A conformação do espaço em O Ateneu e Doidinho

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 THIAGO BITTENCOURT DE QUEIROZ A CONFORMAÇÃO DO ESPAÇO EM O ATENEU E DOIDINHO Disser taçã o apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Estudos Literários, no Curso de Pós-Graduação em Letras, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Dr. Paulo Astor Soethe CURITIBA, PARANÁ 2014

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  • THIAGO BITTENCOURT DE QUEIROZ

    A CONFORMAO DO ESPAO EM O ATENEU E DOIDINHO

    Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Estudos Literrios,no Curso de Ps-Graduao em Letras, Setor deCincias Humanas, Letras e Artes da UniversidadeFederal do Paran.

    Orientador: Dr. Paulo Astor Soethe

    CURITIBA, PARAN2014

  • RESUMO

    O presente trabalho apresenta uma anlise da conformao do espao literrio em

    O Ateneu, de Raul Pompia e Doidinho, de Jos Lins do Rego. Para tanto, prope-

    se a noo rortyana de redescrio como base terica para pensar em como esses

    dois textos tratam do espao do internato. No processo de anlise, e a partir de uma

    leitura comparativa entre os romances, busca-se elencar pontos em comum aos dois

    romances, como a questo do trnsito espacial, a formao da individualidade, o

    trauma da socializao e a crise da puberdade. Deste modo, pretende-se criar um

    conjunto de caractersticas que contribuam para o estudo do subgnero romance de

    internato.

    Palavras-chave: conformao do espao literrio, O Ateneu, Doidinho, romance de

    internato

    ABSTRACT

    This work presents an analysis of the conformation of literary space in O Ateneu, by

    Raul Pompeia and Doidinho, by Jos Lins do Rego. We propose to use Rorty's

    notion of redescription as a theoretical basis for thinking about how these two texts

    deal with space of boarding school. In the analysis process, and from a comparative

    reading of the novels, we seek to list common aspect from two novels, as the

    question of space transit, the formation of individuality, the trauma of socialization

    and the crisis of puberty. Thus, we intend to create a set of characteristics that

    contribute to the study of subgenre boarding school novel.

    Keywords: conformation of literary space, O Ateneu, Doidinho, boarding school novel

  • SUMRIO

    Introduo................................................................................................................ 04

    1. Captulo I Consideraes tericas: O espao literrio como redescrio...............................................................................................................141.1 Duas concepes de linguagem ......................................................................13

    1.2 A redescrio........................................................................................................15

    1.3 A redescrio e o espao literrio.....................................................................18

    2. Captulo II O romance de internato e a tradio do Bildungsroman.........................................................................................................272.1 Origem do conceito de Bildungsroman................................................................27

    2.2 Interpretaes sobre o conceito...........................................................................30

    2.3 O romance de internato........................................................................................36

    3. Captulo III O trnsito espacial.................................................................423.1 Da casa para o mundo.....................................................................................42

    3.2 A casa-me e a casa-liberdade............................................................................46

    3.3 Os nomes e os lugares........................................................................................49

    4. Uma sociedade em dimenses liliputianas.................................................524.1 O internato como instituio total.........................................................................53

    4.2 A represso e o controle da idiorritmia.................................................................57

    4.3 A pedagogia do autoritarismo...............................................................................58

    4.4 Como viver junto...................................................................................................67

    4.5 A formao da subjetividade................................................................................75

    Concluso.................................................................................................................84

    Referncias bibliogrficas.......................................................................................92

  • 4Introduo

    H na literatura ocidental uma srie de obras que tematizam ou tm como

    centro narrativo as experincias conflituosas do aluno, no raro o aluno interno, no

    mbito do espao escolar.

    Talvez o primeiro romance de xito sobre essa temtica seja Corao, de

    Edmondo de Amicis (1846-1908). Publicado em 1886, o livro narra, em forma de

    dirio, os episdios vividos por Enrico em sua trajetria escolar. Ainda que de

    maneira didtica e com forte intuito moralista, Corao delineia, mesmo que de

    forma amena, certos aspectos do embate do adolescente no meio fechado da

    escola.

    Anteriormente, o tema da escola j tinha ganhado destaque em diversos

    romances de Charles Dickens (1812-1870), mas sem se configurar como centro de

    suas narrativas.

    No entanto, ser na literatura alem que o trauma cultural esse embate do

    adolescente com o meio adverso da escola aparecer de forma mais contundente.

    E isso a ponto de o narrador da novela O que vai ser desse rapaz?, de Heinrich Bll

    (1917-1985), afirmar que sofrer na escola e escrever sobre isso faz parte obrigatria

    das tarefas dos autores alemes.

    Em um romance como Debaixo das rodas (1906), de Herman Hesse (1877-

    1962), a experincia traumtica da vida no internato escolar culminar no suicdio do

    protagonista Hans Giebenrath. No mesmo ano, Robert Musil (1880-1942), em O

    jovem Trless (1906), ir eleger o internato como microcosmo de uma sociedade

    cercada pelo dio e irracionalismo em suas relaes. Ainda como exemplos na

    literatura alem, podemos citar Jakob von Gunten (1909), de Robert Walser (1878-

    1956) e O pai de um assassino (1980), de Alfred Andersch (1914-1980).

    Tambm temos livros como A cidade e os cachorros (1961), de Mario Vargas

    Llosa (*1936), na literatura hispano-americana; Manh Submersa (1954), de Verglio

    Ferreira (1916-1996), e Uma luz ao longe (1948), de Aquilino Ribeiro (1885-1963),

    na literatura portuguesa.

    Na tradio literria brasileira, podemos listar romances como: A falange

    4

  • 5gloriosa (1917), de Godofredo Rangel (1864-1951); Balo Cativo (1973), parte do

    segundo volume das memrias de Pedro Nava (1903-1984); Trs Marias (1939), de

    Rachel de Queiroz (1910-2003); Informao ao crucificado (1961), de Carlos Heitor

    Cony (*1926) e Em nome do desejo (1983), de Joo Silvrio Trevisan (*1944).

    Nossa escolha recai sobre dois outros romances: O Ateneu (1888), de Raul

    Pompia (1863-1895) e Doidinho (1933), de Jos Lins do Rego (1901-1957). Mais

    do que o espao escolar, esses dois romances redescrevem um local bastante

    especfico: o internato. O conflituoso espao escolar ao qual nos referimos ganha no

    internato contornos ainda mais complexos e surge nos romances dos dois escritores

    brasileiros como elemento de grande potencial significativo, tambm quanto aos

    processos de composio literria, em momentos que prenunciam e sucedem a

    consolidao de prticas culturais modernas no pas. De modo sintomtico, os

    romances encontram-se inclusive vinculados um ao outro, em razo da meno

    direta de O Ateneu, como obra lida pelo protagonista de Doidinho. Interessa-nos,

    assim, analisar aspectos que, nos dois romances, atentem conformao literria

    do espao e ao potencial de significao de ambos, em meio aos discursos sociais

    poca de sua publicao e at hoje.

    O Ateneu, escrito por Raul Pompia aos 25 anos de idade e que veio a lume

    em 1888, serve-nos como paradigma entre os romances sobre o internato.

    Publicado primeiramente em partes, no formato de folhetim, na Gazeta de Notcias

    e, depois mas ainda no mesmo ano , lanado em livro, o romance insere-se em

    perodo fronteirio na poltica do Brasil: o fim do Imprio, em momento

    imediatamente anterior ao advento da Repblica. Esse dado aparece no prprio

    texto de O Ateneu. Logo no comeo do romance, o filho de Aristarco, o diretor do

    internato, se recusa a fazer parte da velha ordem poltica do Brasil Imperial:

    Seu filho Jorge, na distribuio dos prmios, recusara-se a beijar amo da princesa, como faziam todos ao receber a medalha. Erarepublicano o pirralho! Tinha j aos quinze anos convicesossificadas na espinha inflexvel do carter. (POMPEIA, 1981, p. 43).

    A pequena passagem do romance mostra a preocupao poltica de Raul

    Pompia, ele prprio um defensor da Repblica.1 Lido como um livro de memrias,1 As ideias republicanas de Raul Pompeia presentes, sobretudo, em seus ensaios e crnicas sodiscutidas em ALONSO, 2009.

    5

  • 6O Ateneu foi apontado por diversos crticos como romance autobiogrfico, em que

    Srgio seria a projeo literria do prprio autor.

    Por exemplo, o famoso texto de Mario de Andrade (1893-1945) em Aspectos

    da literatura brasileira, j em seu incio, nos coloca diante de uma tentativa de

    entender a obra pela biografia do autor.

    Raul Pompia foi um revoltado e isso lhe ditou a vida penosa e aobra irregular. Mas no meio desta eleva-se um marco do romancebrasileiro e legtima obra-prima, O Ateneu. No possvel negar, asprovas so fortes, que neste livro de fico o escritor vazou a suavingana contra o seu internamento no colgio Ablio (ANDRADE,1975, p. 179).

    O autor de Macunama v em O Ateneu um reflexo da vida de Raul Pompia,

    uma vingana concretizada na fico. A psicologia do autor, inferida atravs de sua

    biografia, serve como modelo de anlise para compor o sentido da obra. Algumas

    pginas a seguir, Mario de Andrade seguir com essa relao em seu ensaio crtico

    para afirmar que Raul Pompia tinha uma insensibilidade diante da adolescncia,

    que provinha da inexistncia, para ele, do sentido de amizade. O retrato cruel das

    relaes pessoais em O Ateneu , segundo essa abordagem, o resultado da vida

    solitria de seu autor. O inusitado da abordagem de Mario de Andrade que ele v

    uma coerncia entre vida e obra do autor, mas no v nexo entre as obras desse

    mesmo autor: O Ateneu [em relao obra de Raul Pompia] outro mundo

    expressivo, outro estilo (ANDRADE, 1975, p. 181).

    De certa forma, essa maneira de ler o romance ainda ecoa em boa parte da

    fortuna crtica sobre O Ateneu, bem como a preocupao com a classificao do

    romance dentro de uma escola literria. Apontado por alguns crticos como exemplo

    de um romance realista e por outros como naturalista, no h um consenso dentro

    da historiografia literria para enquadr-lo em uma escola. A verdade que a difcil

    classificao dentro da periodizao literria consiste na originalidade do romance

    para poca em que foi publicado. Nas palavras de Silviano Santiago (2000, p. 96):

    O Ateneu conserva uma modernidade surpreendente, pois a nica obra do sculo

    6

  • 7XIX, dentre as que conhecemos, que traz em si uma discusso da prpria obra, sua

    justificao.

