A cidade e o pensamento médico_uma leitura do espaço urbano

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    A CIDADE E O PENSAMENTO MDICO:UMA LEITURA DO ESPAO URBANO*

    Profa

    Ms. Maria Cllia Lustosa CostaDepartamento de Geografia da Universidade Federal do Cear

    [email protected]

    * Trabalho apresentado inicialmente no XIII Encontro Nacional de Gegrafos, na Mesa Redonda A Geografia e o Pensamento SocialBrasileiro. Joo Pessoa, julho de 2002.

    RESUMO

    Um novo olhar sobre a cidade se desenha no

    sculo XVIII e XIX. Os mdicos, fundamentados em teori-as que localizam a doena no meio ambiente, elaboramdiscurso que se prope a medicalizar o espao e a socieda-de, influenciando as prticas e as polticas urbanas. Trata-dos de Higiene Pblica sugerem normas de construo,repercutindo nos Cdigos de Posturas e legislaes. Umanova concepo de cidade emerge e um novo espao ur-bano se estrutura com base no discurso mdico neo-hipocrtico dominante no sculo XIX. A anlise dos Cdi-

    gos de Posturas da cidade de Fortaleza demonstra a foradeste discurso no disciplinamento do modo de vida dapopulao, na organizao do espao urbano e nanormatizao das edificaes.Palavras chave: higienismo, teorias mdicas, espao ur-bano.

    Introduo

    Este artigo procura entender a conexo entre a hegemonia do discurso mdico e como este influen-ciou outros discursos sobre o social. A sociedade uma instncia de realidade relativamente integrada,formando uma totalidade. Deste ponto de vista, no estranho encontrar um discurso social importantesendo produzido num determinado setor ser extensivo a outros. A lgica integrada da sociedade facilitaeste tipo de intercmbio. Entretanto, se a presena de uma matriz de pensamento mdico orientandoprticas urbanas no surpreende, o dispositivo usado chama ateno. A circulao autorizada que detmo discurso mdico nos sculos XVIII e XIX explica-se em parte pela natureza da profisso que recebeuma ateno muito grande do poder pblico. As escolas de Medicina so mais do que lugares de forma-o de profissionais para atuar no combate s doenas, so verdadeiros celeiros de criao intelectual deelites dirigentes.

    O saber mdico no elabora uma teoria sobre a vida urbana, mas fornece elementos para que sepossa pensar o modo de organizao ideal das cidades. A tarefa de estabelecer uma ponte entre o discur-so normativo mdico e as exigncias da ordem pblica ser em parte dos urbanistas. O saber mdicofornece os elementos ideolgicos que justificam as intervenes e reorganizaes urbanas. Os urbanistasoperam as transformaes.

    ABSTRACT

    A new perception of cities appears between 18thand 20th centuries. Physiciens, based on theories thatplace the illness in the environment, define a speechproposing the medicalization of space and society.These speeches mark practices and urban politics. Treatiesof Public Hygiene indicate the controlled of constructionthat touch codes of behavior and other urban legislations.Taken by a logic medical neo-hipocratique view of the 19thcentury, appears a new conception of city that structuresitself a new urban space. The analyze of behavior codes in

    Fortaleza City (Northeast Brazil) puts in evidence theimportance of these speeches for the local way of life andfor the normalization of the urban space.

    Key words: Hygienism, Medical Theories, Urban space.

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    Uma nova leitura sobre a cidade

    O pensamento social do sculo XVIII e XIX foi influenciado pelo discurso mdico. As novas con-cepes cientficas da medicina europia repercutiram nas Cincias Sociais. Madel Luz, no livroNatural,Racional, Social: Razo Mdica e Racionalidade Cientifica Moderna (1988), analisa a relao entreMedicina e Sociologia e seus impactos nas teorias e na prtica de algumas instituies sociais. Ressaltaque no final do sculo XIX instaura-se uma nova racionalidade fundada em categorias bio-sociais presen-

    tes em certas transformaes sociais (Luz, 1988:VII).Destaca ainda a influncia do pensamento mdico-biolgico (Cabanis e Broussais), na construodo pensamento sociolgico de Auguste Comte. Afirma que Durkheim, criador do modelo funcionalistainspirado na Fisiologia, transpe para a sociedade o referencial do normal e o patolgico. Suas idias sorespaldadas em Foucault e Canguillem que, em suas arqueologias do saber mdico, demonstram comoocorreu a elaborao de uma nova racionalidade cientfica juntamente com uma nova estruturao dopoder, paralelo e influenciado pelo discurso mdico.

