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    a cidadee o mar

    bettina lenci

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    “Será que a cidade vai me engolir por inteiro”?

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    “Será que a cidade vai me engolir por inteiro”?

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    Valdessir

    Esta cidade vai me engolir inteirinho, para onde é que eu vou? Pra cá ou pra lá? Pensou Valdessir assim que desceu do ônibus.

    Decidiu pela direita, na esperança de encontrar uma pessoa que lhe dissesse onde arrumar um emprego. Lá na sua cidade, lhe contaram que ele ia ver o mar.

    – É, muita água e muita gente passeando sem roupa. Disse o dono do bar lá no Pará. Lembrou também que ele vira na televisão um grande desfile de mulheres dando tchau pra gente que ficava olhando da arquibancada. Mar?

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    Mar?

    Na rodoviária, Valdessir viu um homem que, aos berros, perguntava para cada um que passava:

    – A senhora tem ouro pra vender? A Senhorita? O Senhor?

    Ninguém disse que sim, pelo menos durante o tempo em que ficou ali esperando. Quando o homem parou para tomar um gole de água, foi falar com ele.

    – Por favor, o senhor sabe onde posso arranjar um emprego?

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    Emprego?

    – Emprego, meu filho, nem aqui nem na China, tá muito difícil. Sabe como é, a inflação… e tem mais, se você arrumar alguma coisa nem peça por carteira assinada. É mais fácil para arrumar trabalho.

    Mas você tem uma cara que a gente pode confiar. Quando a pessoa não é boa bisca, sei na horinha. Valdessir anotou mentalmente: China e carteira assinada.

    Anotou também, não é boa bisca.

    Vou lhe dar uma dica, vai até aquele guichê e fala com o Toninho e diz que fui eu que te mandei. Pede pra ele.

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    Toninho

    Valdessir voltou-se para trás e viu uma espécie de balcão e uma portinhola – deve ser o guichê!

    Bateu e espiou para dentro de um buraco redondo bem no meio da portinha despregada pintada de amarelo. Quando a portinhola se abriu, ele pode ver um nariz gordo e barba por fazer, um bigode amarelado e dois olhos que Valdessir conhecia bem: olhos injetados dos bêbados.

    – O senhor é o Toninho? Preciso de emprego!

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    Dinheiro?

    – Cê tem dinheiro? Quanto?

    – Duzentos cruzeiros que minha mãe me deu, menos a passagem, tenho 151 cruzeiros e 60 centavos.

    Tá , e o que é que você sabe fazer menino,?Já carreguei muito balde com água do açude, uns 10 km com ele na cabeça, cortei muita árvore.

    Sei, tô entendendo. Cê não sabe fazer nada!Valdessir se ofendeu, mas ficou quieto.

    Qual o seu nome? Olha, Valdesi, o único emprego que tenho hoje é de vendedor de bilhete de loteria, é pegar ou largar e já vou te avisando, você tem que pagar 10 cruzeiros adiantado e mais 5 sobre a venda dos bilhetes, todos os dias.

    Como é, tem fila atrás de você pra este emprego!

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    Daqui?

    Valdessir agradeceu e disse que ia pensar. Tomou o caminho à sua esquerda, a fome apertando. Parou num bar parecido com o do Zé Canudo. Pediu um sanduíche de mortadela com guaraná. Ao seu lado avistou uma senhora da idade da sua mãe e, seguro de que não tinha erro, perguntou:

    – Moça, por favor, o que é carteira assinada? ela explicou.

    – E China, o que é que tem a ver com carteira assinada?

    – China é um país muito grande.

    – E o que quer dizer “não é boa bisca“?

    – Pra que você quer saber tanta coisa?

    – Quer dizer que uma pessoa não presta.

    – E dica? – Você não é daqui, é?

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    Carteira Assinada?

    Valdessir fez que não com a cabeça.

    – Dica é conselho, e vou te dar um:

    – Volta pra tua terra que aqui não é bom para ninguém.

    – Obrigado Dona, e certificou-se que o dinheiro estava no bolso da calça.

    – A senhora pode me dizer onde posso arrumar um emprego?

    – Filho, eu também estou buscando um, se souber, me avisa, eu moro lá, tá vendo aquele barraco embaixo da ponte? Já tive casa, mas aí veio a danada da inflação… sabe como é, né?

    Valdessir anotou mentalmente: inflação e saiu dali.

    Andou por toda uma rua de lojinhas de noivas, tênis e calças jeans, perguntando se havia emprego. A resposta era a mesma: se ele tinha carteira de trabalho! Mas para trabalhar precisa de carteira? Deve ser o que o homem me explicou, pensou com seus pobres botões.

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    Casa da China?

    Ao fim do cansativo dia, assustado, Valdessir leu na tabuleta de uma porta estreita e fechada com uma grade: Procura-se moço para trabalhar.

    Tocou a campainha. Quando a porta com a placa se abriu, um barulhinho que parecia o som de fim de tarde o lembrou do vento sibilando por entre os tocos carbonizados, a terra devastada das árvores cortadas.

