A CIÊNCIA EM ESPELHOS

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A CIÊNCIA EM ESPELHOS: ANTROPOLOGIA, COLONIALISMO E HOMEM OCIDENTAL O livro de Michael Taussig Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem é um exemplo bem sucedido de uma etnografia que postula a realidade como inerente à sua interpretação. Com um enredo marcado pelos relatos históricos do terror e pelas narrativas da cura xamanística coletadas no sudoeste colombiano durante cinco anos de pesquisa entre 1969 e 1986, o autor nos oferece a possibilidade de olhar os acontecimentos da região através de um discussão polifônica sobre os vários problemas, fenômenos e dilemas re- siginificados pela herança de um colonialismo distante historicamente, mas sempre presente no imaginário da América Cristianizada. Logo nos primeiros momentos do texto, o autor apresenta ao leitor os caminhos pelos quais ele passará ao resolver aceitar o diálogo que lhe é proposto. Um diálogo irrecusável para quem acredita que a intangibilidade existente entre os vários imaginários criados pelos grupos sociais não se transforma em uma barreira para se pensar as várias dimensões do ser humano. Tendo como referências teóricas a crítica marxista da Escola de Frankfurt, especialmente com Walter Benjamim, o realismo grotesco de Bakhtin, o discurso do poder de Michael Foucault, a dramaturgia de Brecht e Artaud e o surrealismo como mediações da interpretação e da representação, Taussig elabora o seu discurso textual através da técnica de montagem, cujo objetivo é estilhaçar o imaginário da ordem natural da linearidade científica ocidental. Reunindo dados históricos, textos literários e suas experiências pessoais com o poder alucinógeno do yagé com seus rituais nas curas xamânicas, o autor tem como objetivo apresentar narrações do terror e da cura no Putumayo, região intermediária entre os Andes e a Floresta Pluvial da Bacia do Alto Amazonas, na Colômbia. Ele estabelece como fio condutor o terreno dialógico em torno do espaço da morte, dividindo sua obra em dois momentos: a análise histórica sobre o terror instaurado pelo ciclo da borracha, e o estudo etnográfico sobre o imaginário da cura entre a população da região da Amazônia Colombiana. Lançando mão da justaposição dos discursos, súbitas interrupções, mudanças de cena, entre outros

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A CIÊNCIA EM ESPELHOS:

ANTROPOLOGIA, COLONIALISMO E HOMEM OCIDENTAL

O livro de Michael Taussig Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem é um exemplo bem sucedido de uma etnografia que postula a realidade como inerente à sua interpretação. Com um enredo marcado pelos relatos históricos do terror e pelas narrativas da cura xamanística coletadas no sudoeste colombiano durante cinco anos de pesquisa entre 1969 e 1986, o autor nos oferece a possibilidade de olhar os acontecimentos da região através de um discussão polifônica sobre os vários problemas, fenômenos e dilemas re-siginificados pela herança de um colonialismo distante historicamente, mas sempre presente no imaginário da América Cristianizada.

Logo nos primeiros momentos do texto, o autor apresenta ao leitor os caminhos pelos quais ele passará ao resolver aceitar o diálogo que lhe é proposto. Um diálogo irrecusável para quem acredita que a intangibilidade existente entre os vários imaginários criados pelos grupos sociais não se transforma em uma barreira para se pensar as várias dimensões do ser humano.

Tendo como referências teóricas a crítica marxista da Escola de Frankfurt, especialmente com Walter Benjamim, o realismo grotesco de Bakhtin, o discurso do poder de Michael Foucault, a dramaturgia de Brecht e Artaud e o surrealismo como mediações da interpretação e da representação, Taussig elabora o seu discurso textual através da técnica de montagem, cujo objetivo é estilhaçar o imaginário da ordem natural da linearidade científica ocidental. Reunindo dados históricos, textos literários e suas experiências pessoais com o poder alucinógeno do yagé com seus rituais nas curas xamânicas, o autor tem como objetivo apresentar narrações do terror e da cura no Putumayo, região intermediária entre os Andes e a Floresta Pluvial da Bacia do Alto Amazonas, na Colômbia.