    Dentre as Cincias Sociais, destaca-se o urbanismo, onde se registram inmeras metforasorganicistas. O discurso urbano impregnado pelo linguajar mdico. Analogias so feitas entre o corposocial e o corpo humano. A cidade tratada como um organismo vivo, comparada ao corpo humano,onde cada rgo tem uma funo e anatomia peculiar. O planejador urbano tem o papel de diagnosticar

    os males da cidade e de propor terapias e mesmo cirurgias radicais para extirpar o cncer urbano.Esta linguagem est presente nos mais antigos trabalhos e teorias sobre o espao urbano. O espa-

    nhol Ildefonso Cerda, considerado o primeiro terico do urbanismo, em 1859, na TeoriaGeneral de laUrbanisation, serve-se de uma abordagem biolgica e de uma metodologia prpria dos seres vivos,recorrendo Anatomia e Fisiologia, com o objetivo de cientifizar sua teoria. Para a filsofa francesaFranoise Choay (1985), a reduo do urbano ao biolgico visa medicalizao da cidade doente. Odesfuncionamento do espao o sintoma mais visvel da doena social. Diante deste quadro clnico,Cerda elabora uma crtica corretiva, caracterstica da utopia urbana. Opondo-se imagem negativa dacidade doente, elabora uma imagem positiva da cidade, sadia e adaptada, dentro da norma mdica e doideal utpico.

    Outros exemplos da repercusso do discurso mdico na ordem urbana so encontrados, principal-mente entre os pr-urbanistas e os urbanistas progressistas dos sculos XIX e XX. Nos modelos ideaisde cidades, perpassa a utopia de uma cidade higinica (fsica e moral), salubre, bela, harmnica, equilibra-da, racional, eficiente, arborizada, ordenada, planejada, funcional, zoneada etc. onde seja garantido obem-estar social da populao. Algumas propostas de cidades utpicas se destacam: Owen e sua expe-rincia em New Lamark (1816); Fourier prope o Falanstrio (1822); Cabet elabora o projeto de cara(1840); mdico ingls Richardson prope Higia (1876); J.B. Godin, constri o familistrio de Guise(1874); Jules Verne escreve sobre Franceville (1879); Tony Garnier pensa sobre a cidade industrial (1917);Georges Benoit-Levy (1904) trata da cidade jardim francesa (diferente da cidade jardim inglesa deHoward); e Le Corbusier discorre sobre a cidade radiosa (1932) (Choay, 1997).

    Estas reflexes sobre o espao urbano contriburam e justificaram projetos de reforma urbana,

    como a de Paris, comandada pelo Baro Haussmann no perodo de 1853 a 1869. O modelo de urbani-zao parisiense influenciou a reforma urbana de vrias cidades europias (Viena, Berlim, Roma, Anvers)e americanas, inclusive o Rio de Janeiro.

    preciso interpretar o uso de categorias vindas das Cincias Naturais aplicadas s Cincias Sociaiscomo uma estratgia de autorizao. O pensamento ocidental passa por uma renovao nas teorias natu-rais, influenciando os novos ramos das cincias que nasceram depois do sculo XVIII. A proposta detratar problemas sociais com uma metodologia que vinha dando resultados prticos no controle da natu-reza foi inspiradora de grande parte dos intelectuais do sculo das luzes.

    O pensamento geogrfico brasileiro no est desvinculado do pensamento ocidental. Portanto, no possvel falar da Geografia ou do pensamento social brasileiro desvinculado do pensamento europeu.

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    Essa renovada maneira de ver o Brasil, se d com a vinda da corte para o Rio de Janeiro em 1808,fugindo das guerras napolenicas, marcando o incio da poca das luzes no Pas.

