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1 A cidade como espaço da memória e da experiência coletiva: os Congressos Pan- Americanos de Arquitetos e a dimensão espontânea das metrópoles latino-americanas Fernanda Cristina Pereira Drumond Mestra em História Universidade Estadual de Campinas [email protected] As cidades, tal como pontua Jacy Seixas, são espaços constantemente perpassados pela memória coletiva, de forma que para a autora, toda memória vale-se de lugares para se exprimir, ou seja, materializar-se 1 . A partir dessa compreensão, esta reflexão centra-se em debater os elementos constitutivos dessa memória por meio dos discursos produzidos nos eventos denominados Congressos Pan-Americanos de Arquitetos, bem como nos organismos internacionais de cooperação técnica e econômica na América Latina, entre os anos de 1948 e 1989. Tais congressos e organismos são compreendidos como entidades que possuem pautas convergentes no que tange às políticas urbanas para a América Latina no período retratado. Considerando a lógica do período da Guerra Fria em que tais debates se estabeleceram nesses eventos e organismos, os discursos deles derivados se tornam relevantes para compreender como os campos do urbanismo e do planejamento urbano foram pensados a partir de uma lógica que privilegiava uma noção de desenvolvimento que se aproximava daquela elaborada pelos países do bloco capitalista. O período temporal eleito não por acaso compreende grande parte do desenrolar da Guerra Fria. Essa escolha foi deliberada e se relaciona ao entendimento de que muitos dos temas discutidos e assumidos como pautas nos Congressos Pan-Americanos de Arquitetos e nos organismos internacionais de cooperação técnica e econômica integravam a agenda política dos países capitalistas. Tais eventos e instituições, embora não tenham participado dos embates bélicos do período, eram potenciais veículos de difusão do liberalismo estadunidense, integrando ações de difusão cultural que a historiadora Elizabeth Cancelli denominou como Guerra Fria cultural”. 1 SEIXAS, Jacy Alves de. Os tempos da memória: (des)continuidade e projeção. Uma reflexão (in)atual para a história?. São Paulo: Projeto História, junho de 2002. p.60.

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A cidade como espaço da memória e da experiência coletiva: os Congressos Pan-

Americanos de Arquitetos e a dimensão espontânea das metrópoles latino-americanas

Fernanda Cristina Pereira Drumond

Mestra em História

Universidade Estadual de Campinas

[email protected]

As cidades, tal como pontua Jacy Seixas, são espaços constantemente perpassados

pela memória coletiva, de forma que para a autora, toda memória vale-se de lugares para se

exprimir, ou seja, materializar-se1. A partir dessa compreensão, esta reflexão centra-se em

debater os elementos constitutivos dessa memória por meio dos discursos produzidos nos

eventos denominados Congressos Pan-Americanos de Arquitetos, bem como nos organismos

internacionais de cooperação técnica e econômica na América Latina, entre os anos de 1948 e

1989. Tais congressos e organismos são compreendidos como entidades que possuem pautas

convergentes no que tange às políticas urbanas para a América Latina no período retratado.

Considerando a lógica do período da Guerra Fria em que tais debates se estabeleceram nesses

eventos e organismos, os discursos deles derivados se tornam relevantes para compreender

como os campos do urbanismo e do planejamento urbano foram pensados a partir de uma

lógica que privilegiava uma noção de desenvolvimento que se aproximava daquela elaborada

pelos países do bloco capitalista.

O período temporal eleito não por acaso compreende grande parte do desenrolar da

Guerra Fria. Essa escolha foi deliberada e se relaciona ao entendimento de que muitos dos

temas discutidos e assumidos como pautas nos Congressos Pan-Americanos de Arquitetos e

nos organismos internacionais de cooperação técnica e econômica integravam a agenda

política dos países capitalistas. Tais eventos e instituições, embora não tenham participado

dos embates bélicos do período, eram potenciais veículos de difusão do liberalismo

estadunidense, integrando ações de difusão cultural que a historiadora Elizabeth Cancelli

denominou como “Guerra Fria cultural”.

1 SEIXAS, Jacy Alves de. Os tempos da memória: (des)continuidade e projeção. Uma reflexão (in)atual para a

história?. São Paulo: Projeto História, junho de 2002. p.60.

