A Chegada de Zimba

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“Até que enfim!”, pensou ele, ao ver o porto, depois da longa viagem de navio. Agora sim estava seguro, longe da guerra, longe de Hitler. Não sabia exatamente o que viria pela frente, mas tinha certeza de que seria melhor do que ficar em seu país, com os nazistas fungando seu cangote que cheirava a judeu. “Que absurdo”, refletiu ele, “eu, respeitado e consagrado na minha terra, tendo que fugir como um cachorro para esse fim de mundo!” Lembrou do que ouvira falar sobre o lugar para o qual se dirigia: “É uma selva”; “Cheio de índios primitivos”; “Cobras e macacos desfilando pela rua”; “Rua? Que rua?” “Felizmente, estou aqui só de passagem” concluiu, na medida em que o navio se aproximava cada vez mais daquela terra de selvagens. Seu objetivo verdadeiro era chegar ao paraíso dos que fugiam do nazismo, tendo aquele lugar apenas como escala. “Afinal”, refletia ele, “o quê esse país tem a me oferecer?”. Embarcara no navio todo encapotado, devido ao frio que se fazia no Velho Continente. Ao longo da longa viagem, fora despindo casacos e o cachecol. Finalmente, quando pôs o primeiro pé no chão estava, “que diferença!”, só de camisa. Quando pôs o segundo, foi para pisar no chão da Embaixada. Queria sair do exótico país o mais rápido possível, mas outro golpe atingiu nosso misterioso herói: “Sorry, we cannot approve your passaport for the States”, informou a mulher da embaixada. Ele entendia pouco de inglês, mas compreendia perfeitamente a expressão do rosto dela, que dizia em linguagem universal: “Não podemos fazer nada, retire-se”. “Ótimo”, ironizou ele, “eu, preso neste país”. Resolveu andar pelas ruas, sentindo pena de si próprio. Começou a observar a paisagem e viu como, ao contrário do que diziam, era bonito o lugar: as palmeiras, o mar, a praia, o calor. Nada de selvagens ou cobras. Seu país era escuro, gelado, sem cor. Ali, o sol brilhava forte, o céu era mais azul, tudo era muito colorido. Até as pessoas eram coloridas, muito diferente do branco pálido que ditava o perfil dos poloneses. Ali, reinava a democracia: havia brancos, mulatos, negros, morenos. Reparou também em como as pessoas eram. Nada daquelas carrancas polonesas: havia gente rindo, jogando cartas, ouvindo música, conversando nos botecos. “Parece uma festa”, estranhou ele, ao se deparar com a malandragem típica dos nativos. Estava começando a simpatizar com o país, quando dobrou uma esquina. A visão lhe fez falhar uma batida do coração. Sim, era um teatro! Incrível, os brasileiros também apreciavam a paixão da vida dele! Foi logo ver o que estava em cartaz. Logicamente, não entendeu nada do que estava escrito, pois não falava uma palavra que fosse em português, e achou que todas as peças em cartaz tinham o mesmo nome: “Hoje”. Pensou: “Parece que meus conceitos estavam errados. Acho que vou me dar bem aqui”. A mulher que usava um vestido de noiva levantou o buquê. Todos os outros ficaram imóveis. A Marcha Fúnebre tocava cada vez mais alto, enquanto a única luz que restava era aquela que iluminava o túmulo da noiva. Então, a música cessa, apagam-se as luzes. Silêncio era tudo o que se ouvia no imenso teatro. Silêncio, silêncio. Todos estáticos. Então, palmas escassas, esparsas. De repente, novos focos de palmas, mais altas. O barulho cresce, incontrolável. Palmas e mais palmas, uivos. Apoteose. Os atores agradecem, surpresos. A euforia se espalha. O diretor sobe ao palco. Arrastado, as mangas arregaçadas, o suor na testa. Agradece à platéia. Logo chega, surpreso, tímido e emocionado, o Nelson. Os dois se abraçam. “O que você pensa num momento desses?” pergunta o autor da peça. “Eu só agradeço pelo meu visto para ter sido negado”, responde Ziembinski, o polonês que virou brasileiro.

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Texto fictício sobre a chegada do diretor e ator polonês Zbigniew Ziembinski ao Brasil, local onde revolucionou o teatro.

