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Universidade Federal do Rio de Janeiro A CONFIANÇA NA CONSTRUÇÃO DOS VÍNCULOS OBJETAIS: UMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA Renata Machado de Mello 2008

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

A CONFIANÇA NA CONSTRUÇÃO DOS

VÍNCULOS OBJETAIS: UMA PERSPECTIVA

PSICANALÍTICA

Renata Machado de Mello

2008

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A CONFIANÇA NA CONSTRUÇÃO DOS VÍNCULOS OBJETAIS:

UMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA

Renata Machado de Mello

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica,

Instituto de Psicologia da Universidade Federal do

Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em

Teoria Psicanalítica.

Orientadora: Regina Herzog

Rio de Janeiro

Março/2008

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A CONFIANÇA NA CONSTRUÇÃO DOS VÍNCULOS OBJETAIS:

UMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA

Renata Machado de Mello

Orientadora: Regina Herzog

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica,

Instituto de Psicologia da Universidade Federal do

Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em

Teoria Psicanalítica.

Aprovada por:

_________________________________

Presidente, Profa. Dra. Regina Herzog

_________________________________

Profa. Dra. Marta Resende Cardoso

_________________________________

Prof. Dr. Alexandre Abranches Jordão

Rio de Janeiro

Março/2008

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Ao meu pai,

pela curiosidade sobre o mundo.

In memorian

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AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, Regina Herzog, pela acuidade acadêmica e pelo acolhimento

sempre generoso.

Aos professores e colegas da Teoria Psicanalítica, pelas contribuições ao longo do

percurso.

Ao grupo de trabalho da Casa da Árvore, pela vitalidade da psicanálise que pratica.

Ao Ary, pela instigação clínica.

À Jô, pela confiança.

Às minhas queridas amigas, dentre as muitas, Priscila, Adriana, Beatriz, Erika, Bia,

Gabriela, Bel, Patricia, Vivian, Fe, Carol, Roberta e Fernanda, pelas inúmeras

experiências compartilhadas.

Ao Gabriel, pela abertura.

À minha família – Cleusa e Rodrigo – sempre tão unida.

À CAPES, pelo auxílio financeiro.

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Chegou um tempo em que não adianta morrer.

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

Carlos Drummond de Andrade

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RESUMO

A CONFIANÇA NA CONSTRUÇÃO DOS VÍNCULOS OBJETAIS:

UMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA

Renata Machado de Mello

Orientadora: Regina Herzog

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro –

UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção de Mestre em Teoria

Psicanalítica.

Esta dissertação tem como objetivo pensar a figura da confiança como condição

de possibilidade de vínculos afetivos objetais. Procedemos a um levantamento

bibliográfico acerca do tema nas obras de Freud, Winnicott e Balint, trabalhando com a

perspectiva de uma dupla inscrição da confiança. A primeira concebida como motor

para os processos de subjetivação e, a segunda, via de acesso para a relação com os

objetos. Tentando avançar nessa direção, busca-se investigar o modo como se

estabelecem os primeiros encontros com a alteridade e seus possíveis entraves.

Palavras-chaves: dissertação; psicanálise; subjetividade, vínculos objetais; confiança.

Rio de Janeiro

Março / 2008

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RÉSUMÉ

LA CONFIANCE DANS LA CONSTRUCTION DE LIENS AVEC

L'OBJET: UNE PERSPECTIVE PSYCHANALYTIQUE

Renata Machado de Mello

Directrice de Thèse: Regina Herzog

Résumé de la Dissertation de Maîtrise soumise au Programme de Deuxième Cycle em

Théorie Psychanalytique, à l’Institut de Psychologie de l’Université Fédérale de rio de

Janeiro – UFRJ, faisant partie dês conditions nécessaires à l’obtention du titre de Maître

em Théorie Psychanalytique.

Cette thèse a pour objectif penser l'image de la confiance comme condition de

possibilité de liens affectifs avec l'objet. Nous avons fait une étude bibliographique sur

le thème dans l'œuvre de Freud, de Winnicott et Balint, travaillant avec la perspective

d'une double inscription de la confiance. La première conçue comme moteur des

processus de subjectivation, et la seconde, comme voie d'accès vers la relation avec les

objets. L'approfondissement dans cette direction, cherche à étudier comment

s'établissent les premières rencontres avec l'altérité et ses obstacles possibles.

Mots-clés: thèse, psychanalyse, subjectivité, liens avec les objets, confiance.

Rio de Janeiro

Mars/ 2008

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SUMÁRIO

Introdução: A confiança na construção dos vínculos objetais: uma perspectiva

psicanalítica.....................................................................................................................10

Capítulo 1: A experiência do amor em Freud

O Outro auxiliador...........................................................................................................15

A invenção da subjetividade............................................................................................18

Amor e Proteção..............................................................................................................22

Da impotência à possibilidade.........................................................................................29

Capítulo 2: A experiência da confiança em Winnicott

A marca winnicottiana................................................................................................….35

A construção da confiabilidade e os cuidados maternos.................................................39

Holding e Handling.......................................................................................…..42

A apresentação do mundo....................................................................................45

A experiência de confiança no espaço potencial.............................................................51

Capítulo 3: A experiência da confiança em Balint

A marca balintiana...........................................................................................................56

Amor primário.................................................................................................................60

Amor adulto.....................................................................................................................65

A falha básica..................................................................................................................67

Ocnofilia e filobatismo....................................................................................................71

Considerações Finais: A abertura para a experiência......................................................77

Bibliografia......................................................................................................................84

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INTRODUÇÃO

A CONFIANÇA NA CONSTRUÇÃO DOS VÍNCULOS

OBJETAIS: UMA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA

Meu ofício é ser a mim mesmo.

D. W. Winnicott

Esta dissertação é movida por uma inquietação sobre o modo como se

processam as transformações subjetivas no campo psicanalítico da atualidade. Pode-se

dizer que um dos maiores desafios enfrentados pela psicanálise hoje consiste na

incidência dos chamados pacientes difíceis na clínica. A expressão difícil diz respeito à

própria condução do processo analítico, ou seja, designa uma análise que “não anda”,

exigindo um remanejamento dos dispositivos terapêuticos. Se na época de Freud

costuma-se considerar que tais pacientes, que basicamente compunham a clínica

ferencziana, eram raros, hoje parece haver um consenso quanto a um aumento

significativo do seu número. De fato, desde o surgimento da psicanálise, procurou-se

circunscrever esses pacientes difíceis denominando, a partir de sua dinâmica psíquica,

das mais diversas formas; a título de ilustração, temos Stern em 1938, designando esse

modo de subjetivação de ‘borderline’, Deutsch (1942), com o conceito de personalidade

‘como se’, Winnicott em 1960 falando de organização ‘falso-self’, Balint (1968)

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referindo-se à instância da ‘falha básica’; mais recentemente, Bergeret (1985)

escolhendo o termo ‘estado-limite’, Kristeva (1993), remetendo a ‘novas doenças da

alma’, entre outros. Certamente, não devemos considerar que esses termos se

equivalem, o que acabaria por reduzir a complexidade dos pressupostos teóricos de cada

um deles. Ainda assim, vale marcar que tais designações apontam para uma

problemática comum no tocante à constituição da subjetividade. Nessa perspectiva,

discute-se também acerca do funcionamento psíquico de tais pacientes, focando,

principalmente, na dimensão narcísica, que envolve questões relativas às relações

objetais primárias (Herzog, 2006; Cardoso, 2004; Figueiredo, 2003; Pinheiro, 2003,

Jordão, 2002).

Do ponto de vista da dinâmica psíquica, observamos, na clínica, que estes

pacientes sofrem pela impossibilidade de serem eles mesmos. Tal sofrimento não pode

ser sentido ou percebido diretamente pelo indivíduo, que apenas acomoda o seu efeito

sobre si próprio. Trata-se de um sofrimento da ordem de um trauma que incide

justamente na relação do indivíduo com o mundo, acarretando um retraimento

subjetivo. O trauma aqui reporta ao não atendimento das necessidades psíquicas,

próprias de cada singularidade, num estado de dependência máxima do outro. Tal

desapontamento corresponde a uma invasão prematura e abrupta da alteridade no

psiquismo. Dada a precocidade e violência radical das falhas traumáticas, que se furtam

à representação, são os próprios processos subjetivos que se encontram afetados. Em

função da precariedade narcísica, defesas extremadas são mobilizadas na tentativa de

suportar a agonia proveniente da falta de cuidado por parte dos objetos primordiais. Por

esse viés, a defesa passa a ser a via privilegiada pela qual o indivíduo se constitui. Tal

defesa opera uma fragmentação do próprio psiquismo, o que equivale a uma

expropriação da experiência traumática. A idéia é não sofrer tamanha dor sem conteúdo

de representação por falta de recursos internos para tanto e, especialmente, livrar-se da

ameaça de colapso da própria existência. Por conseguinte, ocorre um empobrecimento

das experiências mais intensas como tributo pela sobrevivência. O indivíduo torna-se

dominado pelo automatismo, pela mesmice e pelas inúmeras obrigações que se impõe.

Tomado por uma sensação de vazio, inutilidade e não-existência, a sua vida perde a

coloração afetiva, em última instância, o sentido.

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Por esta razão, o universo transferencial encontra-se sob o domínio das

sensações e percepções. Em linhas gerais, é como se o paciente quisesse fazer o analista

sentir e perceber uma parte de si mesmo que ele próprio não pôde sofrer e integrar numa

experiência (Roussillon, 1999). Com efeito, tais vivências traumáticas não podem ser

abarcadas como experiências integradas numa história subjetiva, motivo pelo qual não

podem ser transmitidas por palavras. Dito de outro modo, sem partilha, sem legenda,

sem inscrição temporal, sem continuidade, o vivido não se transforma em experiência a

ser comunicada. Nesses casos, o que se observa na clínica é um esvaziamento do

discurso, de modo que a linguagem perde a sua potência metafórica e o seu caráter

associativo. A narrativa assume uma direção horizontal, aplanada e descritiva,

transpassada por cenas que não se interligam e marcadas minuto a minuto. As sessões

transcorrem como se nada remetesse a nada, ou seja, como se não houvesse uma

articulação possível entre passado, presente e futuro. Por um lado, os tempos de infância

não são rememorados e, por outro, um futuro não é projetado. Verifica-se como

conseqüência, a permanência do indivíduo num tempo presentificado, de tal forma que a

temporalidade não porta a lógica da continuidade, apenas remetida ao agora (Herzog &

Montes, 2005). A vida de torna um somatório de episódios, desprovidos de um sentido

que os vincule. Tal dinâmica traz uma questão para o dispositivo psicanalítico: uma vez

que tais pacientes raramente fazem uso de associações, não revelam conflitos, não

recordam sonhos e, tampouco, produzem lapsos ou fantasias, como interpretar? Em

termos winnicottianos, indaga-se o “quanto se deve fazer”, como também “quão pouco

é necessário ser feito” num processo de análise (Winnicott, 1962, p. 155).

Em face de potencialidades subjetivas que não se atualizaram por conta do

fracasso do ambiente primordial, trata-se de criar condições ambientais favoráveis para

tal realização. Tais condições tornam possível ao indivíduo se auto-engendrar, isto é,

restaurar experiências psíquicas outrora interceptadas pelas falhas traumáticas. Trata-se,

portanto, de reconstruir a conexão e a vitalidade das experiências do indivíduo com o

mundo. Dentre as qualidades que porta esse ambiente, destacamos a confiança como

elemento central na emergência dos processos de subjetivação, privilegiando, nesse

sentido, a dimensão relacional na clínica psicanalítica. A confiança dispõe o indivíduo a

relacionar-se, na medida mesma em que a sua presença dispensa a necessidade de um

sistema rigidamente defensivo. Nessas condições, no lugar de reagir ao trauma, pode-se

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começar a existir. Seguindo essas idéias, pode-se dizer, inclusive, que o trauma se

constitui a partir da falta de confiança nos objetos cuidadores.

Tendo em vista que a confiança traduz uma qualidade particular dos vínculos

afetivos objetais, nos debruçaremos no modo como se estabelecem os primeiros

encontros com a alteridade. Para tanto, propomos realizar um levantamento

bibliográfico acerca da figura da confiança nas obras de Freud, Winnicott e Balint,

trabalhando com a perspectiva de uma dupla inscrição da confiança. A primeira

concebida como fator de constituição do psiquismo e, a segunda, enquanto possibilidade

de abertura para o outro. Malgrado as divergências teóricas, vamos nos valer das

contribuições de cada um dos autores para o aprofundamento e enriquecimento da nossa

pesquisa.

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CAPÍTULO 1

A EXPERIÊNCIA DO AMOR EM FREUD

...enquanto sofre, deixa de amar.

Sigmund Freud

Na perspectiva psicanalítica a questão da constituição da subjetividade implica

sempre a alteridade, uma vez que o sujeito precisa necessariamente de um outro para se

constituir. Levando em consideração o tema desta dissertação que consiste em pensar a

confiança enquanto condição de possibilidade de vínculo nas relações objetais

primárias, o propósito deste capítulo é examinar na obra freudiana os fios que tecem

esses encontros inicias. Embora a experiência da confiabilidade não ocupe um lugar

privilegiado na obra de Freud, tal como ocorre em Winnicott e Balint – norteadores do

nosso percurso – a idéia aqui é buscar operadores conceituais que nos auxiliem a pensar

a relação com o outro nos estágios primitivos da constituição subjetiva como

possibilidade de abertura para o mundo.

Para empreender a investigação acerca do modo pelo qual se dão as primeiras

vinculações com o objeto, optamos por utilizar como eixo condutor a experiência do

amor, a partir da dependência do bebê em relação ao adulto. Tal dependência se traduz

na concepção freudiana em termos de uma condição de desamparo precursora da

necessidade de ser amado. Esta opção se justifica, pois, em última instância, é o fato de

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depender de um outro que torna o ser humano aberto ao mundo, aberto à aprendizagem,

aberto à experiência e, nesse sentido, o que move a subjetividade. Tal entrada no mundo

reporta ao modo pelo qual o bebê é recebido ao nascer e se caracteriza pela passagem do

narcisismo para o investimento objetal. Com efeito, o investimento no objeto encontra-

se intrinsecamente atrelado ao investimento narcísico, nessa medida, um não se faz sem

o outro. Vejamos como ao longo de sua elaboração Freud vai tratar destas questões.

O outro auxiliador

O texto “Projeto para uma psicologia científica” (1950[1895]/1996) constitui um

primeiro esforço de Freud para construir uma teoria do funcionamento psíquico, uma

espécie de “economia da força nervosa”, na qual já se vê indicada a questão da

vinculação com o objeto. Com o propósito de introduzir a psicologia no quadro das

ciências naturais, o psicanalista vienense descreve os processos psíquicos calcado em

bases físicas, isto é, como “estados quantitativamente determinados de partículas

materiais especificáveis”, a saber, a excitação neuronal (p. 347). Trata-se de um modelo

explicativo dos fenômenos psíquicos baseado na distribuição de energia no interior do

aparelho nervoso. Partindo do modelo do arco reflexo, Freud concebe em sua forma

mais primitiva o aparato psíquico, melhor dizendo, o aparelho neuronal como regido

pelo princípio de inércia neuronal, o que significa que os neurônios tendem a

descarregar toda a quantidade de energia. A idéia aqui é reduzir a zero a quantidade de

excitação do sistema neurônico, uma vez que o acúmulo de tensão é sentido pelo

indivíduo como desprazer.

O aparato neuronal recebe excitações provenientes tanto do mundo exterior

quanto do interior do organismo. No tocante aos estímulos externos, o ser humano pode

descarregá-los prontamente por via motora, porém, o mesmo não se dá em relação aos

estímulos endógenos dos quais não pode se esquivar. Tais estímulos, originários do

próprio corpo do indivíduo, criam as grandes necessidades, tais como, nutrição,

respiração, sexualidade, e se reportam às “exigências da vida”. Desse modo, quando a

tensão resulta de uma excitação endógena, enquanto o estado de estimulação não for

eliminado ou reduzido, não haverá diminuição da tensão. Resta, portanto, satisfazer tais

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exigências mediante uma ação específica capaz de modificar o mundo exterior. Para

essa finalidade, o sistema nervoso é obrigado a tolerar um acúmulo de energia, caso

contrário, não disporia de reserva para realizar as ações específicas necessárias. Por

motivos de sobrevivência, torna-se inviável reduzir a energia à zero, de modo que o

aparelho passa a manter uma cota de energia no nível mais baixo possível para por fim

aos estímulos internos, ao mesmo tempo em que busca se defender contra qualquer

aumento de energia, o que implica em mantê-la constante. Assim, o princípio de inércia

neuronal é substituído pelo princípio de constância que, ao invés de postular uma

descarga total da excitação, propõe uma regulação por um nível mínimo de energia

acumulada.

De início, a luta pela sobrevivência esbarra necessariamente com a dependência

do recém-nascido de um outro para satisfazer as suas necessidades vitais. Outro aqui

entendido como a figura que dispensa os primeiros cuidados ao bebê logo após o seu

nascimento. Ao contrário da maioria dos animais, o ser humano possui uma vida intra-

uterina de duração reduzida, o que lhe confere um despreparo para a vida logo ao

nascer. “Essa prematuração e a fragilidade que dela resulta fazem com que o recém-

nascido, ao ser confrontado com as ameaças do mundo externo, dependa totalmente das

pessoas responsáveis pelos seus cuidados” (Garcia-Roza, 2002, p. 130). Pode-se

depreender daí a condição de desamparo do bebê humano, tendo em vista que os meios

da sua subsistência encontram-se inicialmente atrelados ao auxílio externo, na medida

em que o bebê não dispõe de recursos para cuidar de si mesmo. Dizendo de outro modo,

o indivíduo ao nascer não é capaz de realizar a ação específica destinada a cessar a

tensão decorrente da necessidade interna. Como vimos, um estímulo externo,

dependendo de sua natureza, até pode ser eliminado através da descarga motora, mas a

excitação endógena age de forma contínua e só pode ser eliminada pela ação específica

por meio de uma alteração da realidade externa. Ora, certamente, um bebê com fome

não tem nenhuma possibilidade de se satisfazer, seu choro e esperneio são ineficazes

para a obtenção do alimento. Convém destacar que a experiência de não satisfação é

traumática quando demasiadamente prolongada, tendo em vista que o recém-nascido

não se encontra preparado para dominar psiquicamente as grandes somas de excitação

que precisam ser eliminadas.

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Tomando esta perspectiva em consideração, Freud (1950[1895/1996]) marca a

importância do outro, na figura do Nebenmencsh (neben: próximo, mensch: homem),

nas primeiras experiências de satisfação. É a partir do grito ou choro do bebê premido

pela fome, que o próximo – cuidador por excelência – lhe fornece o alimento

eliminando a tensão. É justamente a supressão da tensão decorrente dos estímulos

endógenos que dá lugar à experiência de satisfação. A incapacidade de resposta diante

das próprias necessidades internas faz do bebê um ser absolutamente dependente da

ajuda alheia, na maioria das vezes, ajuda encarnada pela figura materna. Tal ajuda não

se reduz à satisfação da necessidade, visto que insere o indivíduo na troca simbólica;

assim como o grito não se constitui apenas como descarga motora, mas como via de

comunicação com o outro. Contudo, o que nos interessa pensar aqui é em que medida a

dependência primitiva do bebê em relação aos cuidados parentais, originária do fator

biológico de desamparo, resulta num estado de abertura aos objetos e cria a necessidade

de ser amado. Vale sublinhar que sentir-se amado implica numa experiência de

proteção, de modo que a perda do amor ou a separação prematura dos objetos

cuidadores, corresponde ao abandono a própria sorte em meio ao desamparo. Nesse

sentido, Freud afirma que “a criança aprende a amar outras pessoas que a ajudam em

seu desamparo e satisfazem suas necessidades, e o faz segundo o modelo de sua relação

de lactente com a ama e dando continuidade a ele” (Freud, 1905/1996, p. 210).

Nos primórdios da psicanálise, portanto, o desamparo encontra-se referido à

incapacidade do recém-nascido satisfazer suas próprias necessidades vitais, o que

remete ao estado de prematuração do corpo biológico do homem. Daí pode-se entrever a

idéia de uma condição superável ao longo do desenvolvimento das potencialidades

humanas. Ora, sabemos que um adulto com fome não encontra dificuldades para

alcançar o alimento desejado por meio da ação específica. Sendo assim, mesmo que

Freud não abandone “esta perspectiva inicial de um desamparo objetivo e referido a um

momento pontual, o desenvolvimento da noção aponta para um alargamento de seus

horizontes...” (Herzog & Mograbi, 2005, p.130). Progressivamente, o desamparo físico

torna-se apenas o protótipo1 do desamparo fundamental inerente à condição humana, no

1 De acordo com Pereira (1999), “o protótipo não é apenas um modelo - articulação ideal e simplificada do fenômeno a ser figurado -, mas a um só tempo, a representação simplificada da coisa e a própria coisa a ser conhecida” (p.131).

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qual ganha relevo a falta de fiadores psíquicos diante de determinadas conjunturas

existenciais.

Sob essa ótica, o desamparo situa-se como uma dimensão intrínseca ao próprio

funcionamento do aparato psíquico, indicando uma impossibilidade de tudo simbolizar.

“A fragilidade da existência humana e a falta de garantias ante as forças da natureza e as

incertezas do futuro são as formas concretas pelas quais a condição de desamparo se

materializa” (Pereira, 1999, p. 201). Nessa medida, o desamparo não provém apenas da

excitação interna não satisfeita, mas reporta à ausência de modos de regulação dos laços

humanos. Convém indicar que, nessas ocasiões, o que está em jogo é da ordem de um

transbordamento do aparelho psíquico, em virtude de uma crescente excitação oriunda

de uma situação de necessidade contra a qual o indivíduo é inerme. Com efeito, a vida

exige que o indivíduo, por ser inacabado, invente constantemente recursos subjetivos

para enfrentar as vicissitudes do existir, uma espécie de salvaguarda diante do

desamparo. Contudo, o que permite que essa invenção seja possível é a invenção

primeira de “Sua Majestade o Bebê” (Freud, 1914/1996), o que coloca o narcisismo

como ponto de partida para um intercâmbio criativo com o mundo. Em outras palavras,

o que transforma a dependência de outrem como possibilidade de experimentação

subjetiva e não como submissão e aprisionamento, é o investimento libidinal por parte

das figuras parentais nos estágios primitivos do desenvolvimento.