    Para nosso trabalho, interessa pouco a discusso sobre a que escola literria

    poderia pertencer o romance. No entanto, o que h de moderno em O Ateneu e a

    discusso tica e esttica que traz em seu bojo ser de suma importncia dentro do

    nosso estudo.

    J Doidinho, publicado em 1933 , de certa maneira, um romance atpico

    dentro da obra de Jos Lins do Rego, pois o nico cujo espao central o mundo

    urbano. Ainda que no se trate da cidade em si, o espao do internato e da escola

    associado ao mundo urbano no incio do sculo XX e at mais de sua metade no

    Brasil. Contudo, a dialtica entre rural e urbano presente na obra de Jos Lins do

    Rego ganha um contorno maior em Doidinho. Situado em um momento de

    modernizao do Brasil, o romance evidencia a distncia entre os universos urbano

    e rural. Mais conhecido por romances que, situados principalmente no espao rural,

    exploram o aspecto social e humano em meio a decadncia dos engenhos de

    acar como pano de fundo, Jos Lins do Rego foi um dos grandes autores, tanto

    em qualidade como em quantidade das obras publicadas, do chamado romance de

    30. Todavia, seu romance mais conhecido (enquadrado pela afinidade temtica

    como um romance de 30) Fogo morto, que foi publicado em 1943.

    Doidinho o segundo volume do chamado ciclo da cana-de-acar, composto

    por cinco romances: Menino de engenho, Doidinho, Bangue, Usina e Moleque

    Ricardo. Os trs primeiros esto interligados pela personagem principal: Carlos de

    Melo. Visto em conjunto, os trs romances poderiam ser lidos como um

    Bildungsroman. Proporemos aqui uma leitura de perto apenas de Doidinho, mas

    sem esquecer do dilogo que os outros dois romances estabelecem com ele. Iremos

    nos deter em parte da Bildung e em parte do universo ficcional ligado a Carlos de

    Melo, ou seja, apenas na formao do heri dentro do espao fechado do internato.

    A escolha dos romances O Ateneu (1888) e Doidinho (1933) se d

    principalmente pela questo espacial: em ambos predomina a conformao do

    espao do internato. No entanto, outras semelhanas importantes nos levam a

    aproximar essas duas narrativas.

    O primeiro motivo, como dissemos, a aluso explcita ao romance O Ateneu

    7

  • 8nas ltimas linhas de Menino de engenho, as quais prenunciam a sada de Carlos de

    Melo para o internato, que ocorrer em Doidinho. H uma imbricao de discursos,um livro dentro do outro, que explicita um dbito com a tradio anterior, mas

    tambm um rompimento. O Carlos de Melo de Doidinho passa pela mesma

    experincia de Srgio, mas so personagens bastante opostas:

    Eu no sabia nada. Levava para o colgio um corpo sacudido pelaspaixes de homem feito e uma alma mais velha do que o meu corpo.Aquele Srgio, de Raul Pompia, entrava no internato de cabelosgrandes e com uma alma de anjo cheirando a virgindade. Eu no:era sabendo de tudo, era adiantado nos anos, que ia atravessar asportas do meu colgio. Menino perdido, menino de engenho (DOREGO, 2010, p. 191).

    O Ateneu o precursor dos romances sobre internato na literatura brasileira,

    o que o transforma em espcie de paradigma para esse subgnero. Isso facilita

    nossa abordagem comparativa e histrico-literria, medida que nos possibilita a

    partir do romance de Raul Pompeia estabelecer e elencar aspectos comuns, mas

    que podem aparecer de diferentes maneiras em Doidinho ou em outros romances de

    internato.

    Um outro motivo, para nos limitarmos a apenas dois nesta introduo, a

    forma semelhante como se iniciam os dois romances, com os protagonistas prestes

    a entrar nos portes do internato, acompanhados por um familiar. bem verdade

    que O Ateneu inicia a partir de uma rememorao. a memria adulta de uma

    experincia infantil vista por dentro (SCHWARZ, 1965, p. 16). Abrem-se dois

    planos: o do Srgio adulto e o Srgio menino.

    Embora narrador e personagem central sejam a mesma pessoa(Srgio adulto e menino), a distncia temporal a separ-los faz queseja objetivada a meninice pela maturidade. Ainda que o romanceapresente uma carga forte de subjetivismo, e mesmo havendocontraponto entre a atualidade do narrador e o passado da narrao,a estrutura dos fatos no rompida em momento algum (SCHWARZ,1996, p. 14).

    Diferente de Doidinho, em que o tempo da narrao dos acontecimentos

    coincide com o tempo da matria narrada, em O Ateneu h a opo por um narrador

    adulto que rememora e pode comentar o seu passado, o que no impede que os

    tempos vividos no internato pelo Srgio menino sejam narrados de forma linear.

    8

  • 9Como salienta Schwarz, em O Ateneu a estrutura dos fatos no rompida, pois o

    narrador apenas suspende a ao para comentar, em retrospecto, alguns poucos

    momentos da narrativa. O subjetivismo do narrador no se expande para alm do

    que narrado, pois trata-se da sua prpria experincia. Essa diferena temporal em

    relao matria narrada, mais do que problema para a abordagem comparativa,

    nos d um contraponto para pensarmos como Doidinho se aproxima de seu

    paradigma narrativo, mas tambm se afasta dele em alguns momentos revelando-

    se no como uma releitura de O Ateneu, mas um discurso novo e esteticamente

    vlido sobre o internato e a psicologia dos internos.

    Passando para questes de ordem terica e tendo em vista que nosso

    trabalho estuda a conformao do espao, duas questes devem ser colocadas de

    antemo: primeiro, com que tipo de espao nos confrontamos teoricamente e,

    segundo, como ele apresentado nos textos com os quais estamos trabalhando.

    A primeira pergunta nos leva a indagar sobre a categoria espao na narrativa,

    enquanto a segunda nos remete a noo de mimesis ou representao.

    Evitamos partir de um conceito de representao do espao para nossa

    anlise, pois o termo representao sem uma discusso prvia pode nos levar

    a pensar o espao literrio como espelho da realidade ou imitao dela. No entanto,

    buscamos um caminho diferente, queremos assinalar que o espao no dado ou

    descoberto pelas personagens, mas sim criado pela linguagem, ou seja, o espao se

    constri e apresentado no texto a partir de um ponto de vista discursivo. Assim, a

    percepo e manifestao lingustica do espao depende de sujeitos que o

    percebam e da insero desses mesmos sujeitos em um discurso, entendido aqui

    como dinmica de participao lingustica em uma comunidade de comunicao.

    Nosso acesso a qualquer realidade dado por meio da linguagem, e o mesmo

    acontece na literatura: nosso acesso categoria espacial nesses romances

    textual, isto , h uma linguagem que redescreve experincias, ou que mesmo cria

    experincias no mbito da linguagem, a partir de redescries.

    Para isso ser de suma importncia para nossa fundamentao terica o

    pensamento de Richard Rorty (1931-2007). Nosso contato com suas ideias no se

    resumir a escolher uma filosofia e aplic-la anlise de textos literrios, mas uma

    tentativa de superar a ideia de representao para pensarmos o espao como

    9

  • 10

    redescrio. Ademais, trazer para o dilogo algum como Rorty buscar uma

    sustentao filosfica que tem relao bastante estreita com a literatura.

    A trajetria de Richard Rorty comea dentro dos estudos da filosofia analtica,

    mas, logo cedo, muda para uma crtica aos filsofos analticos. J em seu primeiro

    livro A filosofia e o espelho da natureza, de 1979, Rorty tenta dissolver a pretenso

    da filosofia analtica de produzir resultados no controversos a respeito das

    questes de preocupao ltima (RORTY, 1991, p. 75). Seu livro prope um

    abandono da imagem da filosofia tradicional em que a mente como um grande

    espelho que possui diversas representaes. Para o pensador norte-americano, a

    metfora da mente como espelho cria a noo de que o conhecimento uma

    representao exata sobre um objeto. Essa noo cartesiana de conhecimento e

    que a filosofia analtica tradicional sustenta engendra a ideia de fundao absoluta

    contra a qual ele faz duras crticas.

    Em resposta a essa filosofia de forte apelo lgica, Rorty prope um apelo

    narrativa. Rorty, com base em uma leitura da histria da filosofia, principalmente do

    pragmatismo norte-americano, prope a ideia de redescrio como alternativa ao

    fundacionalismo. Essa ideia, que detalharemos no primeiro captulo da dissertao,

    assume que toda a filosofia uma disputa entre diferentes vocabulrios. Uma

    disputa entre um vocabulrio que se tornou problemtico ou j no serve em

    determinado contexto e um novo vocabulrio que promete maneiras novas de ver as

    coisas. Por isso, a obra de Rorty est em dilogo constante com a histria da

    filosofia e seus temas para propor releituras da tradio e novas redescries.

    Mas o dilogo de Rorty no fica estrito somente filosofia, h tambm uma

    grande preocupao com a literatura em sua obra.2 Vale notar que Rorty foi, de 1997

    at o fim de sua vida, professor emrito de literatura comparada na Universidade de

    Standford. Em muitos de seus livros e ensaios, aps a publicao de A filosofia e o

    espelho da natureza, o filsofo pragmatista vai gradualmente se voltando para a

    importncia da literatura relacionada com as questes de prtica social.

    Em Consequncias do pragmatismo, livro de ensaios publicado em 1982,

    2 Para um timo estudo sobre Rorty e a literatura ver LOPES, 2013.

    1

  • 11

    possvel encontrar ensaios sobe hermenutica literria, como O idealismo do sculo

    XIX e o textualismo do sculo XX e H algum problema com o discurso ficcional?,

    ensaio que delineia a ideia rortyana de cultura literria. Ideia essa desenvolvida com

    mais especificidade em O declnio da verdade redentora e a ascenso da cultura

    literria, publicado originalmente em 2000.

    Para Rorty, a literatura tem se mostrado um substituto para a verdade

    redentora, algo que seja a realidade por trs das aparncias, a nica descrio

    verdadeira do que est acontecendo, o segredo final (RORTY, 2006, p. 77). A busca

    por essa verdade ltima seria uma necessidade que a filosofia e a religio tentam

    satisfazer, mas no a assim chamada cultura literria. Com cultura literria, Rorty

    no quer dizer intelectuais ou pessoas que leem narrativas ou poemas. Para ele, a

    palavra literatura abarca hoje praticamente qualquer tipo de livro que se possa

    imaginar que tenha relevncia moral o que se possa imaginar que altere o sentido

    do que possvel e importante (RORTY, 2004, p. 147). Nesse sentido, muitas obras

    escritas no mbito da religio e da filosofia tambm podem ser consideradas

    produtos de uma cultura literria. E a nica redeno que a literatura oferece por

    meio da feitura do conhecimento de to grande variedade de seres humanos quanto

    possvel (RORTY, 2006, p. 78). A principal funo da literatura em uma cultura

    literria a de propor uma redeno que j no mais uma relao no cognitiva e

    no humana, nem uma relao cognitiva com proposies (RORTY, 2006, p. 81),

    como o caso na religio e na filosofia tradicional, mas sim criar e estabelecer

    relaes mediadas por artefatos humanos.