    Em 1816, desembarca no Rio a misso artstica francesa contratada para atualizar o gosto e atcnica do novo imprio. Momentos como este permitiram evidenciar as contradies entre a Europa e asociedade brasileira, baseada no trabalho escravo. Os que aqui chegavam traziam uma concepo bur-guesa do mundo, fundada na expanso do industrialismo e da mo-de-obra assalariada(1).

    Ocorre a europeizao das cidades, da urbanizao da sociedade brasileira, onde os valores ecostumes da Corte portuguesa se difundem pela sociedade carioca, e gradativamente, por todo o pas. claro que a forma como se d este processo de assimilao de novos valores, convivendo com padrestradicionais produz uma nova realidade, um novo pensamento e portanto uma nova ordem urbana. Opensamento europeu se desdobra no Brasil, e um dos caminhos atravs do discurso mdico que tentano s explicar e tratar os males do organismo, mas tambm os da sociedade.

    possvel reconstruir a relao entre as Cincias Sociais, a Geografia e o pensamento mdicobrasileiro, atravs das obras de Nina Rodrigues e seus tratados de Antropologia fsica, Afrnio Peixoto(Clima e Sade: introduo bio-geogrfica civilizao brasileira), Samuel Pessoa (Introduo Geografia Mdica) e Josu de Castro (Geografia e Geopoltica da fome).

    No Cear, destacamos o mdico e historiador Baro de Studart, autor de Geografia do Cear(1924) e de Climatologia, Epidemias e Endemias do Cear, (1909), e o farmacutico baiano Rodolfo

    Tefilo, que escreveuA fome (1890),Histria das secas do Cear 1877-1880 (1883) e Seccas noCear (1901). Estes pensadores e outros mdicos cearenses foram influenciados pelos tratados de Higi-ene Pblica, pelas geografias e climatologias mdicas de higienistas europeus, tais como de ClermondLombard (1877-1880), Becquerel (1877), Rochard (1888), Arnould (1888), que relacionavam as con-dies ambientais com o estado de salubridade dos lugares e sade da populao, que propunham nor-mas de construo e de ordenamento do crescimento urbano.

    O pensamento mdico europeu, que se difundiu pelo mundo ocidental, mudou a forma de pensar acidade na Europa e no Brasil. A organizao do espao urbano transforma-se em funo do discursomdico higienista. Portanto, esta anlise situa o momento em que os mdicos, com base em novas teorias,passam a centrar sua ateno na cidade.

    Entretanto, o discurso mdico como elemento ideolgico no capaz de agir como fora material na

    remodelao do modo de pensar a organizao urbana por si mesmo. No entramos aqui na fundamen-tao da natureza do prprio saber mdico que se apia em novas foras sociais emergentes na socieda-de burguesa. O mdico como agente social que influencia outra viso sobre questes sociais , por suavez, expoente de um novo modo burgus de pensar a sociedade. A conscincia mdica apenas est maispreparada para pensar as grandes transformaes por que passava a sociedade ocidental.

    Estabelecer uma relao entre o saber mdico e um novo modo de organizao da vida espacial dascidades no tarefa simples, pois no se trata de demonstrar a imbricao de contedo entre o quepensam os mdicos e o que fazem os planejadores urbanos. A aproximao somente pode ser feita sob oponto de vista de certos temas. Logo, a relao que se pretende fazer diz respeito proximidade temticae possvel determinao da ordem do saber mdico sobre a forma de pensar o urbano.

    A concepo ecolgica e geogrfica da doenaAntes de mais nada, importante ressaltar que o discurso mdico marcado por uma concepo

    ecolgica, geogrfica da doena. Cinco sculos antes de Cristo, o grego Hipcrates relacionava aorigem das doenas com o meio ambiente. O tratado hipocrtico gua, ares e lugares ressaltava arelao dos constituintes atmosfricos, da variao das estaes e da localizao da cidade nadeterminao de doenas.