A invenção da subjetividade

“Sobre o narcisismo: uma introdução” (Freud, 1914/1996) é um texto capital

para a investigação da emergência da relação da criança com os seus pais. Para Freud, o

narcisismo corresponde ao instante em que todo o investimento da libido encontra-se

reunido no eu. A libido diz respeito à energia psíquica, passível de variações

quantitativas, que serve para medir os processos e as transformações no âmbito da

excitação sexual. Trata-se, portanto, do suporte energético que viabiliza o

estabelecimento de vínculos entre os indivíduos. O seu caráter móvel permite que a

energia transite de um objeto para outro ou ainda que retorne para o próprio eu. Aliás, o

que surge com o conceito de narcisismo é justamente a possibilidade de concentração de

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libido no interior do eu, anteriormente apenas orientada para os objetos. Tal constatação

torna-se evidente a partir das observações realizadas acerca das psicoses, nas quais

Freud propõe a existência de uma retirada da libido investida nos objetos em favor do

eu, o que resulta num apagamento do mundo externo. Além disso, a especificidade da

escolha de objetos à sua própria imagem presente na homossexualidade também

contribui para o desdobramento da temática narcísica.

Convém retomar brevemente a primeira formulação da teoria das pulsões, na

qual Freud (1910/1996) opõe as pulsões sexuais às pulsões do eu. Enquanto a energia da

pulsão sexual é identificada como libido e encontra-se a serviço da consecução da

satisfação sexual; as pulsões do eu dirigem a sua energia denominada de interesse a

serviço da conservação do eu. Em 1914, com a introdução do conceito de narcisismo, o

eu passa a ser objeto de investimento libidinal, ou seja, as pulsões sexuais passam a

poder retirar a libido investida nos objetos e retorná-la sobre o próprio eu. Sabemos que

um dos motivos que leva Freud a elaborar o conceito de narcisismo é a necessidade de

reafirmar o caráter sexual da libido. Essa reafirmação se justifica, tendo em vista o

questionamento de Jung a respeito da prevalência da sexualidade na constituição do

psiquismo, por meio da proposta de uma libido primordial indiferenciada, uma espécie

de energia psíquica geral, que pode ser tanto sexualizada quanto dessexualizada. No

entanto, da perspectiva freudiana, a libido encontra-se sempre referida ao sexual, sendo

irredutível a qualquer outra forma de energia anímica. Desse modo, a distinção entre

libido do eu e libido do objeto não diz respeito à distinção entre o sexual e o não-sexual,

mas ao modo pelo qual o sexual se faz presente no psiquismo (Garcia-Roza, 2002).

Ambas se reportam à pulsão sexual, a qual pode ter como objeto o próprio eu ou um

objeto da realidade externa. O narcisismo, portanto, concerne ao estádio intermediário

de desenvolvimento libidinal, entre o auto-erotismo e o amor objetal, no qual se dá a

unificação das pulsões sexuais em torno do próprio eu para o alcance de um objeto de

amor subseqüentemente.

De início, Freud (1905/1996) afirma a existência de um estado auto-erótico, no

qual o indivíduo encontra-se fechado em si mesmo, sem mediação com o mundo. Aqui

a pulsão sexual encontra satisfação no próprio corpo, de modo desarticulado e

fragmentário, sem recorrer a um objeto externo. Tal satisfação se apóia numa função

somática vital para posteriormente tornar-se independente dela, isto é, buscada

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meramente para a obtenção de prazer. Essa forma anárquica da sexualidade diz respeito

ao estado inicial da libido, ponto de partida para o investimento nos objetos.

Acompanhando o pensamento de Garcia-Roza (2002), indicamos que essa forma

primeira de funcionamento libidinal, que age independente da presença de uma

alteridade, não é objeto de observação direta, devendo ser considerada como uma

construção hipotética. Nesse sentido, nos parece interessante pensar no auto-erotismo

como um estado de “potência pulsional” que se atualiza na relação do bebê com os

objetos cuidadores, permanecendo como um tempo do qual emana a potência de agir e

devir (Reis, 2003).

Ao postular a inexistência de uma unidade comparável ao eu desde a origem,

Freud destaca a necessidade de acrescentar uma “nova ação psíquica” ao auto-erotismo,

a fim de que o narcisismo se constitua. O eu surge enquanto objeto privilegiado de

investimento libidinal por parte dos pais, o que nos autoriza a designar a subjetividade

como uma invenção das figuras parentais (Herzog & Pinheiro, 2003). Tomados pela

revivescência dos seus próprios narcisismos, os pais apostam no vir a ser do seu filho,

atribuindo todas as perfeições a essa criança recém-nascida. “A doença, a morte, a

renúncia ao prazer, restrições à sua vontade própria não a atingirão; as leis da natureza e

da sociedade serão ab-rogadas em seu favor; ela será mais uma vez realmente o centro e

o âmago da criação” (Freud, 1914/1996, p. 98). Sob essa perspectiva, é o amor dos pais

e, nessa medida mesma, o narcisismo dos pais que constrói o narcisismo do filho. O que

está em jogo neste momento, portanto, é a disposição libidinal dos adultos que

dispensam cuidados ao recém-nascido. Pais que se sentem desvalidos com a chegada do

seu filho, na medida em que são remetidos às suas próprias experiências de desamparo,

dificilmente serão capazes de aditivar a subjetividade que ali emerge2. Desse modo,

faltará ao indivíduo estofo libidinal para promover a transformação da libido narcisista

em libido objetal.

De acordo com Freud, é preciso que haja “um investimento libidinal original do

eu, parte do qual é posteriormente transmitido a objetos” (Freud, 1914/1996, p. 83).

Sem dúvida, o que dá condições ao bebê humano para o estabelecimento de

compromissos libidinais é o investimento dos adultos que lhe recepcionam ao nascer.

2 A obra de Winnicott se detém especialmente sobre as nuanças deste modo de relação inicial entre o bebê e os adultos que lhe dedicam cuidado nos estágios primitivos da constituição psíquica, como veremos no próximo capítulo.

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Através do olhar valorativo, do discurso amoroso e isento de críticas, da atribuição de

predicados e da legitimação da existência do recém-nascido, os objetos cuidadores lhe

propiciam uma interação libidinal com o mundo. Ora, de início, o indivíduo só pode se

ver da maneira como é visto pelos seus pais, só pode voltar-se para o mundo ao seu

redor tal como se relaciona com os mesmos. Sendo assim, gradativamente, o que se

delineia é a construção de uma imagem de si e a configuração de um modo de relação

com os objetos do mundo. É justamente sobre essa imagem idealizada e dotada de todas

as perfeições e, nesse sentido, uma espécie de ficção do eu, que recai o amor de si

mesmo. Ademais, é a partir dessa imagem que o bebê experiencia um sentimento de

onipotência, indispensável para a sua ação no mundo e para o ulterior reconhecimento

da sua impotência, como examinaremos adiante.

Com o intuito de preservar esta perfeição narcisista de sua infância, o indivíduo

projeta diante de si um ideal. A formação desse ideal surge, portanto, como tentativa de

recuperar o narcisismo infantil, uma vez que o indivíduo não quer abrir mão da

satisfação narcísica desfrutada nos estágios primitivos. Enquanto o eu ideal se constrói

através da recepção idealizada e incondicional dos pais, o ideal do eu é constituído pela

influência crítica dos mesmos, por meio de injunções e proibições. Com efeito, a criança

se submete aos ditames das figuras parentais, pois teme perder o amor deles, o que se

traduziria por indiferença ou punição direta e, por conseguinte, uma experiência de

abandono e desamparo. Nas palavras de Freud (1932[1933]/1996): “A influência dos

pais governa a criança, concedendo-lhe provas de amor e ameaçando de castigos, os

quais, para a criança, são sinais de perda do amor e se farão temer por essa mesma

causa” (p.67). Daí pode-se depreender que é pela via do desamparo que o indivíduo se

sujeita aos modos de regulação dos laços humanos e, nesse sentido, rende-se ao mundo

adulto para não sucumbir ao desamparo.

Com o passar do tempo, as leis e normas parentais são interiorizadas e os

referidos ditames são acrescentados pelas imposições culturais. A diferença entre as

realizações efetivas do eu e a perfeição do modelo narcisista justifica a instauração de

uma instância crítica, cuja função consiste em avaliar o eu segundo os altos padrões de

exigência originados do ideal do eu, a saber, ideais de perfeição, auto-suficiência e

completude. Tal instância apresenta a vantagem de internalizar e perpetuar a vigilância

originalmente atrelada à cartilha parental. A idéia agora é se resguardar das críticas da

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sociedade, o que se expressa em termos de uma obrigação de resposta aos imperativos

coletivos para ser amado. Cabe ressaltar que essa instância se comporta como um

poderoso fator de recalque, posto que exige restrições à livre fruição da libido e

adaptação a determinados repertórios de conduta. O papel recalcador do ideal do eu se

torna evidente nas auto-recriminações presentes na neurose obsessiva e nos delírios de

observação peculiares da paranóia. Daí pode-se constatar a existência de uma

diferenciação no próprio eu, de tal forma que uma parte dele se converte em algoz da

outra, engendrando, inclusive, um sentimento de culpa, muitas vezes, inconsciente, cuja

ação se manifesta notadamente na melancolia.

Deste campo teórico, Freud elabora o conceito de supereu em “O eu e o isso”

(1923/1996), representante de todas as restrições morais e exigências de perfeição. Sua

tarefa consiste em vigiar o eu real e medi-lo pelo ideal do eu. De acordo com Freud

(1932[1933]/1996), a instalação do supereu pode ser compreendida como um exemplo

bem-sucedido de identificação com a instância parental. Trata-se de um representante

das relações com os pais, que se efetua através da criação de um modelo a ser seguido

em troca de amor e amparo. Convém ressaltar que essa concepção se inscreve no quadro

conceitual da segunda teoria do aparelho psíquico, a qual descreve a divisão tríplice do

funcionamento psíquico em eu, isso e supereu, e não apenas em termos de processos

psíquicos conscientes e inconscientes. Dessa nova perspectiva, “as instâncias da pessoa

já não são descritas em termos de sistemas em que se inscrevem imagens, recordações,

‘conteúdos’ psíquicos, mas como resquícios, sob diversas modalidades, das relações de

objeto” (Laplanche & Pontalis, 2001). Levando isso em consideração, vamos examinar

como se estabelecem essas primeiras relações de objeto e a maneira pela qual elas

afetam a constituição da subjetividade.

Amor e proteção

Freud define a identificação como primeira forma de vinculação emocional com

o objeto. Nas palavras de Freud (1917[1915]/1996) “a identificação é a expressão da

existência de algo em comum, que pode significar amor” (p. 256). A identificação

esforça-se por moldar o próprio eu de um indivíduo de acordo com o objeto tomado

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como modelo. Esse processo se dá pela “ação de assemelhar um eu a outro eu, em

conseqüência do que o primeiro eu se comporta como o segundo em determinados

aspectos, imita-o e, em certo sentido, assimila-o dentro de si” (Freud, 1932[1933]/1996,

p.68). Convém insistir que se faz necessário aqui o estabelecimento de uma ligação

libidinal entre o eu e o objeto alvo da identificação. De fato, originalmente, não é

possível realizar uma distinção precisa entre identificação e investimento, uma vez que

eu e outro se encontram indiferenciados. Em “Psicologia de grupo e análise do eu”

(1921/1996), Freud apresenta uma diferença clara entre esses dois processos: a

identificação busca assemelhar-se ao objeto, enquanto o investimento visa à posse do

objeto. Entretanto, nos primórdios da constituição psíquica, ser o objeto é a mesma

coisa que ter o objeto, já que ambas as coisas implicam uma assimilação pelo eu.

A princípio, trata-se, portanto, de uma identificação originária, logicamente

anterior à vivência edípica, que funciona como base para as identificações posteriores.

Por meio dessa identificação o indivíduo assimila o modelo dos pais, no que concerne

tanto aos esquemas simbólicos propriamente ditos quanto aos códigos morais. (Herzog

& Salztrager, 2003). Em “O eu e o isso” (1923/1996), Freud apresenta a identificação

como o resultado da marca de investimentos objetais abandonados, isto é, para cada

investimento de objeto, uma cicatriz no eu. Nesse sentido, os laços de investimento de

objetos, quando abandonados, deixam uma espécie de traço de saudade que molda a

subjetividade. Por esse viés, a perda do objeto implica num ganho no que concerne ao

enriquecimento do psiquismo. Isso se dá na medida em que o objeto abandonado passa

a ser erigido dentro do eu, o que se efetua mediante uma alteração interna, conforme o

modelo do objeto. Assim, o objeto perdido se eterniza simbolicamente, transformando

para sempre a subjetividade em questão.

Ao se perceber carente de independência, o indivíduo não pode abdicar do amor

dos objetos. Por intermédio da identificação, os pais perduram ao longo da existência do

sujeito, artifício através do qual o amor escapa à extinção. Pode-se entrever que os

objetos primordiais são abandonados, porém, não o seu amor. Para tanto, o indivíduo se

molda a esses objetos, isto é, assume as suas características como forma de garantir a

sua sobrevivência no interior de si próprio. Esse mecanismo pode ser exemplificado de

forma radical pelo funcionamento subjetivo característico da melancolia3, na qual a

3 Para um exame mais detalhado desta questão, ver: Pinheiro, T. (1998).

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perda real ou emocional de um objeto amado ocupa um papel desencadeador

preponderante. Nesse caso, ao invés do indivíduo retirar a libido do objeto perdido e

deslocá-la para outro, o que ocorre é um retorno dessa libido para o eu por meio de uma

identificação com o objeto abandonado, tal como expresso pela formulação freudiana:

“a sombra do objeto recai sobre o eu” (1917[1915]/1996, p. 254). Grosso modo, o ponto

central no quadro melancólico, portanto, é a recusa da perda do amor de objeto e, nesse

sentido, a ameaça da perda do outro é experimentada enquanto ameaça da perda de si.

Nessas condições, o trabalho de luto não pode ser efetivado e o objeto permanece como

uma espécie de morto-vivo no psiquismo.

Em contraposição, no processo de constituição da subjetividade, é a aceitação da

perda, pela instalação do objeto dentro do eu, justamente o que possibilita a renúncia

aos objetos primordiais. Desse modo, a perda dos objetos é substituída pelo

restabelecimento desses no interior de si próprio, como uma compensação pela perda.

Daí o significado da afirmação freudiana, segundo a qual, “o eu é um precipitado de

investimentos objetais abandonados e que ele contém a história dessas escolhas de

objeto” (1923/1996, p. 42). O que ocorre através dessas primeiras identificações,

portanto, é uma apropriação subjetiva dos objetos primordiais, fundamental para a

constituição de uma “couraça narcísica”, capaz de fazer frente ao desamparo humano

(Pinheiro, 1998). Nesse sentido, o que ancora uma organização narcísica capaz de

engendrar uma sensação potente de si é a existência de suficientes experiências

amorosas iniciais – libidinais por essência – com os adultos que se ocupam do indivíduo

ao nascer.

Desse modo, entendemos a persistência dos efeitos da relação parental sobre o

indivíduo, efeitos internalizados pela formação do núcleo do supereu4. Seguindo Freud,

“tal como a criança esteve um dia sob a compulsão de obedecer aos pais, assim o eu se

submete ao imperativo categórico do seu supereu” (Freud, 1923/1996, p.61). Com

efeito, quando a proibição se origina apenas do mundo externo, a criança pode sentir-se

vítima da vontade dos pais, mas quando ela é ditada por um imperativo categórico, a

criança sente-se culpada. O sentimento de culpa expressa justamente a tensão existente

4 Cabe salientar que Freud apresenta uma dupla determinação do supereu: por um lado, fruto da identificação primordial com a instância parental; por outro, como herdeiro do complexo de Édipo. Contudo, o ponto que nos interessa aqui se inscreve no âmbito das primeiras identificações com os pais.

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entre o eu e o supereu. Nessas condições, o supereu promove a expressão permanente da

influência dos pais, apontando o caráter onisciente do supereu. Se, originalmente, o

indivíduo se submete às imposições das figuras parentais em busca de amor,

posteriormente, são os imperativos do supereu que o acuam constantemente sob a

ameaça de perda do amor dos objetos. Como se pode depreender, para escapar da dor do

desamparo, o sujeito reinventa os pais protetores por meio do supereu, que porta uma

lembrança da dependência de outrem para sobreviver. Nesse sentido, pode-se entrever

uma vez mais que é a necessidade de ser amado que introduz o indivíduo no mundo

adulto, regido por leis e códigos morais, equivalentes anteparos face à constatação do

desamparo.

Com efeito, o desamparo se instaura quando se perde a proteção dos objetos os

quais dependem para sobreviver e, nessa medida, o perigo do desamparo é tanto mais

ameaçador, quanto mais frágil for a constituição narcísica do indivíduo. Na

impossibilidade de se valer por si mesmo, a alteridade se torna indispensável para a

existência humana. Agora, o modo pelo qual o indivíduo busca o outro, ou melhor,

experimenta o outro, encontra-se intrinsecamente atrelado ao modo pelo qual ele

experimenta a si próprio. Se os objetos primários da constituição subjetiva não

viabilizam o movimento identificatório, isto é, não permitem a sua apropriação

subjetiva, engendram no indivíduo uma experiência esvaziada de si. Tal

vulnerabilidade narcísica acirra o temor da perda do amor do objeto, enquanto alicerce

da própria subjetividade, exigindo medidas defensivas para esquivar-se do

reconhecimento do desamparo. Nesse caso, tal reconhecimento, ao invés de resultar

numa abertura ao outro, implica numa aderência ao objeto, fonte necessária de garantia

narcísica. Assim, o outro assume justo o lugar de onipotência que o recém-nascido não

experimentou durante a referida “nova ação psíquica”.

Dessa perspectiva, podemos pensar que frente à fragilidade do eu ideal –

vacilação narcísica por excelência – o supereu se fortalece, exigindo o cumprimento

severo de suas ordens, em troca de uma pretensa garantia de segurança e proteção.

Nesses termos, “quanto mais desamparado se sente o sujeito, quanto mais se rebela

contra isso, pretende ser Deus e superior aos demais” (Birman, 2006, p.136). Aqui o

indivíduo encontra-se às voltas com a procura de próteses de sustentação de uma

imagem de si em vias de desmoronamento. Na tentativa de engrandecer-se

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narcisicamente e defender-se do encontro com o desamparo, o sujeito precisa se afirmar

poderoso e auto-suficiente. Para tanto, institui uma série de exigências a cumprir com

base em expectativas excessivas de si, uma espécie de ditadura auto-impingida. De

acordo com Jordão (2002):

A precariedade da estruturação narcísica é o que exige que algo venha constantemente conferir-lhe realidade, estabilidade, e que precisa de confirmações para se manter. Forma-se um círculo vicioso retro alimentado, pois a manutenção de investimento libidinal no eu só tem um caminho, que passa por uma necessária confirmação de sua onipotência, de forma que quanto maior essa necessidade (sempre proporcional à solidez – melhor dizermos à fragilidade – do edifício narcísico desse indivíduo) maior a ameaça representada pela sua ausência, o desamparo (p. 92).

Nessas circunstâncias, a subjetividade torna-se constrangida e o desejo esmaece

posto estar submetido aos ideais de proteção tanto na figura do supereu tirânico como

na figura de um objeto supostamente onipotente. Diante de tamanha coerção e desvalia,

o sujeito se angustia. Em “Inibições, sintomas e angústia” (1926/1996), Freud articula a

perda do objeto de amor com o desamparo e o afeto de angústia. Como vimos, o

desamparo corresponde à falta de fiadores psíquicos diante de determinadas conjunturas

existenciais, remetendo o indivíduo a sua condição de dependência de outrem para o seu

existir. A angústia, por sua vez, se caracteriza como a reação defensiva ante uma

situação de perigo, a saber, a perda do objeto de amor, objeto capaz de evitar a

experiência de desamparo. O perigo equivale a um acréscimo de excitação o qual o

sujeito não tem recursos psíquicos para dominar. Para Freud, a primeira experiência de

angústia pela qual passa o ser humano corresponde ao nascimento, símbolo da

separação da mãe. Contudo, argumenta o autor, o nascimento não é experimentado

subjetivamente enquanto tal, uma vez que o bebê fechado em sua mônada narcísica

encontra-se totalmente alheio à sua existência como um objeto diferenciado. Desse

modo, a angústia do nascimento não diz respeito à separação ou à perda do objeto

propriamente dito, mas ao aumento de tensão desproporcional em relação à tolerância e

habilidade do aparelho psíquico.

A mercê deste excesso impossível de elaborar psiquicamente fica evidente a

insuficiência fundamental do indivíduo e, por conseguinte, a necessidade de um outro

para sobreviver. Tomando essa perspectiva em consideração, Freud (1926/1996) afirma

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que a angústia surge originalmente como uma reação ao perigo de transbordamento

excitatório presente no nascimento e é reproduzida em toda situação que recorde esse

evento. A princípio, a reação para livrar-se dos estímulos internos se caracteriza pela

aceleração dos batimentos cardíacos e ativação do funcionamento dos pulmões,

fenômenos de descarga que podem acompanhar os estados de angústia ao longo da vida

do sujeito. Convém precisar aqui a diferenciação elaborada por Freud entre angústia

automática e angústia sinal. A primeira surge diante de uma experiência traumática de

desamparo e acréscimo excitatório, tal como ocorre ao nascer; a segunda é uma

sinalização que visa impedir justamente que tal experiência ocorra. Por esse viés, o

indivíduo reproduz posteriormente o sentimento de angústia em situações de perigo de

transbordamento, como proteção e busca de ajuda em função da expectativa de trauma.

O fato de um objeto, por exemplo, a mãe, ser capaz de aplacar esse transbordamento

desloca o conteúdo do perigo do puro incremento de tensão para a condição que o

determina, isto é, a perda do objeto. Vale apontar que esse deslocamento expressa um

início de simbolização por parte da criança. Nas palavras de Freud (1926/1996):

Quando a criança houver descoberto pela experiência que um objeto externo perceptível pode pôr termo à situação perigosa que lembra o nascimento, o conteúdo do perigo que ela teme é deslocado da situação econômica para a condição que determinou essa situação, a saber, a perda de objeto. É a ausência da mãe que agora constitui o perigo, e logo que surge esse perigo a criança dá o sinal de angústia, antes que a temida situação econômica se estabeleça (p. 136).