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[...] Em linhas gerais, a política de intervenção da CIA sobre o trabalho intelectual

partia do entendimento de que o suporte cultural era o mais apropriado, se levado

em conta que o objetivo seria o de atingir intelectuais e aumentar seu entendimento

sobre os Estados Unidos, uma vez que marxismo e comunismo estariam

desempenhando um papel crescente de atração entre os intelectuais no pós-guerra.2

O uso de soluções técnicas como forma de minimizar os problemas sociais existentes

na América Latina no período do pós-guerra foi uma das pautas mais discutidas nos

Congressos Pan-Americanos de Arquitetos ocorridos nesse período. Tais eventos eram

realizados desde o ano de 1920 e congregavam associações de arquitetos de todo o continente

americano, embora numericamente se destacassem as associações vindas da América do Sul.

Embora no período do pós-guerra tais eventos já ocorressem há mais de duas décadas, é na

década de 1940 que ocorre a expansão das discussões temáticas ligadas aos campos do

urbanismo e do planejamento urbano. Entre as décadas de 1920 e 1940, no temário desses

eventos havia uma predominância das discussões que versavam sobre o reconhecimento da

profissão do arquiteto e seu campo de atuação profissional. Ao final da década de 1940, com

a consolidação do campo da arquitetura na América Latina, outras questões foram se

multiplicando nesses temários, como os projetos de revitalização em centros históricos, a

questão da habitação, pensada a partir da construção de conjuntos habitacionais e a

necessidade de se ordenar o trânsito nos núcleos urbanos das metrópoles latino-americanas.

Nesse mesmo período começam a surgir na América Latina alguns organismos

internacionais de cooperação técnica e econômica, como a OEA, o BID, a CEPAL e a SIAP3.

2 CANCELLI, Elizabeth. O Brasil na Guerra fria cultural. São Paulo: Intermeios, 2017.p.32. 3 A Organização dos Estados Americanos é um organismo regional fundado em 1948, substituindo a União

Internacional das Repúblicas Americanas, datada de 1890. Esse organismo internacional congrega 35 países-

membros na América. De acordo com a Carta da OEA, de dezembro de 1951, os preceitos dessa organização se

baseiam na supervisão da democracia, do desenvolvimento, dos direitos humanos e da segurança dos países-

membros.

O Banco Interamericano de Desenvolvimento foi criado em 1959, a partir de um acordo redigido pela

OEA. O BID surgiu como uma estratégia de financiamento de programas que visavam o desenvolvimento

regional do continente americano, principalmente das áreas da América Latina e do Caribe. Atualmente existem

48 países que são membros do BID.

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe é um organismo ligado às Nações Unidas.

Fundada em 1948, a CEPAL possui sua sede no Chile e objetiva reforçar as relações econômicas entre os

países-membros, bem como entre outras nações do mundo. Esse organismo internacional também objetiva promover o desenvolvimento econômico e social dos países em que atua.

A Sociedade Interamericana de Planejamento é um organismo não-governamental que possui caráter

consultivo. Ela foi formada em 1956, a partir do Seminário Internacional sobre Educação de Planejamento,

organizado em conjunto pela ONU e pela OEA no mesmo ano. Esse organismo promovia eventos voltados aos

profissionais do campo do planejamento urbano, como os Congressos Interamericano de Planificação e

encontros regionais.

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O primeiro desses organismos a ser criado é a OEA, em 1948, e é a partir de dois documentos

redigidos em encontros promovidos por esse organismo internacional, as Normas de Quito,

de 1967 e a Resolução de São Domingos, de 1974, que a convergência de pautas entre os

organismos internacionais e os Congressos Pan-Americanos de Arquitetos será analisada.

Como a criação da OEA ocorreu no final da década de 1940, elegeu-se como primeira edição

dos Congressos Pan-Americanos de Arquitetos a ser analisada aquela ocorrida em 1950, na

cidade de Havana, configurando a 7ª edição desses eventos.

Contando com cinco diferentes eixos temáticos de discussão, a 7ª edição dos

Congressos Pan-Americanos de Arquitetos apresentava apenas um eixo destinado à questão

do exercício profissional do arquiteto, enquanto os demais eixos discutiam temas que

dialogavam com o campo do urbanismo e do planejamento urbano, sendo eles: planos de

estudo, planificação e urbanismo, evolução da arquitetura contemporânea e evolução dos

métodos de desenho e novas técnicas. Entre os anos que integram o período temporal

analisado ocorreram doze congressos, todos eles contando com debates em torno do

protagonismo do urbanismo e do planejamento urbano. Nesse sentido, utilizar ferramentas

técnicas para intervir no espaço urbano em busca de resolução para questões urbanas, que são

também sociais, se constituía como uma preocupação latente dos profissionais que

participavam desses eventos.