Ele estabelece como fio condutor o terreno dialógico em torno do espaço da morte, dividindo sua obra em dois momentos: a análise histórica sobre o terror instaurado pelo ciclo da borracha, e o estudo etnográfico sobre o imaginário da cura entre a população da região da Amazônia Colombiana. Lançando mão da justaposição dos discursos, súbitas interrupções, mudanças de cena, entre outros recursos, o autor rompe com a tentativa do ordenamento narrativo, estabelecendo um vínculo entre o terror enquanto uma herança colonial e a cura enquanto um contradiscurso.No interior desta lógica discursiva três personagens principais representantes da lógica do capitalismo colonial são colocados em cena: Roger Casement, Joseph Conrad e Júlio César Arana.

O irlandês Roger Casement, Cônsul britânico no Congo, enforcado por traição, foi a pessoa escolhida pelo governo inglês como representante consular no Putumayo, com a finalidade de apurar a veracidade das denúncias feitas pela revista londrina Truth, em 1910. Seus relatórios sobre o Putumayo deram origem a uma comissão de investigação aberta em caráter oficial, no dia 13 de julho de 1913 por Sir Edward Grey, Ministro das Relações Exteriores da Grã-Bretanha. As intervenções brutais praticadas pela companhia de borracha do comerciante peruano Júlio César Arana contra as populações índigenas chocaram os ingleses.O polonês e escritor Joseph Conrad entra em cena tanto no texto de Taussig como na vida de Casement como um contraponto a uma postura em relação ao

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colonizado, e mais ainda, através da sua obra literária sobre a sua experiência no Congo e suas cartas de abandono à amizade de Casement, como um legítimo representante dos problemas cruciais da dominação cultural e das culturas de dominação.

Taussig entrelaça a vida desses três personagens com a realidade fantasmagórica da borracha colombiana, mercadoria fetichizante não somente pela sua importância no mercado europeu do ínicio do século, mas também pela quantidade de vidas ceifadas na sua produção.

Na justaposição dos dados obtidos por Casement com os da comissão britânica e dos relatos dos padres capuchinhos, entre várias outras fontes apresentadas por Taussig, o terror se mostra como elemento ambíguo. A extração da borracha no Putumayo estabeleceu entre o conquistador branco e a mão-de-obra indígena uma interação situada muito além da lógica estritamente econômica. Os brancos delegavam aos negros e mestiços a responsabilidade de organizarem as "correrias", expedições planejadas especificamente para "conquistar" a mão-de-obra selvagem. Este é o principal problema discutido à exaustão pelos componentes desta comissão: compreender o significado do conceito "conquistar". É na declaração irônica de Júlio César Arana que o terror da conquista colonial torna-se clara: "Porque esa palabra 'conquistar', que segun me han dicho en inglês suena muy fuerte, nosotros la usamos en español para atraer a una persona, conquistar sus simpatias" (46). A ambigüidade do termo correria perturbava os ingleses.

Os relatos obtidos por Casement através do depoimento de trinta negros de Barbados contratados como capatazes de Arana descrevem mais cruamente esta prática de conquistar simpatias. Todos eles possuem um conteúdo muito parecido: "Vi índios mortos por esporte, amarrados em árvores e baleados por Fonseca (o administrador do seringal) e por outros homens. Depois de beber, eles, de vez em quando, agiam assim. Tiravam um homem do cepo (tronco), amarravam-no em uma árvore e praticavam nele o tiro ao alvo. Frequentemente tenho visto índios morrerem desta forma, e também baleados, depois de serem açoitados, com a carne podre, ruídas pelos vermes" (65s).

Mesmo apresentando em seu relatório depoimentos sobre as mais variadas formas de tortura, é de se notar que no período que Casement passou no Putumayo ele mesmo não observou diretamente nenhuma "correria" e nenhuma sessão de espancamento, apesar de observar as cicatrizes impregnadas como "tatuagens" pelos corpos dos gentis.

É neste tipo de contradição que está a força do trabalho de Taussig. Ele alterna e confronta vários tipos de relatos/olhares: os obtidos por Casement sobre a violência imposta pelos brancos conquistadores; a visão de viajantes europeus e americanos sobre seus encontros e experiências com a selvageria e o canibalismo dos "infieles"; a visão de índios sobre todo esse processo. Ele possibilita, assim, ao leitor, uma interação com a riqueza dos contrários. O terror imposto pelos brancos em contraposição ao olhar do nativo complexifica as ambigüidades do espaço da morte.

