A conformação do espaço em O Ateneu e Doidinho
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THIAGO BITTENCOURT DE QUEIROZ
A CONFORMAO DO ESPAO EM O ATENEU E DOIDINHO
Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Estudos Literrios,no Curso de Ps-Graduao em Letras, Setor deCincias Humanas, Letras e Artes da UniversidadeFederal do Paran.
Orientador: Dr. Paulo Astor Soethe
CURITIBA, PARAN2014
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RESUMO
O presente trabalho apresenta uma anlise da conformao do espao literrio em
O Ateneu, de Raul Pompia e Doidinho, de Jos Lins do Rego. Para tanto, prope-
se a noo rortyana de redescrio como base terica para pensar em como esses
dois textos tratam do espao do internato. No processo de anlise, e a partir de uma
leitura comparativa entre os romances, busca-se elencar pontos em comum aos dois
romances, como a questo do trnsito espacial, a formao da individualidade, o
trauma da socializao e a crise da puberdade. Deste modo, pretende-se criar um
conjunto de caractersticas que contribuam para o estudo do subgnero romance de
internato.
Palavras-chave: conformao do espao literrio, O Ateneu, Doidinho, romance de
internato
ABSTRACT
This work presents an analysis of the conformation of literary space in O Ateneu, by
Raul Pompeia and Doidinho, by Jos Lins do Rego. We propose to use Rorty's
notion of redescription as a theoretical basis for thinking about how these two texts
deal with space of boarding school. In the analysis process, and from a comparative
reading of the novels, we seek to list common aspect from two novels, as the
question of space transit, the formation of individuality, the trauma of socialization
and the crisis of puberty. Thus, we intend to create a set of characteristics that
contribute to the study of subgenre boarding school novel.
Keywords: conformation of literary space, O Ateneu, Doidinho, boarding school novel
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SUMRIO
Introduo................................................................................................................ 04
1. Captulo I Consideraes tericas: O espao literrio como redescrio...............................................................................................................141.1 Duas concepes de linguagem ......................................................................13
1.2 A redescrio........................................................................................................15
1.3 A redescrio e o espao literrio.....................................................................18
2. Captulo II O romance de internato e a tradio do Bildungsroman.........................................................................................................272.1 Origem do conceito de Bildungsroman................................................................27
2.2 Interpretaes sobre o conceito...........................................................................30
2.3 O romance de internato........................................................................................36
3. Captulo III O trnsito espacial.................................................................423.1 Da casa para o mundo.....................................................................................42
3.2 A casa-me e a casa-liberdade............................................................................46
3.3 Os nomes e os lugares........................................................................................49
4. Uma sociedade em dimenses liliputianas.................................................524.1 O internato como instituio total.........................................................................53
4.2 A represso e o controle da idiorritmia.................................................................57
4.3 A pedagogia do autoritarismo...............................................................................58
4.4 Como viver junto...................................................................................................67
4.5 A formao da subjetividade................................................................................75
Concluso.................................................................................................................84
Referncias bibliogrficas.......................................................................................92
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4Introduo
H na literatura ocidental uma srie de obras que tematizam ou tm como
centro narrativo as experincias conflituosas do aluno, no raro o aluno interno, no
mbito do espao escolar.
Talvez o primeiro romance de xito sobre essa temtica seja Corao, de
Edmondo de Amicis (1846-1908). Publicado em 1886, o livro narra, em forma de
dirio, os episdios vividos por Enrico em sua trajetria escolar. Ainda que de
maneira didtica e com forte intuito moralista, Corao delineia, mesmo que de
forma amena, certos aspectos do embate do adolescente no meio fechado da
escola.
Anteriormente, o tema da escola j tinha ganhado destaque em diversos
romances de Charles Dickens (1812-1870), mas sem se configurar como centro de
suas narrativas.
No entanto, ser na literatura alem que o trauma cultural esse embate do
adolescente com o meio adverso da escola aparecer de forma mais contundente.
E isso a ponto de o narrador da novela O que vai ser desse rapaz?, de Heinrich Bll
(1917-1985), afirmar que sofrer na escola e escrever sobre isso faz parte obrigatria
das tarefas dos autores alemes.