Deslocando a preocupação sobre a configuração do espaço urbano e sobre os

problemas sociais nele diagnosticados para os debates realizados pelas organizações

internacionais de cooperação técnica e econômica, tem-se que tais debates partiam de uma

ideia pré-definida do que deveria ser uma “boa cidade” nesse período. Tal modelo de cidade

era pautado por discursos de caráter sanitarista que atribuíam a alguns espaços urbanos uma

suposta degradação, também associada à degradação física daqueles que por eles transitavam.

Nesse cenário, as intervenções urbanas discutidas nos Congressos Pan-Americanos de

Arquitetos também eram propostas debatidas nesses organismos, que produziam documentos

recomendando aos países-membros da OEA um modo específico de planejar esses espaços,

bem como controlar aqueles que por eles transitavam e salvaguardar o patrimônio cultural ali

existente.

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Tanto os discursos produzidos nos Congressos Pan-Americanos de Arquitetos quanto

os normatizados nos documentos da OEA apontam para a necessidade de planejar e intervir

no espaço urbano, buscando resolver os problemas que se apresentam e se antecipando

àqueles que por ventura venham a surgir, por meio do uso da técnica. Apesar do ímpeto em

transformar os debates sobre planejamento urbano em políticas urbanas, há um importante

fator que corrobora na configuração desse espaço, mas que não é mencionado nas discussões

dos profissionais da arquitetura e nem nas reuniões promovidas pelos organismos

internacionais: a dimensão espontânea envolvida na construção das cidades. Nas décadas de

1950 e 1960, o intenso e dinâmico fluxo migratório no sentido campo-cidade alterou a

configuração tanto do cenário urbano quanto do cenário rural de algumas cidades latino-

americanas que vivenciaram esse processo, como São Paulo e Cidade do México. No caso

brasileiro, o demógrafo José Marcos Pinto da Cunha ressalta que o processo migratório se

deveu, principalmente, às mudanças vivenciadas no cenário rural:

[...] a partir de meados dos anos 60, iniciou-se uma progressiva e sem precedentes

desruralização e concentração urbana derivadas de transformações radicais no

campo. A tecnificação, os mecanismos de crédito adotados, a especulação e

concentração fundiária restringiram de forma impiedosa o acesso à terra pelos

pequenos produtores e reduziram a demanda por mão-de-obra, gerando um grande

êxodo rural.4

O fluxo migratório em direção às cidades, e a consequente expansão do processo de

urbanização foram fatores que contribuíram para a multiplicação dos debates sobre o

planejamento urbano e o urbanismo em eventos integrados por especialistas no campo da

arquitetura, tal como era o caso dos Congressos Pan-Americanos de Arquitetos. No 12º

congresso, ao refletirem sobre maneiras de utilizar a técnica para lidar com o incremento

populacional nos centros urbanos latino-americanos, as associações de arquitetos

participantes apontam que na questão do planejamento, são as cidades que devem ser

adaptadas ao homem. Além disso, conclui-se que no processo de se planejar o espaço, o

habitante de uma determinada cidade deve ser ouvido pelo profissional que fará esse

planejamento, de forma a apresentar os problemas qualitativos que devem ser levados em

consideração no planejamento de tal espaço.

4 CUNHA, José Marcos Pinto da. Migração e urbanização no Brasil: alguns desafios metodológicos para

análise. São Paulo: Perspec., volume 19, número 4, dezembro de 2005. p.11. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392005000400001&lng=en&nrm=iso>.

Acesso em: 07/08/2019.