    Um homem baixinho, os olhos diferentes dos seus, cabelo ensebado e muito liso apareceu e perguntou o que Valdessir desejava. Contou a história desde a hora que desceu do ônibus. O homenzinho destrancou a grade e o fez entrar. Na sala, Valdessir não sentiu o medo de ser tragado pela terra ressecada e perguntou novamente:

    – O senhor tem um emprego para mim?

    Observando o olhar desesperado, mas inteligente de Valdessir, senhor Ming, disse baixinho:

    – Volte amanhã cedo moço, volta amanhã.!

    Valdessir lembrou do homem da rodoviária que disse ele ter uma cara em quem se pode confiar.

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    Inflação?

    Valdessir sorriu e antes de se despedir, perguntou:

    -O que é inflação?

    Sr. Ming esboçou um tênue sorriso.

    É assim: todo dia o seu dinheiro vale menos!

    Valdessir não sabia dizer por que, mas entendeu que o dinheiro que tinha escondido, amanhã tinha que gastar menos para que durasse mais e exultante saiu, no escuro, em direção à rodoviária, território conhecido. O homem do ouro já não estava mais lá e ao procurar pelo guichê do Toninho, este havia desaparecido.

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    Sonho Brasileiro

    Com medo de ser roubado ou perder-se e não encontrar mais a Loja da China, Valdessir instalou-se num banco, com fome. Guardou o dinheiro na mochila e a usou de travesseiro. Adormeceu sem antes rezar para Nosso Senhor Jesus Cristo, pedindo a benção, seguro de que ia dar conta da cidade.

    Sonhou um sonho brasileiro:

    “Um dia eu ainda vou ser dono de uma loja da China”!

    O sonho dissolveu-se no dia seguinte assim que o Sr. Ming mostrou no que consistia o emprego: lavar e passar roupa, limpar a casa, a cozinha, o banheiro e atender à porta e ao balcão. Não precisava cozinhar. Em troca lhe ensinaria tudo sobre o comércio que explorava e assim que soubesse fazer tudo direito lhe daria um dinheirinho para sair aos domingos, após o almoço.

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    Mala com Rodinhas

    Sr. Ming era uma boa pessoa e o ajudou, então não queria pensar mal dele, mas sabia que alguma coisa estava errada na loja.

    Só podiam entrar pessoas depois que o Sr. Ming olhasse pelo olho mágico da porta antes da grade. As pessoas chegavam com uma mala de rodinhas e se instalavam num quarto trancado para conversar. Depois a pessoa saia com uma mala de rodinhas, mas diferente daquela com a qual havia entrado.

    Junto, geralmente, chegavam mulheres que ele tinha que atender no balcão da loja. Elas compravam fivelas, ursinhos de pelúcia com manchas pretas, tecidos bordados com cores vivas e gatinhos que balançavam a cabeça.

    Quando os homens saiam da sala trancada, apressavam-se em pagar a conta e, bruscamente, pegavam o braço da mulher e iam embora como se estivessem fugindo de alguma coisa.

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    Sorvete

    Finalmente Valdessir recebeu seu primeiro salário e aprendeu porque era mínimo. Sentou-se num banco de praça e comprou o primeiro melhor sorvete da sua vida. Não era de groselha como lá na sua terra. Era de creme por dentro e uma casquinha de chocolate por fora. Feliz, instintivamente pôs a mão no bolso, gesto que se acostumou a fazer para verificar se o seu dinheiro ainda estava ali.

    Porém, foi naquela praça que aprendeu a nunca mais tomar sorvete olhando para as árvores que conhecia tão bem pelos nomes. Foi lá que roubaram seu primeiro salário.

    Apesar do roubo, continuou a tomar o mesmo sorvete, na mesma praça, a cada domingo a tarde.

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    Arroz com Feijão

    Um dia, viu uma moça sentada no banco à sua frente, mais ou menos da sua idade, também tomando sorvete. Vestida com uma calça verde e um “bustiê” branco, brincos longos, na ponta, um passarinho dependurado. Os cabelos cacheados e loiros lhe caiam na altura dos seios. Usava sapatos verdes de salto não muito altos. O pé lhe pareceu grande, mas gostou do seu jeito. Ao cruzarem os olhares, percebeu que a moça já o mirava com um relaxado sorriso. Sorriu de volta e daí a pouco a moça veio sentar-se ao seu lado. Conversaram até a hora em que se deram conta que escurecia e o sorveteiro não estava mais lá. Ela contou que trabalhava numa loja de perfumes e morava ali perto. Disse que seus pais eram do interior e que ela havia chegado há pouco no Rio de Janeiro. Tinha um irmão que morava em São Paulo, com o qual não se dava muito bem. Disse já ter namorado, mas que queria casar e estes moços de hoje em dia só queriam levá-la para a cama.

    Valdessir contou a sua história e assim, ambos contentes com o encontro, decidiram jantar “um PF” no bar de um amigo dela e disse que Valdessir não se preocupasse porque ele cobrava a metade do preço.