Em um romance como Debaixo das rodas (1906), de Herman Hesse (1877-
1962), a experincia traumtica da vida no internato escolar culminar no suicdio do
protagonista Hans Giebenrath. No mesmo ano, Robert Musil (1880-1942), em O
jovem Trless (1906), ir eleger o internato como microcosmo de uma sociedade
cercada pelo dio e irracionalismo em suas relaes. Ainda como exemplos na
literatura alem, podemos citar Jakob von Gunten (1909), de Robert Walser (1878-
1956) e O pai de um assassino (1980), de Alfred Andersch (1914-1980).
Tambm temos livros como A cidade e os cachorros (1961), de Mario Vargas
Llosa (*1936), na literatura hispano-americana; Manh Submersa (1954), de Verglio
Ferreira (1916-1996), e Uma luz ao longe (1948), de Aquilino Ribeiro (1885-1963),
na literatura portuguesa.
Na tradio literria brasileira, podemos listar romances como: A falange
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5gloriosa (1917), de Godofredo Rangel (1864-1951); Balo Cativo (1973), parte do
segundo volume das memrias de Pedro Nava (1903-1984); Trs Marias (1939), de
Rachel de Queiroz (1910-2003); Informao ao crucificado (1961), de Carlos Heitor
Cony (*1926) e Em nome do desejo (1983), de Joo Silvrio Trevisan (*1944).
Nossa escolha recai sobre dois outros romances: O Ateneu (1888), de Raul
Pompia (1863-1895) e Doidinho (1933), de Jos Lins do Rego (1901-1957). Mais
do que o espao escolar, esses dois romances redescrevem um local bastante
especfico: o internato. O conflituoso espao escolar ao qual nos referimos ganha no
internato contornos ainda mais complexos e surge nos romances dos dois escritores
brasileiros como elemento de grande potencial significativo, tambm quanto aos
processos de composio literria, em momentos que prenunciam e sucedem a
consolidao de prticas culturais modernas no pas. De modo sintomtico, os
romances encontram-se inclusive vinculados um ao outro, em razo da meno
direta de O Ateneu, como obra lida pelo protagonista de Doidinho. Interessa-nos,
assim, analisar aspectos que, nos dois romances, atentem conformao literria
do espao e ao potencial de significao de ambos, em meio aos discursos sociais
poca de sua publicao e at hoje.
O Ateneu, escrito por Raul Pompia aos 25 anos de idade e que veio a lume
em 1888, serve-nos como paradigma entre os romances sobre o internato.
Publicado primeiramente em partes, no formato de folhetim, na Gazeta de Notcias
e, depois mas ainda no mesmo ano , lanado em livro, o romance insere-se em
perodo fronteirio na poltica do Brasil: o fim do Imprio, em momento
imediatamente anterior ao advento da Repblica. Esse dado aparece no prprio
texto de O Ateneu. Logo no comeo do romance, o filho de Aristarco, o diretor do
internato, se recusa a fazer parte da velha ordem poltica do Brasil Imperial:
Seu filho Jorge, na distribuio dos prmios, recusara-se a beijar amo da princesa, como faziam todos ao receber a medalha. Erarepublicano o pirralho! Tinha j aos quinze anos convicesossificadas na espinha inflexvel do carter. (POMPEIA, 1981, p. 43).
A pequena passagem do romance mostra a preocupao poltica de Raul
Pompia, ele prprio um defensor da Repblica.1 Lido como um livro de memrias,1 As ideias republicanas de Raul Pompeia presentes, sobretudo, em seus ensaios e crnicas sodiscutidas em ALONSO, 2009.
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6O Ateneu foi apontado por diversos crticos como romance autobiogrfico, em que
Srgio seria a projeo literria do prprio autor.
Por exemplo, o famoso texto de Mario de Andrade (1893-1945) em Aspectos
da literatura brasileira, j em seu incio, nos coloca diante de uma tentativa de
entender a obra pela biografia do autor.
Raul Pompia foi um revoltado e isso lhe ditou a vida penosa e aobra irregular. Mas no meio desta eleva-se um marco do romancebrasileiro e legtima obra-prima, O Ateneu. No possvel negar, asprovas so fortes, que neste livro de fico o escritor vazou a suavingana contra o seu internamento no colgio Ablio (ANDRADE,1975, p. 179).