Pode-se entrever que a angústia é produto do desamparo psíquico, símile do

desamparo biológico, como vimos no Projeto de 1895. Dito de outro modo, o

desamparo do recém-nascido explicita a dimensão de vulnerabilidade da condição

humana e a dependência de um outro para se constituir e até mesmo para sobreviver.

Convém insistir que se trata, em ambos os casos, do confronto com o próprio limite do

psiquismo em face de uma tensão excessiva; limite onde nenhuma elaboração é

possível, razão pela qual, o adulto passa a ser valorizado enquanto fiador simbólico e

apaziguador da angústia infantil. Ora, alçar o adulto como figura de amparo simbólico

não significa que ele não esteja sujeito às mesmas angústias e desencontros objetais.

Nas palavras de Freud (1926/1996): “todo o indivíduo tem, com toda probabilidade, um

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limite além do qual seu aparelho mental falha em sua função de dominar as quantidades

de excitação que precisam ser eliminadas” (p. 146). Daí, entendemos que a proteção é

sempre suposta e não de fato. Nesses termos, a constatação do desamparo pode

engendrar por um lado, uma experiência de horror ao desamparo e relações de decepção

ou servidão aos objetos dos quais se espera proteção; por outro, aceitação do desamparo

e laços de amor entre os objetos presentes no mesmo barco incerto da existência. Vale

salientar que para que uma experiência de impotência frente a uma vida sem garantias

se constitua como mola propulsora e inventiva da subjetividade, faz-se necessário

experimentar-se onipotente nos primeiros tempos da infância (Freud, 1914/1996).

Em “O futuro de uma ilusão” (1927/1996), Freud articula o desamparo à

nostalgia da figura do pai protetor. Na impossibilidade do indivíduo afrontar a dor

produzida pelo desamparo, as idéias religiosas acenam com a oferta de um Deus todo

poderoso capaz de defendê-lo contra a força esmagadoramente superior da natureza.

Trata-se da necessidade de amparo do homem em função da sua precariedade, motivo

pelo qual, “cria para si próprio os deuses a quem teme, a quem procura propiciar e a

quem, não obstante, confia a sua própria proteção” (Freud, 1927/1996, p. 33). Em outras

palavras, o que confere eficácia simbólica à religião é a necessidade humana de

“proteção através do amor” (Freud, 1927/1996, p. 39). A figura da divindade, portanto,

equivale à materialização dessa necessidade, impedindo o sujeito de se deparar com a

fragilidade da sua existência refletida no transbordamento excitatório. Dessa

perspectiva, o projeto de salvação das doutrinas religiosas consiste numa ilusão oriunda

do apelo desesperado de um antídoto para o sofrimento que advém da experiência de

desamparo. A ilusão se situa na idéia de que é possível escapar do desamparo por

submissão ao poder divino. O ponto fundamental aqui reside no pressuposto de que a

proteção encontra-se alhures. De início, representada pelas figuras parentais,

ulteriormente, tal proteção passa a ser interiorizada na instância do supereu, como

também se desloca para os objetos importantes do percurso subjetivo do indivíduo e,

como vimos, para a ilusão de um Deus protetor.

Pode-se depreender que a obsessão por amparo e o medo de ser abandonado

pelos objetos de amor ou pelos deuses engendram submissão, culpa e desapontamento.

Nesse contexto, é justo ao tentar negar a evidência de que não se basta só, que o

indivíduo se cola ao outro. Mas, será que dependência engloba necessariamente

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servidão? De acordo com Costa (2007), o desamparo surge quando o indivíduo tenta

evitar as conseqüências do vazio e da contingência, recorrendo ao saber totalitário que

se exprime na Lei, a qual nos referimos, em outros termos, como proteção parental,

superegóica ou divina. Sob essa ótica, a experiência de desamparo pode ser pensada

como resposta a uma imposição de independência e autonomia ao indivíduo, em prol de

uma soberania narcísica. Trata-se, portanto, de abordar a relação entre os homens para

além da dicotomia autonomia e heteronomia, liberdade e servidão, maneira pela qual, “o

outro não é mais pensado como algo que escraviza, aliena ou subjuga mas como algo

que incita ou intima o sujeito a ser sempre outro, de modo previsto ou imprevisto, na

relação consigo, com os outros e com o mundo” (Costa, 2007, p.73). Para o autor, “o

que a ‘presença’ do Vazio pede é a criação, a transformação de uma ordem subjetiva em

outra” (p.76). De nossa parte, entendemos que para estar no mundo de modo

despretensioso e criativo, fazendo face às atribulações do existir, é necessário o

investimento amoroso por parte dos objetos primordiais nos estágios iniciais. Tal

investimento, como vimos, propicia um engrandecimento da imagem narcísica do

indivíduo. Sem isso, o que existe é uma atrofia subjetiva que pode redundar, por um

lado, numa aderência maciça ao objeto, por outro, em ideais de auto-suficiência e

retraimento objetal5.

Da impotência à possibilidade

Em “Totem e Tabu (1913/1996), Freud se propõe a analisar as origens da

sociedade fraterna com base no mito do assassinato do pai da horda primitiva pela

conjuração dos filhos. Grosso modo, no estado primitivo da humanidade existia um pai

violento e possessivo que proibia o acesso às mulheres e expulsava os filhos da tribo à

medida que cresciam. Certo dia, diante dessa subjugação paterna tirânica, os filhos se

aliam para matar e devorar o pai, pondo fim ao regime patriarcal da horda. Com o

assassinato do pai, constituiu-se uma organização fraternal, baseada na solidariedade

entre os irmãos. Certamente, o pai todo poderoso foi motivo de temor, mas também de

5 Vale sublinhar que tais modos de funcionamento subjetivo não se apresentam de maneira estanque e definitiva no indivíduo.

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inveja e, nessa medida, os filhos, por um lado, odiavam o pai, que representava um

impedimento ao anseio de poder e ao livre curso dos desejos, mas, por outro, lhe

dispensavam amor e admiração. Os impulsos hostis foram satisfeitos com a morte do

pai, porém, em seguida, os sentimentos amorosos desdobraram-se num enorme

sentimento de culpa e “o pai morto tornou-se mais forte do que fora vivo” (Freud,

1913/1996, p.146). Tal sentimento deu origem aos dois tabus do totemismo, a saber, a

proibição do parricídio e do incesto, de modo que o que até então fora interdito pelo pai

vivo passou a ser proibido pelos próprios filhos, agora em situação de igualdade. Sendo

assim, a figura assassinada do pai – temida e reverenciada – assegurava o cumprimento

da lei e a coesão da sociedade, posto que evocava o fracasso da tentativa de ocupar o

lugar paterno. Nesses termos, pode-se entrever que os laços fraternos se instituem por

referência ao pai todo-poderoso e protetor, em contraposição à impotência e fragilidade

dos filhos.

O que nos interessa destacar aqui é o estabelecimento de uma fratria pela

imposição de um limite à onipotência dos filhos, ou seja, tal limite enquanto condição

de possibilidade para o estabelecimento de laços entre os irmãos, que se unem

justamente por se perceberem frágeis individualmente diante da superioridade paterna.

Juntos constituem uma força maior, juntos livram-se até do pai. Não obstante, a morte

do pai os deixa desamparados e culpados, tornando evidente a manutenção da crença na

figura de um pai ideal, o que implica em veneração e servidão dos filhos em troca de

amparo contra as incertezas e falta de regulação dos laços inter-humanos. Sabemos que

tanto a onipotência narcísica quanto a atribuída ao objeto são ilusões, produtos da

necessidade do indivíduo de recusar a sua condição de dependência de outrem. Vale

retomar que, em termos freudianos, a satisfação da dependência equivale ao amor do

objeto, ou seja, se o sujeito perde o amor de quem depende, perde também a sua

proteção.

Deste contexto, cabe indagar se alguma experiência de amparo é viável e

indispensável, tendo em vista que um indivíduo amparado em demasia pelas suas

formações ilusórias é tão pouco criativo da sua história subjetiva quanto um sujeito

aterrorizado pelo desamparo. Daí nos interessa pensar, seguindo a proposta de Birman

(2006), na possibilidade da existência de laços fraternos engendrados não por uma

referência alteritária onipotente, mas pelo reconhecimento da condição básica de

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desamparo de todo ser humano. Ora, será que não podemos depender do outro como um

igual? Para o autor, o “reconhecimento do que existe de precário e de frágil na

constituição do sujeito seria a forma de conferir ao desamparo a sua fulgurância e a sua

potencialidade de inventividade intersubjetiva” (2006, p. 138). Assim, pode-se dizer que

tal reconhecimento realizado pelo indivíduo de que é insuficiente e dependente se

apresenta como condição de abertura para o outro e, nessa medida mesma, motor para o

estabelecimento de vínculos objetais. A idéia é de uma “legião de precarizados”

(Birman, 2006, p.138), isto é, uma associação de indivíduos que se unem justamente por

se perceberem desamparados. Trata-se de um ideal ou de uma formulação ingênua ante

a presença do mal-estar? Sem dúvida, não nos referimos aqui a uma cura para o

sofrimento, tampouco, uma erradicação do excesso que ultrapassa e desconcerta o

sujeito, mas de uma gestão dos laços sociais forjada no registro horizontal e não

vertical. Acreditamos que o que pode advir dessa abertura para o outro é o amor6, não

como suplência idealizada, mas como o campo privilegiado das experiências

compartilhadas.

Sob esta ótica, o amor pressupõe justo o reconhecimento do desamparo, o que

implica numa experiência de perda da ilusão de plenitude e onipotência narcísica. Tal

onipotência é fruto do amor dos pais, que projetam no filho seu próprio narcisismo sob

a forma de amor objetal, atribuindo-lhe todas as perfeições. Podemos extrair uma teoria

narcísica do amor na obra freudiana, a partir de “Sobre o narcisismo: uma introdução”

(Freud, 1914/1996), sobretudo, no tocante ao tipo de escolha de amorosa, a partir da

articulação do amor com as noções de eu ideal e ideal do eu. Em linhas gerais, Freud

distingue dois modos de relação com o objeto de amor abertos a cada sujeito, a saber,

narcísica e anaclítica. Na primeira, o indivíduo investe libidinalmente os objetos que

sustentam a sua imagem narcísica e, nesse sentido, aproximar-se dos objetos consiste

numa forma de amar a si mesmo. Nesse caso, ama-se em conformidade com o que se é

ou com o que se gostaria de ser. Na escolha anaclítica, o indivíduo investe em

substitutos dos objetos primordiais, que lhe dispensam cuidados ao nascer. Aqui o

indivíduo escolhe segundo a mãe que alimenta ou o pai protetor, tornando clara a

relação de complementaridade. Acompanhando o pensamento de Lejarraga (2002),

pode-se pensar que “na escolha narcísica se investe o objeto que sustenta a 6 Convém explicitar que escapa ao objetivo e limite deste trabalho um estudo detalhado a respeito do amor na obra de Freud. Para um exame mais detalhado ver: Lejarraga, A. L. (2002).

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complacência narcísica, estando o sujeito identificado com o ideal narcísico, enquanto

na escolha anaclítica se investe o objeto que representa esse ideal, idealizando-o” (p.

97). O que está em jogo, portanto, em ambos os casos de envolvimento amoroso, é da

ordem de uma ilusão de restituição pelo objeto; restituição da tão arredia a sensação de

onipotência originária, capaz de encobrir a condição fundamental de desamparo. A

idealização do objeto amado se justifica em função da promessa de plenitude que porta,

sobretudo, em indivíduos esvaziados narcisicamente em decorrência de falhas dos

investimentos libidinais por parte dos pais.

Desse modo, a onipotência enquanto parâmetro permanece. O sujeito busca o

objeto para sentir-se completo. Ora, ainda que o amor seja recíproco, ele não anula a

condição de desamparo a qual todos os indivíduos estão submetidos7. Esse amor como

aspiração pode abrir um porvir, mas a experiência amorosa se apresenta como ilusória

na garantia de proteção e oferta de felicidade. Retomamos a formulação do

estabelecimento de laços entre os indivíduos ancorados no reconhecimento do

desamparo – em contraposição ao vínculo pela nostalgia da proteção parental – na

medida em que essa modalidade de laço minimiza o lugar ocupado pela idealização na

relação amorosa. Nessas condições, não há supervalorização do outro, servidão ou

desapontamento, mas a aceitação da alteridade. Em outros termos, o objeto não é posto

no lugar do ideal do eu, tendo em vista o descrédito em relação à proteção dessa

instância. Nessas circunstâncias, podemos pensar numa ligação entre os indivíduos via

identificação, semelhança ou partilha, o que implica, por sua vez, numa multiplicação

das referências parentais, uma espécie de “narcisismo das pequenas diferenças” (Freud,

1930/1996) às avessas. Aqui a identificação não se faz mediante a submissão ao pai

primevo, tal como descrito em “Totem e Tabu (Freud, 1913/1996) ou ao líder, como em

“Psicologia de grupo e análise do eu” (Freud, 1921/1996), ambas figuras de onipotência

no lugar do ideal. Tal ligação entre os seres humanos nos remete ao poder de Eros.

Com a virada dos anos 20, Freud unifica as pulsões sexuais e as pulsões de

autoconservação sob a rubrica de Eros que se opõe à Tânatos, criando um novo

dualismo pulsional. Enquanto o amor equivale a Eros, o ódio e a agressividade

correspondem às manifestações de Tânatos. Trata-se, portanto, de dois modos de

funcionamento da pulsão no psiquismo, a saber, o conjuntivo, energia ligada, e o 7 Vale dizer, que um certo limite que o amor comporta se deve ao fato de que o objeto é o que há de mais variável e contingente na pulsão (Freud, 1915/1996).

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disjuntivo, energia livre. A aliança entre as duas pulsões se submete ao predomínio de

uma delas, dependendo das proporções em questão. A hegemonia da pulsão de vida

corresponde à fusão, que tende à união dos laços, e a pulsão de morte à desfusão, que

tende a desunião. O que nos interessa pensar aqui é no amor como potencialidade da

vida e, nessa medida mesma, no que concerne à tendência vital de Eros como suporte

libidinal dos laços entre os indivíduos8. Com efeito, na impossibilidade de

estabelecimento desses laços ou na ruptura dos mesmos, Tânatos encontra terreno para a

manifestação da força disruptiva e dos processos de repetição compulsiva que lhe são

peculiares. Nessas ocasiões, para driblar essa ação destrutiva, transformando um

movimento de morte em movimento de vida, nos reportamos ao amor.

Sabemos que a fundação do aparelho psíquico é fruto de ligações da energia

livre e dispersa proveniente da fonte pulsional, posto que anteriormente sequer pode-se

pensar numa tal organização. De fato, a ligação é a condição de possibilidade do próprio

funcionamento do psiquismo, meio de transformar a energia livre em energia ligada,

desprazer em prazer. A gênese da subjetividade encontra-se, portanto, absolutamente

dependente dessas ligações, em outras palavras, do investimento original de amor por

parte dos objetos primordiais. Sobretudo, nos estágios emergenciais, nos quais o

indivíduo encontra-se mais próximo do não-ser, fechado em seu auto-erotismo, torna-se

imprescindível a oferta de cuidados erotizantes, verdadeiro convite à vida. Por esse viés,

o exercício do amor ao objeto provém do amor narcísico. Para tanto, algumas ilusões

precisam ser mantidas, a saber, a ilusão de um filho herói ou princesa (Freud,

1914/1996), posto que o reconhecimento da referida impotência passa pela

experimentação de uma onipotência inicial. Com isso, pode-se embarcar na vida sem a

necessidade de tantas âncoras. Caso contrário, a ligação passa a ser buscada como solda

ou negada enquanto clausura. Isso implica pensar, é claro, que os primeiros vínculos se

inscrevem no âmbito das relações objetais primárias.

Deste contexto, evocamos a proposição freudiana, segundo a qual, “o encontro

com o objeto é, na verdade, um reencontro” (1905/1996, p. 210), explicitando uma

necessidade do sujeito de ser amado como nos estágios primitivos, em outras palavras,

necessidade de restaurar a felicidade perdida. Aliado a isso, não se pode desconsiderar o

caráter conservador da pulsão de vida, ou seja, a sua tendência em retornar aos modos 8 Trata-se aqui de uma opção enfática. Não estamos desconsiderando a dimensão mortífera da pulsionalidade.

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de relação mais primitivos e indiferenciados. Ora, sem dúvida, os encontros amorosos

encontram-se marcados e referidos às experiências objetais primárias, porém, tal

reencontro é da ordem do impossível. Não há como coincidir sujeito e objeto como

outrora. Isso, contudo, não implica na perda de brilho da alteridade, tampouco, do amor,

e sim num relançamento das suas finalidades. Sem a pretensa restituição da completude

e onipotência narcísica, a força de Eros se orienta a favor do movimento de

aproximação entre os seres humanos. Dentre eles, certamente, alguns objetos serão

privilegiados, conforme a história subjetiva pregressa de cada um. Apesar disso, sem

enganos, não há salvação para o desamparo, porém, precisamente, por isso, pode-se

instaurar para o indivíduo um campo de experimentação subjetiva e encontro com o

irredutivelmente outro.

Afirmar que a subjetividade se inscreve no âmbito de uma condição fundamental

de desamparo, não significa que o indivíduo esteja condenado à experienciar a todo

instante esse desamparo, por certo, aterrorizante e desintegrador. Se existe alguma

condenação do ser humano, essa se encontra na infindável tarefa de atribuição de

sentido à sua existência e, nessa medida, na invenção de um destino para a sua

insuficiência condizente com a sua história subjetiva. Acreditamos que tal invenção,

assim como a invenção da subjetividade dos tempos da infância, se faz na presença de

laços de amor com os objetos.

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CAPÍTULO 2

A EXPERIÊNCIA DA CONFIANÇA EM WINNICOTT

O indivíduo apenas se comunica com um mundo auto-inventado.

D. W. Winnicott

A marca winnicottiana

A natureza humana está no centro da elaboração winnicottiana. A importância

da vida, movimento criativo, por excelência - atravessa toda a sua obra. A própria

emergência da vida subjetiva é pensada como um processo de criação, que emerge

genuinamente a partir da “vitalidade dos tecidos” (Winnicott, 1950-55/2000, p. 303).

Atento às condições necessárias para tal emergência, Winnicott enfatiza a função do

ambiente enquanto presença humana afetiva no desenvolvimento emocional primitivo.

O psicanalista inglês estende o campo da subjetividade para além das fronteiras da

interioridade psíquica, afrouxando os limites tanto entre o mundo interno e a

exterioridade do mundo, quanto entre o psíquico e o somático. Ao postular a existência

de um caráter transicional da experiência, Winnicott foca o seu interesse na relação

entre o indivíduo e o ambiente.

Afirmando a existência de um potencial de força vital no “animal humano

individual” (Winnicott, 1988/1990, p.25), Winnicott adota explicitamente a perspectiva

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do vitalismo. Tal potencial diz respeito à tendência inata em direção ao crescimento do

indivíduo – inerente ao fato de estar vivo – origem do que posteriormente surge como

subjetividade. Em outras palavras, pode-se dizer que o sujeito nasce com uma

capacidade para a expansão da vida que impulsiona o próprio processo de maturação e a

conseqüente descoberta de que existe um ambiente. Sinais deste potencial – mais ou

menos o mesmo em cada um – podem ser percebidos desde a vida intra-uterina, tais

como, pontapés que o feto dá dentro do útero materno ou o agito dos braços do recém-

nascido (Winnicott, 1950-55/2000).

Podemos pensar este potencial de força vital – a partir de influências

bergsonianas9 – em termos de uma virtualidade que se atualiza, no tempo e no espaço,

na história do indivíduo. Essa atualização – passagem do virtual para o atual – implica

sempre em uma criação singular. Por esse viés, o ponto de partida do processo de

desenvolvimento consiste nesse potencial, cujo desdobramento se faz e desfaz no

contínuo da vida a partir das condições do meio ambiente. O próprio uso do termo

processo evoca uma continuidade e nos permite pensar numa subjetivação dinâmica,

aberta e contínua. Não há, portanto, nenhum determinismo ou certeza no curso do

desenvolvimento winnicottiano, tampouco, uma essência natural prévia à existência do

indivíduo. Ao contrário, o que encontramos é da ordem do imprevisível na constituição

do sujeito, uma vez que a atualização das potencialidades subjetivas depende da ação do

ambiente. Isso significa que tal atualização é constantemente mediada pelo ambiente,

que pode tanto favorecer esse processo de autocriação, quanto impedir esse movimento

vital próprio da natureza humana. Nesse sentido, “este ambiente não constitui o sujeito,

mas favorece sua autocriação, permitindo que ele emerja de uma dimensão pré-subjetiva

da experiência e da existência” (Plastino, 2007, p. 205).

A importância dada ao meio ambiente nas formulações winnicottianas tem como

fonte inspiradora a obra de Darwin – Origem das espécies – que descreve a vida como

um processo constante de interação entre organismos e o ambiente (Phillips, 2006). Para

Darwin, indivíduos mais aptos ao ambiente têm mais oportunidade de sobreviver, isto é,

indivíduos melhor adaptados ao meio aumentam as suas chances de sobrevivência. Da

biologia darwiniana, Winnicott destaca tanto o valor da individualização quanto da

adaptação às exigências do meio, sem, contudo, recair num reducionismo biológico da

9 A esse respeito ver: Bergson, H. (1999) e Gondar, J. (2006).

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experiência subjetiva. Ora, certamente, o desenvolvimento individual difere

significativamente de uma série de adaptações e respostas às transformações do entorno.

No tocante à espécie humana – imersa num mundo simbólico – a vida é regida não

somente pela necessidade de sobrevivência, mas, sobretudo, pela busca de sentido para

a experiência do viver. Sendo assim, “na experiência humana é o sentido atribuído à

vida que a torna sustentável e não apenas as condições biológicas nas quais ela se

apóia” (Bezerra Jr., 2007, p. 59).