Deve-se ressaltar que esta morte não é somente física mas social e econômica, estabelecendo uma relação de exploração da população indígena e mestiça. As dívidas eram vendidas de um seringal a outro, e, desta forma, como aponta Taussig, não era o produto do trabalho humano enquanto mercadoria que se tornava um fetiche, mas sim, a própria dívida. É o que ele

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denomina de "fetichismo da dívida" (82), pois "o que torna o homem um homem... é... sua dívida" (82).

Para Taussig, o estilo adotado por Casement era de tentar situar tudo isso a partir de uma racionalidade capitalista utilitária, mas em um contexto no qual não havia exatamente instituições ou práticas capitalistas. Para isso, o autor dirige-se aos aspectos míticos presentes em todo esse processo e que estão também incluídos na ação simultânea que envolve selvageria e negócio, canibalismo e capitalismo. A reconstrução de toda essa realidade fictícia acaba sendo um de seus principais objetivos, não com o fito de desmascará-la, mas no sentido de uma realidade múltipla e inerente ao ponto de vista de quem observa.

O autor volta a Casement também para refletir sobre o medo à rebelião indígena que segundo o cônsul era improvável, mas servia para intensificar os horrores promovidos pelo branco. Os argumentos do cônsul baseavam-se na docilidade, na desunião das comunidades e na inferioridade dos armamentos indígenas. Entretanto, outros relatos sobre massacres de brancos realizados por índios levam Taussig a entender que o medo de revoltas indígenas tinha suas razões. Esse é um dos instrumentos prediletos do autor: mostrar opostos que jamais poderão ser reduzidos a um denominador comum.

Havia também muitos costumes dos índios que entravam em conflito com os dos brancos, ainda que outros fossem canalizados para as necessidades da companhia. Por exemplo, o ritual denominado pelos brancos de chupe del tabaco que consistia na sucção de uma infusão de tabaco praticado pelos índios adulto foi envolvido pelos brancos numa aura de magia e mistério. Um explorador francês, Eugenio Robuchon, afirmava que nesse rito os índios relembravam a liberdade perdida e juravam vingança contra os brancos. Em torno deste ritual circulavam histórias que representavam momentos nos quais os índios celebravam algum acordo secreto.

A história do rito huitoto da pena de morte é outro exemplo. Contava-se que o branco ao se tornar prisioneiro ficava no centro de uma roda de índios que dançavam. Para que soubesse o que perderia com a morte, uma bela moça da tribo dançava em sua frente fazendo movimentos sensuais. Em seguida, os homens, dançando, aproximavam-se do centro e lhe dirigiam frases nas quais cobravam os parentes que perderam no confronto. Por fim, arrancavam nacos da carne do infeliz até que morresse, e ainda assim continuavam a devorá-lo após sua morte até não sobrar mais nada.

Como se pode perceber, a simples prática de contar histórias era um meio de inspirar o terror. E o agente sociológico melhor situado para isso eram os muchachos - índios criados desde pequenos entre os brancos com o objetivo de compor um corpo de guarda indígena. Eles contavam constantemente histórias de execuções e punham em prática todos os horrores que a mitologia branca havia imaginado sobre os selvagens. Assim como compravam a borracha dos índios, através dos muchachos, os brancos compravam também os "instintos selvagens" que imaginavam ser próprio dos índios.

Histórias como essas, para Taussig, fertilizaram a imaginação colonial e constituíram força política poderosa que permitiram não só a extração da borracha, mas toda a conquista. Foram elas que eram a base mesma de um realismo mágico que oscilava entre o sonho e o pesadelo, a verdade e a ilusão,

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produzindo uma força social e política de grande dimensão. A conclusão do autor é surpreendente: "A única maneira que encontravam para viver nesse mundo aterrorizante, (...) era inspirando eles mesmos o terror." (1983:60)

Na segunda parte do livro o autor dedica-se a investigar como a cura nos rituais com o yagé pode mobilizar o terror e ao mesmo tempo subvertê-lo. Grande parte do material que recolhe é fruto de sua vivência entre o povo da região do Putumayo, sobretudo com os xamãs Santiago (índio) e José Garcia (um dos raros brancos que se dedicava a essa atividade). Em contato com o xamanismo o autor encontrou um novo modo de representação da cultura do terror na construção do seu texto. Mas para reconstruir essas idéias o autor também se utiliza de narrativas que extrapolam a época em que viveu no lugar.A maioria dos pacientes dos xamãs Putumayos constitui-se basicamente de pessoas pobres, cujo principal temor, base de seus infortúnios, doenças, fracassos e frustrações, era a inveja. Esta sempre aparecia correlacionada com a feitiçaria, que os motiva a procurar os xamãs na possibilidade de contra-ataque à feitiçaria. Na verdade, "a inveja não é tanto a causa da feitiçaria e do infortúnio, quanto uma força discursiva imanente empregada para revolver as brasas dos acontecimentos, à procura do sentido (e da falta dele) de sua sociabilidade."

