "fase heróica" (e mesmoainda hoje), tem sido enfocada por críticos conservadores,esteticamente reacionários (Wilson Martins e Merquior são exemplostípicos), que a abordaram de maneira preconceituosa e destituída deinteresse heurístico.Mesmo uma pessoa de boa vontade, como Antonio Houaiss, num

primeiro momento, deixou-se assaltar de espanto apocalíptico diantedo movimento que eclodia. Em seu estudo "Sobre Poesia Concreta",

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apresentado primeiro como um elenco de dúvidas e objeções, quandoda conferência de Décio Pignatari na sede da UNE (Rio de Janeiro,1957), deixa-se levar por um equívoco de audição.Pretende que Pignatari teria postulado que a poesia concreta visava a

"provocar um enxame de significações cerebrais". O que Pignataridisse, e Houaiss ouviu mal, foi: a poesia concreta não pretendeprovocar "enxames de sentimentos inarticulados" ("swarms ofinarticulate feelings"), expressão de Eliot, usada por Hugh Kenner paradistinguir entre a poesia do próprio Eliot (mais palatável para um leitorà busca do onírico e do emotivo) e a de Pound, não "inspirada", que"pediria, antes, atos complexos de discernimento" do que a "imolação"sentimental do leitor ("The Poetry of E.P.", 1951, págs. 18-20).

Os poetas concretos teorizaram a sua prática e com ela aprenderam. À falta de críticos aptos a compreendê-los, tiveram de produzir ametalinguagem necessária ao seu entendimento. Por outro lado, ummanifesto é um elenco de pressupostos que a prática ora ratifica, oraretifica, não uma tábua de dogmas... Assim, para nós, no tempo, o"plano-piloto" (síntese do que pensamos e escrevemos a respeito dofuturo da poesia de 1950 àquela data -veja-se a "Teoria da PoesiaConcreta", 1965) foi-se desdobrando na prática e sendo por elacriticado, num movimento dialético, que nos levou, a cada um de nós,com as diferenças respectivas, às etapas posteriores de nossotrabalho poético, até o dia de hoje. Aprendemos de nós mesmos, nãoda miséria da crítica...Mas olhe: o caso da poesia concreta não é o único em nossa literaturacontemporânea. A recepção inicial de Guimarães Rosa (cuja obra-ápice, o "Grande Sertão", publica-se no mesmo ano em que foilançada em São Paulo a poesia concreta, 1956) foi controversa.Conforme pesquisa efetuada em recente estudo -excelente pelo

levantamento feito e por sua respectiva avaliação crítica-, no períodode 1956 e 1958-60, se o livro de Rosa foi elogiado por críticos eescritores, como Antonio Callado, Paulo Rónai, Afrânio Coutinho,Cavalcanti Proença, Oswaldino Marques, Tristão de Ataíde, PedroXisto Euryalo Canabrava e Antonio Candido, foi também "duramentecriticado por Marques Rebelo, Adonias Filho, Ferreira Gullar, Ascendino Leite, Wilson Martins, Nelson Werneck Sodré e SilveiraBueno" (Ana Luiza Martins Costa, "Rosa, Ledor de Homero", Rio,

novembro de 1996; texto resumidamente apresentado no congressoda Abralic, em agosto deste ano).

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Mas, para escarmento, bastaria lembrar o truculento ataque de SílvioRomero (para muitos, nosso mais importante crítico e historiadorliterário do passado) a Machado de Assis, em 1897, no auge da glóriado autor de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881) e "Quincas

Borba" (1891) -obras, aliás, que o crítico sergipano consideravainumanas, carentes de comunicabilidade e de inteligibilidade, produtosnão da maturada mestria de um estilo único, mas efeitos fisiológicosda "gagueira", da "perturbação nos órgãos da palavra", que afetariaseu autor... Em suma, "verdadeiros abortos de uma imaginação semreal força criadora", segundo o obtuso juízo romeriano. Augusto - Existe, nas áreas mais conservadoras, uma certa tendênciapara procurar desmoralizar as vanguardas, caracterizá-las como