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El habitante frente al planificador físico debe poseer un papel activo: ser un

interlocutor. Al mismo tiempo que se resuelven problemas cuantitativos, en la

ciudad deben satisfacerse problemas cualitativos representados en la adaptación de

la ciudad al hombre urbano.5

O deslocamento de pessoas do campo para a cidade também não significa seu

completo esquecimento em relação ao mundo rural a partir unicamente da mudança de seu

contexto sócio espacial. Dessa forma, ainda que os debates feitos pelos profissionais do

campo da arquitetura busquem traçar estratégias para incluir esses novos habitantes em seu

modelo de cidade, os modos como esses sujeitos habitam o espaço urbano se diferenciam das

propostas vislumbradas pelos planejadores desse espaço. São esses usos do espaço que

fogem, ou muitas vezes se opõem àquilo que é planejado, revelando a dimensão espontânea

das cidades ao quebrar, por exemplo, com a dicotomia entre os modos de habitar nos

contextos rural e urbano se baseando unicamente na ideia de vinculação espacial, como é

apontado pelo economista Ricardo Abramovay:

[...] a dicotomia rural-urbana [...] é rompida [...] durante os anos 60, pela noção de

continuum rural-urbano, significando a não existência de diferenças fundamentais nos modos de vida, na organização social e na cultura, determinadas por sua

vinculação espacial.6

Nos Congressos Pan-Americanos de Arquitetos, a migração no eixo campo-cidade é

uma pauta de reflexão feita pelos profissionais participantes, que estavam preocupados com a

questão do planejamento urbano. A acelerada urbanização ocorrida a partir da década de

1950 e o assentamento desses migrantes em áreas da cidade consideradas impróprias para a

habitação impossibilitava que a ideia de “boa cidade” debatida nesses eventos, que se

aproximava de uma noção de cidade planejada e higienizada, fosse concretizada. Assim,

enquanto esses profissionais construíam seus projetos de planejamento urbano, um fluxo

espontâneo de novos habitantes vindos do campo para a cidade inviabilizava o planejamento

total do espaço urbano. Esse aspecto incomodava os arquitetos participantes dos congressos

em questão, que até mesmo propuseram que novos fluxos migratórios deveriam ser evitados

no futuro.

5 GUTIERREZ, Ramón; TARTARINI, Jorge; STAGNI, Rubens. Congresos Panamericanos de Arquitectos.

1920-2000: aporte para su historia. Argentina: CEDODAL, 2007. p.92.

6 ABRAMOVAY, R. Do setor ao território: funções e medidas da ruralidade no desenvolvimento

contemporâneo. Rio de Janeiro: Ipea, 1999. p.39. Apud: CUNHA, José Marcos Pinto da. Migração e

urbanização no Brasil: alguns desafios metodológicos para análise. São Paulo: Perspec., volume 19, número 4,

dezembro de 2005. p.12.

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Las urbanizaciones espontáneas o barriadas marginales son parte del proceso de

migración no dirigido. Es necesario no sólo reglar y normalizar estos asentamientos,

sino prevenir y encauzar adecuadamente das migraciones futuras, con estudios

sociales de los grupos y con soluciones adecuadas para cada caso. En el proceso de

habitación de áreas urbanas estas áreas deben ser dotadas no sólo de todos los

servicios sino de también de todo el equipo comunitario necesario.7

Alguns conceitos mobilizados nos debates realizados nos Congressos Pan-

Americanos de Arquitetos e nos organismos internacionais analisados aparecem de maneira

exaustiva, como os conceitos de cidade latino-americana e de desenvolvimento. Os usos

desses conceitos estão associados a contextos políticos e atores sociais específicos, que não

são estáticos, sendo necessário mapear os discursos através dos quais eles são mobilizados.

Para realizar essa análise, a proposta metodológica das linguagens políticas, apresentada pelo

historiador John Pocock, auxilia na compreensão de determinados discursos proferidos em

um contexto específico, que no caso das pautas convergentes entre os congressos e os

organismos internacionais é o da Guerra Fria. Considerando o contexto linguístico

polarizado, no qual os discursos analisados foram montados e reverberaram, sendo utilizados

por uma multiplicidade de atores sociais, Pocock ressalta que é justamente a existência desses

múltiplos atores reagindo uns aos outros que permite a formulação de atos de fala e a

consequente transformação do contexto analisado.