    No sculo XVIII, as teorias hipocrticas voltam a dominar, e novamente o meio reaparece comofator fundamental para explicar muitas das epidemias. o chamado neo-hipocratismo. estabelecidauma relao entre o homem doente, a natureza e a sociedade. Esta medicina localiza a doena no no

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    es comerciais (Lonard, 1986:57).Paralelamente a estas disputas cientficas, interpretaes da enfermidade como fenmeno social

    alcanam uma ampla difuso no sculo XIX. A pobreza, o excesso de trabalho, a m alimentao, a faltade moral, a vizinhana de ambientes insalubres e outros fatores de tipo econmico social foram conside-rados de grande relevncia para explicar o impacto de determinadas enfermidades. Depois de esquadri-nhado o espao fsico foi a vez do espao social. A doena podia ser resultado tanto do meio fsico,quanto do meio social. Surge a teoria social da doena (Urteaga, 1980:06).

    Estudos realizados durante a epidemia de clera de 1832 estabeleceram uma relao quase cons-tante entre a gravidade dos sintomas e a exigidade das habitaes. As devastaes mais mortferasocorriam nos bairros mais densos e entulhados. O relatrio evoca a existncia de laos entre lugares eclasses miserveis. Segundo mdicos e socilogos, existia uma populao que favorecia a epidemia:aquela que apodrece na lama ftida(Corbin, 1986:183).

    Os mdicos e higienistas preocupados com a atmosfera viciada das habitaes insalubres, clamamsobre a necessidade de dar ar aos pobres. A higiene domstica, que tende a se transformar em higienedas famlias, engendra uma forma de habitar tributria da medicalizao do espao privado. O espaode moradia dissociado do espao do trabalho. Destina-se uma casa para cada famlia. A arquiteturaprivada esfora-se de promovera especializao dos lugares e a designao de suas funes (Corbin,1986:198/190).

    Foucault (1984:94/95) chama esta corrente da Medicina Social de medicina dos pobres, medici-na da fora de trabalho. A difuso desta corrente se d principalmente na Inglaterra, durante a Revolu-o Industrial, quando o pobre perde a sua funo social e se torna perigoso, tanto por ser consideradoum foco disseminador de doenas, como por tornar-se fora poltica que capaz de se revoltar. Nasegunda metade do sculo XIX, o parlamento ingls vota aLei dos Pobres, assegurando a sade e aomesmo tempo o controle mdico do pobre. Foi permitida a interveno no espao privado, principalmen-te na casa do pobre. Este, alm de submeter-se s normas de comportamento e sujeitar-se a inspees,devia respeitar regras de construo estabelecidas em leis.

    No final do sculo XIX ocorre uma reorientao da Medicina com a emergncia da bacteriologia,transformando-se as maneiras de combate a doenas contagiosas e miasmticas. A higiene tradicional,

    baseada no supra individual (meio ambiente, marco social, etc) d lugar a nova medicina cientificaque se centrar no individuo e nos fenmenos internos do organismo (Urteaga, 1980: 21/22).Fundamentados nestas teorias, a partir do final do sculo XVIII, os mdicos passam a realizar

    levantamentos das caractersticas fsicas, sociais, econmicas e culturais dos lugares. Eram as chamadastopografias mdicas, que contriburam para diagnosticar os males e localizar as doenas no espao.Atravs delas podia-se indicar os lugares sos e enfermos, as zonas onde era possvel habitar e aquelasque se deveriam evitar. As topografias das cidades desenham os princpios gerais do urbanismo organiza-do.

    Estas topografias constataram que o meio urbano era o mais insalubre para a populao, o focodisseminador das epidemias, fato que j havia sido denunciado por mdicos, escritores e polticosiluministas. A cidade foi considerada a maior concentradora de problemas, de populao, de doentes, de

    casos de mortalidade, etc. A cidade passa a ser smbolo de misria, doena, perverso dos costumes,desigualdade e decadncia (Roncayolo, 1989).

    A evoluo de algumas teorias e relatos de disputas cientificas demonstra o despreparo do pensa-mento social para entender o que se passava nas cidades do sculo XIX. Estes profissionais tomavam deemprstimo as categorias originadas das Cincias Naturais e Biolgicas, pois os problemas que se apre-sentavam ao pensamento e se abriam como problema social eram ainda novos. O deslocamento do olharmdico para estes problemas fica evidente pelo uso de emprstimo de certas categorias para pensar oque se passava no universo da vida urbana. A novidade dos problemas urbanos para o pensamentoocidental do sculo XVIII estava no modo como eram tratados, ou seja, submetendo-os a umenquadramento mental e operacional da Medicina em voga na poca.