surtos transitórios de renovação e arquivá-las o mais rapidamentepossível numa gaveta, com uma rubrica, o que não passa de umaestratégia defensiva para exorcizar a sua presença incômoda e crítica.Mas as vanguardas, além de sua incidência histórica, nos deramMaiakóvski, Khliebnikov, Apollinaire, Huidobro, Pound, Gertrude Stein,Pessoa, Sá-Carneiro, Schwitters, Cummings, Oswald e Mário de Andrade etc. etc., para só falar de poesia. Não há melhor companhiado que essa. O que há para temer? Com a poesia concreta não há deser diferente. Se a nossa produção poética tiver valor, será avaliada,coletiva e individualmente, como a de todos os poetas que abriramcaminhos imprevistos para a poesia, participando dos movimentosartísticos de renovação do seu tempo. Se não, não.Folha - O sr. ainda se considera, em algum aspecto, concretista?Décio - Somatizei a poesia concreta. Às vezes, livro-me dela.Haroldo - Não faço poesia concreta, no sentido estrito da expressão,que designa o movimento concretista dos anos 50, há mais de 30anos.

Em 63, principiei a escrever minhas "barroquizantes" "Galáxias".Houve um câmbio de horizonte cultural, uma crise ideológico-cultural,a partir de meados dos anos 60, que, a meu ver, não mais tornoupraticável "programar o futuro", demandando uma poesia do presente,da "agoridade": o que eu chamo "poesia pós-utópica".Sobre o assunto, escrevi nesta Folha dois longos ensaios: "Poesia eModernidade 1 - Da Morte da Arte à Constelação"; "Poesia eModernidade 2 - O Poema Pós-utópico" ("Folhetim", 7 e 14/10/1984),

em diálogo com o livro de Octavio Paz "Los Hijos del Limo". Tratava-se de uma comunicação apresentada antes no México, num simpósio

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em homenagem aos 70 anos de Paz, promovido pelo InstitutoNacional de Bellas Letras. Remeto o leitor interessado emacompanhar minha argumentação a esse trabalho.Em síntese, diria que guardei, da poesia concreta stricto sensu, na

fase em que me encontro, pós-utópica, desde "A Educação dos CincoSentidos" (1985), o rigor, o resíduo crítico da utopia e a vocação paraa concreção em sentido generalizado, pelo trabalho sobre amaterialidade, o lado "palpável" dos signos, tão bem estudado napoética de Roman Jakobson.Nesse sentido geral -e a minha longa prática de tradutor criativo depoesia de variadas línguas e literaturas me autoriza a dizê-lo comconhecimento de causa-, só é poeta, em qualquer época e no âmbito

de qualquer escola, aquele que se volta para a materialidade sígnica,a "forma significante", na elaboração de seu poema. Na poesia, nãorevela -por exemplo- a dor real, a dor que o poeta "deveras sente".Importa sim a "dor ficta", a "dor fingida", vale dizer, formalmenteconfigurada nas palavras do poema. É o que soube ver, melhor doque ninguém, Fernando Pessoa, que também escreveu: "Tudo o queem mim sente está pensando". Augusto - Não costumo utilizar a expressão "concretista" (que melembra seita ou partido). Nos tempos heróicos preferia "concreto", queme parecia neutralizar um pouco o inevitável "ismo" que se cola aosmovimentos. A minha poesia tem um antes e um depois. Mas dequalquer forma a experiência da "poesia concreta" me marcouprofundamente. Não só ela, mas tudo o que decorreu dela, inclusive oestudo e a tradução de muitas poéticas e poetas, dos trovadoresprovençais aos russos modernos.Feliz ou infelizmente, a minha poesia de hoje (embora muito diferenteda que eu fazia nos anos 50) tem tudo a ver com a poesia concreta.

Há cinco anos só trabalho com computadores. Como observou opintor Waldemar Cordeiro, na arte concreta encontram-se ospressupostos formais da arte digital. A iconicidade e a mobilidade daprojeção de imagens na tela são muito mais compatíveis com omosaico espacial dos textos concretos do que com o ingurgitamentovisual dos textos discursivos.Nesse ambiente, e com os amplos recursos da editoração eletrônica,encontro o contexto ideal para desenvolver, agora com cores,

movimento, imagens e palavras combinados e ainda sonorizados, oprojeto de uma poesia "verbivocovisual", que imaginávamos há 40