Os efeitos purgativos do Yagé, através do ato de vomitar e defecar, simbolizam a eliminação da inveja nas rodadas do chá amazônico. Este "sofrimento" propiciado pelo chá, nas primeiras horas após sua ingestão, é retratado pelo autor como uma etapa fundamental no processo de cura, simbolizando o que ele chama e descreve de espaço da morte - limiar que percorre tanto o paciente como também o xamã. A cura, nestas descrições, é um poder mágico não obtido tão-somente através de ícones do catolicismo, não obstante estes estarem presentes nas "pintas" do yagé. Ademais, a cura tem o poder de neutralizar os males da desigualdade criados dentro de uma cultura capitalista.Taussig afirma no texto que isto se dá numa espécie de pacto implícito entre índios e colonialistas, entre os xamãs e seus pacientes. Ambos são produtos de uma história colonial em comum, onde o autor nos deixa claro: "A fé religiosa e a magia envolvida no processo constituem uma epistemologia imagética que entrelaça a certeza com a dúvida e o desespero com a esperança, e na qual o sonho - dos pobres camponeses - reelabora o significado do imaginário de que as instituições de classes dirigentes, tais como a Igreja, se apropriaram, tendo em vista a tarefa de colonizar fantasias utópicas".

É nesse contexto que o índio, muitas vezes considerado como um ser inferior, cujos costumes incomodavam aqueles que se consideravam pertencentes a uma classe superior e civilizada, dá sua contrapartida quando os xamãs surgem enquanto uma fonte de poder.

Nesse sentido, a suscetibilidade à inveja é o elemento motriz da magia curativa contemporânea, através da qual a história colocou a memória a serviço de uma polifonia de vozes e imagens. A inveja, por tudo isso, dá condições de captar o conhecimento social implícito, conhecimento este que funciona como "um conjunto de técnicas para interpretar não tanto aquilo que é aparentemente direto, [mas] como as várias nuanças do significado de situações sociais" (369) aparecem na vida social. O conhecimento social implícito reúne inúmeras possibilidades de significados, e é justamente pelo seu caráter fracionado e múltiplo que as situações sugerem à atividade experimental as possibilidades que a relação social pode engendrar.(:369)

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Assim, as sessões de yagé, que trabalham com a inveja, permitem explicitar esse conhecimento social implícito em suas dimensões discursivas e imagéticas. Taussig considera a inveja "uma teoria das relações sociais que funciona não por estabelecer uma hierofania de causas, mas enquanto presença imanente ao se colorir um diálogo, estabelecer seus tons, sentimentos e repertório de imaginário."(370)

Foi no dialógo com aqueles que entendem da magia ou recorriam a ela e na experiência xamã-paciente que Taussig percebeu a hierarquia de formas e o emanharado dialético do bem e do mal ressaltando a reciprocidade dos contrários, como o cristianismo e o paganismo, Deus e o demônio (161). Aliás, foi o próprio cristianismo que introduziu o demônio entre os índios, pois os missionários acreditavam que poderiam catequizar os índios inserindo em suas vidas os símbolos do cristianismo. Acreditavam também que a prática dos rituais indígenas reforçava sua memória do paganismo, porém, ao combatê-la, acabaram por fortalecê-los como uma nova força social que possibilitou a transmissão do mito e da memória na realidade mágica dos nativos.

Portanto, é na descrição dos mitos e na evolução dos relatos pessoais contidos nesta segunda parte do livro que verificamos a resistência das tradições indígenas sobrevivendo dentro de um longo processo histórico de dominação político-econômico-religiosa. O autor retrata que é através da cura xamânica ou da magia na zona selvagem que o imaginário atua resgatando e contestando o que lhe foi tirado à força pelo império colonialista.