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    Higienismo e as prticas intervencionistas na cidade

    As transformaes econmicas e sociais produzidas pelo modo de produo capitalista provoca-ram uma reestruturao do espao europeu, favorecendo a concentrao da populao nas cidades egerando srios problemas urbanos. O crescimento e adensamento populacional, as revoltas urbanas,a misria, as epidemias, a violncia, os afrontamentos entre burgueses e operrios, ricos e pobres,tornam-se mais freqentes. A cidade doentia do sculo XVIII d lugar a toda sorte de pnicos e mitos,colocando sobre vigilncia mdica todo um conjunto de amenagement, de construes e de instituies.Desenvolve-se uma atitude de medo, uma angstia diante da cidade. Nasce o que Foucault chamou demedo urbano: medo da cidade, angstia da cidade que vai se caracterizar por vrios elementos;medo das oficinas e fbricas que esto se construindo, do amontoamento da populao, das casasaltas demais, da populao numerosa demais; medo, tambm, das epidemias urbanas, dos cemit-rios que se tornam cada vez mais numerosos e invadem pouco a pouco a cidade; medo dos esgotos,das caves sobre as quais so construdas as casas que esto sempre correndo o perigo de desmoro-nar....Este pnico urbano caracterstico deste cuidado, desta inquietude poltico-sanitria que seforma medida em que se desenvolve o tecido urbano (Foucault, 1984:87).

    Os mdicos higienistas que criticavam a falta de salubridade nas cidades acusavam como respons-

    veis as condies de vida e trabalho, o amontoamento da populao, a desordem do espao urbanoe apontavam e localizavam os focos produtores de miasmas, os espaos que deveriam ser alvo deintervenes.

    Depois de diagnosticado o mal, de localizada a doena no espao, o mdico vai tornar o ambientesalubre, atravs da medicalizao, da higienizao da sociedade e do espao. Foucault lembra quesalubridade no a mesma coisa que sade. A salubridade um estado das coisas, do meio, transforma-do e racionalmente preparado de modo que a sade dos indivduos possa ser assegurada Atravs dahigiene pblica se faz o controle poltico-cientfico do meio, modificando-o para torn-lo salubre. Ahigiene, portanto, a tcnica de controle e de modificao dos elementos materiais do meio que sosuscetveis de favorecer ou, ao contrrio, prejudicar a sade (Foucault, 1984:93).

    Ahigiene pblica fundada como disciplina de interveno. A Medicina higienista do sculo XIX,

    visando ao controle do meio, do espao, aponta para uma proposta intervencionista. Ela se properecuperar a salubridade do ambiente a partir da medicalizao dos espaos doentios. Os mdicos,depois de espacializar a doena, depois de localizar os ambientes insalubres (hospitais, prises, matadou-ros, cemitrios, quartis, barcos, instalaes porturias, casa do pobre etc), isolam no sistema urbano asregies a medicalizar de urgncia e que devem constituir pontos de aplicao de um exerccio do podermdico. Elaboram tambm medidas de tipo higinico-social que possam contribuir para a melhoria dasade e das condies de existncia da populao. Propem o ordenamento do espao urbano e ainterveno no meio doentio. Ou seja, fazem propostas de medicalizao da cidade. Medicalizar acidade, higienizar significa controlar, intervir nos ambientes suscetveis de prejudicar a sade.

    Esta preocupao em medicalizar a cidade e seus habitantes observada naEnciclopdia de

    Higiene e Medicina Pblica, dirigida pelos Dr. Jules Rochard e publicada em 1897. O terceiro volume,

    voltado Higiene Urbana, faz recomendaes sobre a construo de cidades e detalha a abertura, con-servao e pavimentao de ruas (dimenso, largura, inclinao, orientaes, revestimento, limpeza ecirculao). Ao tratar da cidade subterrnea, discute normas para a drenagem do subsolo, o uso dasfontes e guas subterrneas, orienta o traado, forma, dimenso e manuteno dos esgotos e o tratamen-to e destino dos resduos. Na construo das habitaes (privadas e coletivas), preocupa-se com alocalizao, escolha e preparao do solo, seleo do material (fundaes, paredes, piso e teto) e com aforma, disposio e dimenses dos compartimentos (quartos, salas, cozinha, banheiros, corredores etc).Alm disto, tambm faz proposta para os estabelecimentos pblicos, como teatros, hospitais, prises,matadouros, feiras, mercados, banhos e banheiros pblicos.