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“Até que enfim!”, pensou ele, ao ver o porto, depois da longa viagem de navio. Agora sim

estava seguro, longe da guerra, longe de Hitler. Não sabia exatamente o que viria pela frente, mas

tinha certeza de que seria melhor do que ficar em seu país, com os nazistas fungando seu cangote

que cheirava a judeu.

“Que absurdo”, refletiu ele, “eu, respeitado e consagrado na minha terra, tendo que fugir

como um cachorro para esse fim de mundo!” Lembrou do que ouvira falar sobre o lugar para o qual

se dirigia: “É uma selva”; “Cheio de índios primitivos”; “Cobras e macacos desfilando pela rua”;

“Rua? Que rua?”

“Felizmente, estou aqui só de passagem” concluiu, na medida em que o navio se

aproximava cada vez mais daquela terra de selvagens. Seu objetivo verdadeiro era chegar ao paraíso

dos que fugiam do nazismo, tendo aquele lugar apenas como escala. “Afinal”, refletia ele, “o quê

esse país tem a me oferecer?”.

Embarcara no navio todo encapotado, devido ao frio que se fazia no Velho Continente. Ao

longo da longa viagem, fora despindo casacos e o cachecol. Finalmente, quando pôs o primeiro pé

no chão estava, “que diferença!”, só de camisa. Quando pôs o segundo, foi para pisar no chão da

Embaixada.

Queria sair do exótico país o mais rápido possível, mas outro golpe atingiu nosso misterioso

herói: “Sorry, we cannot approve your passaport for the States”, informou a mulher da embaixada.

Ele entendia pouco de inglês, mas compreendia perfeitamente a expressão do rosto dela, que dizia

em linguagem universal: “Não podemos fazer nada, retire-se”.

“Ótimo”, ironizou ele, “eu, preso neste país”. Resolveu andar pelas ruas, sentindo pena de si

próprio. Começou a observar a paisagem e viu como, ao contrário do que diziam, era bonito o lugar:

as palmeiras, o mar, a praia, o calor. Nada de selvagens ou cobras. Seu país era escuro, gelado, sem

cor. Ali, o sol brilhava forte, o céu era mais azul, tudo era muito colorido. Até as pessoas eram

coloridas, muito diferente do branco pálido que ditava o perfil dos poloneses. Ali, reinava a

democracia: havia brancos, mulatos, negros, morenos. Reparou também em como as pessoas eram.

Nada daquelas carrancas polonesas: havia gente rindo, jogando cartas, ouvindo música, conversando

nos botecos. “Parece uma festa”, estranhou ele, ao se deparar com a malandragem típica dos nativos.

Estava começando a simpatizar com o país, quando dobrou uma esquina. A visão lhe fez

falhar uma batida do coração. Sim, era um teatro! Incrível, os brasileiros também apreciavam a

paixão da vida dele! Foi logo ver o que estava em cartaz. Logicamente, não entendeu nada do que

estava escrito, pois não falava uma palavra que fosse em português, e achou que todas as peças em

cartaz tinham o mesmo nome: “Hoje”. Pensou: “Parece que meus conceitos estavam errados. Acho

que vou me dar bem aqui”.

A mulher que usava um vestido de noiva levantou o buquê. Todos os outros ficaram

imóveis. A Marcha Fúnebre tocava cada vez mais alto, enquanto a única luz que restava era aquela

que iluminava o túmulo da noiva. Então, a música cessa, apagam-se as luzes.

Silêncio era tudo o que se ouvia no imenso teatro. Silêncio, silêncio. Todos estáticos. Então,

palmas escassas, esparsas. De repente, novos focos de palmas, mais altas. O barulho cresce,

incontrolável. Palmas e mais palmas, uivos. Apoteose.

Os atores agradecem, surpresos. A euforia se espalha. O diretor sobe ao palco. Arrastado, as

mangas arregaçadas, o suor na testa. Agradece à platéia.

Logo chega, surpreso, tímido e emocionado, o Nelson. Os dois se abraçam. “O que você

pensa num momento desses?” pergunta o autor da peça. “Eu só agradeço pelo meu visto para ter sido

negado”, responde Ziembinski, o polonês que virou brasileiro.

Page 2: A Chegada de Zimba

Texto fictício sobre a chegada do diretor e ator polonês Zbigniew Ziembinski ao Brasil,

local onde revolucionou o teatro.