Com efeito, a característica que precisamente distingue a espécie humana das

demais é a sua inserção no mundo da cultura. Tal característica nos leva a pensar,

acompanhando a proposta winnicottiana, que mais importante do que sobreviver às

vicissitudes da vida, é dotar a existência de sentido. Aliás, quanto mais o sujeito se

curva frente às exigências do mundo, quanto mais emprega a sua força vital para fins

adaptativos, menos a vida será sentida como valiosa. Por essa razão, o indivíduo é capaz

de sobreviver biologicamente ao trauma, inclusive, adaptando-se ao caos ambiental,

contudo, ao custo da sua morte psíquica, o que se expressa em termos de um

empobrecimento da experiência subjetiva. Não há dúvida, porém, que certas

conjunturas da vida exigem tal remanejamento psíquico como estratégia de

sobrevivência. Desse modo, a vitalidade se encontra a serviço da invenção de novos

recursos existenciais, como a organização defensiva falso-self, ainda que desprovida da

capacidade criativa. Nesse contexto, utilizando as palavras de Canguilhem, podemos

pensar que “a vida está bem longe de uma tal indiferença em relação às condições que

lhe são impostas; a vida é polaridade” (2006, p. 88).

Dessa perspectiva, Winnicott inverte a equação de Darwin, postulando a

necessidade de uma adaptação precoce do ambiente ao indivíduo, a fim de permitir a ele

uma maturação sadia10 (Phillips, 2006). Tal maturação consiste no processo de criação e

ampliação das formas de se relacionar com o mundo e não na aquisição de soluções

mais adaptativas. Para o autor, a saúde mental é resultado de uma adaptação contínua e

progressiva do ambiente, encarnado inicialmente pela mãe, às necessidades do

indivíduo ao nascer. Essa adaptação comporta o esforço da mãe em suprir as

necessidades do seu filho em constante variação e mutação, a fim de que ele não fique

carente de nenhum tipo de cuidado. Protegendo o bebê das invasões e dos choques – 10 Sobre a relação entre saúde e doença na obra de Winnicott ver: Winnicott, D. W. (1967) e Estellita-Lins, C. E. (2007).

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internos e externos – a mãe fornece sustentação ao processo natural de desenvolvimento

do seu filho e estabelece um palco para acontecimentos subjetivantes. Esse é o modo

pelo qual ela permite a emergência do que é espontâneo nele, em outras palavras, a

atualização do potencial herdado. Afinal, como diz Winnicott, “os genes não são

suficientes” (1968/2002, p. 84). Em contrapartida, a desadaptação materna compromete

o potencial criativo do bebê justo com a tarefa de proteger-se do choque, valendo-se da

sua espontaneidade 11.

A noção de maturação encontra-se, portanto, ancorada na idéia de um processo

natural, criativo e ininterrupto do desenvolvimento das potencialidades individuais, que

tende a ocorrer em “circunstâncias ambientais favoráveis”. Nesse sentido, posto o

estado de adaptação premente do recém-nascido, o curso do seu desenvolvimento se

encontra absolutamente atrelado à configuração do ambiente. Vale a pena insistir em

afirmar que o fato do bebê nascer incapaz de se manter sem os cuidados dispensados a

ele acentua a sua dependência em relação ao outro cuidador. Esse entendimento é

especialmente importante para compreendermos o papel que Winnicott atribui à relação

inicial mãe-bebê, ambiente inaugural da existência.

A relação mãe-bebê constitui-se como privilegiado campo de explorações

teóricas e clínicas, a partir do qual Winnicott encontra subsídios para pensar o processo

de constituição subjetiva e seus entraves. Tal privilégio é fruto da sua vasta12

experiência clínica com bebês, crianças, organizações psicóticas e lhe permite postular a

imprescindibilidade da qualidade dos primeiros relacionamentos do indivíduo com o

ambiente. Essa perspectiva amplia a compreensão dos sofrimentos psíquicos aos quais

os indivíduos estão expostos no momento inicial da sua constituição. Tais sofrimentos

passam a ser compreendidos como oriundos de uma privação ambiental, cujo cerne

reside no não atendimento aos anseios naturais do recém-nascido. Em virtude da

precocidade em questão, convém sublinhar que a falha materna, contra a qual o bebê

tem que necessariamente se defender, atinge – em intensidade e variações distintas – o

próprio rumo do seu processo de maturação.

11 Esta temática será desenvolvida adiante. 12 Em 1923, Winnicott tornou-se médico do Paddington Green Children’s Hospital, posto em que se manteve até 1963, onde teve a oportunidade de atender um elevado número de crianças e desenvolver um trabalho voltado para a psiquiatria infantil; fora a sua indicação para o cargo de consultor psiquiátrico do esquema de evacuação do Condado de Oxford durante a guerra.

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Ao longo de sua obra, Winnicott dedicou-se insistentemente a descrever as

condições necessárias do ambiente para o desenvolvimento emocional sadio, dentre

elas, destaca a confiabilidade do ambiente como a base para a construção de um modo

de vida sentido como verdadeiro, próprio e real. Essa qualidade ambiental tem a sua

origem nas primeiras interações estabelecidas entre a mãe e o bebê e se manifesta pela

segurança, regularidade e continuidade da adaptação materna.

A construção da confiabilidade e os cuidados maternos

Para tratar da construção da confiabilidade, Winnicott começa postulando uma

dependência absoluta do bebê em relação aos cuidados maternos nos primórdios da vida

subjetiva. Dependência absoluta entendida como a total incapacidade do bebê de

sobreviver sem esses cuidados, envolvendo tanto a dependência biológica quanto

psicológica. Para radicalizar essa noção de dependência, Winnicott enuncia que “isso

que chamam de bebê não existe”, indicando a necessidade de se considerar a “dupla-

amamentante” (Winnicott, 1952/2000, p. 165), uma vez que o bebê só pode vir a se

constituir na dependência dos cuidados de um outro. Daí pode-se entrever o lugar

central atribuído à dependência no desenvolvimento emocional, tendo em vista que o

psiquismo winnicottiano só pode ser entendido como produto da relação do indivíduo

com o ambiente do qual depende. Essa condição de dependência, por sua vez, não é

sequer percebida pelo bebê, na medida em que ele se encontra fusionado com a mãe,

isto é, num estado de indiferenciação e não-integração primárias, o que implica em

pensar que a mãe não existe enquanto alteridade. Nessas circunstâncias, não há vestígios

de uma consciência da dependência, tampouco, conhecimento das suas necessidades ou

de qualquer objeto externo. Como diz Winnicott, aqui o bebê pouco “se importa de ser

uma porção de pedacinhos ou um único ser” (Winnicott, 1945a/2000, p. 224).

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Para sermos precisos, neste estágio inicial, o self13 do bebê ainda não se formou,

e “logo não pode ser visto como fundido, mas as memórias e expectativas podem agora

começar a acumular-se e formar-se” (Winnicott, 1960/1983, p. 25). O que existe,

portanto, é um self potencial, isto é, um processo experiencial se desenrolando na

continuidade do ser. A idéia é de uma linha de vida pessoal que começa a se estabelecer

a partir das experiências na continuidade dos cuidados iniciais, mediante a qual se dá o

desenvolvimento emocional. Nesse sentido, a experiência de continuidade do ser

“carrega consigo a idéia de uma experiência que exclui qualquer referência à diferença e

que se desdobra na dimensão homogênea e indiferenciada da complementaridade

absoluta entre sujeito e meio ambiente” (Souza, 2007, p. 333). Ora, é claro que para o

indivíduo adquirir uma existência própria ele precisa se diferenciar do ambiente,

contudo, tal diferença se efetua a partir da indistinção absoluta nos estágios primitivos14.

Sendo assim, a possibilidade de ser se faz na medida mesma da fusão entre o bebê e a

mãe, modo pelo qual ele não precisa reagir ao ambiente e pode experienciar a sua

espontaneidade, tornando-se dono das sensações correspondentes nessa etapa da vida.

Para que esta fusão seja garantida é preciso uma adaptação ativa às necessidades

naturais do recém-nascido, a partir da qual “se manifesta o sentimento de unidade entre

duas pessoas, que de fato são duas, e não apenas uma” (Winnicott, 1966/2002, p.5). Tal

adaptação assume um caráter de parceria entre a mãe e o bebê e depende inteiramente

da sensibilidade e habilidade maternas, adquiridas na medida em que a gravidez avança.

Winnicott refere-se a isso como um estado de sensibilidade exacerbada, denominado

“preocupação materna primária” (Winnicott, 1945b/2000), mediante o qual a mãe volta-

se exclusivamente para os cuidados do seu filho. Esse estado é comparável ao

retraimento característico da psicose, contudo, temporário, pois surge no final da

gravidez, prolongando-se algumas semanas após o nascimento da criança. Nessas

condições, a mãe torna-se capaz de identificar-se com os anseios do bebê, sentir-se

mesmo no lugar dele e, desse modo, corresponder a eles.

13 A utilização do termo self, por vezes, utilizado como sinônimo de eu, outras, hifenizados por uma variedade de palavras, não é muito clara na concepção winnicottiana. Mesmo no final da sua obra, Winnicott escreve: “Fico pensando se poderia escrever algo a respeito desta palavra [self], mas naturalmente, assim que me proponho a fazê-lo, descubro que há muita incerteza, mesmo em minha própria mente, sobre o que quero dizer” (1970a/2005, 210). Entendemos o self de um indivíduo como a reunião das experiências do viver – antes mesmo da integração numa unidade – e o eu enquanto organizador destas experiências. 14 O processo de diferenciação entre o eu e o não-eu será desenvolvido adiante.

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A questão central, portanto, diz respeito à capacidade de identificação da mãe,

isto é, a sua capacidade de atender às necessidades na proporção adequada para o bebê e

não em função do seu próprio desejo. Ora, somente uma mãe extremamente sintonizada

com o seu bebê percebe o que, por um lado, pode ser suficiente e apropriado para ele, e

por outro, excessivo e intrusivo. Vale a pena marcar que essa comunicação sutil entre os

dois emerge do próprio entusiasmo e envolvimento materno com o bebê e, nesse

sentido, do seu interesse verdadeiro com o seu bem-estar. Sendo assim, não se trata de

uma maternagem mecanicamente perfeita, tampouco, adquirida em cursos, livros, ou

por instruções quaisquer. Dito de outro modo, “não se trata de precisarmos dizer às

mães o que devem fazer, ou como devem ser. Se não o forem, paciência: não podemos

fazer com que sejam” (Winnicott, 1968/2002, p.90). Ora, o que está em jogo é o próprio

modo de ser da mãe e as formas pelas quais ela se faz disponível ou simplesmente ali.

Esse entendimento é especialmente importante para a compreensão do que Winnicott

abarca com a idéia de atendimento das necessidades, uma vez que essas não se reportam

à sexualidade. Ao se voltar para a satisfação da dependência nos primórdios, Winnicott,

de maneira nenhuma, exclui a satisfação pulsional – universo privilegiado por Freud –

mas, atenta para as necessidades psicossomáticas, ou seja, para a qualidade da relação

primordial. Segundo o autor, inclusive, é possível a mãe gratificar a pulsão oral do bebê,

por exemplo, e, feito isso, violar o próprio self, uma vez que essa gratificação pode ser

realizada de forma impessoal ou em desalinho com os seus anseios. Nessas ocasiões, o

bebê não tem como “estar satisfeito com a satisfação” (Abram, 2000, p.121).

A fim de explicitar o modo vivo e humano com o qual esta adaptação se dá,

Winnicott sugere o termo “mãe dedicada comum” e “mãe suficientemente boa”15 ao se

referir à pessoa real que cuida do bebê, por esta razão, passível de falhas. A dedicação

materna, contudo, faz com que essas possíveis falhas sejam remediadas num limiar

temporal suportável para o bebê. Tais nomenclaturas refletem o pensamento do autor,

segundo o qual, a experiência da desadaptação é incluída no percurso do

desenvolvimento emocional, ainda que absolutamente desnecessária e improdutiva. De

fato, nem todas as mães suportam essa condição especial de identificação com o seu

bebê, essas somente podem providenciar os cuidados de forma teórica e impessoal.

Com referência à insuficiência dos cuidados maternos, Winnicott descreve a mãe 15 Nas palavras de Winnicott: “quando digo mãe, não estou excluindo o pai, mas é que neste estágio o que nos interessa é o aspecto materno do pai” (Winnicott, 1968/2002, p.83).

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tantalizante, alternadamente adaptativa e não-adaptativa, isto é, que se preocupa ora

com o bebê, ora com outra coisa; a mãe fragmentada, quando várias pessoas estão

cuidando do bebê, de tal modo que o bebê experimenta uma complexidade, em vez de

uma simplicidade no cuidado; a mãe ansiosa, que antecipa e atravessa a espontaneidade

do bebê; a mãe deprimida, cujo rosto está congelado por um humor embotado. Em

todos os casos ilustrados, não há um reconhecimento responsivo da mãe em relação ao

bebê, motivo pelo qual ela não pode ir ao encontro de suas necessidades. Nessas

condições, o bebê não é efetivamente visto pela mãe e, nesse momento originário, não

ser visto equivale a não existir.

Por esse viés, em “O papel do espelho da mãe e da família no desenvolvimento

infantil”, Winnicott propõe que “o precursor do espelho é o rosto da mãe” (1971a/1975,

p.153), de modo que quando o bebê olha para o rosto da mãe, ele pode ver a si próprio.

Cabe retomar que isso se dá em função do extremo estado de identificação entre eles.

Portanto, o bebê descobre o que ele próprio sente ao ver isso refletido no rosto da mãe,

o que significa que ele depende das respostas e expressões faciais da mãe para formar

seu próprio self. Daí a importância da experiência do rosto da mãe no processo de

subjetivação16, posto que ao olhar o bebê, ela confere forma, textura, conteúdo,

sentimentos, enfim, qualidade e realidade à sua existência. Por outro lado, se a mãe é

incapaz de responder ao gesto do bebê de necessidade pessoal, porque está preocupada

com outra coisa qualquer, o seu rosto não se apresenta como espelho e,

conseqüentemente, ele não será capaz de ver a si mesmo. Nesse caso, ele olha e não

observa a si, apenas como a mãe se sente. Tal inabilidade materna contribui para uma

sensação de não-reconhecimento e para uma interrupção brusca e precoce da fusão entre

os dois. Para compreendermos melhor a importância da adaptação materna e os efeitos

devastadores da sua ausência, examinaremos três vertentes da maternagem: o holding, o

handling e a apresentação de objetos, ambos intimamente relacionados a três processos

do desenvolvimento, a integração, a personalização e as relações de objeto.

Holding e Handling

16 Esta experiência oferece uma perspectiva para pensar a análise como um “derivado complexo do rosto que reflete o que há para ser visto (Winnicott, 1971a/1975, 161).

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Nos primórdios da vida psíquica, o bebê se encontra num estado de não

integração primária, isto é, o bebê não é ainda uma unidade, mas “um conjunto não-

organizado de fenômenos sensório-motores” reunidos pelo suporte do ambiente

(Winnicott, 1965a/2001, p.216). De início, o bebê sequer consegue perceber que é o

mesmo, tanto nos estados de excitação, fome e choro, quanto nos momentos de

calmaria, descanso e relaxamento, tampouco, reconhece a existência de um interior e de

um exterior. Ele resume-se, portanto, a uma mera continuidade do ser no tempo e no

espaço, a partir da qual, pode começar a existir e alicerçar-se subjetivamente. É esta

dimensão de continuidade, “a mais simples de todas as experiências” (Winnicott,

1966/2002, p.5), condição de possibilidade para a atualização do potencial herdado e,

nessa medida, para o estabelecimento da capacidade para fazer experiências. Vale

indicar aqui que somente o que for dado na experiência é sentido como real para o

indivíduo. Nas palavras de Winnicott:

É possível induzir um bebê a alimentar-se e a desempenhar todos os processos corporais, mas ele não sente estas coisas como uma experiência, a menos que esta última se forme sobre uma proporção de simplesmente ser, que seja suficiente para constituir um eu que será, finalmente uma pessoa (1966/2002, p.9).

Com efeito, os processos de integração e personalização são decorrentes da

experiência de continuidade pessoal do bebê, isto é, somente com base numa

continuidade da existência, o indivíduo pode se constituir e tirar proveito das

experiências da vida. Para que essa continuidade seja mantida, é necessária uma

estabilidade ambiental, que se faz através da rotina completa de cuidados físicos e

amorosos dispensados ao recém-nascido, levando-se em conta o ritmo, a temperatura e

as sensibilidades particulares. Acompanhando as formulações de Winnicott,

entendemos que no início o próprio ato físico de segurar e manipular o bebê pode

facilitar ou dificultar os processos de maturação e, nessa medida, preservar ou

interromper a continuidade do ser, tendo em vista o modo pelo qual são

desempenhados. O holding implica a função primária de segurança e diz respeito ao

modo cuidadoso com o qual a mãe se disponibiliza para dar suporte aos processos de

subjetivação; enquanto o handling compõe toda a série de cuidados que a mãe dispensa

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ao manusear o seu filho, tais como, embalar, tocar, limpar e alimentar. Nesse sentido, é

a presença física da mãe que garante o bebê unido a si mesmo, posto que ele “se

desmancha em pedaços a não ser que alguém o mantenha inteiro” (Winnicott,

1988/1990, p.137).

Tais cuidados maternos especializados introduzem o bebê num tempo e num

espaço indispensáveis para a sua constituição Esses cuidados se relacionam com duas

tendências do desenvolvimento, uma delas é justamente a integração do eu no tempo e

no espaço promovida pelo holding. Ora, certamente não existe sentimento de existência

fora de uma dimensão temporal e espacial. Essa conquista se faz em virtude da

repetição segura e monótona das tarefas. Nessas circunstâncias, se desenvolve o que

Winnicott denomina de “senso17 de predizibilidade” (Winnicott, 1970a/2005, p.220),

uma espécie de conhecimento baseado na familiaridade, que torna possível ao bebê ser

capaz de reter lembranças, esperar pelos cuidados e cogitar a respeito dos sentimentos

da mãe. Desse modo, é a previsibilidade dos cuidados maternos que viabilizam o

encadeamento paulatino de um sentido de passado, presente e futuro e a conformação

do eu enquanto uma unidade. A outra tendência concerne à personalização vinculada ao

handling, que diz respeito ao alojamento da psique no corpo. A própria experiência de

tocar o bebê oferece a oportunidade para a pele funcionar como limite entre o interior e

o exterior, o que se desdobra na sensação de estar à vontade com o próprio corpo.

É importante enfatizar que as experiências unificadoras provêm de fora, como

vimos, pelo suporte materno, mas, também de dentro, isto é, pelas experiências

pulsionais, pelos movimentos espontâneos, bem como, pelo próprio uso dos sentidos

vitais. Outro ponto fundamental é que essas conquistas do desenvolvimento

winnicottiano18, além de interdependentes, são estabelecidas a partir de idas e vindas do

estado de não-integração a momentos mais organizados e diferenciados, concepção,

aliás, característica da idéia de uma processualidade. O acúmulo dessas experiências

silenciosas de cuidado, com base na responsividade e empatia materna, deságua na

confiança do ambiente. Ademais, o bebê passa a acreditar na confiaça dos próprios

processos internos que levam ao amadurecimento, uma vez que os cuidados adaptativos

17 Entendemos que o termo senso (‘sense’, no original em inglês) se constitui num plano pré-representacional, sendo, portanto, da ordem de uma sensibilidade e não de uma idéia. 18 A conquista referente ao encontro com os objetos vinculada à função materna de apresentação dos objetos será examinada no próximo item.

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facilitam tais processos de modo invisível, posto que o bebê e a mãe se encontram

fusionados. Cabe destacar que a confiabilidade materna não se reduz a uma tarefa da

mãe específica, mas, sobretudo, no modo como ela atende às necessidades de

continuidade pessoal do bebê. Os primeiros vínculos de confiança, portanto, são

experimentados na forma cuidadosa com a qual a mãe atende às necessidades

psicossomáticas do seu filho, forma que primitivamente se traduz pela preservação da

continuidade da sua existência. Nessas condições, a mãe introduz e sustenta o bebê num

mundo subjetivo – pessoal e imaginativo – feito sob medida.

A apresentação do mundo

A experiência de confiabilidade requer um modo de apresentação do mundo que

sustente a continuidade necessária aos processos de subjetivação. Na concepção de

Winnicott, a percepção objetiva do mundo se faz a partir da apercepção criativa do

mesmo, que se dá justamente na margem da apresentação, visto que não se pode criar o

mundo no vazio, por conta própria, sem correspondência. A relação do bebê com os

objetos subjetivos se caracteriza por excluir qualquer diferença entre o eu e o não-eu,

portanto, não comporta indícios de realidade objetiva. Tal relação de delicada

continuidade – no tempo e no espaço – sustentada pelo auxílio materno faz com que o

bebê sinta o ambiente como uma extensão sua. Por essa razão, a apercepção criativa

solicita uma versão simplificada e dosada dos objetos ao recém-nascido, o que se faz

mediante a adaptação da mãe, em seu estado de preocupação materna primária, no qual

é capaz de identificar e atender as necessidades cambiantes do bebê. Nessas condições,

a mãe proporciona ao bebê a ilusão de que o mundo pode ser criado a partir da sua

necessidade e gesto espontâneo, ou ainda, de que a realidade externa corresponde à sua

capacidade criadora. Dito de outro modo, no momento exato em que o bebê sente fome,

a mãe apresenta o seio real, agenciando, assim, a experiência de ilusão de onipotência,

condição de possibilidade para a expressão do seu potencial criativo. Tal experiência

pode ser acompanhada na descrição detalhada de Winnicott (1965b/1982):

Imaginemos um bebê que nunca tivesse sido amamentado. A fome surge, e o bebê está pronto para imaginar algo; a partir da necessidade, o bebê está pronto para criar uma fonte de satisfação, mas não existe uma experiência prévia para mostrar ao bebê o que ele tem que esperar. Se, nesse momento, a mãe coloca o seio onde o bebê está pronto para esperar algo e se for concedido tempo bastante para que o bebê se sacie à vontade,

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com a boca, com as mãos, e, talvez, com um sentido de olfato, o bebê ‘cria’ justamente o que existe para encontrar. O bebê, finalmente, forma a ilusão de que esse seio real é exatamente a coisa que foi criada pela necessidade, pela voracidade e pelos impulsos de amor primitivo (p.101).