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    As posturas urbanas de Fortaleza e o discurso mdicoO discurso mdico higienista rebate-se nos planos urbanos, nas reformas urbanas e na legislao.

    Destacam-se os cdigos de posturas que vo disciplinar o modo de vida da populao, organizar oespao urbano e normatizar as edificaes.

    O Cdigo de Posturas e de Higiene de Fortaleza, de 1835, exige dos moradores a manuteno dalimpeza pblica. Determina que todos os habitantes desta Cidade, e Povoaes do municpio, ou

    sejo proprietrios, ou rendeiros, so obrigados a trazerem limpas as frentes de suas cazas, becos,e fundos de quintaes por onde haja trnsito pblico.... e probe lanar na rua animais mortos e outrasimundicesque causam mau cheiro (Campos, 1988:64).

    Visando circulao e preservao da qualidade da gua, o presidente Bittancourt proibiu, atravsda Lei n. 328 de 19.08.1844, a lavagem de roupa ou de qualquer objecto, que concorra paraputrefao das guas, nos lugares que no tem esgotadouros que offereo uma corrente perenne(Campos, 1988:78).

    A regulamentao de edificao, alinhamento, limpeza, desempachamento das ruas, praas,ces, reparos e demolio de edifcios dada pela Resoluo n. 1162 de 3.08.1865. Estas posturas daCmara Municipal de Fortaleza disciplinam tambm os curtumes, salgadeiras, estabelecimento defabricas, depsitos, manufacturas, e tudo quanto possa alterar a salubridade pblica, encommodar

    a visinhana e os matadouros, curraes, aougues, ou talhos, feiras, pastagens de gado destinadoao consumo, ao servio dos muncipes, cercas, vallados e mercados (Campos, 1988:93).

    Semelhante ao Cdigo de Posturas de 1865, o de 1870 determina as dimenses altura, portas ejanelas, vergas, claros, frentes, soleira, caladas e passeios, cornijas e platibandas... das casas quehouver de construir dentro dos limites da cidade, disciplina a desobstruo e limpeza das ruas epraas, a criao de animais, o uso de audes, riachos, fontes, ou aguadas e a distribuio dgua potvelpara consumo. Preocupado com a Salubridade das casas, quintaes, ruas e esgotamentosprobe: acreao de porcos dentro da cidade, povoaes e nos respectivos arrebaldes; Ter cloacas e monturosnos quintaes das casas; Fazer limpesa ou despejo de matrias fecaes em outro logar, que no sejana praia do porto das jangadas para baixo, e da ponte do desembarque para cima; Fazer a mesmalimpeza em vasilhas descobertas, ou antes das 10 horas da noite; Fazer o depsito de lixo tiradodas casas e quintaes em logares que no tenham sido designados pela cmara; Lanar immundiceisnos tanques, poos, ou depsitos dgua; Lavar roupa de pessoas acommettidas de molstias con-tagiosas em outro lugar, que no seja a foz do ribeiro denominado Jacarecanga (Campos, 1988:108).

    O Cdigo Sanitrio de 1918 ao tratar das habitaes em geral determina a fiscalizao das condi-es de hygiene e asseio e a desinfeco no caso de terocorrido na casa, commodo ou estabeleci-mento que vagar, algum caso de molstia infectuosa. Para a construes e reconstrues de edificaes,exige que as plantas sejam submetidas a exame das autoridades sanitrias e que o saneamento do soloseja feito antes de iniciar construo. Alm disto devem ser observadas algumas normas: O soalho doprimeiro pavimento deve ficar afastado do solo, cincoenta centmetros, pelo menos; Todos os com-partimentos de immvel tero sempre aberturas, portas ou janelas, para o exterior, ou clarabias,