    Portanto, a escolha da filosofia de Richard Rorty como parte importante da

    fundamentao terica de nosso trabalho no fazer uma filosofia de segunda mo,

    mas conjugar literatura filosofia sem que se subordine um ao outro. J que isso se

    d no interior do prprio pensamento de Rorty.

    Quanto organizao e estrutura da dissertao, optamos por dividir o

    trabalho em quatro captulos.

    No primeiro captulo tratamos das consideraes tericas para anlise dos

    textos. Discutimos a noo de representao como um tipo de concepo de

    linguagem da qual nos afastamos, para ento propor a ideia de redescrio. Para

    ns a linguagem no um modo de representao, mas um conjunto de prticas

    11

  • 12

    sociais. A ideia rortyana de redescrio ser aliada ao espao literrio para que

    cheguemos noo de espao literrio como redescrio.

    No segundo captulo propomos a nomenclatura romance de internato para o

    tipo de romances que estamos estudando aqui. Fazemos um contraponto com a

    tradio do Bildungsroman para concluirmos que tanto O Ateneu como Doidinho

    possuem caractersticas comuns ao gnero, mas no se configuram stricto sensu

    como Bildungsromane.

    J no terceiro captulo, passamos efetivamente para anlise dos romances. O

    captulo trata do trnsito espacial nos dois romances. Destacamos que exitem dois

    espaos predominantes em O Ateneu e Doidinho, a saber: a casa e o internato. So

    dois polos opostos e essa oposio possibilita figurar nas personagens o que

    chamamos de trauma da socializao. A casa aparece como meio protetor e de

    liberdade, enquanto o internato se configura como um espao de opresso e

    clausura.

    No ltimo e mais extenso captulo, tratamos das relaes sociais que ocorrem

    no espao do internato. Visto como um microcosmo social, o colgio interno se torna

    palco de uma srie de aspectos da vida em comunidade tal como na sociedade

    maior da qual faz parte. Nesse captulo, nos valemos da ideia de instituio total,

    desenvolvida por Erving Goffman e da noo de idiorritmia proposta por Roland

    Barthes, para expor a problemtica do saber conviver. Apresentamos tambm uma

    srie de pontos que contribuem para socializao dos alunos dentro do internato.

    Por fim, nossa abordagem comparativa se d por meio de idas e voltas que

    exemplificam como a conformao do espao se assemelha nesses dois romances.

    Em vez de separarmos a anlise em dois momentos dedicados cada um a um

    romance, preferimos exemplificar cada tpico da anlise como exemplos, ora de um,

    ora de outro romance. Com isso, mais do que ressaltar diferenas, que obviamente

    existem, o trabalho procura demonstrar como so grandes as semelhanas no que

    diz respeito a conformao espacial em O Ateneu e Doidinho. Deste modo, podemos

    elencar uma srie de pontos comuns ao chamado romance de internato, que

    podem servir de apoio para estudos de outros romances desse subgnero.

    1

  • 13

    Captulo I

    Consideraes tericas: O espao literrio como redescrio

    A palavra o prprio homem. Somos feitos de palavras. Elas so anossa nica realidade ou, pelo menos, o nico testemunho de nossarealidade. No h pensamento sem linguagem, nem tampouco objetode conhecimento...

    (Octavio Paz, in: O arco e a lira)

    s vezes uso o processo de esvaziar as palavras. Sabe como ?Pego uma palavra fundamental. Palavras fundamentais, curioso...Pego numa palavra fundamental: Amor, Doena, Medo, Morte,Metamorfose. Digo-a baixo vinte vezes. J nada significa.

    (Herberto Helder in: Os passos em Volta)

    1.1 Duas concepes de linguagem

    Encarar a questo do espao literrio antes de tudo enfrentar o problema da

    linguagem. A partir de uma dada concepo de linguagem que podemos assumir

    uma postura diante do fato literrio e de como lidar com a categoria espacial na

    literatura.

    De maneira esquemtica, a filosofia da linguagem no sculo XX e, em linhas

    gerais, at os dias de hoje, pode ser dividida, como assinala Robert Brandom

    (1979), em dois tipos. Uma tendncia representacionista, em que a principal

    caracterstica da linguagem representar as coisas como so (BRANDOM, 1979,

    p.173) e uma tendncia cuja concepo de linguagem dada como um conjunto de

    prticas sociais.

    A primeira tendncia representada por pensadores como Gottlob Frege

    (1848-1925) ou Bertrand Russell (1872-1970), que esto preocupados em saber

    como a linguagem representa verdadeiramente um fato ou a realidade. A segunda

    tendncia, representada, por exemplo, pelo Wittgenstein das Investigaes

    filosficas (1953) e o pragmatismo norte-americano no do importncia busca

    pela verdade, pois apaga a noo de representaes mais verdadeiras. A

    linguagem para esta ltima tendncia um conjunto de ferramentas, cuja eficcia

  • 14

    deve-se ao seu uso.

    Outras posies, como por exemplo o da filosofia transcendental-pragmtica,

    de Karl-Otto Apel (1999), desenvolvida concomitantemente s consideraes de

    Random, nos anos 1970, e a partir dali, parecem se ligar, mais, ou menos, a um dos

    dois extremos e no a algo radicalmente diverso. A ideia de linguagem como

    medium da comunidade argumentativa , como entendemos, uma viso pragmatista

    do sentido e, portanto, tem a ver com a segunda tendncia, pois apoia-se nos usos

    que os falantes fazem da linguagem dentro de uma comunidade lingustica.3

    Tambm nos Estudos Literrios h reflexos da diviso desses dois grupos. E,

    ainda que de modo tcito, a tendncia representacionista parece ser predominante.

    Nessa abordagem, a linguagem funciona como espelho do real e sempre se

    compara o texto literrio em relao a como ele consegue representar determinadas

    prticas sociais ou um processo histrico. O espao tratado como representao

    sem uma discusso maior sobre o termo. Essa tradio se baseia numa srie de

    dualismos como realidade versus aparncia e linguagem versus fato; o que nos

    coloca numa distino entre o intrnseco do texto e a realidade extrnseca, sendo

    esta ltima inferida como mais importante porque verdadeira. O principal problema

    que o extrnseco se torna as coisas como so. Mas como nos diz o poema de

    Wallace Stevens as coisas como so se modificam sobre o violo. As coisas

    como so no tm uma natureza intrnseca, pois so mediadas pela linguagem e s

    com ela podemos dizer algo sobre o eu ou o mundo. O extrnseco ou a realidade

    no nos dada diretamente, pois, no dizer de Richard Rorty, que, como dissemos,

    ter papel central nas consideraes do presente trabalho, nunca seremos capazes

    de sair da linguagem, nunca seremos capazes de apreender a realidade no

    mediada por uma descrio lingustica (RORTY, 2000, p. 48). Poderamos dizer

    mais: as coisas como so no existem em si mesmas, e dessa forma optamos por

    abandonar a distino entre extrnseco e intrnseco em favor da noo rortyana de

    redescrio, pois o fato, para ns, tambm sempre uma entidade lingustica.

    Segundo a viso antiessencialista que assumimos aqui, o modo como uma

    3 Para uma sntese sobre os conceitos de medium e comunidade argumentativa em Apel, a partir dos

    Estudos Literrios, ver SOETHE; PEREZ, 2007. Ver tambm AMARAL, 1994 e OLIVEIRA, 1996.

  • 15

    coisa em si prpria no existe, sob qualquer descrio, para alm de qualquer uso

    que o ser humano lhe queira dar (RORTY, 2007, p. 19-20). Ou seja, no queremos

    comparar o quanto o discurso literrio imita ou representa a realidade, pois tal

    realidade inexiste sem uma linguagem.

    Chamamos essa viso de antiessencialista, porque evita encarar a realidade

    como portadora de uma essncia a ser descoberta. Essa essncia tambm o que

    o senso comum, e mesmo determinadas correntes filosficas, chamariam de

    verdade. Mas do ponto de vista que assumimos a verdade criada e no

    encontrada.4 Esse modo de encarar as coisas no se confunde com um idealismo

    imaterial, no entanto. No dizemos que as coisas no existem ou que no h

    impresses sensveis, como dor, medo ou prazer; mas que o mundo ou essas

    impresses sensveis no contam como crena. Elas so estmulos que s adquirem

    expresso e justificao dentro da linguagem.

    Embora a formao de uma crena possa ser devida a algo pr ouno proposicional, sua expresso (que permite que ela sejacomunicada a outros ou a si mesmo num self futuro) e a justificaodessa crena expressada acontecem completamente dentro dalinguagem (DE WAAL, 2007, p. 209).

    A realidade fsica e todo e qualquer estmulo so formulados no interior de

    uma certa descrio. A verdade sobre as coisas como so uma questo de

    aceitabilidade dentro de prticas sociais. E, assim sendo, o mundo ou quaisquer

    presses causais no so fundaes neutras que possuem uma essncia, pois so

    descritas de diferentes maneiras em diferentes pocas dentro de diferentes

    comunidades de falantes e para diferentes propsitos.

    1.2 A redescrio

    A ideia de resdescrio tem a ver com a crtica que Richard Rorty faz teoria

    do conhecimento e filosofia fundacionalista. Ideia que perpassa os escritos do

    4 Para um apanhado geral sobre teorias da verdade na filosofia, ver KIRKHAM, 2003.

  • 16

    pensador norte-americano desde o livro A filosofia e o espelho da natureza, a

    redescrio funciona como substituto busca da filosofia por argumentos

    apropriados ou verdade:

    A filosofia interessante raras vezes o exame de prs e contras deuma tese. Usualmente, ela , implcita ou explicitamente, umadisputa entre um vocabulrio arraigado, que se transformou numincmodo, e um novo vocabulrio, parcialmente formado, que traz avaga promessa de coisas grandiosas (RORTY, 2007, p. 34).