De início, o recém-nascido se encontra disposto a alucinar, mas, para exercer

este potencial, a mãe-ambiente precisa responder ao seu movimento espontâneo. Assim,

a tarefa materna consiste em introduzir o bebê num mundo subjetivo, em relação ao

qual ele exerce um controle onipotente, visto ter a ilusão de que as suas necessidades

são atendidas por sua força mágica criadora. Ora, sabemos que o mundo já existia antes

do bebê nascer, mas o bebê não sabe disso e, inicialmente, tem a ilusão de que o que ele

encontra foi por ele criado. As inúmeras repetições dessa experiência de onipotência

geram uma confiabilidade no ambiente. Daí se desenvolve a confiança baseada na

experiência de que o objeto do desejo pode ser encontrado, ou ainda, de que o mundo

contém o que é preciso. Tratando-se do momento inicial, não há experiência do outro

enquanto tal, de modo que o bebê não sabe da existência confiável da mãe enquanto

ambiente, apenas sente os seus efeitos. Porém, à medida que o desenvolvimento

prossegue, ele estabelece uma crença na permanência do mundo e dos objetos. Assim,

mesmo em fases posteriores, quando o indivíduo reconhece intelectualmente, que o

mundo já existia antes de sua criação do mesmo, a sensação de que o mundo foi por ele

criado permanece. Desse modo, “a criança se torna gradativamente capaz de se

defrontar com o mundo e todas as suas complexidades, por ver aí, cada vez mais o que

já está presente dentro de si própria” (Winnicott, 1963/1983, p.87). Há que se atentar

para o fato de que no pensamento winnicottiano, do ponto de vista subjetivo do bebê, a

ilusão antecede a realidade e, mais do que isso, a ilusão concebe a externalidade. Em

última instância, trata-se de uma mútua construção, pois no momento em que o bebê

cria o mundo, o mundo está criando o bebê.

Para experimentar-se criador ativo do mundo, nenhuma precipitação de

realidade incompreensível e sem sentido deve se apresentar ao bebê, isto é, nada que

ultrapasse o campo da sua onipotência. Para tanto, a mãe simplifica a complexidade da

vida, oferecendo ao filho uma amostra na medida exata da sua capacidade de abarcá-la

como experiência. A sua presença se opõe de maneira adequada ao bebê, de tal forma

que ela atende às suas necessidades, sem destacar-se do mundo. Essa oposição é

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indispensável para que o próprio gesto criativo do bebê se constitua enquanto tal,

fundamento, portanto, da sensação de realidade e sentido da existência. A idéia é a de

que o atendimento da necessidade do bebê torna real a própria necessidade, ou ainda,

que a resposta ao seu movimento espontâneo confirma esse mesmo movimento. Se o

bebê tem as suas necessidades supridas pela mãe-ambiente, ele passa a sentir confiança

no ambiente e pode entregar-se ao conforto relaxado da não-integração. É a repetida

conjugação da apresentação com a criação do objeto que dispõe a capacidade de confiar.

Daí é possível depreender que a própria atividade do bebê está ligada a uma experiência

de confiabilidade com o entorno, no sentido de que o gesto criativo pressupõe o

encontro com o objeto da criação. Dessa perspectiva, ao capacitar o bebê à “loucura

específica permitida aos bebês” (Winnicott, 1971b/1975, p.102), a mãe torna possível o

“início de uma crença na realidade como algo sobre o qual é possível ter ilusões”

(Winnicott, 1945a/2000, p.229).

Em contrapartida, o não atendimento das necessidades do bebê no momento da

dependência absoluta interrompe o sentimento de continuidade da existência, da qual

depende o desenvolvimento das suas potencialidades subjetivas. Isso se dá em virtude

do adiantamento ou ausência da mãe em apresentar o mundo ao bebê, o que significa

que ao invés de corresponder ao gesto espontâneo do bebê, ela impõe o seu próprio

gesto, intrusão por excelência. Em outras palavras, os objetos não são oferecidos ao

bebê de modo que ele possa ter a experiência de tê-los criado, ao contrário, ele se

surpreende com os objetos que se intrometem no seu mundo antes que ele tenha

competência suficiente para abarcar o sentido da externalidade. Nessas condições, o

encontro com a realidade se configura como essencialmente traumático, uma vez que o

bebê ainda não tem condições de representação nem maturidade para integrá-la

enquanto experiência pessoal. Ora, o bebê ainda não é capaz de perceber esses objetos

que o afrontam, contudo, sofre as conseqüências da falta de confiança no ambiente.

Nesse sentido, é justamente a partir da falta de adaptação materna que o bebê toma

conhecimento da existência externa do mundo. Convém ressaltar aqui que o caráter da

confiança materna reside no modo contínuo e previsível da apresentação dos objetos ao

bebê, a salvo de sobressaltos.

Na gramática winnicottiana, o trauma implica que o bebê experimentou uma

descontinuidade abrupta com o mundo, sentida como uma ameaça de aniquilamento

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subjetivo, posto que desperta angústias impensáveis, a saber, “ser feito em pedaços, cair

para sempre, morrer, morrer e morrer, perder todos os vestígios de esperança e

renovação de contatos” (Winnicott, 1970b/2002, p.76). É importante notar que essas

angústias traduzem justamente a ausência de continência e amparo materno. Diante de

um sofrimento inimaginável e incompreensível, o bebê reage e, na medida mesma da

sua reação, perde a sensação de ser. Essa reação tem como objetivo recuperar a

estabilidade e segurança do ambiente, ainda que pelo sacrifício da própria experiência

de continuidade. Trata-se de uma tentativa de compensar a insuficiência dos cuidados

maternos, uma vez que o sentimento de existência da mãe se esvai, bem como o tempo

de espera, de suportabilidade e de esperança de apaziguamento. No tocante às

interferências relativas ao modo de presença materna nos estágios primitivos, Winnicott

(1971c/1975) atribui uma importância significativa ao fator temporal. Sigamos a sua

formulação:

O sentimento de que a mãe existe dura x minutos. Se a mãe ficar distante mais do que x minutos, então a imago se esmaece e, juntamente com ela, cessa a capacidade do bebê utilizar o símbolo da união. O bebê fica aflito, mas essa aflição é logo corrigida, pois a mãe retorna em x + y minutos. Em x + y minutos, o bebê não se alterou. Em x + y + z minutos, o retorno da mãe não corrige o estado alterado do bebê. (...) Temos que supor que a imensa maioria dos bebês nunca experimenta a quantidade de privação x + y + z. Isso significa que a maioria das crianças não porta consigo, vida afora, o conhecimento da experiência de ter sido louco. A loucura, aqui, significa simplesmente uma ruptura do que possa configurar, na ocasião, uma continuidade pessoal de existência (p. 136).

Com efeito, uma dosagem de presença e ausência, de ilusão e desilusão se

apresenta de forma incipiente desde os estágios iniciais, sendo, inclusive, o que

posteriormente permite o próprio movimento de diferenciação e a descoberta pessoal do

ambiente. Contudo, convém retomar que Winnicott propõe uma adaptação absoluta,

cem por cento, às necessidades do recém-nascido. Levando isso em consideração,

podemos pensar que o importante é que a adaptação materna promova suficientes e

sucessivas experiências de ilusão e que as intrusões não perturbem duradouramente o

contínuo da existência, posto que, aos poucos, o recém-nascido começa a ter recursos

psíquicos para lidar com o processo de desilusão, sem prejuízo da continuidade. Desse

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modo, as ausências da mãe podem ser suportáveis, na medida em que ela se torna

confiavelmente presente. Essa questão nos remete ao artigo de Winnicott, “A

capacidade para estar só” (1958/1983), no qual afirma que tal capacidade se baseia na

experiência de estar só na presença de alguém disponível e sem exigências nos

primórdios da vida psíquica, sendo a repetição dessa experiência a condição de

possibilidade de uma crença num ambiente “benigno” e protetor. A idéia esboçada aqui

é a de que “teoricamente, há sempre alguém presente”, mesmo sem a presença física de

um outro, razão pela qual, estar só não significa abandono.

Todavia, sem esta confiança materna, a criança se vê obrigada a tomar para si a

tarefa de proteção, isto é, a “fazer a própria maternagem de si mesma” (Phillips, 2006,

p. 140). Entregue aos seus próprios recursos, a sensação que comparece é a de loucura e

aniquilamento em contraposição à sensação de segurança, produto de uma adaptação

bem-sucedida. Aqui o súbito desenvolvimento dos processos intelectuais assume uma

função notadamente protetora, de modo que o pensamento transforma-se num substituto

da presença materna19. Se a desatenção ou ausência da mãe exceder o limite suportável

para o bebê, o que se constitui necessariamente como uma desilusão, a confiança na

consistência e permanência do mundo esmaece. Uma vez que esse ambiente não se

adapta, exige submissão e, nessas condições, o potencial criativo não se atualiza em

experiência pessoal. Dito de outro modo, o rompimento prematuro das experiências de

ilusão de onipotência implica numa impossibilidade de desenvolver-se criativamente. A

partir dessas considerações, retomamos o sentido da expressão winnicottiana, a qual

situa o princípio de realidade como “arquiinimigo da espontaneidade” (Winnicott,

1984/1987).

Por não ter outra estratégia viável de sobrevivência – dada a maturidade psíquica

em questão – a não ser reagir à falha materna, o bebê torna-se um acumulado de reações

à intrusão, ao invés de agir espontaneamente no mundo. Se os seus movimentos

espontâneos não são correspondidos pelo gesto da mãe, esses terminam sendo retraídos.

Em face da sua subjetividade ameaçada – a mercê de agonias primitivas – o bebê

organiza um modo de funcionamento subjetivo extremamente defensivo e clivado,

baseado na adaptação (compliance) ao ambiente. A idéia é a de que as defesas

desempenham a função de preservação da própria singularidade precária contra os

19 Para um exame mais detalhado desta questão, ver: Winnicott, D. W. (1949/2000).

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traumas advindos do meio (Souza, 2003). Para tanto, essas defesas, contra a iminência

de colapso subjetivo, instauram um estado de fragmentação do ser, com o intuito de

isolar o núcleo espontâneo do indivíduo. Com a continuidade estilhaçada, sem base para

ser, não há como viver experiências, pois, ao invés do sujeito estar no acontecimento

presente, encontra-se fora do tempo e do espaço, fora de si. Ora, a escassez de

experiências impede a construção de uma história, pois perde-se a costura entre o tempo

passado, presente e futuro, como também, entre realidade subjetiva e realidade externa.

Daí advém um sentimento de não estar presente no mundo, sensação de vazio e não-

existência. Dessa perspectiva, o que se estabelece é um padrão de relacionamento com o

mundo pautado na defesa, que prescinde do sentido de existir. Esse remanejamento

subjetivo resulta numa sensação de incapacidade de interferência ativa no mundo e na

resignação ao mundo tal como imposto. Sendo assim, “a vida é vivida como uma

permanente cilada do imprevisível da qual é preciso, sem cessar, se precaver” (Dias,

1999, p. 290). Nessas condições, o que se experiencia é uma desconfiança em relação ao

ambiente tomado como hostil e ameaçador.

A este funcionamento protetor, Winnicott corresponde o falso self, cuja função

defensiva consiste em “ocultar e proteger o self verdadeiro, o que quer que esse possa

ser” (1960, p.130), e conformar-se às exigências do meio. Certamente diferentes

gradações se apresentam na organização falso self, podendo, no extremo da patologia,

ocupar todo o modo de existência do indivíduo, de maneira que o verdadeiro self

permanece oculto, até no extremo oposto da saúde, encontrado conjuntamente com o

verdadeiro self, identificado como uma capacidade de traquejo social e de negociação.

Em contrapartida, não se pode dizer que o verdadeiro self tenha graus, na medida em

que ele simplesmente define o que é “singular e original em cada pessoa” (Phillips,

2006), fonte do gesto espontâneo. Contudo, não nos parece interessante pensar,

sobretudo, clinicamente, numa parte do self como sendo falsa20 e noutra como

verdadeira. Em última instância, ambas as partes designam o que é próprio do

indivíduo, seja um sentimento de irrealidade e inutilidade, seja, a expressão natural e

autêntica do vivo. Nesse sentido, acompanhamos a formulação de Pontalis (2005),

segundo a qual, “verdadeiro e falso não devem ser entendidos como qualidades

20 H. O’Dwyer de Macedo (1999) sugere o termo self falsificado a falso self com o intuito de privilegiar a participação ativa do indivíduo na criação desta falsificação necessária à sua sobrevivência, medida de proteção da sua “íntima-intimidade”.

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inerentes ao indivíduo. Não são os predicados do sujeito” (p.200). O que importa,

portanto, encontra-se na dinâmica da relação entre essas partes, intricada nas condições

ambientais da relação mãe-bebê. No tocante a essa dinâmica, quanto mais demarcada a

cisão entre o falso e o verdadeiro self, mais difícil será transitar entre o mundo subjetivo

e a objetividade do mundo, espaço potencial das experiências intensas, imaginadas,

compartilhadas, do simbolismo e do viver criativo. Tal dificuldade expressa uma

incapacidade de entrega e confiança no mundo.

A experiência de confiança no espaço potencial

A interação da mãe com seu bebê resulta em uma área que poderíamos chamar de território comum, a terra de ninguém que na verdade é de cada um, o local onde se oculta o mistério, o espaço potencial que pode se transformar em objeto transicional, o símbolo da confiança e da união entre o bebê e a mãe, uma união que não envolve a interpretação. Portanto, não se pode esquecer das brincadeiras, onde nascem a afeição e o prazer pela experiência (Winnicott, 1968/2002, p.89).

Suficientes experiências de ilusão no estágio de dependência absoluta se

apresentam como a condição para o estabelecimento de um contato verdadeiro,

significativo e profícuo com o mundo, tanto objetivo quanto subjetivo, especialmente,

no que se refere ao intercâmbio entre os dois. A partir dessa ilusão de onipotência inicial

de criação dos objetos se dá a transição de um mundo subjetivamente apercebido para

um mundo objetivamente percebido, que se constitui como um espaço potencial entre a

mãe e o bebê, sendo a confiança no ambiente o que torna possível essa transição. Tal

confiança fundamenta-se justamente na sustentação da continuidade do bebê, mediante

a qual o indivíduo experiencia a desilusão não como abandono materno, mas como um

convite a uma relativa independência e autonomia. Nesse estágio seguinte do

desenvolvimento, destacar-se da mãe se apresenta como via de acesso para uma

apropriação do mundo e de si mesmo.

O processo de desilusão, que redunda no desfusionamento entre a mãe e o bebê,

se inicia com as falhas da adaptação materna, falhas necessárias para o próprio processo

de subjetivação, sempre apoiadas na antecessora experiência de ilusão. Tal

desadaptação se dá em função da diminuição da identificação da mãe com o seu filho,

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que corresponde a sua recuperação do estado de “preocupação materna primária” e do

próprio avanço do curso de amadurecimento do bebê. Aqui a criança começa a tomar

conhecimento da sua dependência em relação à mãe e ser capaz de esperar pelos seus

cuidados, o que indica o início da compreensão intelectual. Certamente essas falhas de

adaptação ou ausências da mãe não podem ser suportadas sem prejuízo da continuidade

do bebê, quando são excessivamente intensas e prolongadas, o que traduz uma

separação prematura e dolorosa. Pode-se dizer que a mãe começa a falhar no

atendimento às suas necessidades, mas não na sua confiabilidade, uma vez que se

preocupa em corrigi-la no tempo devido. Tomando essa perspectiva em consideração, a

adaptação absoluta às necessidades do bebê deve ceder lugar a uma adaptação relativa

de maneira delicada e gradativa.

Esta passagem se faz mediante a criação do espaço potencial – entre o bebê e a

mãe – que torna possível a tarefa materna de desilusão, tendo em vista que o seu caráter

transicional mantém vivo o sentimento de continuidade da existência a despeito da

separação. Separação aqui pode ser entendida justo como o intervalo que separa a mãe e

o bebê, ou seja, como o intervalo entre o atendimento de uma necessidade e a

necessidade de um novo atendimento. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que esse

espaço viabiliza a separação, a mesma é evitada pelo uso dos objetos e fenômenos

transicionais, “símbolo da confiança e da união entre o bebê e a mãe”, conforme

referido acima. Nesse sentido, podemos pensar que esses intervalos são preenchidos

pela confiança no ambiente, pois “onde há confiança e fidedignidade há também espaço

potencial” (Winnicott, 1971c/1975, p.150).

Ao propor esta área intermediária de experimentação, Winnicott (1971d/1975),

visa descrever o trajeto operado pelo indivíduo da pura subjetividade para a

objetividade, ou seja, a passagem entre estar absolutamente fusionado com a mãe e estar

dela separado. Esses objetos e fenômenos se reportam a uma dimensão do viver, a qual

contribui realidade interna e vida externa, cujo traço essencial reside na inutilidade em

distinguir entre o dentro e o fora. Trata-se de uma área intermediária da experiência, não

contestada, lugar de repouso entre o “despertar e o adormecer”, ou seja, área

“constituída pelo compartilhar de ilusões (...). Ilusões não porque sejam falsas, mas

porque combinam o desejado com o efetivo de maneiras toleráveis” (Phillips, 2006, p.

119). O que é importante assinalar é a transicionalidade desse espaço, pois, ao mesmo

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tempo em que dissolve os limites entre mundo interno e mundo externo – entre o eu e o

não-eu – também promove o processo de delimitação e separação entre ambos, à

medida que introduz uma possibilidade de simbolização, portanto, de substituição, do

outro. “Quando o simbolismo é empregado, o bebê já está claramente distinguindo entre

fantasia e fato, entre objetos internos e objetos externos, entre criatividade primária e

percepção” (Winnicott, 1971d, p.19).

Nesse percurso, no momento em que a mãe se ausenta, o bebê inicia o uso do

objeto transicional, tornando evidente o seu caráter simbólico de ligação, sem abdicar,

portanto, da continuidade da existência, tão cara ao bebê winnicottiano. A idéia é que a

perda da mãe, com a qual o bebê mantinha até então uma continuidade, é amortecida

pelo objeto transicional. Esse objeto transicional corresponde à “primeira possessão que

seja não-eu” (Winnicott, 1971d/1975), do polegar na boca ao ursinho de pelúcia e, nesse

sentido, relaciona-se tanto ao objeto interno quanto ao objeto externo, porém, não se

confunde com eles. A característica central do conceito de objeto transicional reside no

paradoxo: o bebê cria o objeto, mas o objeto já estava ali, o que significa que a criação

do objeto pressupõe a sua existência no mundo. Sendo assim, o objeto não se encontra

sob o controle mágico, tampouco, fora dele. Para que esse objeto – encontrado e criado

num só tempo – possa ser efetivamente usado, deve portar determinadas propriedades.

Sob essa ótica, Costa (2004) postula que o objeto adequado à função transicional deve

possuir duas qualidades, por um lado, “deixar-se alterar, em parte, pela atividade

sensório-motora ou representacional da criança” e, por outro, “resistir, em parte, aos

esforços infantis para mudá-lo” (p.118). Por um lado, complacente, na medida em que

permite à criança a ilusão de onipotência, por outro, resistente, posto que preserva a

alteridade do objeto.

Por esse viés, o objeto transicional aponta para um estágio do desenvolvimento

ao qual o bebê está prestes a lidar com os objetos de maneira diferenciada. Para

compreendermos melhor a forma pela qual a criança pode tirar proveito dos objetos e

enriquecer-se com a diferença, nos debruçaremos sobre a concepção winnicottiana a

respeito do “uso de um objeto” (1971e/1975). Trata-se aqui do deslocamento da relação

de objeto – subjetivamente concebido – ao uso de objeto, esse fora do controle

onipotente. Com efeito, o sujeito só pode usar o objeto que sobreviveu à sua fantasia de

destruição. Acompanhemos a maneira como Winnicott (1971e/1975) descreve:

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O sujeito diz ao objeto: ‘Eu te destruí’, e o objeto ali está recebendo a comunicação. Daí por diante, o sujeito diz: ‘ Eu te destruí. Eu te amo. Tua sobrevivência à destruição que te fiz sofrer, confere valor à tua existência, para mim. Enquanto estou te amando, estou permanentemente te destruindo na fantasia’ (inconsciente). Aqui começa a fantasia para o indivíduo. O sujeito pode agora usar o objeto que sobreviveu (p.126).

O ato de destruição e a sobrevivência do objeto indicam o caráter externo da

realidade, não apenas considerada como um feixe de projeções. Sobreviver equivale a

não sofrer alteração de qualidade ou atitude. Nessas circunstâncias, o objeto revela a

sua autonomia e independência, por conseguinte, fica situado fora do controle

onipotente da criança. A partir do conhecimento acerca da existência do objeto –

sobrevivente do ataque destrutivo – o individuo pode efetivamente usá-lo. O uso não

implica na exploração do objeto e sim no seu atributo de realidade. A idéia

winnicottiana é a de que os objetos só se tornam reais, logo, usáveis, por serem

destruídos, caso contrário, tornam-se apenas fruto de projeções subjetivas do indivíduo.

Nesse caso, o indivíduo não pode enriquecer-se com amostras da realidade externa. A

experiência da destrutividade, portanto, cria a qualidade da externalidade, cujo efeito

consiste no destacamento entre o mundo externo e o mundo interno ou entre o eu e o

não-eu. Daí em diante, ambos adquirem uma sensação de realidade e existência

própria21. A constituição dos limites tanto internos quanto externos do indivíduo se faz,

portanto, pelo uso contínuo e ativo do ambiente. Nesse sentido, quanto mais consistente

e sólida for a delimitação das fronteiras, mais o indivíduo pode sentir-se seguro para

transitar entre o dentro e o fora, âmbito das experiências criativas.