    de modo que recebam luz e ar directo; Todos os aposentos tero no mnimo trinta metros cbicos decapacidade, sendo de trez metros e cinqenta centmetros o seu p direito; As cosinhas seroinstalladas longe dos aposentos de dormir, no devero communicar com as latrinas, e sero abun-dantemente providas de ar e luz; No podero servir de aposento de dormir as cosinhas, as copas,os banheiros e latrinas; Todos os edifcios e habitaes devero ter canalizao especial de condu-es das guas pluviais para os esgotos, ou sargetas das ruas; As latrinas s podero funcionar emcompartimentos que receberam directamente luz e ar do exterior e tero sempre caixa de lavagem,de jacto provocado, coberta de maneira a no permitir a entrada de mosquitos .

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    Estas normas sintetizam, em parte, os ideais da cidade salubre e da casa higinica idealizada pelosmdicos e urbanistas utpicos. O disciplinamento do espao urbano, a escolha da localizao e normatizaodas edificaes, o tamanho dos compartimentos, a especializao dos espaos domsticos, o saneamen-to do solo visam a garantir iluminao natural, circulao do ar, da gua e dos dejetos, impedindo, assim,uma constituio epidmica, a formao de miasmas ou o surgimento de vetores responsveis pela pro-pagao das doenas.

    Consideraes finaisFundamentado na concepo geogrfica de doena, o discurso mdico higienista, dominante no

    sculo XIX, contribuiu para um novo pensamento sobre a cidade e a sociedade urbana. A MedicinaSocial urbana centrou sua anlise sobre as coisas, as condies de vida e de meio de existncia dapopulao, relacionando homem doente, natureza e sociedade. O meio (natural e social) foi consideradocomo fator fundamental para explicar a grande mortalidade urbana.

    O discurso mdico, com base em teorias neo-hipocrticas, contribuiu para grandes reflexes sobrea cidade doentia e favoreceu a elaborao de projetos de reforma urbana e de leis que disciplinaram aexpanso urbana. Cdigos de postura e cdigos sanitrios, marcados por uma nova concepo de cida-de salubre, higinica, ordenaram as construes e o traado urbano, disciplinaram a vida da populao e

    contriburam para urbanizao da sociedade. As prticas urbanas foram marcadas pelas novas concep-es de sade/doena dominante no sculo XIX .

    Uma teoria analtica, que comeou tomando como base a analogia entre o corpo humano e suasfunes para se pensar o funcionamento do corpo da cidade, evolui para uma categorizao mais preci-sa do diagnstico dos males que afligiam a cidade at a proposio de intervenes urbanas. As etapaspelas quais passou o pensamento social sobre a cidade e seus males no uma exclusividade do pensaro urbano. Prender-se s categorias autorizadas e mais importantes de uma outra disciplina um recursorecorrente nas cincias. Tomar a Medicina como cincia paradigmtica talvez se explique pela enormecontribuio tcnica que estava produzindo para a sociedade. preciso lembrar que a vida se tornara,apenas no sculo XIX, objeto de investigao autnoma dentro das cincias e isto a colocava como umacincia avanada. Os problemas sociais oriundos das transformaes econmicas produzidas pelo modode produo capitalista ainda estavam no comeo, mas j demonstravam fortes indcios do que viria pelafrente. Fenmeno urbano novo, categorias oriundas de outro campo de saber, mas autorizado, permitiamoperar sobre uma realidade emergente. Em nome deste discurso mdico e da defesa da vida, corposindividuais foram controlados e submetidos a uma rgida racionalidade mdica, e isto era apenas umprenncio do que se viria realizar nas monumentais intervenes urbanas da segunda metade do sculoXIX. J no eram mais os mdicos que orientavam os urbanistas e remodeladores urbanos, mas seussucessores, os engenheiros sanitaristas.

    NOTAS

    (1) Sobre o processo de europeizao e urbanizao da sociedadebrasileira, ver Jaime Larry Benchimol e Jurandir Freire da Costa.

    (2) A teoria miasmtica tambm chamada por Jacques Leonard(1986:55) de teoria infeccionista.

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  • 8/2/2019 A cidade e o pensamento mdico_uma leitura do espao urbano

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