    Para Rorty, a histria da filosofia uma sucesso de vocabulrios e

    redescries em competio5. Assim, h um progresso ao se apresentar novos

    vocabulrios e novas descries. O rigor cientfico e a lgica so substitudos pelo

    apelo narrativa, uma atividade sem exigncias e critrios rgidos. A redescrio

    no tem como objetivo representar um objeto, pois esse objeto no possui uma

    essncia que precede a linguagem:

    O mundo no fala. S ns o fazemos. O mundo, depois de oprogramarmos com uma linguagem, pode fazer-nos sustentarconvices, mas no pode propor uma linguagem para falarmos.Somente outros seres humanos so capazes de faz-lo. (RORTY,2007, p.30).

    Portanto, a redescrio se ope ao dualismo platnico da aparncia versus

    realidade. Em vez de descobrir a essncia das coisas, podemos decidir entre

    redescries do mundo mais, ou menos, teis.

    Ainda para ilustrar a questo, podemos recorrer ao exemplo que Rorty nos

    oferece no livro Contingncia, ironia e solidariedade (2007), quando comenta a ideia

    de redescrio. Para o filsofo norte-americano, mesmo uma revoluo cientfica

    no decidida somente com base em observaes e experimentos, mas aceita e

    divulgada a partir de uma mudana cultural que faz com que tomemos por certo um

    novo modo de falar sobre o mundo. Para ele, a Europa decidiu menos com base em

    observaes telescpicas que a Terra no era o centro do universo, mas aos poucos

    as pessoas abandonaram uma redescrio ptolomaica em favor da copernicana.

    5 Rorty usa o termo vocabulary, que abrange tanto um discurso como a escolha de determinadaspalavras e metforas por um falante ou uma comunidade lingustica.

  • 17

    No entanto, podemos objetar que, desse modo, ns decidimos qual a rbita

    da Terra. Na verdade, o que decidimos qual vocabulrio iremos aceitar. Com esse

    exemplo, abandona-se a ideia de que para aceitarmos uma redescrio preciso

    que ela seja totalmente regulada por algo externo linguagem. A aceitabilidade de

    uma redescrio, por mais estranha que ela possa ser, regida graas a

    dinmicas internas da linguagem por comunidades interpretativas que

    compartilham semelhantes interesses e propsitos.

    Isso remonta ideia de aceitabilidade de uma interpretao, de Stanley Fish

    (1982). Em sua coletnea de ensaios intitulada There is a text in this class?, Fish

    apresenta o conceito de comunidades interpretativas. Essas comunidades so

    criadas atravs de um sistema (que pode ser institucional ou no) ou contextos

    criados. E elas so responsveis pela aceitabilidade de uma interpretao. Podemos

    pensar esses sistemas como comunidades que compartilham interesses e

    propsitos semelhantes como, por exemplo, um grupo de estudiosos de orientao

    marxista ou feminista. At mesmo um grupo de adeptos da quiromancia ou

    nefelomancia, que compartilhariam a crena de que os traos da mo ou as nuvens

    no cu no esto dispostos acidentalmente. J em relao aos contextos

    compartilhados, eles podem ser grandes ou restritos. Fish (1980) d o exemplo da

    interpretao que seus alunos tinham da expresso Is there a text in this class?. Aos

    que frequentavam os cursos de Fish, text no significava apenas text ou text

    book, mas sim uma entidade instvel e que no possui contedos predeterminados.

    Portanto, devido ao contexto tnhamos pelo menos dois significados para a

    expresso:

    [...] nunca ser possvel atribuir-lhes uma classificao imutvel edefinitiva, uma classificao que seja independente da sua utilizaoou no-utilizao em situaes concretas (porque somente em taissituaes que esses enunciados sero ou no utilizados) (FISH,1992, p. 195).

    O contexto pragmtico faz que o texto seja algo instvel e no tenha uma

    verdade dentro de si. Para Fish, a estabilidade de um texto algo que no pode ser

    sempre justificado e o mesmo podemos dizer e estender para as coisas como so,

    j que elas so sempre linguisticamente mediadas quando partilhadas nas

  • 18

    dinmicas sociais.

    Na perspectiva que adotamos, devemos dizer que as comunidades

    interpretativas no orientam o significado, mas sim a aceitabilidade de uma

    redescrio, a ponto de ela se tornar um discurso normal ou uma verdade. Essa

    aceitabilidade, assim como o objeto, no estvel, j que os interesses e propsitos

    das comunidades interpretativas so constantemente renegociados.

    Em suma, definimos redescrio como a prtica de colocar as ideias em

    novos contextos e apresentar novos vocabulrios para se lidar com o mundo. A

    redescrio no nos leva natureza das coisas ou a uma nica redescrio final.

    Ao contrrio, ela abre espao para uma pluralidade de formulaes em diferentes

    vocabulrios, um repertrio de redescries alternativas, que nos levam a ver

    determinados campos de investigao de diversas formas.

    1.3 A redescrio e o espao literrio

    Partindo da ideia rortyana de redescrio, queremos aliar seu conceito aos

    estudos literrios e a uma abordagem do espao literrio. Primeiro preciso apontar

    algumas linhas de foras no estudo da categoria espacial dentro dos estudos

    literrios.

    Luis Alberto Brando (2013) faz um apanhado dos principais modos de

    abordagem do espao na literatura, em especial nos estudos literrios do sculo XX.

    Brando conclui que existem quatro tipos de abordagens dominantes, segundo o

    aspecto que priorizam: a representao do espao; o espao como forma de

    estruturao textual; o espao como focalizao; e o espao da linguagem. Ainda

    que as quatro abordagens sejam importantes para nosso estudo, nossa ateno se

    voltar para a representao do espao e o espao como focalizao. Se

    pensarmos nos estudos literrios brasileiros, esses dois tipos so os predominantes

    em relao abordagem do espao na literatura. Para ficarmos com apenas trs

    nomes importantes da crtica literria brasileira (sugeridos por Brando em seu livro),

    podemos pensar de maneira bastante resumida como a categoria espacial

    abordada por Antonio Candido, Osman Lins e Luis Costa Lima.

  • 19

    Ainda que no tenha se dedicado sistematicamente ao estudo do espao na

    literatura, em alguns textos de Antonio Candido a categoria espacial de suma

    importncia. So os casos, por exemplo, dos ensaios: Degradao do espao (1993)

    e Entre campo e cidade (2006). Nos dois exemplos temos a predominncia da

    abordagem da representao do espao. No primeiro ensaio, Candido busca

    comprender a funo do espao no romance L'assomoir, de Zola. O foco principal da

    abordagem uma possvel dialtica entre espao ficcional e espao real: O espao

    do livro definido por esse sistema topolgico, articulado tanto no plano da

    sonoridade quanto no plano do significado, que transpe e organiza espaos reais

    da cidade, correlacionando-os vida do pobre (CANDIDO, 1993, p. 60).

    interessante notar que apesar da abordagem representacionista da linguagem,

    Candido no esquece em nenhum momento da dimenso esttica do texto e

    tambm trabalha com as funes que a sonoridade das palavras e as metforas

    espaciais tm no romance.

    J no segundo ensaio, o crtico aponta para a dialtica entre campo e cidade

    em alguns romances de Ea de Queirs. Nesse momento, Candido procura

    demonstrar como Ea consegue representar dentro dos seus romances dinmicas

    da realidade social do espao urbano e rural. Essa escolha metodolgica bastante

    coerente para a perspectiva da crtica sociolgica to difundida por Antonio Candido.

    Passando para outro caso, O livro Lima Barreto e o espao romanesco, de

    Osman Lins incorpora a tendncia do espao como focalizao, criando uma

    tipologia para diferenciar espao de ambientao. A abordagem de Osman Lins

    nos moldes do estruturalismo propem uma tipologia para a categoria da

    ambientao. Na viso do autor de Avalovara, a ambientao, diferentemente do

    espao, requer um certo conhecimento da arte narrativa (LINS, 1976, p. 71). A

    ambientao seria a fuso dos espaos conhecidos pela nossa experincia mais o

    reconhecimento de tcnicas prprias da narrativa. Partindo de exemplos da literatura

    brasileira, Osman Lins prope trs tipos de ambientao: franca, reflexa e oblqua.

    Esses trs tipos tomam como base o ponto de vista narrativo ou da personagem,

    como o espao apresentado pelo narrador ou personagens cria determinado tipo de

    ambientao.

    A contribuio de Luiz Costa Lima a de repensar o conceito de mimesis.

  • 20

    Seus estudos do uma nova dimenso ideia de representao do espao. Para

    Lima (2012) a questo da representao no uma correspondncia entre algo

    produzido e seu suposto referente, mas a de apreender o cdigo cultural que motiva

    o que se considera semelhante ao que se representa e, a partir da, verificar como a

    obra se impe diante do que a motiva (LIMA, 2012, p. 99).

    Desta forma, coloca-se em evidncia a obra literria e sua linguagem no em

    relao ao tipo de representao que faz de um objeto e sua aparncia fsica e

    material, mas em como uma semelhana culturalmente partilhada pode motivar

    determinada representao.

    Os trs exemplos nos colocam aspectos cruciais para o conceito que

    queremos apresentar: o do espao como redescrio. Para o nosso trabalho,

    imprescindvel pensar no espao como focalizao. Quem, no texto, faz as

    observaes sobre o espao que nos apresentado pelas narrativas e de onde faz

    essas observaes so questes que nos ajudam a perceber como a figurao do

    espao se constri. Em nenhum momento da anlise dos romances que iremos

    trabalhar nos distanciaremos sobre a questo do foco narrativo para afigurao do

    espao. J para questo da representao do espao, preferimos no seguir o

    caminho apontado pelo texto de Antonio Candido, pois nossa concepo de

    linguagem se ope ideia de representao. Assim, optamos por rediscutir essa

    ideia luz da noo de redescrio para, por fim, ver nos textos a que nos

    dedicaremos no uma dialtica entre espao ficcional e espao real, mas uma rede

    textual na qual diferentes discursos competem e coabitam.

    Com redescrio queremos assinalar que o espao no dado de antemo

    ou descoberto pelas personagens, mas sim criado pela linguagem, ou seja, o

    espao se constri e apresentado no texto a partir de um ponto de vista lingustico

    e, portanto, depende do sujeito que o percebe, de seu vocabulrio e das prticas de

    linguagem desse sujeito. Assim, entendemos esse sujeito como participante do jogo

    de linguagem que abarca uma prtica social. Ou seja, se existe algum que percebe

    e redescreve um espao, ele est inserido em uma comunidade lingustica e leva em

    conta os usos e discursos sobre esse espao.