Nesse sentido, a cura xamânica está ligada à refiguração do imaginário, ao diálogo e à libertação. O xamanismo visto como uma relação dialógica entre o xamã e o paciente (428) fornece ao próprio antropólogo um modelo de contra-representação do terror que irá refletir também no ritual acadêmico. Tomar yagé significaria buscar a compreensão além do "esquematismo" kantiano, sendo a polifonia um exercício de articulação do saber. No exercício crítico do método dialético - em contraposição à história como um continuum - é que a polifonia e a dialogia se tornam presentes em sua obra. Após apresentar ao leitor as cenas sangrentas do ritual colonial e as cenas do ritual xamânico, Taussig constrói seu texto etnográfico basicamente a partir de pares dialéticos, contradições sem superação, saltos e diferenciações por oposição que impossibilitam tratar a realidade enquanto um identidade.

Algumas vezes se inspirando em Michael Foucault, diz "ver historicamente como os efeitos da verdade são produzidos no interior de discursos que, em si mesmos, não são nem verdadeiros, nem falsos." (30). A reflexão com esse efeito da verdade tem poder não só em organizações sociais mas, também, no próprio modo de escrever e interpretar as histórias. As etnografias dentro deste saber antropológico têm sido muito discutidas na escola norte-americana. Essa questão política da etnografia faz o autor pensar em como assumir o contradiscurso e "que espécie de compreensão, de fala, escrita e construção do significado" pode subverter o representado, pois a rede social está impregnada de um mundo simbólico. A ficção "pré- kantiana" do mundo racionalista e utilitário não faz sentido na cultura do terror (31). E, por conseguinte, nem na antropologia.

Todo esse material sobre o rito em torno do yagé leva Taussig a questionar as interpretações sobre os rituais como reforçadores da solidariedade, da unidade e da partilha comum de sentimentos. Questiona o modelo de communitas que

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Victor Turner postula como característica universal do ritual. As sessões de yagé são a antítese da homogeneidade, instauram a ruptura, a mistura, o modo alegórico mais que o simbólico. À visão do ritual como algo que estrutura e solidifica a sociedade, Taussig contrapõe uma noção baseada na "infinita perspectiva dos conflitos." (412) O ritual foi vinculado pelos antropólogos à ordem que esta foi identificada como o próprio sagrado, enquanto a desordem se viu relegada ao plano do mal. As sessões de yagé desafiam essa concepção e promovem ainda a reflexão dos rituais que envolvem a produção dos textos acadêmicos e os meios de criação da autoridade intelectual. As próprias convenções a respeito do que faz sentido ou não são postas em cheque.(413-414)

Ao se terminar de ler o livro, a lacuna entre a primeira e a segunda parte pode parecer grande, mas temos pelo menos um tema em comum: o tema "cultura do terror, espaço da morte", aproveitando o título do primeiro capítulo, está presente em todo o livro. Sendo que na segunda parte, há uma subversão deste espaço.

Há também uma problematização de fundo que percorre da primeira página até a última. O que é que vemos? O que é que dizemos que vemos? O que é que pensamos entender da fala do outro? O que é que entendemos que os outros dizem que vêem em nós? Esse jogo de espelhos entre um e outro é um tema transversal do livro. Está do começo ao fim. E neste jogo de reflexos, muitas das certezas dos personagens dos livros, mas também as nossas, vão sendo descontruídas. A imagem que índios e colonizadores têm um do outro só pode ser pensada nesse jogo relacional, sendo que as relações de poderes estão muito bem demarcadas. Onde mora o canibal: nas florestas amazônicas ou na cabeça dos europeus? Taussig não irá tomar partido, dizendo apenas que a verdade é relacional, com sérias conseqüências políticas. Em suas palavras: "o tema por mim abordado não é a verdade do ser, mas o ser social da verdade; não é verificar se os fatos são reais, mas em que consiste a política de sua interpretação e representação" (15). É ainda Taussig que afirma que seu objetivo não é somente mostrar "o entrelaçamento do fato e da ficção, mas da política e da ficção" (20). Não há verdade a ser descoberta nas documentações analisadas pelo autor na primeira parte. Assim, não é seu intuito tomar partido entre índio (ou canibal) ou europeu (ou torturador). Porém mostrar que a representação que um faz do outro possui conseqüências políticas das mais desastrosas neste caso. O europeu que desembarcava nas terras latinas já vinha imbuído de uma forma de se pensar o nativo que muitas vezes preferia calá-lo antes que este o "comesse". Porém, se o índio realmente comia aquele ser cheio de doenças, já que o simples chegar perto matava-os todos com doenças incuráveis, é outra questão. A verdade dos fatos é irrelevante. Mas as conseqüências das representações é fundamental. Nesse sentido, a distinção entre realidade e ficção deixa de ter até mesmo sentido, mas a análise dessa realidade ficcional, seja para a morte, seja para a vida, passa ser seu objeto fundamental de análise.