Nessas condições, institui-se um mundo de realidade compartilhada entre o

indivíduo e o mundo, no qual se experimenta a vida. Vale dizer que se trata de um

espaço potencial de experimentação que pode ser habitado ao longo da existência, para

o qual contribuem tanto a subjetividade quanto a objetividade do mundo. Na

perspectiva winnicottiana, a criatividade é justamente a característica que torna os seres

efetivamente humanos e vivos. Ora, certamente, o indivíduo só pode expressar-se de tal

modo com o mundo, na medida em que seus objetos primordiais se mostram passíveis

de intervenção criativa nos estágios inicias. Dito de outro modo, para o indivíduo 21 Dessa ótica, pode-se entrever o quanto é enganoso pensar no estabelecimento do sentido de realidade do bebê como um produto da insistência materna quanto à natureza externa do objeto.

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experimentar-se criador do ambiente e dos objetos que lhe são dados, esses precisam se

dispor de maneira apropriada e confiável a ele. Tal disposição pressupõe uma oferta do

mundo em “pequenas doses”, como sugere Winnicott (1957/1982), isto é, adequada à

sua capacidade de uso, nem “realidade demais ou pouco demais de realidade” (Pontalis,

2005). Dessa ótica, se configura um novo modo de presença materna: se antes a sua

confiança condensava-se na previsibilidade e continuidade dos cuidados inicias, agora a

confiança encontra-se na sobrevivência da mãe à agressividade da criança, o que

implica fundamentalmente numa não-retaliação. Sendo assim, o outro se torna

confiável porque permanece vivo, resistente, ali.

Em contrapartida, uma mãe que não suporta os impulsos destrutivos da criança e

reage a eles, seja na forma de um revide ou pelo seu próprio abatimento, termina por

inibi-los. Sem a oposição materna adequada, os contornos entre a interioridade e a

externalidade não se edificam, de modo que a dimensão transicional não se estabelece.

Em decorrência da impossibilidade de utilização do espaço entre, ocorre uma fixidez e

aderência às bordas. Nos extremos opostos do sofrimento, pode-se pensar, por um lado,

num apego excessivo à realidade externa, que resulta numa vivência de escravização e

complacência; por outro lado, numa hiperligação com a fantasia, de tal forma que o

indivíduo vive secretamente o seu mundo interno, mantendo-se fora de contato com os

acontecimentos da vida. Em ambos os casos, o indivíduo não pode dar-se ao luxo de

relaxar e entregar-se à experimentação mundana. Desse modo, a criatividade não se

atualiza em experiência pessoal, no entanto, predomina enquanto potencial à espera de

um ambiente de confiança para se atualizar.

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CAPÍTULO 3

A EXPERIÊNCIA DA CONFIANÇA EM BALINT

...a relação harmoniosa entre o sujeito e o objeto ou expansão

é tão importante como o suprimento de ar.

M. Balint

A marca balintiana

O acento da obra de Balint pode ser condensado numa expressão utilizada pelo

próprio autor, a saber, o “poder cicatrizante da relação” (1968/1993, p. 147). Movido

por preocupações clínicas, seguindo a tradição ferencziana22, o autor se ocupa da

constituição da subjetividade e dos estágios precoces da relação do indivíduo com o

entorno. As voltas com os sofrimentos psíquicos oriundos de fases arcaicas do

desenvolvimento, o psicanalista húngaro se debruça sobre a qualidade das trocas

22 Balint foi aluno, analisando e amigo de Ferenczi.

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afetivas entre os seres humanos. Tal qualidade engendra uma atmosfera na relação

analítica, como na díade mãe-bebê, criada tanto pela linguagem como pela

disponibilidade emocional do analista. Aqui estão em jogo as suas respostas frente às

dificuldades psíquicas do paciente, o que abarca a intensidade e o tom da sua voz, seus

gestos e expressões faciais, a gestão do tempo e ritmo das sessões e, ainda, o modo

como as palavras são utilizadas ou caladas no dispositivo clínico. Tais respostas

configuram uma atmosfera na qual o indivíduo em análise sente que nada de nocivo

pode ser dirigido a ele, em termos balintianos, uma atmosfera simples, confiante e

insuspeita. De fato, a idéia é reduzir os efeitos das invasões do entorno, o que muitas

vezes, significa simplesmente deixar o paciente em paz. Tal redução se justifica em

virtude da incapacidade do sujeito em lidar com situações ambientais adversas ou com

um aumento significativo de tensão, posto a irrupção de vivências traumáticas precoces

com o entorno. Somente em condições favoráveis, portanto, o indivíduo pode se despir

das suas armaduras defensivas e experimentar na transferência outras formas de se

relacionar com a alteridade. Trata-se da possibilidade de um “novo começo”

(1968/1993), o que quer dizer, a construção de uma nova disposição para ser e estar no

mundo, implicando a construção de novos caminhos e sentidos para a existência. Desse

modo, Balint “afirma a vida em sua potência fundamental de recomeçar” (Peixoto Jr.,

2003, p. 223).

O surgimento de um recomeço pressupõe um movimento regressivo durante o

processo analítico. Da perspectiva balintiana, apenas se o paciente puder regredir aos

velhos hábitos e costumes de interação com o objeto, conseguirá desprender-se desse

formato rígido e coercitivo de relação. Nesse sentido, a regressão é justamente a

condição de possibilidade da progressão subjetiva. Como examinaremos

detalhadamente adiante, a relação do indivíduo com o mundo torna-se enrijecida em

função do sofrimento gerado por uma falta de adaptação ao recém-nascido por parte das

pessoas que lhe dispensam cuidados. Tal falta engendra uma falha básica na

subjetivação, conforme a gramática de Balint, que se traduz, por um lado, pela sensação

de defeito e inadequação perante a vida, por outro, pelo ressentimento em relação aos

objetos primordiais. Pode-se dizer que essa falha torna-se a característica essencial do

sentimento de existência do sujeito. A extensão dos seus efeitos pode ser minimizada

mediante a ampliação das modalidades de vínculo com o outro, o que remete à idéia de

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uma cicatrização da falha básica. Cabe salientar que não se trata de compensar as

privações dos tempos da infância, mas sim de oferecer um campo de experimentação

dos sentimentos de amor e ódio primários no contexto analítico, a fim de permitir o

estabelecimento de novas maneiras de se relacionar com os objetos importantes no lugar

dos antigos padrões viciados.

Tendo em vista que o sofrimento em destaque na clínica balintiana emerge a

partir da dissonância marcante entre o bebê e os objetos cuidadores, o analista não deve

dar origem a nenhuma discrepância, posto que essa remete ao desapontamento

traumático primitivo. Atento ao abismo que separa o mundo infantil do mundo adulto,

Balint propõe uma adaptação sensível às necessidades do indivíduo regredido em

análise, o que equivale a atentar para os cuidados com a criança dentro do paciente.

Para o autor, assim como o adulto deve adaptar-se às necessidades do recém-nascido, o

analista precisa ajustar-se ao seu paciente e, nessa medida mesma, ser capaz de

reconhecer a cada momento o modo adequado de interação com ele. Não se trata,

porém, de satisfazer todos os seus anseios e desejos, por certo, inviável, mas, sobretudo

de instaurar uma atmosfera de confiança, pois somente na segurança da transferência,

pode haver abertura para a regressão. Desse modo, o autor situa a confiança entre o

analista e o paciente como pré-condição absolutamente imprescindível para o novo

começo. Muitas vezes, só são necessárias compreensão e tolerância por parte do

analista, pois, de início, o que realmente importa é a sustentação do paciente,

indispensável para a ocorrência de um renascimento subjetivo. Sigamos a descrição de

Balint (1968/1993):

Isto quer dizer que o analista deve sustentar o paciente, não ativamente, mas como a água suporta o nadador, ou a terra, o caminhante, isto é, estar presente para que o paciente o utilize sem muita resistência a ser usado. Na verdade, alguma resistência não é apenas permitida, mas essencial. Entretanto, o analista deve ter cuidado para que sua resistência crie apenas o atrito suficiente para o avanço, mas definitivamente não muito mais, senão o progresso pode se tornar muito difícil, devido à resistência do meio. Além e acima de tudo isso, deve estar presente, deve sempre estar presente e deve ser indestrutível – como o são a água e a terra (p.154).

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Trata-se aqui de suportar ativamente a regressão do paciente. Com efeito, ao

oferecer tempo, espaço e presença asseguradora, o analista permite uma liberação das

amarras defensivas do indivíduo e uma entrega mais relaxada aos cuidados analíticos.

Daí o paciente começa a entrar em contato com as transformações internas que lhe

ocorrem, o que, por sua vez, permite um reconhecimento e uma apropriação do próprio

funcionamento subjetivo. Pode-se dizer que o paciente aprende junto com o analista a

decodificar e a compreender os modos primitivos da sua existência. Sendo assim, tal

como um viajante visitando uma tribo primitiva, cuja língua e cultura ainda não são

conhecidos, o analista traduz e informa o funcionamento arcaico do paciente (Balint,

1968/1993). Para tanto, adverte Balint, é preciso aceitar o paciente sem reservas.

Falhas na relação analítica freqüentemente se explicam pelo uso de uma

linguagem adulta e convencional com pacientes que se expressam numa linguagem

terna23. Ora, as palavras, certamente, constituem uma forma mais adulta de

comunicação, motivo pelo qual, as interpretações podem ser experimentadas como

interferências com pacientes muito regredidos. Nesses casos, as comunicações não-

verbais, ainda que mais nebulosas e fugidias, assumem um papel proeminente na

clínica. Dada a origem da falha básica e a proximidade24 dos fenômenos presentes na

relação mãe-bebê com o campo transferencial instituído entre analista e paciente

regredido, Balint volta-se para a investigação da dimensão relacional da experiência

primária com o entorno. Pode-se entrever daí o destaque concedido ao colorido afetivo

das primeiras relações, uma vez que essas não se encontram mediadas pela

representação.

A partir de observações e experiências clínicas, Balint elabora uma teoria acerca

do vínculo primitivo do indivíduo com a alteridade. Para o autor, os processos de

subjetivação se desenrolam em meio ao amor das pessoas importantes. A primeira

relação do ser humano, portanto, se caracteriza por uma relação de amor. Em princípio,

o amor é experimentado através da compreensão e gratificação das necessidades do

indivíduo ao nascer. Certamente, esse atendimento das necessidades não é

23 Para um estudo aprofundado a respeito da relação entre a linguagem da ternura e a linguagem da paixão, ver Ferenczi, S. (1933/1992). 24 Seguindo a orientação de Balint (1968/1993), vale sublinhar que “em primeiro lugar, nem tudo o que acontece no desenvolvimento humano repete-se na situação analítica e, em segundo, o que é repetido está profundamente distorcido, devido às condições predominantes” (p.25). De fato, trata-se de inferências teóricas a partir de experiências clínicas, o que, contudo não exige uma reprodução ipsis literis da relação primária com o analista.

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objetivamente reconhecido pelo recém-nascido, imerso no fusionamento com objetos

primordiais. Trata-se, portanto, de uma experiência de amor que se passa sem a

apreensão representativa do outro. O importante aqui é o modo de presença do objeto e

a sua disponibilidade em responder aos anseios do bebê, lhe propiciando uma sensação

de bem-estar e segurança. Ao portar essa qualidade de presença, o objeto torna-se

confiável. De outro modo, quando os cuidados inicias são insuficientes ou inadequados,

o objeto se apresenta de maneira suspeitosa e prejudicial. Assim, instala-se uma

desconfiança em relação ao entorno. Dependendo da desproporção desses cuidados em

relação ao necessário à emergência da vida subjetiva, certos modos de relação com o

mundo são engendrados em reação à falta de sustentação do ambiente. Trata-se aqui das

modalidades de vínculo ocnofílica e filobática, como examinaremos adiante. Vejamos

agora como Balint concebe os primeiros laços afetivos com o outro.

Amor Primário

Na concepção de Balint, a subjetividade é produto da interação do indivíduo

com o entorno. Para o autor, o indivíduo nasce imerso numa intensa relação com o

ambiente ao seu redor, relação descrita a partir da teoria do amor primário (Balint,

1937/1965). Em termos balintianos, amor é sinônimo de relação de objeto. Cabe

assinalar que designar a relação objetal arcaica em termos de amor primário, não

significa negligenciar a existência do ódio nos estágios iniciais, contudo, Balint

considera-o como fenômeno secundário, originário da separação abrupta do bebê para

com o entorno, como analisaremos em seguida. De início, trata-se de uma relação de

interdependência amorosa entre o recém-nascido e o entorno, na maior parte das vezes,

encarnado na figura materna. Interdependência significa que tanto o bebê depende da

mãe quanto a mãe depende do bebê e, nessa medida mesma, cada um satisfaz a si

próprio por meio do outro, sem, contudo, obrigação de retribuição. Nas palavras de

Balint (1937/1965): “o que é bom para um é agradável para o outro25” (p. 85). A idéia

aqui é a de um relacionamento mutuamente satisfatório e, nesse sentido, pode-se dizer 25 Tendo em vista que a obra de Balint ainda não foi traduzida para a língua portuguesa por completo, utilizaremos a bibliografia do autor pertinente ao nosso trabalho publicada em inglês, por conseguinte, as traduções serão feitas livremente sob nossa responsabilidade.

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que há uma coincidência entre os desejos do bebê e da mãe. Para sermos precisos, em

virtude da imaturidade e extrema dependência do bebê em relação aos cuidados

primários, os interesses dos objetos cuidadores é que precisam ser adaptados aos

interesses do indivíduo ao nascer, o que se realiza, por sua vez, de forma prazerosa por

esses objetos. Em princípio, portanto, trata-se de uma relação dissimétrica e desmedida

de amor, uma vez que o recém-nascido exige satisfação incondicional das suas

necessidades. Tal exigência de amor pode ser acompanhada na descrição detalhada de

Balint (1968/1993):

Preciso ser amado e cuidado em tudo por todos e só no que me interessa, sem que ninguém possa exigir qualquer esforço ou compensação por isso. O que importa são apenas meus próprios desejos, interesses e necessidades; ninguém que seja importante para mim pode ter quaisquer interesses, desejos e necessidades diferentes dos meus e, se tiver, precisa subordiná-los aos meus, sem nenhum ressentimento ou solicitação; na verdade, seu prazer e alegria devem estar de acordo com meus desejos. Se isso ocorrer, serei bom, agradável e feliz, mas só isso. Se isso não acontecer, será terrível, tanto para o mundo como para mim (p.64).

Desse modo, o amor de objeto primário, isto é, os primeiros vínculos afetivos do

indivíduo com os objetos primordiais correspondem ao desejo de ser amado sem

restrições. Certamente, o desejo de ser amado advém da dependência do bebê humano

de outrem para se constituir e sobreviver. Pode-se situar como correlata dessa

dependência outra característica essencial do amor primário, a saber, a “tendência a

agarrar-se”26 (Balint, 1937/1965), isto é, a tendência a se aproximar de objetos para se

sentir em segurança. Seguindo o pensamento de Hermann (apud Balint, 1937/1965), é

interessante notar que o bebê primata passava os primeiros anos da sua vida extra-

uterina agarrado no corpo da sua mãe; enquanto o recém-nascido humano é

violentamente separado do corpo materno desde muito cedo. Daí uma série de relações

de objeto se desenvolve com base nessa tendência27, no sentido de uma busca por

proximidade. Algumas ações humanas, corriqueiras, inclusive, podem ser a ela

referidas, como por exemplo, o impulso do recém-nascido de prender os dedos aos

26 Aqui cabe a referência em inglês: “tendency to cling”. 27 Examinaremos tais relações de objeto adiante.

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objetos que lhe são chegados, o aperto de mãos ou o simples toque físico entre os

adultos. Trata-se aqui de símbolos da segurança materna, para tanto, o indivíduo precisa

experimentar o “agarramento” inicial, o que quer dizer, sentir-se amado na tenra

infância. Vejamos como Balint desdobra a emergência da relação de amor com a

alteridade.

O amor primário caracteriza-se, por um lado, pelo desejo passivo do bebê de ser

amado e, por outro, pela resposta amorosa dos seus cuidadores. Trata-se de uma

utilização egoísta dos objetos de amor por parte do recém-nascido, nas palavras de Alice

Balint (1939/1965), de um “egoísmo ingênuo”, tendo em vista que um antagonismo ou

diferença entre o interesse próprio e o interesse do objeto sequer se coloca para ele. A

ação e o afeto do outro não são reconhecidos em sua diferença e externalidade,

tampouco, há uma apropriação por parte do bebê dos seus impulsos e demandas. Nesse

sentido, não se pode depreender do amor primário uma experiência de onipotência, pois

não há aqui a necessidade de esforço ou poder, mas uma relação de sintonia (Balint,

1968/1993). Nessas condições, a alteridade apresenta-se como uma referência constante,

dada como certa28. Ora, tamanha identidade de interesses sustenta-se pela conformação

do entorno às necessidades do recém-nascido. Vale indicar que o que se delineia aqui é

justo a confiabilidade do objeto, no que se refere à sua disponibilidade de uso.

Na concepção balintiana, o bebê humano e os seus objetos de amor formam uma

“mistura harmoniosa interpenetrante” (Balint, 1968/1993), o que significa que o

indivíduo ao nascer encontra-se imerso num mundo de mistura, na qual os limites entre

o eu e o não-eu se apresentam de forma indefinida. No tocante à mistura primordial, não

se pode dizer que exista uma unidade homogênea entre a mãe e o bebê, mas sim uma

acomodação recíproca, através de uma modulação afetiva entre ambos. Balint utiliza a

relação do organismo com o ar que respira como exemplo para entender a qualidade

dessa relação arcaica do bebê com o seu entorno. Sabemos que o ar respirado se

distingue do indivíduo que o respira. Certamente, o ser humano utiliza o ar em

qualidade e quantidade suficientes para a sua existência e, de fato, não pode viver sem

ele. Enquanto o ar existir, simplesmente não o considera como um objeto, isto é, como

algo separado dele. A situação muda de forma abrupta se o suprimento de ar sofrer

alguma interrupção, de modo que a diferença entre os dois só aparece quando o 28 O entorno conserva a presença do objeto, se os cuidados dos objetos primários não forem muito deficientes ou insensíveis.

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indivíduo é privado de ar. Do mesmo modo, ocorre em relação à interação ativa e

intensa entre o bebê a mãe, isto é, a mãe só se torna um objeto separado quando falha na

sua adaptação ao bebê. Os objetos diferenciados, portanto, emergem a partir da

descontinuidade, oposição e resistência do entorno.

No mundo de mistura não existem ainda objetos separados nem fronteiras

delimitadas, apenas substâncias ou expansões ilimitadas com as quais o indivíduo

interage. Convém sublinhar que a noção de substância descreve justamente partes do

mundo sem contornos nítidos, em contraposição aos objetos, que se referem às partes do

mundo com limites claros e passíveis de representação. Mas, sigamos a diferenciação

elaborada por Balint (1959):

Partes do mundo externo que são sentidas como firmes, resistentes e com contornos claros, são chamadas por um nome particularmente agressivo –‘objetos’, que sugere tanto resistência, obstáculo contra nossos desejos, quanto alvo e objetivo dos nossos esforços. Outras partes do mesmo mundo, que não são sólidas, não resistem muito e não tem contornos nítidos, são chamadas por nomes não agressivos, tais como substância e substrato, ambos próximos da palavra sujeito que designa a nós mesmos. Um terceiro termo muito usado – matéria – descreve as partes do mundo sem um contorno muito nítido e que oferecem menos resistência, deriva de uma raiz que denota mãe (p.62).

De início, portanto, os vínculos com o objeto, denominados de objetos primários

ou substâncias primárias, se inscrevem no âmbito da mistura. Assim, a mãe, os odores, a

temperatura, os sons formam uma mescla na qual o bebê circunda e com a qual se

relaciona. Não existe, portanto, relação com a alteridade propriamente dita, mas sim

uma “união mística” com o objeto (Balint, 1947/1965), que pode ser pensada em termos

de uma acomodação mútua entre a mãe e o bebê. Certamente, trata-se de uma

vinculação que se estabelece sem a mediação da representação do objeto. A idéia de

Balint é a de que “desde o começo, existe a relação com o entorno de uma forma

primitiva e que a criança pode dar-se conta e responder a qualquer mudança

considerável nele” (1968/1993, p.56). Dessa ótica, pode-se afirmar a presença imediata

de uma relação com o outro nos primórdios, sem, contudo, desconsiderar a incapacidade

do recém-nascido de representá-la. O que está em questão, portanto, é a qualidade do

objeto, isto é, o seu modo de presença, que se traduz no mundo nebuloso e indistinto do

amor primário. A ênfase recai, portanto, nos aspectos qualitativos da relação primária

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do indivíduo com o seu entorno. Por esse viés, o citado “dar-se conta” pode ser

entendido, utilizando a expressão de Souza (2002), como uma “apreciação qualitativa

dos objetos” (p. 96), maneira pela qual, a mistura harmoniosa engendra um entorno

portador de uma determinada coloração afetiva experimentada pelo indivíduo.

Em termos balintianos, tal experiência de mistura produz uma sensação pacífica

e tranqüila de bem-estar (Balint, 1939/1965). Para o autor, é justo daí que emerge a

intenção de todos os esforços humanos, a saber, “estabelecer – ou provavelmente

restabelecer, – uma harmonia evolvente com o entorno, para poder amar em paz”

(Balint, 1968/1993, p. 59). Amar em paz encontra-se intrinsecamente ligado ao conceito

de amor primário, o que implica numa ausência de interferência do ambiente graças ao

atendimento das necessidades do indivíduo e, por conseguinte, numa dispensa de reação

à realidade externa. Dito de outro modo, amar em paz refere-se ao desejo de ser amado

incondicionalmente pelo objeto sem a obrigação de retribuição do amor recebido, tal

como no princípio. Para sermos precisos, o que se busca nas relações amorosas é a

sensação de bem-estar outrora experimentada. A relação primária com o entorno

permanece, portanto, como parâmetro para as relações de objeto posteriores. A idéia é a

de que o objeto primário é perdido ao longo do desenvolvimento, mas a sensação de

bem-estar reconquistada ulteriormente. A título de ilustração29, seguindo a proposta de

Souza (2002), pode-se pensar as drogas – líquidas e gasosas – enquanto substâncias

primárias que se misturam fusionalmente com o sujeito. O que está em jogo nesse uso é

a necessidade de desfrutar o referido estado de bem-estar através de um modo de

interação arcaico com o suposto objeto, em virtude de uma possível separação materna

precoce. Sendo assim, as drogas se apresentam como vias de diluição da exigência e

solidez dos objetos diferenciados, empecilhos à sensação de harmonia almejada.