[...] Quanto mais complexo, e até mesmo quanto mais contraditório o contexto

linguístico em que ele se situa, mais ricos e mais ambivalentes serão os atos de fala

que ele terá condições de emitir, e maior será a probabilidade de que esses atos

atuem sobre o próprio contexto linguístico e induzam a modificações e

transformações no interior dele. [...]8

Considerando a proposta de analisar os conceitos por meio da metodologia das

linguagens políticas, o conceito de cidade latino-americana torna-se, então, fundamental para

esta reflexão, pois, afinal, como cidades com modos tão distintos de organização urbana e

social são classificadas e agrupadas sob um mesmo conceito? Um autor que reflete sobre o

conceito de cidade latino-americana é Adrián Gorelik, que o desnaturaliza e visa

compreendê-lo não como uma realidade natural e acabada, mas como uma construção

cultural dinâmica, sendo a todo instante modificado.

A ‘cidade latino-americana’ não pode ser tomada, então, como uma realidade

natural, como uma categoria explicativa da diversidade de cidades realmente

7 GUTIERREZ, Ramón; TARTARINI, Jorge; STAGNI, Rubens. Op.Cit., p.94. 8 POCOCK, J.G.A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003. p.28.

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existentes na América Latina. Assim, devemos constatar, ao mesmo tempo e de

modo inverso, que a “cidade latino-americana” existe, mas de outra forma: não

como uma ontologia, mas como uma construção cultural. [...]9

Ainda que se reconheça a influência da cultura atuando na modulação do conceito de

cidade latino-americana, a dimensão geopolítica desse conceito não deve ser desconsiderada,

pois é a delimitação geopolítica do que se entende como América Latina que permite

operacionalizar uma série de políticas públicas e relações econômicas. Desse modo, não se

propõe que esse conceito seja desconsiderado ou abandonado, mas sim que ele seja

compreendido não como uma realidade previamente dada, mas como fruto de debates

intelectuais que são realizados no interior de contextos específicos. Compreende-se, dessa

forma, que o conceito de cidade latino-americana também assume diferentes acepções de

acordo com o período no qual é mobilizado, assim como diferentes funções políticas dentro

da conjuntura de cada região da América Latina.

Outro conceito relevante para compreender como se estruturavam os Congressos Pan-

Americanos de Arquitetos e os organismos internacionais na lógica do contexto da Guerra

Fria é o conceito de desenvolvimento. Esse conceito é mobilizado quando se debate a

estrutura social e econômica das cidades latino-americanas, de forma que nas décadas de

1950 até 1970, há uma forte ideia de que é necessário investir no planejamento do espaço

urbano como uma das estratégias fundamentais para alcançar o desejado desenvolvimento.

Nesse sentido, o próprio conceito de desenvolvimento debatido nesses congressos e

organismos internacionais assume uma face específica. Visto que esse é um conceito sempre

relativo, é necessário questionar: um país que está buscando seu desenvolvimento está menos

desenvolvido em relação a quem?

No contexto da Guerra Fria, a concepção de que os países da América Latina

deveriam implantar políticas de desenvolvimento se relaciona ao liberalismo estadunidense,

propagandeado como modelo mais avançado a ser seguido dentro desse pressuposto de

desenvolvimento. É assim que surgem estratégias políticas estimuladas pelos Estados Unidos

para promover o desenvolvimento da América Latina, desencorajando os países do continente

americano a se aproximarem do bloco soviético. Dentre essas estratégias pode ser destacada a

9 GORELIK, Adrián. A produção da ‘cidade latino-americana’. São Paulo: Revista de Sociologia da USP,

número 1, vol. 17, junho de 2005. p.112.

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Aliança para o Progresso, que fomentava o financiamento de obras de infraestrutura urbana em

países latino-americanos como uma forma de enfraquecer a influência soviética. Especificamente

sobre a influência que a Aliança para o Progresso exerceu nos Congressos Pan-Americanos de

Arquitetos, nota-se que até a década de 1960 a participação dos Estados Unidos em tais eventos era

bastante limitada, se restringindo ao envio de poucos representantes. No entanto, a partir de 1960

houve um crescente interesse da delegação americana em participar desses eventos, culminando, em

1965, na organização do 11º Congresso Pan-Americano de Arquitetos na cidade de Washington.