Mas este jogo de espelhos tem uma seta bastante demarcada. Na primeira parte, ainda que haja representações de representações ad nauseam, o fato é que nesta relação índios foram dominados e massacrados. Tudo é muito "claro" na seguinte passagem, sobre a relação entre índio e branco, pois havia uma subordinação entre a "compreensão que o índio tinha da compreensão do branco em relação ao índio à compreensão que o branco tinha da compreensão ao índio em relação ao branco" (118). Neste espelhamento entre duas culturas, havia um dominante, o detentor de espingardas.

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Na segunda parte, entretanto, temos uma dupla forma de cura. De um lado havia a cura dos pacientes em si, com suas doenças as mais variadas, mas havia também a cura da história das atrocidades e dominação. E mais do que isso. Simbolicamente, o xamã apropriava-se da mitologia do dominador para fazer suas curas e simbolicamente sobrepôr-se ao dominador, curando os brancos. De um lado havia o dominador massacrando o índio. De outro, havia o índio curando o dominador (assim como os dominados).

Assim, ao finalizarmos nossa leitura chegamos a seguinte conclusão: poucas vezes devemos levar tão a sério a primeira frase de um livro como este de Taussig. "Este livro, dividido em duas partes, terror e cura, fia-se em muito pouca coisa e deixa ainda menos coisas em seu lugar." ( ) Especialmente se tomarmos como referência a segunda parte, o livro fia-se em conversas em torno da bebida yagé, suas reuniões, curas, visões, vômitos etc. Página após página, vamos nos acostumando àquela forma de olhar as coisas do mundo, especialmente quanto o espaço da morte ronda as pessoas, seja esta morte física ou não. Espaço propício para o estudo das "superstições camponesas" (336), já que a morte em todas as culturas do mundo é geradora de toda uma simbolização especialmente a de caráter religioso. E o ponto a partir do qual Taussig passa a analisar o mundo é o de alguns curadores. É para ali que se dirigem todos os que procuram um cuidado especial diante de momentos delicados de suas vidas: a doença que não cessa, o bar que não progride, o gado que baba, o plantio que não deslancha, o vizinho que briga etc. É a partir do espaço da cura e da morte, quanto o negativo da vida sobrepuja-se ao positivo, que Taussig arma sua questão de análise. Por fim, é para a Colômbia que ele vai, e não para a Espanha ou Inglaterra.

Praticamente toda a segunda parte do livro passa em cenas desse gênero, e talvez não é por outra razão que Taussig afirma que seu livro se fia em muito pouco, e deixa menos ainda ao terminar. E com razão.

Cabem por fim algumas notas sobre as teorias subjacentes no livro.Antes, porém, algumas observações. Uma obra bem escrita sempre traz embaraços para o comentador, pois onde termina o objeto e onde começa a fundamentação teórica do autor? Em Taussig, tudo parece bastante entranhado. Toda esta questão que vimos analisando atrás sobre o reflexo das representações poderia muito bem estar colocada aqui nesta questão metodológica. Ademais, não queremos fazer uma reconstrução exaustiva sobre seus métodos e teorias, mas ressaltar apenas a importância de Walter Benjamin neste livro.