    Encantado com a novidade, seduzido pelo imenso prato de comida que chegou pronto com arroz, feijão e ovo frito, refastelou-se, pois há meses não saciava a fome. Explicou à sua recém conhecida que o chinês o obrigava a comer uma comida muito ruim.

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    Perfume de Mulher

    Combinaram se encontrar no próximo domingo, no mesmo lugar e hora. Os encontros passaram a ser assíduos e a cada novo domingo um deles tinha uma pequena novidade para se contar. Ela, quantos perfumes havia vendido, as marcas e cheiros, ele descrevendo as visitas inspecionadas pelo olho mágico do chinês. Nem sempre estes encontros terminavam em jantar no bar. Às vezes só tomavam sorvete ou porque tinha alguém esperando por ela ou porque o patrão havia pedido que fizesse horas extras aos domingos. A amizade se tornara intensa e as confidencias mais íntimas. Um dia, depois do jantar, atravessando o parque escuro, ela pegou sua mão e a beijou. Ao Valdessir não manifestar surpresa, abraçou-o e lhe beijou as faces. Ambos tinham a mesma altura. Beijou-lhe a boca. A sensação de proteção que o transpiro perfumado dela lhe causava, o fez esquecer-se, pela primeira vez, a devastação da terra quente da sua cidade natal. Afundou-se na escuridão do abraço apertado.

    Naquela semana Valdessir percebeu o quanto o quarto era pequeno, escuro e sem ar, insistentemente lembrando-o da noite no parque.

    Já tinha visto na TV beijos e abraços, mas a TV não mostrava nada igual ao que ele estava sentindo.

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    Jussara

    O domingo finalmente chegou.

    Valdessir perfumou-se e foi ao encontro. Sentou-se no mesmo banco. Esperou e esperou até a noite cair sem tomar sorvete, absorto, olhando em direção da rua pela qual Jussara costumava chegar. Mas Jussara não apareceu. Fora de si, Valdessir foi até o bar do amigo e perguntou por ela. O amigo silenciou um minuto, o olhar embaçado e docemente disse:

    Valdessir … Jussara não é mulher, é homem. Nós homens os chamamos de veado. Eles ganham a vida na rua, namorando outros homens. A Jussara me contou que se apaixonou por você e preferiu não te encontrar mais porque ficou com muita vergonha de ter contado tantas mentiras.

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    Nome de Bicho

    Valdessir agradeceu a explicação e ao atravessar o parque de volta para casa, martelava na sua cabeça: veado. Mas porque diabos nome de bicho? Instintivamente sabia que não podia perguntar para ninguém e enquanto raciocinava, o beijo de Jussara teimava em lhe fazer sentir homem abaixo da cintura. Deu meia volta e soube que a única pessoa para lhe explicar, de verdade, o sentido de tudo aquilo seria Jussara, ela era sua amiga!

    Quando chegou no portão, olhou para a sua janela, a luz estava apagada. Jussara chegou de madrugada.

    Exausto pela espera, Valdessir adormecera na escadaria. Ela o tomou pelos braços e o levou para o seu quarto. Despiu sua roupa cansada, banhou-o e o deixou adormecido sobre a cama.

    Tímida, Jussara tentou mais uma vez. Cordialmente, Valdessir disse não. Não precisava mais perguntar o que era tesão!

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    Baia da Guanabara

    Valdessir decidiu não mais voltar para a cozinha engordurada da Casa da China. Gostava do Sr. Ming, mas não tinha mais medo de procurar emprego. Foi morar com Jussara.

    Percebeu que havia grandes diferenças entre as pessoas. Com Ming aprendera a cuidar do seu dinheiro, com Jussara a nadar no mar e o tesão.

    Jussara era sua amiga e não sua namorada. Aos domingos continuaram indo ao parque tomar sorvete e depois jantar arroz e feijão, até o dia em que Jussara não mais apareceu em casa.

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    Pau de Arara

    Valdessir nunca esqueceu da sua vinda do árido Nordestão montado no pau de arara e a busca por emprego.

    No começo, cada passo o levava a comparar aquilo que aprendia com o lugar onde nascera. O tempo-escola passou.

    Hoje é um homem contente e agradecido às pessoas que o ensinaram, como emigrante, a viver em cidade grande na qual os dilemas pessoais se escondem para quem apenas olha a beleza da Baia da Guanabara.

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    c bettina lenci, jan 2019

    Todos os direitos reservados.

    Proibida a reprodução total ou parcial

    projeto gráfico Ciro Girard

    fotografia Bettina Lenci e Lucas Lenci

    revisão Áurea Rampazzo

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    Bettina Lenci, nascida em 1945,

    realizou-se tendo como

    início profissional a história

    da arte e a fotografia.

    É uma empresária que descobriu

    que lendo e escrevendo é possível

    criar um mundo com um olhar

    agudo sobre o cotidiano de todos nós.

    Escreve regularmente

    no seu blog Legado Vivo, onde se

    encontram disponíveis esse e outros

    livros de sua autoria.