    Essa escolha metodolgica evita que pensemos o espao literrio como

    espelho da realidade ou imitao dela e faz com que coloquemos os sujeitos e a

  • 21

    linguagem em primeiro plano. Nosso acesso a qualquer realidade dado por meio

    da linguagem. Na literatura em particular, esse processo radicalizado e o acesso

    realidade, a realidade mesma, exclusivamente lingustico. Assim, o acesso

    categoria espacial nos romances exclusivamente textual, isto , h to-somente

    uma linguagem que redescreve a experincia perceptiva. Portanto a dico literria

    revela de modo especial essa dimenso e dinmica da constituio do espao

    humano. Note-se que a ideia de experincia perceptiva no deve negar o ato criador

    dentro da fico. O que se nega aqui que a literatura crie outros mundos, como

    pode afirmar o senso comum. Pois nesse gesto de encenao e evidenciao dos

    processos lingusticos, ela mesma acontece e se constitui sempre inserida dentro de

    nossos jogos de linguagem.

    Outro problema que, desta forma, buscamos evitar o de privilegiar um

    discurso ou uma das linguagem com que descrevemos o mundo ou a ns mesmos.

    Supor que existem discursos que esto mais ajustados ao mundo ou em um contato

    mais prximo a ele voltar a buscar uma essncia. achar que o nosso ou

    qualquer vocabulrio pode abarcar uma totalidade que represente as coisas como

    elas realmente so, pois s podemos comparar linguagens ou metforas umas com

    as outras, e no com algo alm da linguagem, chamado fato (RORTY, 2007, p. 52.).

    Nunca estamos fora da linguagem, ou para falar com um clebre textualista: no h

    nada fora do texto.6 Isso no quer dizer que voltamos a imanncia da obra, mas,

    sim que fora do texto h mais textos e textos, e no um fato sem sua interpretao.

    No existe um critrio de escolha objetivo que nos faa dizer que uma linguagem

    realmente representa melhor ou corretamente um dado objeto. Se isso de fato

    ocorresse, deveramos estender a noo de representar o mundo a todos os

    domnios da cultura. Logo, se um discurso tem a faculdade de representar o mundo,

    ento todos os discursos tm essa faculdade (ENGEL & RORTY, 2008, p. 57).

    Ento, cairamos em uma aporia e no poderamos optar por qual discurso nos

    mais til para determinado fim.

    Desta forma, o tratamento que propomos em relao ao espao literrio no

    nos faz inferir que o discurso histrico ou da sociologia seja uma representao

    melhor do mundo (porque se baseia em fatos). Para ns, os fatos so tambm

    6 A clebre frase Il n'y a pas de hors texte, de Jacques Derrida, presente no livro Gramatologia.

  • 22

    interpretaes e os discursos so instrumentos para lidarmos com o mundo visando

    determinados propsitos e fins. Portanto, o discurso literrio no tenta imitar ou

    funcionar como espelho do real, mas tambm parte e se utiliza talvez com maior

    liberdade e conscincia das redescries do mundo que temos ao nosso dispor,

    como as da histria, sociologia, psicologia, fsica etc.). O que est em jogo que o

    espao que o texto literrio redescreve no precisa ser comparado em termos de

    representao, pois ele no emula ou imita um fato verdadeiro, pois s as

    redescries do mundo podem ser verdadeiras ou falsas. O mundo em si sem o

    auxlio das atividades descritivas dos seres humanos no pode s-lo. (RORTY,

    2007, p. 28).

    Isso nos leva a inferir que nunca poderemos afirmar indubitavelmente que um

    discurso realmente verdadeiro, j que o mundo indiferente a nossas redescries

    e no nos oferece um critrio para isso. Somente podemos aceitar determinada

    redescrio em acordo com nossos propsitos e interesses. Com isso, no negamos

    a existncia do mundo ou dos objetos, mas refutamos a noo de um possvel

    carter de imutabilidade e de essncia das coisas. O que se impe nas nossas

    redescries sobre o mundo so semelhanas culturalmente partilhadas a partir da

    linguagem mais do que seu aspecto fsico e material.

    ... sem sentido perguntar se a realidade independente do nossosmodos de falar sobre ela. Dado que h condies para se falar demontanhas, como certamente h, uma das verdades bvias sobremontanhas que elas estavam aqui antes de falarmos delas. Sevoc no acredita nisto, provavelmente voc no sabe como jogar osjogos de linguagens habituais que empregam a palavra montanha.Porm, a utilidade desses jogos de linguagem no tem nada a fazercom a questo de se a realidade em si mesma, parte do modo que conveniente para os seres humanos descrev-la, possuimontanhas. (RORTY, apud GHIRALDELLI Jr, 1998, p.85-7)

    No dizemos que o mundo ou os estmulos sensoriais inexistam, mas que

    no temos como falar de fatos sem interpret-los, ou seja, no fazemos a distino

    entre linguagem e fato.

    Em resumo, buscamos entender o espao literrio no como representao,

    pois como observa Luiz Costa Lima (2012, p. 101): em seu emprego usual,

    representao supe a preexistncia de um real demarcado e anterior ao prprio ato

  • 23

    de convert-lo em uma figurao. No nosso entendimento, o fato ou lugar do objeto

    representado inexiste como essncia imutvel e fora das redescries que fazemos

    dele. Iremos comparar o espao dos romances O Ateneu e Doidinho em relao a

    outras redescries ou outros textos, sejam eles procedentes da sociologia,

    psicologia ou quaisquer outros. A conformao do espao nesses romances tem

    relao com outros discursos sobre o internato, mas no representa um fato ou um

    objeto. Pois, mesmo quando vemos uma realidade como uma rvore, a

    possibilidade dessa percepo dependente de um esquema conceitual global, em

    uma linguagem em vigor (PUTNAM, s/d, p. 103).

    Logo, a redescrio nos textos que iremos trabalhar uma cadeia intertextual

    e composta a partir de muitos discursos, mas no algo para alm da linguagem e

    sem que haja representaes mais acuradas ou mais verdadeiras que outras.

    Tentamos dissolver o problema das representaes mais verdadeiras quando

    afirmamos que nenhuma linguagem realmente representa o objeto e que o discurso

    literrio se vale de outros discursos em sua composio. Dessa forma, no dizemos

    que romances como O Ateneu ou Doidinho representam uma instituio chamada

    internato. Mas que redescrevem esse espao a partir de novas metforas e sob o

    uso crtico, e portanto transformador ou ratificador, das antigas metforas.

    Ao evocarmos a noo de novas e antigas metforas, estamos pensando em

    como certas metforas entram nos diferentes jogos de linguagem. Os discursos da

    cincia ou da histria, por exemplo, se valem tambm de metforas em suas

    redescries. O tomo de Demcrito, a fsica newtoniana ou a psicanlise e suas

    formulaes so metforas. A diferena que elas entraram no jogo de linguagem e,

    com seu vasto uso, tornaram-se metforas mortas (no sentido em que Nietzsche

    [1974] emprega). Em oposio, a metfora nova ou metfora viva pela prpria

    evidenciao do carter metafrico da formulao lingustica inusitada, na dinmica

    discursiva em que ela se apresenta uma caracterstica importante do discurso

    literrio (mas no determina sua especificidade).

    [...] no existe um vocabulrio constante para descrever os valores aserem definidos ou os objetos a serem imitados, ou as emoes aserem expressas, ou seja, o que for, em ensaios ou poemas ouromances (RORTY, s.d., p. 210).

  • 24

    No texto literrio, a metfora no se torna morta, ou como queria Adorno, a

    linguagem no reificada. Ou ainda, no sentido de sua interpretao, a metfora

    viva , segundo Donald Davidson (1992) de quem Rorty empresta a noo

    entendida usualmente no como uma assero, mas como um valor de falsidade, ou

    seja, no vlida como justificativa para um argumento. Dessa forma, dificilmente

    torna-se paradigma, pois no aceita como verdade por uma comunidade

    lingustica. Todavia, isso no torna o discurso literrio algo estvel e especfico, pois

    qualquer metfora viva pode se tornar morta, assim como o discurso literrio no se

    compe somente de metforas novas: pois entendemos a metfora no sentido

    davidsoniano, segundo o qual seu uso depende inteiramente dos significados

    comuns daquelas palavras e, por conseguinte, dos significados comuns das

    sentenas que eles abrangem (DAVIDSON, 1992, p. 32).

    Diferente de teorias da metfora, como a de BLACK (1992) que busca pensar

    em um sentido metafrico (um significado novo ou ampliado em relao ao

    significado denotativo que ela possui), Davidson no v outro sentido para metfora

    que no seja o literal. A teoria de Davidson nos permite ver a metfora como o

    modelo de acontecimentos no familiares dentro do mundo natural. Segundo Rorty,

    que segue a teoria da metfora de Davidson, ela mais/antes uma causa de

    mudanas nas crenas e desejos do que uma representao de mundos

    desconhecidos, que so mais simblicos do que naturais (RORTY, 1987, 266).7 A

    metfora pertence ao domnio do uso, portanto ela no cria novos mundos, mas

    opera dentro das possibilidades dos nossos jogos de linguagem.

    Como observamos anteriormente, outros discursos compem o texto literrio

    e ele no uma linguagem totalmente metafrica.

    As metforas so usos pouco conhecidos de velhas palavras, mastais usos s so possveis tendo por fundo outras velhas palavras,usadas de velhas maneiras conhecidas. Uma linguagem que fossetoda metfora seria uma linguagem sem serventia, e, portanto, noseria uma linguagem, mas apenas balbucio (RORTY, 2007, p. 85).

    Aliadas a outras formulaes contidas no texto literrio, as metforas

    7 Nesse mesmo ensaio, intitulado Unfamiliar noises: Hesse and Davidson on metaphor, Rorty revelasua dvida para com a teoria da linguagem e da metfora de Davidson.

  • 25

    adquirem tambm um contedo cognitivo: as metforas frequentemente nos fazem

    notar aspectos das coisas que no havamos notado antes, sem dvida, trazem

    nossa ateno analogias e similaridades surpreendentes (DAVIDSON, 1992, p. 49).

    No entanto, podemos dizer que a linguagem literria dificilmente se torna um

    paradigma e transforma-se em instrumento cotidiano. Apesar de no ser um meio de

    representao, contudo, ela continua a ser, potencialmente, meio de comunicao.

    Em outros termos, a linguagem literria no um discurso normal (nos termos da

    cincia normal, de Thomas Kuhn [2003]), nem um discurso explicativo8. As

    metforas do discurso literrio, na maioria das vezes, no formam um discurso

    normal, com o qual a cultura est de acordo nos padres e normas relevantes. E

    tambm no um discurso explicativo como muitas vezes a cincia natural ou a

    filosofia , em que h um desacordo irresolvel e necessrio que se estabelea

    uma ligao espao-paradigma para sua aceitabilidade.