Mas, o que nos interessa destacar é a qualidade pacificadora que portam os

objetos primários de amor, prévia ao reconhecimento objetivo do mundo. Por esse viés,

pode-se depreender uma experiência de confiança na alteridade como fonte de

segurança, bem-estar e harmonia. Confiança que não se experimenta via representação,

mas pela presença amorosa e responsiva do objeto. Sua presença se faz sentir pela

compreensão e gratificação das necessidades do indivíduo ao nascer, como pelo

gradiente afetivo envolvido nesses cuidados, e, nesse sentido, pela satisfação amorosa 29 Para um estudo mais detalhado acerca da relação do uso de drogas com o do uso de objetos, ver: Souza, O. (2002).

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da dependência. Ora, basta simplesmente que as pessoas importantes dos primeiros

tempos da existência estejam ali, isto é, com interesse no conforto do bebê e sem

importunos ou exigências. Tal qualidade de presença é descrita por Balint no tocante à

relação entre o analista e o paciente, mas, acompanhemos a citação adaptando tal

relação para a díade mãe-bebê:

Sua presença é muito importante, não apenas pelo fato de que deve ser sentido como presente, mas devendo estar a todo tempo à distância correta – nem muito longe, a ponto do paciente [bebê] sentir-se perdido ou abandonado, nem tão perto, a ponto de que o paciente [bebê] possa se sentir impedido ou sem liberdade – de fato, a uma distância que corresponda às reais necessidades do paciente [bebê]; em geral, o analista [mãe] deve saber quais são as necessidades do paciente [filho], por que são e por que flutuam e mudam (Balint, 1968/1993, p.164).

O ponto importante a ser destacado diz respeito à dimensão do encontro entre o

indivíduo e o objeto-substância. Nem pouca presença, nem presença demais. Dessa

perspectiva, pode-se depreender que a confiabilidade se constrói como uma espera

confiante e não suspeitosa em relação ao objeto, uma espécie de expectativa de

reencontro com o objeto da mistura vida afora (Figueiredo, 2007). Desse modo, a

confiança se caracteriza por uma experiência de reciprocidade o bebê e o entorno e,

nessa medida, o outro passa a ser buscado enquanto fonte confiável de bem-estar. Aqui

confiar se torna o “meio espontâneo para o restabelecimento do amor primário” (Salém

& Costa, 2003, p. 39), meio através do qual se abre uma possibilidade de interação com

o outro. Inaugura-se assim a relação com o objeto propriamente dito.

Amor adulto

O amor adulto equivale à passagem do amor de objeto passivo, característico do

amor primário, para o amor objetal ativo e corresponde à descoberta da externalidade do

mundo. Com efeito, os objetos emergem gradativamente do emaranhado de substâncias,

emergência patrocinada pelo amor primário. Com o passar do tempo, o objetivo da mãe

deixa de ser a satisfação das demandas do filho de maneira irrestrita e a preservação

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exclusiva da harmonia, de modo que ela começa a buscar outras fontes de satisfação e a

se interessar novamente pelo mundo. Paralelamente a isso, ocorre o desenvolvimento

emocional da criança para lidar com as inevitáveis falhas maternas, como também uma

ampliação e complexificação das suas necessidades. Desse contexto, surge uma

experiência de desarmonia entre o indivíduo e o entorno que é justo o que permite o

encontro com a alteridade. Aqui as fronteiras entre o eu e o não-eu são desenhadas com

maior nitidez. Nesse sentido, a oferta de amor se personifica, de modo que os interesses

e sentimentos do outro – agora diferenciado – passam a ser considerados, evidenciando

a existência de condições para ser amado. Desse modo, inicia-se o processo de

abandono da passividade amorosa com a introdução de um sentido de realidade, ou seja,

a exigência de amor incondicional cede lugar a uma relação de reciprocidade amorosa.

Pode-se dizer, em última instância, que os laços afetivos são tecidos com a

alteridade com o único propósito de recuperar a experiência de mistura harmoniosa com

o entorno e, nessa medida, o indivíduo se dirige para o objeto na tentativa de

restabelecer uma relação de reciprocidade outrora experimentada, referência de

segurança narcísica. Nas palavras de Balint: “a finalidade última de todo impulso

libidinal é, pois, a preservação ou restauração da harmonia original” (1968/1993, p. 67).

Ora, o desejo de ser amado pelo objeto permanece, porém, torna-se agora necessário

relacionar-se com o outro. O amor se converte num “trabalho de conquista” (Balint,

1947/1965), isto é, uma adaptação mútua entre os amantes, no sentido de se satisfazer

ao mesmo tempo em que satisfaz ao outro. Nessas ocasiões, o objeto deve se

transformar num parceiro cooperativo, o que supõe uma doação por parte do sujeito,

tendo em vista que tal parceiro precisa ser induzido a sentir prazer em satisfazer o

sujeito. Trata-se, portanto, de um pacto de cooperação entre os indivíduos a fim de

sintonizarem suas demandas de satisfação, inclusive, a satisfação sexual.

De fato, o amor adulto significa esforço, privação e troca em contraposição à

satisfação automática e incondicional do amor primário. A idéia de Balint nos aponta

para um processo de educação e invenção de novos caminhos para reconquistar a

experiência de êxtase amoroso. Tal processo implica tanto a aceitação do outro como

uma subjetividade irredutível, com preferências e desgostos peculiares, quanto a

administração de uma dose de insatisfação em relação às expectativas objetais. Convém

insistir que para Balint, “só aceitamos esta privação e suportamos esta tensão na

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esperança de atingir desta forma o objetivo de ser amado como fomos no início”

(1935/1968, p. 52). Pode-se dizer que o grau do auto-sacrifício e investimento objetal se

encontra intrinsecamente relacionado ao que se demanda do outro. Nesse sentido, o

indivíduo ama e gratifica o seu parceiro na medida mesma em que espera ser amado e

gratificado por ele de volta. Ora, o sujeito ter como objetivo a sua própria satisfação,

sem dúvida, reporta a uma natureza egoísta ou completamente narcísica do amor

(Balint, 1936/1965), o que, porém, não desconsidera a imprescindibilidade do outro

para tal realização. A título de ilustração, nos parece interessante pensar nos poemas e

músicas românticas, na galanteria e no cortejo,30 como estratégias para alcançar uma

ligação emocional com o outro de caráter fusional, uma espécie de protocolo da

experiência de amor.

Ora, como vimos, o estabelecimento de uma relação harmoniosa exige uma

identidade de interesses e demandas e, nesse sentido, o amor pressupõe uma experiência

mútua de bem-estar. Trata-se, portanto, de um arranjo conjunto a ser alcançado e não,

necessariamente, de um embate amoroso entre sujeito e objeto. Ambos estão sob a

rubrica do desejo de ser amado, ambos aspiram ao mesmo modo de satisfação. Aqui o

objeto é tratado como um parceiro igual, submetido ao mesmo “trabalho de conquista”.

Sendo assim, o amor primário, âmbito das primeiras interações com as substâncias

primárias, situa-se como a base das relações de objeto posteriores. Em outras palavras, o

que se busca na relação com o outro tem a ver com o que se experiencia nos primeiros

encontros com a alteridade. Certamente, a passagem para o mundo dos objetos não se dá

sem desarmonia entre sujeito e objeto, o que implica em falhas no atendimento das

necessidades do objeto, ponto de saída da passividade original. Tomando em

consideração a vulnerabilidade do indivíduo ao nascer às falhas dos objetos primários,

tais falhas precisam ser dosadas, isto é, a discrepância entre a demanda e a oferta de

amor não deve ultrapassar um limite suportável pelo recém-nascido. Caso contrário, a

falta de cuidado inicial gera cicatrizes marcantes na existência do indivíduo, indicando

uma incapacidade de confiar nos objetos, como examinaremos adiante. Por esse viés,

pode-se dizer que determinadas configurações subjetivas são engendradas em reação às

falhas inicias, o que, por sua vez, viabiliza certas modalidades de relação com o objeto.

Vejamos como Balint aborda tais questões traumáticas nos estágios primitivos. 30 Trata-se de fenômenos culturalmente opcionais e não obrigatórios. Para um estudo aprofundado sobre o amor romântico, ver Costa, J. F. (1998).

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A falha básica

Balint propõe o termo “falha” a partir da sua experiência clínica com pacientes

severamente regredidos. Em tais circunstâncias, muitos pacientes, se referem a uma

“falha dentro de si” que precisa der corrigida. Trata-se de uma sensação de falha e não

de um conflito intrapsíquico. A idéia é a de uma deficiência ou falta, como se algo

estivesse defeituoso no psiquismo. Falha é uma terminologia utilizada de modo

semelhante pela geologia e cristalografia para descrever uma “súbita irregularidade na

estrutura total, uma irregularidade que, em circunstâncias normais, estaria escondida,

mas se houver pressões ou forças, pode levar a uma ruptura, alterando profundamente a

estrutura total” (Balint, 1968/1993), tal como ocorre com o indivíduo. O adjetivo

básica, por sua vez, implica não só numa anterioridade em relação ao complexo de

Édipo, como também, diz respeito a ampla extensão de seus efeitos na subjetividade.

A origem da falha básica encontra-se situada no descompasso entre as

exigências amorosas do indivíduo e a doação de amor por parte dos objetos primordiais

no período da construção subjetiva. Tal discrepância se justifica em função da ausência

de adaptação às necessidades primárias do recém-nascido por parte dos objetos

cuidadores. É interessante observar, sobretudo, clinicamente, as formas pelas quais a

falha básica pode ser experimentada pelos sujeitos. Por um lado, podemos encontrar um

sentimento de que o entorno intencionalmente lhe negligencia cuidados, o que produz

uma posição subjetiva de desconfiança em relação aos objetos. Por outro, podemos

encontrar indivíduos que se sentem responsáveis por não conquistar a atenção do

entorno e, nesse sentido, culpam-se pela falha dos objetos primários, o que suscita

desconfiança em relação às próprias potencialidades. Trata-se aqui de uma vivência de

inadequação, no que se refere ao ambiente ou em relação a si próprio. Por conseguinte,

tais experiências engendram diferentes modalidades de relação com o objeto, como

investigaremos adiante. De qualquer maneira, a área da falha básica comporta uma

angústia avassaladora e um apelo desesperado por um preenchimento da deficiência,

uma espécie de pedido de cicatrização.

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Vale acrescentar que na prática psicanalítica com tais sujeitos, mais do recorrer à

comunicação através das palavras, trata-se de criar uma atmosfera confiante, condição

de possibilidade de um movimento regressivo em direção aos modos mais precoces de

interação com o entorno31. Isso se dá em função da precocidade do trauma em questão,

que reporta ao período pré-representacional. Certamente, tais indivíduos sequer

conseguem falar acerca da origem da sua “deficiência”, entretanto, muitos expressam

um sentimento de que não vale a pena viver se tal perda não for reparada. Aqui,

conforme a relação inicial entre a mãe e o bebê, são as necessidades e interesses do

paciente que devem ser atendidos e, nesse sentido, o seu modo de funcionar

subjetivamente deve estar permanentemente como o foco de atenção e compreensão por

parte do analista. Por esse viés, analista e paciente estabelecem uma relação de objeto

que se aproxima do amor de objeto primário e, assim, experimentam uma certa mistura

harmoniosa, tal como no princípio. Em linhas gerais, a idéia balintiana é justamente

voltar ao início do desenvolvimento falho, o que é descrito em termos de regressão, para

daí, ajudar o paciente a ter um novo começo (Balint, 1968/1993). Tal novidade leva a

uma transformação da relação com os objetos significativos de amor e de ódio do

indivíduo e, em decorrência, possibilita novas formas de relações objetais em

substituição às anteriores. Trata-se do referido poder cicatrizante da relação analítica,

crença balintiana por excelência. Passemos ao exame da falha básica, nos valendo dos

ensinamentos acerca do amor primário32.

No período arcaico da existência, a falta de adaptação entre o indivíduo e o

entorno implica em ressonâncias na própria conformação da subjetividade. Sabemos

que na concepção balintiana existe desde o princípio uma relação recíproca entre o

sujeito e o ambiente, de modo que qualquer alteração ou insuficiência desse ambiente

desencadeia reações por parte do sujeito. Sob essa ótica, o não atendimento das

necessidades primárias ou a ausência de gratificação, tal qual a carência de suprimento

de ar, suscita sentimentos de ódio e frustração. Tais sentimentos são

derivados diretos da privação de amor, isto é, respostas do indivíduo à recusa de amor

31 Para um exame mais detalhado desta questão, ver: Balint, M. (1968/1993), sobretudo, “O analista não-importuno” e “A travessia do abismo”. 32 Convém explicitar que o caráter traumático da desarmonia entre sujeito e objeto não é tão acentuado nas primeiras formulações de Balint que datam de 1937, ganhando maior relevo com a temática da falha básica em 1968. Seguindo Balint, podemos dizer que “o nível mais precoce é o do amor primário e com ele o nível da falha básica” (1968/1993, p. 26).

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das pessoas importantes para o seu existir. Pode-se dizer que o ódio reporta à

imaturidade subjetiva do indivíduo, traduzindo de forma dolorosa a dependência

amorosa de outrem para sobreviver. Desse modo, o ódio é a medida da desigualdade

entre sujeito e objeto, e, nessa medida mesma, quanto mais recursos simbólicos o

indivíduo dispor, menos ele precisa odiar (Balint, 1951/1965). Em contrapartida, quanto

mais precoce for o desatendimento às suas demandas, maior a infiltração do ódio na

subjetividade. Assim, o ódio advém da constatação do desamor dos objetos dos quais se

depende.

Nesse contexto, se o amor primário não se realiza, ou seja, se o cuidado

primordial falha em demasia, o indivíduo é tomado por um “medo de ser largado” 33,

nos termos utilizados por Alice Balint (1935/1965). É interessante pensar, seguindo as

formulações de Balint, na origem do medo de ser largado atrelado à tendência a agarrar-

se característica do amor dos estágios iniciais, posto que a busca por laços de

proximidade, em variações múltiplas, é claro, possibilita uma experiência de proteção.

Com efeito, quando os primeiros vínculos com os objetos primordiais se interrompem

bruscamente, também se rompem as ligações com o mundo e o sentimento de si e, nessa

medida, instaura-se um estado de violenta insegurança subjetiva. Como resultado da

falta de correspondência do ambiente, pode-se pensar que o indivíduo apresenta uma

desconfiança em relação não só ao mundo dos objetos, como também no tocante à sua

própria capacidade de contenção, posto o imperativo de se refazer por sua própria conta

do desespero e da angústia experimentados. Delineia-se assim, uma dupla

impossibilidade: contar com os objetos e decepcionar-se com os mesmos.

Sendo assim, em virtude de demandas de amor não correspondidas, torna-se

necessário criar outros meios de satisfação e apaziguamento, o que se faz mediante

saídas narcísicas. Na concepção balintiana, é somente a partir do momento em que o eu

não consegue obter gratificação no mundo dos objetos, que a satisfação auto-erótica se

apresenta como forma de obter algum bem-estar. A idéia é a de que se o indivíduo não é

amado o suficiente pelo mundo, deve amar e gratificar a si próprio (Balint, 1935/1965).

Sob essa ótica, Balint afirma que todo narcisismo é secundário ao investimento objetal

original, o que quer dizer que o narcisismo encontra-se subseqüente a relação de objeto

33 Aqui cabe a referência em inglês: “fear of being dropped”.

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arcaica34. Nesse contexto, ao receber muito pouco do entorno, a libido, que

anteriormente fluía homogeneamente do isso para os objetos, torna-se essencialmente

narcísica. O narcisismo, portanto corresponde a “uma reação psíquica secundária que só

existe quando o outro furta-se ao pedido que lhe é feito”, uma espécie de simulação da

doação que não existiu (Costa, 1998, p.113).

Dessa perspectiva, a gratificação narcísica apresenta-se como resposta diante das

dificuldades com o entorno, cujo objetivo consiste em recuperar a unidade dos

primeiros estágios da mistura. Trata-se, portanto, de um artifício para obter amor,

contudo, tal artifício porta um certo limite. Ora, certamente, o amor a si próprio não

basta, tornando necessário o amor do outro. Levando em consideração que o que está

em jogo é a segurança narcísica do sujeito, pode-se entrever daí a necessidade de criar

estratégias para recuperá-la. Como examinamos anteriormente, a intenção de todos os

esforços humanos consiste em restabelecer a mistura harmoniosa com o entorno dos

estágios iniciais, esforço que corresponde ao desenvolvimento do amor adulto. Em

última instância, a capacidade para o amor consiste num desdobramento do amor

primário, o que implica numa formação secundária criada pela inevitável desarmonia

entre o sujeito e o entorno. Com isso, pode-se dizer que o indivíduo se dirige aos

objetos, a partir do que experienciou nos primeiros encontros amorosos da sua

existência. Sendo assim, as relações de objeto posteriores dependem do modo como se

experimenta o primeiro amor. Se a ligação afetiva do bebê com os objetos primordiais

se interrompe precoce e duradouramente, modos de funcionamento subjetivos são

engendrados em resposta e na proporção mesma do trauma, em termos balintianos, da

falha básica.

Ocnofilia e Filobatismo

Ao longo de sua obra, Balint descreve três modos de relações com os objetos, a

saber, o amor primário, examinado acima, que corresponde ao desejo de ser amado

incondicionalmente pela alteridade; a ocnofilia, modalidade em que a presença do

34 Para um estudo detalhado a respeito das divergências e aproximações entre o narcisismo primário em Freud e o narcisismo secundário em Balint, ver: Peixoto Jr., C. A. (2003).

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objeto é excessivamente requisitada; e o filobatismo, forma em que os objetos são

constantemente afastados. O termo ocnofilia é derivado do grego okneo e significa

agarrar-se ou segurar-se com força. A denominação filobatismo é proposta em função

da imagem do acrobata, que faz referência a quem anda na ponta dos dedos, longe da

terra firme (Balint, 1959). Trata-se de posições subjetivas extremadas frente ao mundo,

que se mesclam e se confundem durante a existência do indivíduo35. Posições cujas

funções consistem em minimizar o perigo decorrente do encontro com o objeto e

recuperar o estado de mistura harmoniosa. Antes de nos debruçarmos sobre tais

funcionamentos, visando um alargamento de horizontes, vamos acompanhar o

pensamento de Balint acerca das experiências singulares encontradas nas brincadeiras

infantis.

Segundo Balint (1959), a maioria das brincadeiras infantis encontra-se baseada

em três fatores fundamentais, a saber, o conhecimento de um perigo externo real; uma

exposição voluntária ao perigo e medo correspondente; por fim, uma esperança

confiante de tolerar o perigo e retornar a salvo no final. Podemos citar como exemplo

típico, as brincadeiras de “piques”, nas quais existe uma espécie de zona segura

chamada de casa ou base. Os piques envolvem um perigo externo, representado pelo

jogador perseguidor ou caçador e uma área de segurança, onde estão situados os outros

jogadores. Esses últimos se dispõem ao risco, alguns mais, outros menos, na esperança

de restabelecer a segurança novamente. A idéia consiste num vaivém em torno da base,

o que mistura medo, excitação, prazer e segurança entre os participantes. Outra

brincadeira bastante comum entre os pais e a criança pequena, consiste na ação de atirá-

la para o alto e aguardar a sua volta. Aqui se produzem emoções intensas de excitação e

medo, sucedidas pela diversão e segurança do abraço parental. Dentre os esportes

radicais, praticados pelos adultos, mencionamos asa delta, montanhismo, snowboard,

rapel, kart e bungee jump, dentre os mais contemporâneos, que também oscilam entre

as referidas emoções. Em todos os divertimentos, trata-se, portanto, de momentos de

susto e momentos de contenção, experiências de excitação e experiências de

relaxamento. (Figueiredo, 2007). Tomando isso em consideração, pode-se pensar que o

35 Balint aborda a ocnofilia e o filobatismo como modos de funcionamento subjetivos extremamente patológicos face às dificuldades primitivas com o entorno, contudo, nos parece interessante pensar que tais funcionamentos podem estar presentes de forma não exclusiva no psiquismo, ou seja, como modalidades defensivas diante das falhas inerentes às relações alteritárias.

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que está em questão nas atividades lúdicas e emocionantes é justamente o exercício da

capacidade de confiar. Daí nos interessa examinar o motivo pelo qual alguns indivíduos

se aproximam da situação de risco – o mundo por excelência – e outros não conseguem

se distanciar da zona de segurança e, nessa medida, investigar o que consiste em risco e

segurança para ocnofílicos e filobatas.

O mundo da ocnofilia se estrutura pelo toque e pela proximidade. O ocnofílico

busca segurança aproximando-se dos objetos, ao passo que os espaços vazios entre os

objetos são experimentados como arriscados e perigosos. Sendo assim, qualquer ameaça

de perda do objeto gera uma angústia avassaladora, posto que sem ele, o indivíduo

sente-se perdido e indefeso. A idéia é a de que o sujeito precisa se agarrar

desesperadamente ao outro, como garantia de proteção, tal qual a criança se segura na

sua mãe quando pequena. Como decorrência, instaura-se uma dependência e

supervalorização das relações objetais em detrimento do desenvolvimento das

potencialidades individuais para lidar com as vicissitudes do mundo. Nessas condições,

o objeto ocnofílico assume um suporte vital para o indivíduo, símbolo do amor e

segurança materna, o que permite a Balint afirmar que aqui “a demanda pelo objeto é

absoluta” (Balint, 1959, p. 33).

O mundo do filobatismo se caracteriza pela distância e pela visão. O filobata

busca segurança distanciando-se dos objetos, tendo em vista que a ligação com os

objetos é experimentada como imprevisível e suspeita. Desse modo, o indivíduo sente-

se seguro apenas nas expansões sem objetos, longe de qualquer amparo, razão pela qual,

evita-os ao máximo. A idéia é a de que o sujeito não precisa de nenhum objeto, que são,

por sua vez, considerados como invasivos e incertos. Por conseguinte, há um

superinvestimento nas próprias habilidades subjetivas para lidar com os riscos, cujo

intuito consiste em manter-se somente com seus próprios recursos, dispensando o

auxílio externo. Nessas condições, o sujeito assume uma “postura heróica” (Balint,

1959, p. 28) diante de si mesmo.