Benjamin escreve contra o historicismo alemão e contra o a historia progressiva da social democracia. Em suas teses sobre a história, ele escreve que "a idéia de um progresso da humanidade na história é inseparável da idéia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo". Para Benjamim, a história tem de ser pensada através da noção do "tempo de agora", ou como ele escreve em sua 14ª. tese, "a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homegêneo, mas um tempo saturado de 'agora'". Sua tarefa é sobretudo estilhaçar a idéia de continuum da história. O tempo presente (Jetztzeit) está carregado de passado, mas enquanto citação, atualização no acontecimento único.Isso nos remete para sua concepção da relação entre passado e presente. E aqui suas leituras de Proust são fundamentais, como nos lembra Gagnebin: "Proust não reencontra o passado em si - que talvez fosse bastante insosso -,

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mas a presença do passado no presente e o presente que já estava lá, prefigurado no passado, ou seja, uma semelhança profunda, mais forte do que o tempo que passa e que se esvai sem que possamos segurá-lo. A tarefa do escritor não é, portanto, simplesmente relembrar os acontecimentos, mas 'subtraí-los às contingências do tempo em uma metáfora'". As passagens em Taussing que podem atualizar este pensamento são inúmeras, mas citemos apenas uma:

 Minha experiência com os xamãs do Putumayo sugere que é assim que eles agem, e que o poder mágico de uma imagem como a dos Huitoto está no fato de que ela questiona e solapa insistemente a busca da ordem. Na medida em que a imagem Huitoto, na cantiga do xamã das montanhas, pode incorporar uma narrativa da redenção, a partir do terror colonial, ele funciona como uma alegoria que enreda a desordem do infortúnio em sua própria desordem, evocando as técnicas implicadas nas 'imagens dialéticas" de Benjamin, bem como o que existe de artístico nesses rituais xamânicos, que se fazem acompanhar de montagem e das risadas. (...)

A questão pode ser brevemente resumida se compreendermos a imagem dos Huitoto, no cântico do xamã, enquanto imagem de uma selvageria domável, que sugere o paradoxo, a contradição e a magnitude do esforço descontrutivo, na história da civilização do Putumayo, e os termos segundo os quais a companhia exploradora da borracha (com sua terrível violência) e depois a igreja (com o extraordinário emprego da magia) representaram a história e a selvagem civilizadoras. (...) A questão é que para a criação do poder mágico, nos ritos de cura, o importante é que a imagem dos Huitotos torna virtualmente impossível ignorar a dependência do significado da política - neste caso uma política colonial, racista, de opressão de classes. O surgimento da imagem dialética dos Huitotos no cântico do xamã das montanhas tem como alvo, por meio de uma precisão surreal, a presunção da moderna história mundial no sentido de domar a selvageria. É uma imagem que detém o fluxo do pensamento não por meio da ordem, mas com uma interrogação: ordem de quem, selvageria de quem? Ao contrair um pacto com os Huitotos, bem como um com um cão de guarda, o xamã doma a selvageira, não para eliminá-la, mas para adquiri-la. (366s) .

A passagem mostra muito bem como a magia do xamã cita a história, não para apontar continuidades, mas para exemplicar "o entrelaçamento das memórias dos vencedores com as dos vencidos" (353). Isso significa, por um lado, que é os próprios "colonialistas brancos e não os índios que inculcariam em suas tradições aquilo que eles consideravam magia e religião indígenas" (363); mas, por outro, que os índios incorporariam elementos do imaginário colonizador e da própria história, já que a "história da boom da borracha, que incluía o terror e a diáspora, prontos para serem moldados no espaço da morte - a morte do pecador, o Juízo Final, o céu e o inferno" (363).

Nesse sentido, o tema inicial de sua abordagem, o espaço da morte no qual o paciente procura o xamã (ou curador), cita o espaço da morte do início do século, porém com uma diferença brutal e mesmo redentora. Antigamente, o branco, em nome da religião, tinha o poder de dominar e anular o nativo, transformado o espaço do encontro em morte. Agora, o curador, um nativo, apropriando-se da religião do dominador, haja visto as inúmeras pintas atravessadas de imagens caras ao catolicismo, tem o poder de, na hora da morte, trazer alívio aos pacientes, brancos católicos entre eles, através da fala redentora do xamã. Aqui o espaço do encontro da morte torna-se um espaço da vida, onde a magia, citando e atualizando as imagens religiosas da dominação colonizadora, transforma o infortúnio em vida, para colonizadores e colonizados.

Mas acima de tudo, deve-se ressaltar que a reconstrução de Taussig de tudo isso não privilegia uma ordem ou uma identidade de todo este processo. Antes, a fragmentação e a desordem presentes nas sessões de yagé são incorporadas na análise. Pelo menos é esse o intuito do autor.O padre pode ter tentato implantar a ordem no mundo caótico do nativo, reestruturando toda sua visão de mundo. Também o antropólogo pode querer colonizar o mundo do nativo ao tentar re-ordenar seu mundo. É o que depreendemos de suas passagens quando comenta Levi-Strauss.