    Se buscarmos um exemplo em nossos textos, podemos ver como a metfora

    no texto literrio no se apresenta como discurso explicativo. Raul Pompia, em O

    Ateneu, opera com diversas imagens expressionistas para evocar o espao do

    internato e descrever as personagens que circulam nesse universo. Vejamos como

    descrito um momento em que Srgio, com a ajuda de Sanchez, se pe a estudar a

    gramtica:

    A seu turno a gramtica abria-se como um cofre de confeitos pelaPscoa. Cetim cor de cu e acar. Eu escolhia a bel-prazer osadjetivos, como amndoas adocicadas pelas circunstnciasadverbiais da mais agradvel variedade; os amveis substantivos!(POMPEIA, 1981, p. 134).

    De maneira bastante subjetiva, Srgio, entusiasmado pela compreenso que

    comea a ter da lio estudada, aproxima as nomenclaturas da gramtica a uma

    caixa de doces. Em vez de discorrer sobre a metalinguagem que classifica as

    categorias da gramtica, Srgio usa metforas que, mais que explicar algum

    aspecto do seu conhecimento da matria estudada, apontam para sua relao

    ntima com o estudo e tambm com a linguagem. Assim como se escolhe um doce

    8 Thomas Kuhn ope a cincia normal cincia extraordinria. A primeira um paradigmacompartilhado por muitas pessoas, enquanto o segundo o perodo de criao de possveis novosparadigmas.

  • 26

    pela sua aparncia ou possvel sabor, o heri seleciona as palavras que mais lhe

    apetecem e as saboreia em forma de metforas. No h um carter explicativo ou

    passvel de parafraseamento das imagens criadas por Srgio, no entanto, elas nos

    chamam a ateno para aspectos que seriam ignorados numa linguagem composta

    de formulaes argumentativas.

    Porm, aqui, mais do que tentar romper o cipoal sobre a questo da

    linguagem literria e suas possveis especificidades, queremos afirmar, com o jogo

    de metforas, que nenhum vocabulrio ou discurso representa corretamente o

    mundo ou mais verdadeiro, j que, em sntese, as linguagens so feitas e no

    descobertas e a verdade uma propriedade de entidades lingusticas, de frases

    (RORTY, 2007, p. 31).

    Diante disso, nossa anlise recai sempre em textos e mais textos. Mesmo

    quando evocamos o internato como instituio marcadamente social ou sobre a

    experincia traumtica da vida como interno de um colgio, estamos nos referindo a

    discursos sobre aspectos da realidade social, mas sem nunca sair da linguagem:

    nossa nica ferramenta para falar sobre o mundo

  • 27

    Captulo IIO romance de internato e a tradio do Bildungsroman

    Pensar os romances O Ateneu e Doidinho como Bildungromane propor

    uma chave de leitura para essas duas obras, mais do que caracteriz-las. inseri-

    las em uma comunidade de comunicao em que assumem o status de

    redescries de questes relativas ao universo formativo e educacional no

    processo de modernizao no Brasil e de redescries de questes relativas aos

    debates internos quanto ao gnero literrio a que podem ser associadas. Quanto a

    este ltimo aspecto, precisamos justificar e analisar semelhanas e afinidades ao

    gnero tipicamente alemo9. O que pretendemos aqui no ler nessa direo os

    dois romances, mas, ao estud-los comparativamente, estabelecer uma nova

    classificao. Para facilitar nosso trabalho comparativo, propomos a nomenclatura

    romance de internato para exemplos como O Ateneu e Doidinho.

    Ainda que no sejam Bildungsromane stricto sensu, os dois romances

    estudados guardam uma srie de pontos de contato com esse gnero. Portanto,

    para conceituarmos o romance de internato, agruparemos semelhanas entre O

    Ateneu e Doidinho e seus dbitos e desvios em relao tradio do

    Bildungsroman.

    Se por um lado, tomaremos como base a categoria espacial predominante

    para chegarmos nomenclatura romance de internato, esse mesmo critrio no se

    aplica de modo suficiente ao Bildunsroman. Gnero altamente historicizado,

    preciso remontar a origem do termo para podermos entender melhor sua

    classificao.

    2.1 Origem do conceito de Bildungsroman

    Em 1810, o fillogo Karl Morgenstern criou o termo Bildunsroman para

    9 Massaud Moses, no Dicionrio de termos literrios, coloca O Ateneu como exemplo deBildungsroman dentro da tradio brasileira. Porm, ele assinala que o gnero uma modalidade deromance tipicamente alem (2004, p. 56).

  • 28

    classificar um tipo de romance que representa a formao do protagonista em seu

    incio e trajetria at alcanar um determinado grau de perfectibilidade

    (MORGENSTERN, Apud MAAS, 2000, p. 19). O romance cobriria, ento, uma faixa

    de tempo que acompanha o desenvolvimento e aperfeioamento das qualidades de

    uma formao ideal. A narrativa exemplar e paradigma do gnero e que continuar

    sendo nas intepretaes posteriores sobre o conceito seria Os anos de

    aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe.

    Essa ideia de formao como busca da perfectibilidade ser endossada,

    ampliada e difundida pelo filsofo Wihelm Dilthey (1833-1911), que ver na forma

    literria do romance de Goethe a caracterizao do esprito nacional alemo. Para o

    filsofo, o Bildungsroman ser um gnero tipicamente alemo, visto a

    impossibilidade de separar seu surgimento ao contexto social em que ele emerge.

    O termo Bildungsroman nasce da juno de duas palavras: Bildung (que

    poderamos traduzir como formao) e Roman (romance). Se quanto ao segundo

    termo no h controvrsias no que tange a sua traduo, o segundo carece de

    explicaes. A Bildung refere-se a um conceito abrangente de formao. No se

    trata apenas da educao ou uma formao adquirida de fora, mas tambm a

    autoformao. Ou seja, a Bildung no se restringe s instituies de ensino, pois

    essa formao inclui alm do abandono do lar e a atuao de instituies escolares,

    a experincia no mundo do trabalho e o contato com a vida pblica e poltica. No

    entanto, a experincia profissional no implica em uma educao voltada para uma

    futura atividade. O protagonista do romance de Goethe, Wilhelm Meister, se

    pergunta: De que me serve fabricar um bom ferro, se o meu prprio interior est

    cheio de escrias? E de que me serve tambm colocar em ordem uma propriedade

    rural, se comigo mesmo me desavim? (GOETHE, 2006, p. 284).

    Alm disso, o termo nos remete ao mundo burgus de seu tempo e vem

    atrelado aos fenmenos sociais e culturais do Iluminismo alemo do sculo XVIII:

    [...] o Bildungsroman desvenda-se como instituio social, como ummecanismo de legitimao de uma burguesia incipiente, que quis verrefletidos seus ideais em um veculo literrio (o romance) que apenascomeara a se firmar. assim que, na Alemanha, o Bildungsromanmostrou-se a contrapartida esttica de acontecimentos que naFrana, se davam no plano poltico. (MAAS, 2000, p. 17).

  • 29

    Portanto, a simples traduo do termo como romance de formao pode

    ocultar seu aspecto histrico, j que ele traduz a formao do jovem de famlia

    burguesa, seu desejo de aperfeioamento como indivduo, mas tambm como

    classe, coincidem historicamente com a cidadania do gnero romance (MAAS,

    2000, p. 13). O gnero, por nascer em meio s transformaes sociais alems, um

    esforo para a consolidao e afirmao do carter nacional da literatura alem.

    Tambm vale lembrar que assim como a Bildung parte da ideologia burguesa, o

    romance tambm visto como um gnero burgus, ou, para falarmos com Lukcs,

    a pica burguesa. pica de um mundo no mais regido por deuses, mas com o

    homem comum ao centro.

    Desde de sua origem e nas interpretaes posteriores sobre o termo,

    veremos que o processo social e o Bildungsroman esto imbricados e difcil

    separ-los. Ou, mais adequado a nossa viso, o discurso literrio no acontece sem

    se referir a discursos histrico-sociais e polticos de sua poca. Ele parte essencial

    da formao do novo discurso que surge a partir do prprio romance.

    Um dos elementos desse novo discurso ser a formao do protagonista sob

    a dialtica entre o aprendizado privado burgus e o aprendizado pblico, em um

    meio social que abriga processos de modernizao. As bases do Bildungsroman

    assentam-se

    primeiramente no conceito teleolgico do desdobramento gradativodas potencialidades do indivduo, no sentido de uma entelquia, e,em segundo lugar, na teoria da socializao como interaonecessria entre indivduo e sociedade, eu e o mundo (MAZZARI,1999, p. 69).

    Em suma, a criao do termo e suas primeiras interpretaes iro gravitar em

    torno da morfologia da palavra, com especial ateno palavra Bildung e seus

    desdobramentos no contexto alemo. Com isso, a nfase na formao do heri

    dada no como uma sequncia de aventuras e descobertas arbitrrias, mas sob a

    conscincia da formao por parte do heri. Isso aparece explicitamente no romance

    paradigma do Bildungroman, quando Wilhelm Meister anuncia:

    Instruir-me a mim mesmo, tal como sou, tem sido obscuramente meudesejo e minha inteno, desde a infncia. Ainda conservo essa

  • 30

    disposio, com a diferena de que agora vislumbro com maisclareza os meios que me permitiro realiz-la (GOETHE, 2006, p.284).

    Tendo isso em vista, temos que pensar sobre os desdobramentos do termo na

    teoria da literatura. Partiremos de Bakhtin e do jovem Lukcs, at chegarmos aos

    estudos mais recentes de Franco Moretti.

    2.2 Interpretaes sobre o conceito

    Em sntese, o Bildungsroman v na juventude, ou verses dela, a parte mais

    significativa da vida. Esse tipo de narrativa cobre o perodo de aprendizagem e

    socializao de um heri problemtico. Esse heri visto como um aprendiz da

    sociedade em devir (DO CARMO, 1998, p. 29) e ele mesmo tambm um sujeito em

    devir. No entanto, no possvel uma definio unvoca do termo, j que suas

    caractersticas acompanham as transformaes histricas, ou seja, o gnero

    Bildungsroman modifica-se no tempo.

    Portanto, faremos aqui a reviso de algumas interpretaes sobre o conceito

    que nos serviro para chegarmos a uma definio do romance de internato com

    base em referncias ao Bildungsroman.

    Como aponta Franco Moretti (2000), o Bildungsroman ocupa um espao

    central dentro dos estudos sobre o romance. Da Teoria do Romance, de Georg

    Lukcs (1885-1971), passando por Mikhail Bakhtin (1895 -1975) e Erich Auerbach

    (1892-1957), o gnero recebeu grande interesse nos primeiros estudos de flego

    sobre o romance at a metade do sculo XX.