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anos atrás, e que Mallarmé previra há um século. Assim, muitoembora eu nem saiba como classificar muitas das, digamos,"pesquisas poéticas" que estou fazendo, elas não existiriam sem aexperiência precedente da poesia concreta, que é, eu acredito, um

dos formantes básicos da linguagem poética de agora.Folha - Na sua opinião, quais os principais dilemas da poesiabrasileira atual?Décio - Nenhum dilema especial. A poesia brasileira é bastante livre ebastante fiel à tradição milenar da poesia: ela não dá dinheiro. A prosa dá dinheiro -e é uma droga. A prosa ficcional brasileira estáentre as mais frouxas e descaracterizadas do chamado mundocivilizado. O universo acadêmico é um dos grandes responsáveis por

esta situação.Um exemplo: o meu primeiro orientador, o mais que honesto AntonioCandido, nos anos 70, conseguiu dar um curso inteiro, de doissemestres, sobre o romance "Senhora", de José de Alencar.E um lembrete: somente nos fins dos anos 60, os departamentos deletras das universidades públicas admitiram nos seus currículos oestudo da chamada literatura moderna brasileira! Em 1968, haviagente obrigada a estudar Guerra Junqueiro (pobres letrasportuguesas)! Exatas, biomédicas e econômicas: os únicos setoresaceitavelmente sérios da universidade. Augusto -O principal (e não é apenas um problema brasileiro) é adessensibilização coletiva para com a poesia (e não só a poesia,também a música-pensamento, a "música contemporânea" emespecial, pois é deplorável reduzir a experiência da grande aventuramusical do nosso tempo apenas às obras de entretenimento).Lamentavelmente, de Camões a Cummings, lê-se muito pouco poesia.Esta só é assimilada mais amplamente no âmbito da música popular,

onde por vezes atinge notável sofisticação, mas onde também serestringe, quase sempre, a padrões convencionais, manietada pelosparâmetros comunicativos do gênero.Esse massacre da poesia, hoje reduzida a uma espécie de "reservaindígena" da sensibilidade, dá aos poetas uma enorme força ética,enquanto personagens marginalizados da resistência ao consumismoe às convenções, mas ao mesmo tempo os coloca numa situação dedesvalia e de indignidade talvez sem precedentes na história da

cultura humana. Ao poeta compete, pois, enfrentar o desafio de não desintegrar a sua

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7/26/2019 A Certeza Da Influência

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consciência crítica diante das pressões do consumo e doconservadorismo literário (que, entre nós, se expressam, mais do quetudo, pela tentativa de colocar entre parênteses a renovação dalinguagem do alto modernismo e das vanguardas). E responder

criativamente, como "antenas" sensíveis, ao desafio dos novosprocessos de articulação de textos e imagens expandidas pelatecnologia e desperdiçadas pela mídia em confeitos descartáveis. A revolução da informática repontecializa as propostas dasvanguardas, viabilizando os procedimentos da modernidade -acolagem, a montagem, a interpenetração do verbal e do não-verbal,do gráfico e do sonoro- e proporcionando maior autonomia daprodução e da difusão da arte. Os poetas são trovadores, inventores,

por definição. Nesse quadro e nesta quadra, o que lhes cabe?Experimentar, experimentar, experimentar, com a liberdade e aindependência que só eles têm, rompendo limites, de preferência nasinterseções disciplinares da palavra com as artes visuais e o som.Fustigar a preguiça da sensibilidade e da imaginação.É o que importa. Como disse o compositor Luigi Nono, ao propor, emsuas últimas obras, as mais radicais, uma "nostálgica utópica futura"regeneração da escuta: "Ouvir as pedras".Folha - Quais os três poemas do período propriamente concretista queo sr. considera mais significativos, incluindo os seus? Caso não lhetenha ocorrido citar, que poema deste mesmo período o sr. destacariade Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos e Ferreira Gullar?Décio - Alguns poemas dos tempos da chamada poesia concretaortodoxa (a que estabeleceu o cânone): "tensão" (Augusto deCampos), "nascemorre" (Haroldo de Campos), "rua/sol" (Ronaldo Azeredo), "vai-e-vem" (José Lino Grunewald), "coca cola", "Life","organismo" (Décio Pignatari). São poemas que tiveram repercussão

nacional e/ou internacional.