Mas agora, enquanto a fumaça se dissipa, não descobrimos que essa mesma análise [de L.S sobre o xamanismo] constitui também um rito mágico, embora revestido com as roupagens da ciência? Aqui a figura controladora é a do antropólogo ou do crítico que ordena um significado no veículo do texto, para sempre feminino, desordenado, passivo, de modo a 'permitir' a liberação de um novo significado, resgatado da obstrução da desordem. (366)

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Se o paciente permanece em silêncio, enquanto o canto do xamã o preenche com um imaginário que ordena o caos de seu ser (428), o que faz o antropólogo senão ordenar o mundo caótico do nativo em um mundo ordenado e racional para os pares da Academia?

E aqui chegamos ao último ponto de sua crítica, ainda que de uma forma muito velada. Toda sua incorporação da fragmentação e da desordem para dentro da própria ciência antropólogica deixa um registro enigmático de seu próprio local de análise, ainda que a referência fosse ao xamã:

No que se refere a essa história e a essas práticas, isto é, os índios que são convocados para propiciar um poder mágico que neutralize os males da desigualdade no restante da sociedade, existe uma dúvida relativa à realidade. A incerteza quanto àquilo que poderíamos denominar a fonte do sistema de cura mágica possui efeitos surpreendentes curativos para nós, pois nos previne contra a busca do poder mágico em um ser unitário tal qual o xamã índio. Em vez disso ela nos aconselha quanto ao local em que esse poder se cria, isto é, na relação entre xamã e o paciente, entre a figura que vê, mas não falará daquilo que vê, e afigura que fala, muitas vezes com grande beleza, mas não consegue ver. É isto que precisa ser trabalhado, se alguém deve tornar-se um curador.(417)

Naturalmente que o curador poderia ser o xamã índio, mas há possivelmente uma alegoria ao xamã antropólogo que, ao contrário dos personagens da sessão do yagé que vêem, mas que jamais terão parte na escrita de sua própria vida, não vê (ou vê através do que o nativo vê), mas será o personagem responsável por fazer a bela fala final sobre a vida do próprio nativo. Taussig tentou por todas as formas evitar de ser o próprio xamã da Academia, daí sua obra permanecer em tom aberto. Mas deve-se resgistrar que, apesar de todos os cuidados, dos discursos e contra-discursos, representações e contra-representações, da polifonia e da dialogia, vemos o mundo do Putomayo através do xamã Taussig. Ele estava ciente disso, provavelmente.

 Bibliografia:

 AUGÉ, Marc - NÃO LUGARES. Introdução a Uma Antropologia da Supermodernidade.Ed. Papirus, 1994.CALDEIRA, Tereza P. - "A presença do autor e a pós-modernidade". In: Novos Estudos Do CEBRAP, S.P., no. 21, 1988.FAUSTO, Carlos - "A antropologia Xamanística de Michael Taussig e as Desventuras da Etnografia". In: Anuário Antropológico, Ed. UnB/Tempo Brasileiro, 1986.GROSSI, Mirian - TRABALHO DE CAMPO E SUBJETIVIDADE. Florianópolis, UFSC, 1992.GEERTZ, Clifford - O SABER LOCAL. Petrópolis, Vozes, 1998_______________ _ WORK AND LIVES. The anthropologist as author. California, Stanford University Press, 1988.MARCUS, George - "Identidades passadas, presentes e emergentes: requisitos para Etnografias sobre a modernidade no final do século XX ao nível mundial". In: Revista de Antropologia, FFCLH/USP, vol. 34, 1991._________________ _ "O que vem (logo) depois da pós: o caso da etnografia". In: Revista de Antropologia, FFCLH/USP, vol. 37, 1994.MONTEIRO, Paula - "Reflexões sobre uma antropologia das sociedades complexas". In: Revista de Antropologia, FFLCH/USP, vol. 34.TAUSSIG, Michael - XAMANISMO, COLONIALISMO E O HOMEM SELVAGEM - Um Estudo Sobre o Terror e a Cera. Paz e Terra, 1993.