O autor de Macunama v em O Ateneu um reflexo da vida de Raul Pompia,
uma vingana concretizada na fico. A psicologia do autor, inferida atravs de sua
biografia, serve como modelo de anlise para compor o sentido da obra. Algumas
pginas a seguir, Mario de Andrade seguir com essa relao em seu ensaio crtico
para afirmar que Raul Pompia tinha uma insensibilidade diante da adolescncia,
que provinha da inexistncia, para ele, do sentido de amizade. O retrato cruel das
relaes pessoais em O Ateneu , segundo essa abordagem, o resultado da vida
solitria de seu autor. O inusitado da abordagem de Mario de Andrade que ele v
uma coerncia entre vida e obra do autor, mas no v nexo entre as obras desse
mesmo autor: O Ateneu [em relao obra de Raul Pompia] outro mundo
expressivo, outro estilo (ANDRADE, 1975, p. 181).
De certa forma, essa maneira de ler o romance ainda ecoa em boa parte da
fortuna crtica sobre O Ateneu, bem como a preocupao com a classificao do
romance dentro de uma escola literria. Apontado por alguns crticos como exemplo
de um romance realista e por outros como naturalista, no h um consenso dentro
da historiografia literria para enquadr-lo em uma escola. A verdade que a difcil
classificao dentro da periodizao literria consiste na originalidade do romance
para poca em que foi publicado. Nas palavras de Silviano Santiago (2000, p. 96):
O Ateneu conserva uma modernidade surpreendente, pois a nica obra do sculo
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7XIX, dentre as que conhecemos, que traz em si uma discusso da prpria obra, sua
justificao.
Para nosso trabalho, interessa pouco a discusso sobre a que escola literria
poderia pertencer o romance. No entanto, o que h de moderno em O Ateneu e a
discusso tica e esttica que traz em seu bojo ser de suma importncia dentro do
nosso estudo.
J Doidinho, publicado em 1933 , de certa maneira, um romance atpico
dentro da obra de Jos Lins do Rego, pois o nico cujo espao central o mundo
urbano. Ainda que no se trate da cidade em si, o espao do internato e da escola
associado ao mundo urbano no incio do sculo XX e at mais de sua metade no
Brasil. Contudo, a dialtica entre rural e urbano presente na obra de Jos Lins do
Rego ganha um contorno maior em Doidinho. Situado em um momento de
modernizao do Brasil, o romance evidencia a distncia entre os universos urbano
e rural. Mais conhecido por romances que, situados principalmente no espao rural,
exploram o aspecto social e humano em meio a decadncia dos engenhos de
acar como pano de fundo, Jos Lins do Rego foi um dos grandes autores, tanto
em qualidade como em quantidade das obras publicadas, do chamado romance de
30. Todavia, seu romance mais conhecido (enquadrado pela afinidade temtica
como um romance de 30) Fogo morto, que foi publicado em 1943.
Doidinho o segundo volume do chamado ciclo da cana-de-acar, composto
por cinco romances: Menino de engenho, Doidinho, Bangue, Usina e Moleque
Ricardo. Os trs primeiros esto interligados pela personagem principal: Carlos de
Melo. Visto em conjunto, os trs romances poderiam ser lidos como um
Bildungsroman. Proporemos aqui uma leitura de perto apenas de Doidinho, mas
sem esquecer do dilogo que os outros dois romances estabelecem com ele. Iremos
nos deter em parte da Bildung e em parte do universo ficcional ligado a Carlos de
Melo, ou seja, apenas na formao do heri dentro do espao fechado do internato.
A escolha dos romances O Ateneu (1888) e Doidinho (1933) se d
principalmente pela questo espacial: em ambos predomina a conformao do
espao do internato. No entanto, outras semelhanas importantes nos levam a
aproximar essas duas narrativas.
O primeiro motivo, como dissemos, a aluso explcita ao romance O Ateneu
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8nas ltimas linhas de Menino de engenho, as quais prenunciam a sada de Carlos de
Melo para o internato, que ocorrer em Doidinho. H uma imbricao de discursos,um livro dentro do outro, que explicita um dbito com a tradio anterior, mas
tambm um rompimento. O Carlos de Melo de Doidinho passa pela mesma
experincia de Srgio, mas so personagens bastante opostas:
Eu no sabia nada. Levava para o colgio um corpo sacudido pelaspaixes de homem feito e uma alma mais velha do que o meu corpo.Aquele Srgio, de Raul Pompia, entrava no internato de cabelosgrandes e com uma alma de anjo cheirando a virgindade. Eu no:era sabendo de tudo, era adiantado nos anos, que ia atravessar asportas do meu colgio. Menino perdido, menino de engenho (DOREGO, 2010, p. 191).