No congresso sediado em Washington é abertamente declarada a relação existente

entre as discussões realizadas e as pautas da Aliança para o Progresso. Propôs-se, assim, que

a Federação Pan-Americana de Arquitetos, responsável por organizar os congressos, enviasse

ao Comitê Interamericano da Aliança para o Progresso uma comunicação, visando

estabelecer um programa que contemplasse a construção de edifícios educacionais e de

moradias nos países participantes10. Essa interlocução realizada entre os Congressos Pan-

Americanos de Arquitetos e o Comitê da Aliança para o Progresso aponta para a importância

que os projetos de habitação de interesse social adquiriram para o almejado desenvolvimento

da América Latina. Tais projetos deveriam ultrapassar as fronteiras nacionais, sendo

estimulados de maneira regional por meio do apoio financeiro da própria Aliança para o

Progresso, e também do BID.

Un predominio también compartido por la arquitectura de los sistemas modulares,

para educación, salud vivienda y esparcimiento, y por la idea de establecer un

“mercado común interamericano” que facilitaría la incorporación y el consumo de

tecnología. Todo esto dentro de las pautas que la Alianza para el Progreso y el Banco Interamericano de Desarrollo fijaban para el otorgamiento de préstamos a los

gobiernos de los países de Latinoamérica y Caribe, para el fomento de la vivienda

fundamentalmente. […]

A pauta do desenvolvimento nas interlocuções entre os Congressos Pan-Americanos

de Arquitetos e os organismos internacionais é central no congresso seguinte ao de

Washington, ocorrido em 1968 na cidade de Bogotá. Neste evento, os debates que

propunham promover o desenvolvimento dos países da América Latina através do

planejamento urbano tiveram como principal proposta a realização de intervenções nos

espaços das cidades tidos, então, como degradados. Essas intervenções se destinavam

principalmente às áreas centrais das cidades da América Latina, que desde o início da década

10 GUTIERREZ, Ramón; TARTARINI, Jorge; STAGNI, Rubens. Op.Cit., p.28.

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de 1960 passavam por um processo de deslocamento das classes médias para outras áreas das

cidades, deixando as regiões centrais com imóveis vazios ou subtilizados. Considerando que

muitas dessas áreas possuíam zonas de monumentos em seu perímetro, a questão da

preservação do patrimônio cultural, juntamente com seu entorno, foi uma das razões

apontadas pelos especialistas presentes nos Congressos Pan-Americanos de Arquitetos para

justificar a necessidade de tais intervenções.

Para viabilizar a proposta de revitalizar os centros das cidades latino-americanas e

transformá-los em espaços que fossem novamente atrativos para as camadas médias da

população, buscou-se implantar projetos de habitação nessas áreas e estimular a preservação

do patrimônio monumental ali existente. É notável que entre as décadas de 1960 e 1970, o

discurso da preservação do patrimônio e sua contraposição a uma suposta degradação

espacial das áreas centrais foi estimulado pelos organismos internacionais, com destaque para

a OEA, que fornecia os recursos técnicos, e para o BID, que fornecia os recursos econômicos

para esses projetos. Tal discurso está presente no congresso ocorrido em Bogotá como uma

meta a ser alcançada visando o desenvolvimento das cidades através das intervenções no

espaço urbano – intervenções essas financiadas pelos organismos internacionais de

cooperação técnica e econômica:

Instar los organismos internacionales a conceder la ayuda técnica y económica

indispensable para la elaboración de planes de desarrollo urbano y reconocer la

importancia de la participación de esos organismos internacionales, bajo principios de justicia y cooperación entre los pueblos de América.11

Por sua vez, os organismos internacionais abraçam a pauta do desenvolvimento

através da implantação de projetos de intervenção no espaço urbano, bem como a pauta da

preservação do patrimônio cultural. Embora pareçam estratégias excludentes, a noção de

preservação apresentada em documentos como as Normas de Quito e a Resolução de São

Domingos, ambos produzidos pela OEA, aponta que o patrimônio cultural deve ser utilizado

como uma estratégia de geração de riqueza, mas tal utilização deve ser feita de maneira que

esse patrimônio não seja danificado. Para viabilizar tais projetos, na Resolução de São

Domingos aponta-se como desejável a participação do setor privado, principalmente devido

ao aporte financeiro que tais instituições proporcionam.

11 Idem, p.92.

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A iniciativa privada e seu apoio financeiro constituem uma contribuição

fundamental para a conservação e valorização dos centros históricos. Recomenda-se

a todos os governos estimular essa contribuição mediante disposições legais,

incentivos e facilidades de caráter econômico.12

Além de estimular a preservação do patrimônio cultural e a geração de recursos para a

população que habita seu entorno através do turismo, na Resolução de São Domingos

também é estabelecida uma preocupação no que tange à organização do espaço urbano das

áreas centrais onde esses bens culturais estão localizados. Por meio de uma perspectiva

higienista, as propostas de preservação do patrimônio cultural e de intervenção no espaço

urbano são acompanhadas de planos de melhoramento da estrutura social existente nesses

locais.