Dessa perspectiva, pode-se afirmar que tais modalidades de relação com a

alteridade exprimem modos de satisfação obtidos com a experiência de segurança, o que

não significa, necessariamente, amor. De fato, o objetivo é sentir-se seguro. Nesse

sentido, o ocnofílico busca segurança se agarrando aos objetos, enquanto o filobata,

mantendo os objetos à distância. Em outros termos, o mundo do ocnofílico se constrói

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na ilusão de que os objetos estão disponíveis quando solicitados. Tamanha confiança e

aderência aos objetos, porém, encontra-se fadada à decepção. Ora, o objeto não se

presta a reivindicação absoluta da sua presença, pelo simples fato de que ele é outro,

com desejos que lhe são peculiares, o que quer dizer, em poucas palavras, que o objeto

vem e vai quando bem entende. No filobatismo a frustração ocorre justamente pelo

inverso, isto é, em função do apreço pela independência e autonomia em relação aos

objetos. O filobata edifica um mundo com base na ilusão de que pode se valer só. Daí

desenvolve uma confiança irrestrita na eficácia de seus atributos, contudo, não suporta

estabelecer vínculos contínuos com a alteridade. Com efeito, “nem o filobata, nem o

ocnofílico sabem ou podem justificar a confiança que têm em seus respectivos meios de

experimentar a satisfação da segurança” (Salém & Costa, 2003, p. 39).

De acordo com Balint (1959), tais ilusões se originam de equívocos no teste de

realidade. Cabe dizer que não se trata de postular uma interpretação correta da

realidade, tendo em vista a singularidade da apreensão em questão, mas de atentar para

o fato de que o indivíduo se apropria do mundo em função das suas experiências

primitivas. Como descrevemos anteriormente, nos estágios iniciais do amor primário,

sujeito e objeto encontram-se envolvidos numa mistura. A distinção entre mundo

interno e mundo externo equivale à introdução do teste de realidade, o que se faz

processualmente. Inicialmente, se distingue acerca da origem e natureza de uma

sensação, isto é, se ela vem de fora ou de dentro; em seguida, se interpreta o que é

percebido; por último, busca-se uma reação apropriada para a sensação percebida.

Ocnofílicos e filobatas são capazes de diferenciar a realidade externa da realidade

interna, porém, a compreensão da realidade mostra-se falha para ambos, segundo Balint

(1959). Enquanto o filobata minimiza os perigos do entorno com uma confiança cega

em seus predicados, o ocnofílico nega tais perigos, confiando integralmente na proteção

dos objetos. Dessa ótica, se constrói a ilusão da proximidade e do distanciamento das

pessoas como artifícios de segurança. Retomando as atividades lúdicas, pode-se dizer

que para o ocnofílico a experiência de arriscar-se no mundo apresenta um caráter

amedrontador; ao passo que o filobata experimenta sensações agradáveis diante do

mesmo risco. Apesar da aparente diferença, torna-se importante explicitar a

ambivalência que se faz presente nos dois tipos de relação objetal, o que termina por

mesclá-los.

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Na verdade, o ocnofílico é tão pouco sincero para consigo mesmo quanto o filobata. Isso porque pode-se perceber que por trás da exibição de independência do filobata existe, ainda que cuidadosamente disfarçada, uma real necessidade de objetos seguros, a qual pode ser interpretada como uma atitude ocnofílica de busca de segurança na proximidade física com seus objetos (Peixoto Jr., 2004, p.241).

Com efeito, existem modalidades de ambivalência características da ocnofilia e

do filobatismo. Os objetos ocnofílicos, inevitavelmente, são tão amados quando unidos

por adesão ao sujeito, quanto odiados pelo que encerram de divergência e frustração.

Com os filobatas, o desprendimento dos objetos convive com a dependência dos seus

“equipamentos”, representação simbólica da segurança materna nas mãos. Ora, em

ambas as formas estão presentes “amor e ódio, confiança e desconfiança ao mesmo

tempo” (Balint, 1959, p.54). Pela confiança, filobatas e ocnofílicos buscam restabelecer

uma relação de harmonia com o ambiente, condição de possibilidade de uma entrega

relaxada ao amor e à diversão. Em última instância, trata-se aqui de uma necessidade de

confiar a qualquer preço – nos objetos ou em si mesmo – como medida de prevenção

ante um colapso psíquico. Convém insistir que a desconfiança reporta a não

correspondência entre sujeito e objeto e uma desproporção em relação ao que se

demanda e se recebe do mundo.

Desapontado com a realidade a sua volta, o indivíduo inventa outra – ocnofílica

e filobática – a fim de evitar a reedição do encontro com objetos não confiáveis.

Entretanto, apesar de tais posições subjetivas extremadas, a desconfiança não cede,

inclusive, pelo fato de que qualquer vivência decepcionante, natural da vida, produz

uma experiência de extrema desproteção, o que, por sua vez, incrementa a suspeita em

relação ao mundo. A idéia é a de que se o sujeito experimenta precocemente uma falha

na sustentação do ambiente, temerá qualquer desilusão que remonte a essa experiência.

O temor se justifica em função da falha básica na formação da própria subjetividade

oriunda da dissonância entre o indivíduo e o mundo. Nessas condições, os processos

subjetivos passam a ser determinados pela impossibilidade de lidar com o desencontro

objetal, o que caracteriza um funcionamento extremamente defensivo e restritivo. Tal

impossibilidade, portanto, inviabiliza a interação com o outro e, por conseqüência, o

restabelecimento da sensação de bem-estar com o entorno.

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Ora, sabemos que não há como prescindir do amor da alteridade. Desse modo, a

transformação dos objetos em parceiros – ato eminentemente criativo para Balint – se

apresenta como única saída possível para uma existência com sentido. Para tanto,

porém, ocnofílicos e filobatas precisam restaurar a confiança no mundo dos objetos,

condição de entrega e intercâmbio com o outro. Não se trata aqui de uma confiança

irrestrita, mas de uma possibilidade de confiar a partir de experiências efetivas com os

objetos. Dessa forma, o sujeito pode experimentar novas modalidades de vínculo,

mobilizando a sua subjetividade outrora paralisada. Daí desponta a crença balintiana

acerca da potencialidade humana de constantemente recomeçar, através da desobstrução

dos caminhos fixados pela insegurança e pela invenção de outras nuances de encontro

com a alteridade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ABERTURA PARA A EXPERIÊNCIA

Dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria.

Clarice Lispector

A palavra confiança se origina do latim confidentia e significa tanto bom

conceito sobre alguém quanto convicção a respeito do próprio valor. Confiança implica

ainda em crédito, familiaridade, intimidade e ânimo. Tomando essa perspectiva em

consideração, podemos dizer que a confiança envolve necessariamente uma relação com

a alteridade. Daí afirmamos o caráter processual da confiança, construída a partir de

uma sucessão de encontros com os objetos. Não se trata, portanto, de uma aquisição

individual, mas sim de uma experiência compartilhada. Certamente, não há como

confiar no outro ou em si mesmo sem abrir-se para a experimentação do mundo. Para

tanto, torna-se necessário a coragem da entrega, figura privilegiada da confiança,

enquanto condição de possibilidade para o estabelecimento de vínculos. Ora, por não

possuir recursos suficientes para cuidar de si mesmo, o indivíduo precisa entregar-se aos

cuidados alheios desde os primórdios de sua vida. Sob a pena de uma existência sem

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sentido, o indivíduo se dispõe ao convívio humano. Tal como os porcos-espinhos de

Schopenhauer precisam uns dos outros para se aquecer nos dias frios do inverno, apesar

de se machucarem quando se aproximam; os indivíduos buscam uns aos outros para

partilhar a vida, a despeito dos desencontros. Mas, afinal, como sintonizar a

convivência? Em que medida o sujeito suporta a aproximação e o distanciamento do

outro? Em outras palavras, qual a proporção adequada de investimento objetal e de

reserva narcísica?

Tais questionamentos nos remetem ao campo das relações objetais primárias.

Pode-se dizer que a subjetividade é produto da relação do indivíduo com o meio. Desse

modo, o que se atualiza das potencialidades individuais depende das condições

ambientais oferecidas. Na impossibilidade do ser humano se valer só, Freud afirma o

imperativo do investimento libidinal no bebê; Winnicott aponta a importância de uma

adaptação sensível e absoluta às necessidades do recém-nascido; e Balint propõe uma

satisfação incondicional dos anseios de amor da criança ao nascer. Por essas vias de

entendimento, o outro assume uma função imprescindível para a continuidade da

existência do bebê humano. De fato, é preciso um objeto cuidador capaz de investir, se

empenhar e apostar no indivíduo para que esse possa vir a ser.

Dentre as qualidades que porta o ambiente primordial, destacamos a confiança

enquanto condição de possibilidade de singularização e vínculo afetivo entre os

indivíduos. Convém retomar que a confiabilidade inicial reside na criação de condições

favoráveis de vida, o que implica num modo de presença alteritária sensível ao bebê

logo após o seu nascimento. A confiança, portanto, apresenta uma dupla inscrição:

torna-se indispensável tanto para a constituição da subjetividade quanto para o

estabelecimento de relações objetais. Ora, como vimos o objeto primário confiável é o

que permite o desenvolvimento do que é espontâneo e autêntico no indivíduo, isto é, a

expansão das suas potencialidades subjetivas. Com efeito, a confiança nos cuidadores

dispensa o emprego de defesas contra a irrupção traumática do mundo, o que dá

condições ao indivíduo para simplesmente seguir sendo. Tal confiança, baseada em

repetidas experiências confortáveis com a alteridade, desdobra-se numa disponibilidade

para os vínculos objetais. O outro se torna confiavelmente encontrável e responsivo.

Dessa ótica, pode-se pensar que a confiança, ao mesmo tempo em que se constrói no

plano da experimentação, permite a abertura para a própria experiência, o que implica

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numa permeabilidade aos movimentos do mundo. Com isso, o indivíduo pode

efetivamente tirar proveito dos objetos, render-se ao novo e transformar-se. A

capacidade para fazer experiências, portanto, promove a criação de uma história

subjetiva autoral, isto é, a construção de um modo de existir autêntico, inédito e real.

Trata-se aqui da invenção subjetiva e da afirmação da força vital do ser humano.

Assim, o que o indivíduo é encontra-se essencialmente na sua relação com os

objetos, de modo que ele se transforma em função dos laços afetivos que institui.

Podemos dizer ainda que o ser humano só pode experimentar a si a partir da

experimentação do outro. Mas, o que acontece quando a única possibilidade de

experimentação é a desmesura traumática36? Tomando como referência os estágios

iniciais do desenvolvimento do bebê, defesas extremadas são postas em jogo para

suportar o trauma e garantir a sobrevivência do indivíduo. A falta de sustentação por

parte dos cuidadores coloca em risco a própria constituição do eu, exigindo

remanejamentos subjetivos capazes de conter o desmoronamento psíquico e o

sofrimento avassalador decorrente. Erigir uma muralha defensiva, num só tempo

vacilante e inabalável, se apresenta como tentativa radical de não sentir a dor

insuportável do encontro e desencontro precoce e abrupto com os objetos primordiais37.

Instado a reagir ao trauma, o indivíduo não encontra base para ser. A defesa passa a ser

a via privilegiada pela qual a subjetividade se constitui. Com isso, rompe-se a

continuidade da existência, a articulação entre passado, presente e futuro e entre o

mundo interior e exterioridade do mundo. Os acontecimentos cotidianos se sucedem

sem afetar o indivíduo, de tal forma que a vida assume um formato uniforme e

aplanado. Retomando o questionamento, podemos pensar que apartar-se da experiência

mundana parece ser a estratégia encontrada quando a única possibilidade de

experimentação é o horror, a intrusão e a imprevisibilidade.

O que entrevemos aqui é uma desconfiança em relação à própria experiência,

cujo efeito é o fechamento do indivíduo em si mesmo. Nessas condições, despedaçam-

se os vínculos objetais, perde-se o sentido da vida e, mais do que isso, perde-se a

36 Vale dizer que o trauma aqui reporta ao não atendimento das necessidades primordiais do indivíduo ao nascer, o que se traduz por um cuidado primário insuficiente em virtude da sua desmedida ou imprevisibilidade. Trata-se de uma falha na adaptação entre o recém-nascido e os objetos que lhe dispensam atenção nos estágios inicias da constituição subjetiva. 37 Certamente, o bebê não tem maturidade emocional para perceber os objetos que o afrontam através da insuficiência de cuidados, não obstante, sofre as conseqüências deste déficit.

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sensação de estar vivo. Privado da capacidade de sentir, o psiquismo tende a se atrofiar.

O indivíduo se furta do trabalho de criação da realidade de si e do mundo para adaptar-

se a realidade tal como disposta. Em virtude da frágil constituição narcísica, o

automatismo, a mesmice e o anestesiamento afetivo apresentam-se como alternativas

para um desenvolvimento sustentável. Diante do sofrimento e de uma agonia muito

primitiva, uma subjetividade se constitui as expensas da espontaneidade criadora e da

alegria. Trata-se aqui de uma estratégia de sobrevivência – legítima defesa – isto é, a

resposta possível tendo em vista o estágio do desenvolvimento em questão.

Para entendermos melhor esta descontinuidade subjetiva como um processo

eminentemente defensivo, utilizaremos a noção ferencziana de auto-clivagem

narcísica38. Em linhas gerais, Ferenczi (1933/1992) afirma que a clivagem do psiquismo

é produto da vivência traumática, isto é, uma reação ao não acolhimento das

necessidades que são próprias de cada singularidade. A clivagem se caracteriza pela

dissociação entre o afeto e o mundo, ou ainda, “entre uma parte sensível, brutalmente

destruída, e uma outra que, de certo modo, sabe tudo mas nada sente” (Ferenczi,

1931/1992, p.340). A princípio não há comunicação entre as partes, que se comportam

de modo distinto e independente. Mas o que nos interessa destacar dessa subjetividade

clivada é precisamente o obstáculo à capacidade de se afetar pelos movimentos vitais, o

que impede a criação de um sentido para o existir. Não se trata, contudo, de uma frieza

ou insensibilidade, mas sim de uma desconexão afetiva oriunda da falta de confiança

nas pessoas importantes da sua história. Ademais, pode-se dizer que a impossibilidade

de ligação entre as partes clivadas não permite que o vivido possa ser abarcado

enquanto experiência integrada. Como resultado, encontramos um indivíduo

desvitalizado e esvaziado de si, incapaz de expandir-se com as transformações do

mundo, vivenciadas como rupturas traumáticas. Nessas condições, como vimos, o

indivíduo recai, por um lado, numa aderência maciça ao objeto, por outro, em ideais de

auto-suficiência e desvinculação objetal.

Como o objetivo maior desta dissertação diz respeito à ampliação do dispositivo

de intervenção na clínica psicanalítica, indagamos quais são as possibilidades de resgate

do movimento de abertura para a experiência? Como restaurar a continuidade subjetiva?

Em última instância, como recuperar a confiança em si mesmo e no mundo, tornando 38 Para um estudo aprofundado sobre a clivagem em Ferenczi, ver: Ferenczi, S. (1933), Pinheiro, T. (1995), Reis, E. S. (2004), Verztman, J. (2002).

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viáveis outros modos de existência? Ora, sabemos que se trata de um longo percurso a

ser percorrido a partir do encontro analítico. Em função da precocidade e da devastação

psíquica das vivências traumáticas, não há como representar o trauma, isto, é, inscrevê-

lo numa história. Muitas vezes, o paciente não tem sequer notícia do seu sofrimento,

tampouco, o que comunicar a respeito. Aqui conceder tempo e espaço aos processos de

subjetivação apresenta-se como alternativa terapêutica ao fracasso do ambiente

primordial. A idéia é oferecer uma qualidade de presença analítica que não pôde ser

experimentada nas relações inicias do indivíduo. Para tanto, é preciso ater-se aos

detalhes, convocar as marcas sensíveis, habitar o paradoxo, acolher os movimentos

regressivos, pensar e sentir junto com o paciente, em outras palavras, criar uma

atmosfera de cuidado, no qual a vida pode engendrar-se. Certamente, não foi possível

enveredar pelos meandros da experiência psicanalítica ao longo dos dois anos de

mestrado, ainda assim, um horizonte clínico se descortina: a confiança enquanto

ferramenta privilegiada a partir da qual pode se estabelecer uma nova forma de

transferência. Acreditamos que sem uma relação terapêutica de confiança,

transformações subjetivas consistentes não chegam a ocorrer em pacientes com

dificuldades oriundas do campo das relações objetais precoces. Na esteira dessas idéias,

a título de ilustração, retomaremos um trabalho de Winnicott de 1941, intitulado “A

observação de bebês numa situação padronizada”. O intuito aqui é pensar a prática

clínica da psicanálise a partir da promoção de experiências de hesitação, situadas entre a

desconfiança e a confiança.

No referido trabalho, o autor expõe uma situação-padrão em atendimentos com

bebês de idade entre cinco e treze meses. Durante a consulta com a díade mãe-bebê,

Winnicott apóia uma espátula metálica, comumente utilizada nos exames médicos de

garganta, sobre a sua mesa. Em seguida, solicita que a mãe posicione o bebê de tal

modo em seu colo que se ele desejar alcançar o objeto reluzente, isso lhe seja possível.

De modo geral, o bebê sente-se atraído pela espátula e orienta a mão em sua direção,

contudo, neste ínterim, pondera tal comportamento. Trata-se de um “período de

hesitação”, no qual o bebê não se movimenta, nem se mantém rígido, apenas averigua o

ambiente a sua volta, o que envolve “expectativa e quietude” (1941/2000, p.114).

Passado o intervalo de indeterminação, o bebê atende ao seu desejo pelo objeto e

começa a manipulá-lo de forma lúdica até perder o interesse pelo mesmo.

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O ponto importante concerne ao fato de que alguns bebês demoram muito

tempo para demonstrar interesse pela espátula, enquanto outros atendem imediatamente

aos seus impulsos pela mesma. Sem dúvida, existe uma variação individual no tocante

ao período de hesitação, não obstante, quando a inibição ou a impulsividade

apresentam-se de maneira notadamente significativa, indicam algum nível de

sofrimento. Nota-se que o período em que o bebê hesita em pegar a espátula é permeado

de angústia proveniente das fantasias apreensivas39em relação ao próprio gesto

impulsivo, o que implica que o bebê pode previamente esperar uma reprovação dos

objetos cuidadores. Para Winnicott (1941/2000), essas fantasias “não estão ainda

ligadas à representação de palavras, mas são repletas de conteúdos e emocionalmente

ricas, e é possível afirmar que são elas que fornecem as fundações sobre as quais será

erguida mais tarde toda a vida de fantasias” (p.121). Com isso, pode-se entrever que a

antecipação do comportamento alteritário por parte do bebê torna-se possível a partir de

repetidas experiências com uma mãe retaliadora, por exemplo, o que significa que o

bebê tem motivos suficientes para esperar uma reprovação.

O que nos interessa pensar aqui é a construção da confiabilidade com base em

reais experiências do indivíduo com o ambiente. As experiências – reasseguradoras ou

traumáticas – com os objetos primordiais portam um efeito cumulativo que alicerçam a

crença do indivíduo em bons ou maus encontros com a alteridade40. Em última

instância, o que está em questão é a gestação da possibilidade de realizar um gesto

espontâneo, o que reporta a própria capacidade de desejar. Desse modo, indivíduos que

tiveram a sua confiança traída no início da vida, dificilmente conseguirão expressar-se

criativamente no mundo. Com efeito, o temor do desapontamento impede a entrega

relaxada ao outro. Pode-se dizer, inclusive, que o indivíduo adquire o costume de se

defender da intimidade, ainda que não possa prescindir dos vínculos afetivos para a sua

existência. Nesses termos, a submissão complacente assume o lugar da intervenção

ativa e, nesse sentido, o potencial de força vital é empregado para fins protetores e

adaptativos. Mas, ainda assim, é de vida que se trata. Ora, por ser vivo, o indivíduo se

depara ininterruptamente com o novo, o que lhe obriga a reorganizar constantemente as

39 No escopo deste estudo não nos deteremos no modo como estas fantasias a respeito da externalidade se processam psiquicamente num indivíduo pouco desenvolvido emocionalmente. 40 A partir de inspirações de Spinoza (2007), pensamos o bom encontro no sentido de um transbordamento da potência de expansão e vitalidade e o mau encontro enquanto aquele que se manifesta pelo enfraquecimento da potência e do gesto criativo.

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suas crenças e o seu estilo de existência, apesar dos pesares. Por esse viés, o dispositivo

psicanalítico se apresenta como mola propulsora de outras formas de ser e estar no

mundo.

Daí desponta a experiência de hesitação na prática analítica. Trata-se da

possibilidade de ser tomado pela novidade, pela suspeita, pela dúvida, em outras

palavras, pela interrogação: confiar ou não confiar? Ora, quanto mais o indivíduo hesita,

mais ele se abre para a vida, forma pela qual as experiências podem readquirir

intensidade e um livre curso. A hesitação, portanto, implica num trabalho psíquico e na

suspensão temporária dos velhos costumes. Aqui hesitar é existir. Sem dúvida, uma

dose de angústia precisa ser suportada. Ademais, como nos lembra Costa (2007), “a

disposição para confiar, certamente, não tem seguro contra riscos” (p. 13). Por essa

razão, entre o medo da solidão e o medo das pessoas, uma escolha precisa ser feita, sob

o custo de uma vida que não vale a pena ser vivida. Escolha compensatória, sem dúvida.

Escolha diante das dificuldades primitivas com a alteridade e da necessidade de

segurança narcísica. Caso contrário, resta ao indivíduo refugiar-se no interior de suas

fantasias ou conformar-se freneticamente às imposições externas. Ora, certamente, uma

medida de confinamento narcísico, aderência objetal, espontaneidade, falso-self,

ocnofilia e filobatismo se encontram presentes nas subjetividades em combinações

múltiplas, complexas e singulares. No entanto, sem cair na cilada do amor incondicional

ou da confiança irrestrita, artifícios de garantia ilusória contra o sofrimento, outras

possibilidades de vínculo podem ser experimentadas. Confiante, o indivíduo permite

que a sua existência seja pontuada por uma série de encontros e desencontros.

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