O Ateneu o precursor dos romances sobre internato na literatura brasileira,
o que o transforma em espcie de paradigma para esse subgnero. Isso facilita
nossa abordagem comparativa e histrico-literria, medida que nos possibilita a
partir do romance de Raul Pompeia estabelecer e elencar aspectos comuns, mas
que podem aparecer de diferentes maneiras em Doidinho ou em outros romances de
internato.
Um outro motivo, para nos limitarmos a apenas dois nesta introduo, a
forma semelhante como se iniciam os dois romances, com os protagonistas prestes
a entrar nos portes do internato, acompanhados por um familiar. bem verdade
que O Ateneu inicia a partir de uma rememorao. a memria adulta de uma
experincia infantil vista por dentro (SCHWARZ, 1965, p. 16). Abrem-se dois
planos: o do Srgio adulto e o Srgio menino.
Embora narrador e personagem central sejam a mesma pessoa(Srgio adulto e menino), a distncia temporal a separ-los faz queseja objetivada a meninice pela maturidade. Ainda que o romanceapresente uma carga forte de subjetivismo, e mesmo havendocontraponto entre a atualidade do narrador e o passado da narrao,a estrutura dos fatos no rompida em momento algum (SCHWARZ,1996, p. 14).
Diferente de Doidinho, em que o tempo da narrao dos acontecimentos
coincide com o tempo da matria narrada, em O Ateneu h a opo por um narrador
adulto que rememora e pode comentar o seu passado, o que no impede que os
tempos vividos no internato pelo Srgio menino sejam narrados de forma linear.
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9Como salienta Schwarz, em O Ateneu a estrutura dos fatos no rompida, pois o
narrador apenas suspende a ao para comentar, em retrospecto, alguns poucos
momentos da narrativa. O subjetivismo do narrador no se expande para alm do
que narrado, pois trata-se da sua prpria experincia. Essa diferena temporal em
relao matria narrada, mais do que problema para a abordagem comparativa,
nos d um contraponto para pensarmos como Doidinho se aproxima de seu
paradigma narrativo, mas tambm se afasta dele em alguns momentos revelando-
se no como uma releitura de O Ateneu, mas um discurso novo e esteticamente
vlido sobre o internato e a psicologia dos internos.
Passando para questes de ordem terica e tendo em vista que nosso
trabalho estuda a conformao do espao, duas questes devem ser colocadas de
antemo: primeiro, com que tipo de espao nos confrontamos teoricamente e,
segundo, como ele apresentado nos textos com os quais estamos trabalhando.
A primeira pergunta nos leva a indagar sobre a categoria espao na narrativa,
enquanto a segunda nos remete a noo de mimesis ou representao.
Evitamos partir de um conceito de representao do espao para nossa
anlise, pois o termo representao sem uma discusso prvia pode nos levar
a pensar o espao literrio como espelho da realidade ou imitao dela. No entanto,
buscamos um caminho diferente, queremos assinalar que o espao no dado ou
descoberto pelas personagens, mas sim criado pela linguagem, ou seja, o espao se
constri e apresentado no texto a partir de um ponto de vista discursivo. Assim, a
percepo e manifestao lingustica do espao depende de sujeitos que o
percebam e da insero desses mesmos sujeitos em um discurso, entendido aqui
como dinmica de participao lingustica em uma comunidade de comunicao.
Nosso acesso a qualquer realidade dado por meio da linguagem, e o mesmo
acontece na literatura: nosso acesso categoria espacial nesses romances
textual, isto , h uma linguagem que redescreve experincias, ou que mesmo cria
experincias no mbito da linguagem, a partir de redescries.
Para isso ser de suma importncia para nossa fundamentao terica o
pensamento de Richard Rorty (1931-2007). Nosso contato com suas ideias no se
resumir a escolher uma filosofia e aplic-la anlise de textos literrios, mas uma
tentativa de superar a ideia de representao para pensarmos o espao como
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redescrio. Ademais, trazer para o dilogo algum como Rorty buscar uma
sustentao filosfica que tem relao bastante estreita com a literatura.