    Bakhtin, no ensaio O romance de educao e sua importncia na histria do

    realismo (1992), elenca quatro modalidades do gnero romanesco que para ele

    seriam a gnese do chamado romance de educao. Para o pensador russo,

    romance de educao traduz os termos Erziehungsroman ou o prprio

    Bildungsroman.10 Aqui ainda no h uma ruputra entre a Bildung e Erziehung, como

    10 O termo original, traduzido como romance de educao roman vospitanya. A palavravospitanie, usada geralmente para indicar um tipo de educao que no se restringe apenas ainstituies de ensino. Est presente em expresses como shkola integral'nogo vospitanya (escolade educao integral), mas tambm vospitanie kharaktera (formao do carter).

  • 31

    veremos na interpretao de Moretti. Os quatro tipos, a saber: romance de viagens,

    romance de provao, romance biogrfico e romance didtico-pedaggico, diferem

    do romance de educao por apresentarem seus protagonistas como algo pronto e

    imutvel. Enquanto nesses romances o espao, o destino e outros elementos da

    vida eram variveis, o heri permanecia como uma grandeza constante.

    Para Bakhtin, o romance de educao se forma no sculo XVIII e o seu

    principal representante, assim como em Dilthey, Os anos de aprendizado de

    Wilhelm Meister. Nele, o heri uma unidade dinmica e sua mudana ganha

    significado de enredo. O que importa mostrar a personagem inacabada e que

    muda seu carter e concepo de mundo. H uma assimilao do tempo histrico

    na imagem do homem em formao no romance. Se no romance didtico-

    pedaggico, como o Emlio (1762), de Jean-Jacques Rousseau, o mundo histrico

    era mais estvel, com mudanas perifricas que no afetavam os fundamentos da

    obra romanesca, o romance de formao situa-se no limiar de uma poca para

    outra. O tempo histrico est numa relao indissolvel com a formao da

    personagem:

    Em romances como Garagntua e Pantagruel, Simplicissimus,Wilhelm Meister, a formao do homem apresenta-se de mododiferente. J no um assunto particular. O homem se formaconcomitantemente com o mundo, reflete em si mesmo a formaohistrica do mundo. O homem j no se situa no interior de umapoca mas na fronteira de duas pocas, no ponto de transio deuma poca a outra (BAKHTIN, 2011, P. 222).

    Os protagonistas desses romances so os representantes do novo homem e

    de um novo tempo. Ainda que os exemplos de Bakhtin ultrapassem os limites

    cronolgicos do sculo XVIII e incluam romances anteriores, o Bildungsroman

    acompanha o processo de modernizao da Europa e o apogeu do sculo das

    luzes.

    Outra questo que Bakhtin levanta que a formao que acompanhamos no

    Bildungsroman surge da inadequao do personagem ao seu destino ou situao, o

    que seria tpico e caracterstico tambm do romance como um todo. Nesse sentido,

    as ideias do pensador russo esto muito prximas a de Georg Lukcs, a saber: se

    para Bakhtin, no romance o homem ou superior ao seu destino ou inferior sua

  • 32

    humanidade (BAKHTIN, 1998, p. 425), em Lukcs, vemos que a inadequao do

    heri pode ser de dois tipos: a alma mais estreita ou mais ampla que o mundo

    exterior que lhe dado como palco e substrato de seus atos (LUKCS, 2007, p.

    99).

    Para Lukcs, no entanto, essa inadequao se encerra como uma sntese

    entre interioridade e mundo ao final do Bildungsroman. O autor de A teoria do

    romance faz uma distino entre romance de desiluso e Bildungsroman para

    concluir que o ltimo seria uma sntese entre indivduo e mundo. Para ele, no

    romance de desiluso a incongruncia entre interioridade e mundo convencional

    tem de conduzir a uma negao completa desse ltimo (LUKCS, 2007, p. 145),

    enquanto que o Bildungsroman a reconciliao do indivduo problemtico, guiado

    pelo ideal vivenciado, com a realidade social concreta (LUKCS, 2007, p. 138). O

    exemplo mximo e paradigma dessa sntese o Wilhelm Meister, de Goethe. O

    tema desse romance, para Lukcs, seria a busca penosa e rdua do indivduo para

    integrar-se no mundo social. Ao trmino do Bildungsroman existe

    a adaptao sociedade na resignada aceitao de suas formas devida e o encerrar-se em si e guardar-se para si da interioridadeapenas realizvel na alma. O gesto desse advento exprime o estadopresente do mundo, mas no nem um protesto contra ele nem suaafirmao, somente uma experincia compreensiva umaexperincia que se esfora por ser justa com ambos o e vislumbra,na incapacidade da alma em atuar sobre o mundo, no s a falta deessncia deste, mas tambm a fraqueza intrnseca daquela(LUKCS, 2007, p. 143).

    A individualidade conciliada com o mundo social. O que Lukcs prope,

    portanto, uma explicao dialtica do conceito, em que tese e anttese apontam

    para uma sntese final. Ele contrape alma versus mundo para apresentar o

    Bildungsroman como uma experincia-sntese entre esses dois elementos. Contudo,

    essa sntese no acontece de forma amena. O enredo do Bildungsroman ou para

    usarmos uma palavra mais justa para o ensaio de Lukcs a forma a

    problematizao entre a subjetividade do heri e a sua socializao. Ou ainda, a

    contemplao diante do mundo e uma efetiva ao.

    Ao fim e ao cabo, a formao do heri passa por saber como agir e se

    adaptar ao mundo exterior. Para o filsofo hngaro, o autodesenvolvimento uma

  • 33

    tarefa que acontece atravs da socializao da personagem mais do que na

    contemplao interior.

    Franco Moretti (2000), assim como e partindo de Lukcs, v no

    Bildungsroman um vnculo inseparvel do processo social. O crtico italiano v esse

    gnero romanesco como forma simblica da modernidade. Preocupado

    especialmente com o que ele chama de Bildungsroman clssico, isto , o paradigma

    goethiano do Wilhelm Meister, chegando at romances do sculo XIX; Moretti traa

    dialeticamente aspectos do Bildungsroman para chegar a sua tese de que o gnero

    se configura como forma simblica do processo de modernizao.

    O crtico italiano nota que a juventude o perodo crucial e mais significativo

    para o Bildungsroman. Ela a primeira ddiva que Mefistfeles oferece a Fausto. E

    ela que vrios autores do sculo XIX, assim como Goethe no sculo XVIII,

    escolheram como parte da vida do heri que o leitor ir acompanhar. David

    Copperfield, Evgueni Oneguin, Julien Sorel, Rastignac, encontramo-nos todos como

    jovens e aprendizes nas linhas de algumas das principais narrativas do sculo XIX.

    Mas o que ser jovem? Qual a noo de juventude que apreendemos do

    Bildungsroman? Para Moretti (2000) o conceito moderno de juventude

    problematizado justamente com a formao do Bildungsroman. Se at ento ser

    jovem era o mesmo que no ser adulto ainda, as mudanas sociais e do mundo do

    trabalho tornam essa noo algo implausvel. O perodo de juventude e formao

    no mais visto como uma parte insignificante da vida que serve apenas para

    preparar para a vida adulta e um progresso em direo ao trabalho do pai (Moretti,

    2000, p. 04). A aprendizagem da juventude no mais a profissionalizao, mas

    uma explorao incerta do espao social, que o sculo XIX atravs das viagens e

    aventuras, do vagar e se perder, bohme e parvenir ir sublinhar inmeras

    vezes (Moretti, 2000, p. 04). O heri experimenta uma mobilidade desconhecida e

    necessria a sua socializao. No entanto, essa mobilidade acontece em meio a um

    dilema interior, uma autodeterminao que, a princpio, se ope s normas sociais.

    Em termos freudianos, Moretti aponta que o Bildungsroman uma tentativa de

    construir o Ego e fazer dele o centro inquestionvel de sua estrutura (2000, p. 11). E

    , talvez, na juventude o perodo mais frtil para se pensar a construo do Ego.

    Nesse perodo da vida, ao se deparar com amplo espectro humano e de normas

  • 34

    sociais, o indivduo caminha para alm do princpio de prazer e tambm desenvolve

    uma srie de mecanismos de defesa para lidar com o mundo e as normas sociais

    que o reprimem. Mantendo o dilogo que Moretti faz com Freud, poderamos dizer

    que o Bildungsromam a narrativa sobre a maturao do Ego, uma superao do

    princpio de prazer.

    A insistncia e a centralidade na juventude faz com que Moretti afirme que o

    Bildungsroman a forma por excelncia da modernidade. Tanto os romances do

    gnero como a modernidade buscam seu significado no futuro, mais do que no

    passado (2000, p. 10). Os discursos sobre a modernidade, no auge do chamado

    Bildungsroman clssico, ressoam a ideia de permanente revoluo. uma

    modernidade, como alude Moretti, cheia de grandes esperanas e iluses

    perdidas.11 Alm de conjugar os discursos sobre o seu tempo, os romances do

    gnero tambm retratam a socializao moderna e tematizam conceitos ideolgicos

    da modernidade.

    A ideia de normalidade, por exemplo, central para a ideia de formao e

    socializao do heri. O Bildungsroman clssico nos acostumou a ver a normalidade

    como algo interiorizado e no uma srie de regras cujo significado encontrado fora

    do ser. Ela produziu uma fenomenologia que faz a normalidade interessante e

    significativa como normalidade (MORETTI, 2000, p. 11) e no como um conceito

    negativo e de excluso. Diferente do sentido que assume no sculo XX, de Freud a

    Foucault, a normalidade no definida em oposio a patologia ou marginalidade. O

    trmino de um Bildungsroman aponta para uma maturidade e integrao social do

    heri, sintetizando o dilema do ideal de autodeterminao versus a demanda de

    socializao. Desse modo, esses dois opostos assumem trajetrias convergentes. A

    normalidade social no exclui a individualidade da personagem ao final do

    Bildungsroman, mas, sim, configura-se como uma harmoniosa soluo (MORETTI,

    2000. p. 15) para o dilema da interioridade versus socializao.