A salvação dos centros históricos é um compromisso social além de cultural e deve

fazer parte da política de habitação, para que nela se levem em conta os recursos

potenciais que tais centros possam oferecer. Todos os programas de intervenção e

resgate dos centros históricos devem, portanto, trazer soluções de saneamento

integral que permitam a permanência e melhoramento da estrutura social existente.13

A multiplicidade de atores que participam das intervenções no espaço urbano

ocasiona a existência de interesses distintos na conformação desse espaço. Mesmo em

projetos que buscam promover a participação das comunidades que serão afetadas por tais

intervenções, que em geral são nomeados como parcerias tripartites, a diferença de forças

decisórias e o conflito de interesse nos temas debatidos inviabilizam a eficaz participação

dessas comunidades. Nesse sentido, as forças que ajudam a configurar o espaço urbano e o

patrimônio cultural estão em disputa, de modo que cada um desses grupos pleiteia sua própria

forma de organizar o espaço e tece uma narrativa distinta sobre ele, conforme argumenta a

socióloga Sharon Zukin:

“[...] Invoca-se o espaço como testemunho da história: um espaço em que um

evento simbolicamente importante ocorreu é autêntico de um modo ao mesmo

tempo definido e destruído pelo desenvolvimento moderno. No entanto, cada

espaço pode fazer parte de diferentes narrativas históricas. Assim, quando se

reivindica um espaço histórico, recupera-se uma interpretação específica da história, do ponto de vista de um grupo social específico. [...]14

12 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS E DO GOVERNO DOMINICANO. Resolução de São

Domingos. p.1. 13 Idem, ibidem. 14 ZUKIN, Sharon. “Paisagens do século XXI: notas sobre a mudança social e o espaço urbano”. In: ARANTES,

Antonio A. (org). O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000. p.110.

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A compreensão de que existem múltiplos e heterogêneos atores que participam do

processo de construção e reconstrução do espaço urbano permite refletir sobre as propostas

de planejamento desse espaço por meio das intervenções. Compreende-se, assim, que as

tentativas de se alcançar o planejamento total do espaço urbano já nascem fadadas ao

fracasso, pois as cidades estão em constante mudança, acolhem usos inesperados de seu

espaço e, portanto, possuem, também, uma dimensão espontânea. Ainda que os debates

colocados nos Congressos Pan-Americanos de Arquitetos e nos organismos internacionais

sejam pautados por uma dimensão técnica, outras questões também devem ser consideradas

ao analisar o espaço das cidades, como a existência de múltiplas memórias, discursos e

projetos, bem como seus contra-usos15.

Referências bibliográficas

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desenvolvimento contemporâneo. Rio de Janeiro: Ipea, 1999

CANCELLI, Elizabeth. O Brasil na Guerra fria cultural. São Paulo: Intermeios, 2017.

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88392005000400001&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 07/08/2019.

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GUTIERREZ, Ramón; TARTARINI, Jorge; STAGNI, Rubens. Congresos Panamericanos

de Arquitectos. 1920-2000: aporte para su historia. Argentina: CEDODAL, 2007.

LEITE, Rogério Proença. Contra-usos da cidade: lugares e espaço público na experiência

urbana contemporânea. Campinas: Editora da UNICAMP; Aracaju: Editora UFS, 2ª edição,

2007.

15 Entende-se contra-usos no sentido apresentado por Rogério Proença Leite, em que os contra-usos seriam “[...] ‘táticas’, quando associadas à dimensão espacial do lugar, que as torna vernaculares, se constituem em um

contra-uso capaz não apenas de subverter os usos esperados de um espaço regulado como de possibilitar que o

espaço que resulta das “estratégias” se cinda, para dar origem a diferentes lugares, a partir da demarcação

socioespacial da diferença e das ressignificações que esses contra-usos realizam”. LEITE, Rogério Proença.

Contra-usos da cidade: lugares e espaço público na experiência urbana contemporânea. Campinas: Editora da

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