    Alm disso, e para completar sua tese, Moretti mostra atravs de alguns

    romances do sculo XVIII e XIX que o heri do Bildungsroman clssico se encontra

    na fronteira entre duas classes sociais. Seguindo a sugesto de Bakhtin de que o

    heri desses romances est no limite entre duas pocas, Moretti v o Bildungsroman

    11 Moretti faz uma brincadeira, de forma muito perspicaz, com os ttulos dos romances de Dickens eBalzac respectivamente.

  • 35

    situado em um ponto de transio entre a burguesia e a aristocracia:

    a histria do jovem comerciante Wilhelm Meister, adotado por umpequeno grupo de proprietrios esclarecidos, e da viagem deElizabeth Bennet de Cheapside para Pemberley, de Julien, deStendhal (dos provincianos ilustres para o Marqus de La Mole) eLucien, de Balzac (Lucien Chardon ou Lucien de Rubempr?), deJane Eyre (a governanta e a proprietria), e de uma forma um poucomais oblqua de vrios personagens de Dickens e Eliot. (MORETTI,2000, p. 08).

    Portanto, mais uma vez esse gnero romanesco acompanha o processo de

    modernidade, ao retratar as duas classes dominantes do perodo do apogeu do

    Bildunsgroman clssico: tem-se aqui um reforo a mais para a tese de Moretti sobre

    o Bildungsroman como forma simblica da modernidade. Porm, o problema dessa

    tese ver o romance como forma caracterstica apenas de seu contexto histrico.

    Ele se torna uma representao privilegiada dos fenmenos sociais em curso. Na

    nossa viso, essa dialtica entre discurso ficcional e contexto social se d por meio

    da apropriao de discursos prpria do romance. Mais do que simplesmente ser

    uma forma simblica da modernidade, e estar subjugado a representar a sociedade

    de seu tempo, a dico literria traz para dentro de sua narrativa interpretaes

    sobre determinados contextos histricos-sociais e as faz coexistir. Dessa forma, o

    romance pode revelar complexidades das dinmicas sociais em seu carter

    propriamente lingustico e reflexivo, como figurao e exerccio de uma renovao

    da linguagem e capaz de redescrever os debates que perpassam a condio do

    indivduo em uma sociedade complexa.

    Apesar de vrias tentativas de definio, no existe um conjunto de

    caractersticas que defina de forma acurada o Bildungsroman. Gnero altamente

    historicizado pela crtica, suas caractersticas oscilam e podem se modificar ao longo

    do tempo, por isso a permanncia do gnero para alm de seu contexto temporal e

    geograficamente especfico:

    O Bildungsroman mostra-se, portanto, paradoxalmente, como umconceito facilmente identificvel em razo dos pressupostosextremamente datados que permeiam sua gnese, e ao mesmotempo como um conceito de difcil apreenso, em virtude doprocesso de vinculao aos diferentes ncleos discursivos que dele

  • 36

    se apropriam (MAAS, 2000, p. 263).

    Sendo um gnero cuja classificao baseia-se tambm na sua apropriao de

    discursos sociais e polticos, fica claro que algumas mudanas iro acontecer em

    relao ao tratamento dado formao do protagonista. A resoluo do dilema da

    individualidade e da socializao, por exemplo, tende a tomar um rumo diverso ao

    que apontara o paradigma goethiano.

    medida que o desenvolvimento da sociedade burguesa foitornando cada vez mais precria a possibilidade de uma integraoharmnica entre indivduo e meio social (por conseguinte, a formaoe o desenvolvimento de sua personalidade sob as condieshistricas vigentes), os escritores foram tambm, gradativamente,assumindo um posicionamento cada vez mais crtico em relao aoclssico goethiano (MAZZARI, 1999, p.68).

    Portanto, devemos ter em mente a dimenso histrica do conceito para

    podermos analisar os pontos de contato e diferenas entre o Bildungsroman e o

    subgnero que chamaremos de romance de internato.

    2.3 O romance de internato

    Nesse panorama sobre o conceito de Bildungsroman, reunimos pensadores

    avessos discusso que realizamos anteriormente. Seja para Bakhtin, Lukcs ou

    Moretti, em maior ou menor grau a ideia de realismo e representao algo

    essencial para se pensar o Bildungsroman como reflexo de um processo histrico.

    Segundo nossa abordagem, porm, relacionaremos o gnero com outros discursos

    e no com o mundo em si. O quanto o Bildungsroman se aproxima ou reflete a

    prpria histria em uma relao de verossimilhana ou de realismo, para ns, tem a

    ver com o uso de diferentes discursos e redescries.

    Como nota Joo Adolfo Hansen em um artigo sobre o conto O imortal, de

    Machado de Assis: a verossimilhana uma relao de semelhana entre

    discursos. Ou seja: a verossimilhana decorre da relao do texto de fico no com

    a realidade emprica da sociedade do autor, mas da sua relao com outros

  • 37

    discursos da sua cultura (HANSEN, 2006, p. 71). Portanto, interessa-nos de que

    maneira os discursos histricos e polticos afetam o modo como o espao se

    apresenta nos romances que iremos analisar, mas no se os romances representam

    tal espao ou refletem a histria.

    Como dissemos anteriormente, possvel propor uma chave de leitura em

    que O Ateneu e Doidinho sejam pensados como Bildungsromane. Porm, queremos

    ressaltar algumas divergncias entre esses romances e o Bildungsroman clssico,

    para propormos uma nova nomenclatura que favorea a especificidade de romances

    centrados no espao do internato.

    Insistimos em que a diferena entre o Bildungsroman e o romance de

    internato sobretudo de escopo. Romances como O Ateneu e Doidinho cobrem

    apenas parte da formao que discutimos anteriormente. O Bildungsroman centra-

    se no processo de formao e socializao no somente a partir de um processo

    objetivo, como a formao escolar. No se trata da antiga ideia de formao prtica

    ou funcional voltada para uma profisso, como aparece no romance Jakob von

    Gunten, de Robert Walser. Outra diferena marcante o perodo de vida do heri

    que a narrativa acompanha. Se o romance de formao gira em torno do heri em

    sua juventude, no romance de internato acompanhamos a infncia ou a

    adolescncia do protagonista.

    Ao levantarmos a bibliografia sobre o Bildungsroman e os romances

    estudados aqui, pudemos localizar o termo romance de internato em duas

    ocasies. Ele empregado somente de passagem, sem uma explicao mais

    detida, por Antonio Carlos Villaa, em sua introduo a trigsima quinta edio do

    romance Doidinho:

    Doidinho ousa mais do que Menino de engenho como criao. umromance de internato. E nos lembra O Ateneu de Raul Pompia.Agripino Grieco contestou que Doidinho se filiasse a O Ateneu. Semdvida, no h uma filiao. Mas h pontos de contato (VILLAA,1995, p. xiv).

    A classificao que o crtico prope serve apenas para acentuar a temtica do

    romance, mais do que propor um gnero ou subgnero. Mais adiante no ensaio,

    Villaa ir chamar Doidinho de romance de formao como Los rios profundos, do

    peruano Jos Maria Arguedas, ou o Jovem Trless, de Robert Musil (VILLAA,

  • 38

    1995, p. xvii).

    Mas no estudo Adolescer em clausura, da pesquisadora portuguesa Carina

    Infante do Carmo, que o termo receber uma ateno maior e ser central para a

    discusso que a autora prope. O prprio subttulo do livro j traz a nomencaltura:

    olhares de Aquilino Ribeiro, Rgio e Verglio Ferreira sobre o romance de internato.

    Nele, Do Carmo (1999) analisa as figuraes romanescas do adolescente e como a

    interiorizao de princpios pedaggicos antiquados atuam na psicologia dos heris.

    Para tanto, ela parte de trs romances portugueses: Uma luz ao longe, de Aquilino

    Ribeiro; Manh submersa, de Verglio Ferreira; e Uma gota de sangue, de Jos

    Rgio. Como esses romances tm como espao predominante o internato, interessa

    a autora como a vivncia no internato afeta e modifica o desenvolvimento das

    figuras adolescentes nessas trs narrativas. Preocupada em analisar a psicologia

    dos protagonistas de cada romance, Do Carmo sugere a classificao romance de

    internato atravs dos fatores da aprendizagem e do espao social:

    Atravs da figura oprimida e inquieta do adolescente, o vectorsemntico da aprendizagem intersecciona o lugar da educao econfluem, naturalmente, os dois subgneros deles resultantes: oromance de aprendizado e o romance de internato (DO CARMO,1999, p. 45).

    Mais adiante, a pesquisadora sintetizar a definio de romance de internato

    como as narrativas que juntam a retrospeco adulta ao olhar e ao protagonismo de

    figuras adolescentes e masculinas (DO CARMO, 199, p. 53). O estudo de Carina

    Infante do Carmo centra-se predominantemente na anlise psicolgica dos

    narradores-personagens sem se deter, entretanto, na questo espacial, da qual

    deriva a nomenclatura que a pesquisadora prope. Ela no dissocia o romance de

    internato do Bildungsroman, para ela esse tipo de romance seria uma das formas da

    tradio do romance de formao. Apenas uma invariante formal daquele

    subgnero (DO CARMO, 1999, p. 48).

    Inversamente ao trabalho de Do Carmo, queremos ver o romance de internato

    como forma da impossibilidade de completar totalmente a Bildung do romance de

    formao como o vimos at aqui. J que o romance de internato a rigor no se

    enquadra nessa tradio, propomos uma leitura que privilegie suas diferenas mais

    do que o levantamento de um conjunto de excees ao Bildungsroman.

  • 39

    Ainda que a formao no romance de internato no se restrinja somente

    educao institucional, ela traduz apenas parte da Bildung do romance de formao.

    Se no Bildungsroman tnhamos uma formao que no era obtida somente pela

    educao, pois exigia uma independncia e liberdade que favorecessem o

    autodesenvolvimento, nos romances de internato a liberdade amputada e o cultivo

    da subjetividade se d de forma clandestina. O espao fechado da instituio serve

    como um aprendizado socializao, mas ao mesmo tempo funciona como entrave

    para a ideia de uma Bildung em sentido completo. Para Bosi, comentando sobre O

    Ateneu, a escola desvia o olhar que desejaria conhecer o mundo, talvez am-lo

    (BOSI, 2003, p. 61). Os limites da instituio diminuem o alcance da formao,

    desviam o olhar para a totalidade do mundo.

    O trnsito espacial, no romance de internato, menor. A explorao do

    espao social, diferentemente do Bildungsroman, restringe-se a apenas um local. O

    convvio com um variado matiz de pessoas dentro do internato amplia o sentido de

    formao para alm do sentido puramente pedaggico, entretanto, a diferena entre

    os dois tipos de romance existe e uma diferena de escopo.

    O trmino de um Bildungsroman aponta para uma maturidade e a sntese

    entre individualidade e socializao. J no romance de internato isso no acontece,

    os personagens desses romances nunca vo se sentir vontade no mundo e

    completar totalmente a socia