A trajetria de Richard Rorty comea dentro dos estudos da filosofia analtica,
mas, logo cedo, muda para uma crtica aos filsofos analticos. J em seu primeiro
livro A filosofia e o espelho da natureza, de 1979, Rorty tenta dissolver a pretenso
da filosofia analtica de produzir resultados no controversos a respeito das
questes de preocupao ltima (RORTY, 1991, p. 75). Seu livro prope um
abandono da imagem da filosofia tradicional em que a mente como um grande
espelho que possui diversas representaes. Para o pensador norte-americano, a
metfora da mente como espelho cria a noo de que o conhecimento uma
representao exata sobre um objeto. Essa noo cartesiana de conhecimento e
que a filosofia analtica tradicional sustenta engendra a ideia de fundao absoluta
contra a qual ele faz duras crticas.
Em resposta a essa filosofia de forte apelo lgica, Rorty prope um apelo
narrativa. Rorty, com base em uma leitura da histria da filosofia, principalmente do
pragmatismo norte-americano, prope a ideia de redescrio como alternativa ao
fundacionalismo. Essa ideia, que detalharemos no primeiro captulo da dissertao,
assume que toda a filosofia uma disputa entre diferentes vocabulrios. Uma
disputa entre um vocabulrio que se tornou problemtico ou j no serve em
determinado contexto e um novo vocabulrio que promete maneiras novas de ver as
coisas. Por isso, a obra de Rorty est em dilogo constante com a histria da
filosofia e seus temas para propor releituras da tradio e novas redescries.
Mas o dilogo de Rorty no fica estrito somente filosofia, h tambm uma
grande preocupao com a literatura em sua obra.2 Vale notar que Rorty foi, de 1997
at o fim de sua vida, professor emrito de literatura comparada na Universidade de
Standford. Em muitos de seus livros e ensaios, aps a publicao de A filosofia e o
espelho da natureza, o filsofo pragmatista vai gradualmente se voltando para a
importncia da literatura relacionada com as questes de prtica social.
Em Consequncias do pragmatismo, livro de ensaios publicado em 1982,
2 Para um timo estudo sobre Rorty e a literatura ver LOPES, 2013.
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possvel encontrar ensaios sobe hermenutica literria, como O idealismo do sculo
XIX e o textualismo do sculo XX e H algum problema com o discurso ficcional?,
ensaio que delineia a ideia rortyana de cultura literria. Ideia essa desenvolvida com
mais especificidade em O declnio da verdade redentora e a ascenso da cultura
literria, publicado originalmente em 2000.
Para Rorty, a literatura tem se mostrado um substituto para a verdade
redentora, algo que seja a realidade por trs das aparncias, a nica descrio
verdadeira do que est acontecendo, o segredo final (RORTY, 2006, p. 77). A busca
por essa verdade ltima seria uma necessidade que a filosofia e a religio tentam
satisfazer, mas no a assim chamada cultura literria. Com cultura literria, Rorty
no quer dizer intelectuais ou pessoas que leem narrativas ou poemas. Para ele, a
palavra literatura abarca hoje praticamente qualquer tipo de livro que se possa
imaginar que tenha relevncia moral o que se possa imaginar que altere o sentido
do que possvel e importante (RORTY, 2004, p. 147). Nesse sentido, muitas obras
escritas no mbito da religio e da filosofia tambm podem ser consideradas
produtos de uma cultura literria. E a nica redeno que a literatura oferece por
meio da feitura do conhecimento de to grande variedade de seres humanos quanto
possvel (RORTY, 2006, p. 78). A principal funo da literatura em uma cultura
literria a de propor uma redeno que j no mais uma relao no cognitiva e
no humana, nem uma relao cognitiva com proposies (RORTY, 2006, p. 81),
como o caso na religio e na filosofia tradicional, mas sim criar e estabelecer
relaes mediadas por artefatos humanos.
Portanto, a escolha da filosofia de Richard Rorty como parte importante da
fundamentao terica de nosso trabalho no fazer uma filosofia de segunda mo,
mas conjugar literatura filosofia sem que se subordine um ao outro. J que isso se
d no interior do prprio pensamento de Rorty.
Quanto organizao e estrutura da dissertao, optamos por dividir o
trabalho em quatro captulos.
No primeiro captulo tratamos das consideraes tericas para anlise dos
textos. Discutimos a noo de representao como um tipo de concepo de
linguagem da qual nos afastamos, para ento propor a ideia de redescrio. Para
ns a linguagem no um modo de representao, mas um conjunto de prticas
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sociais. A ideia rortyana de redescrio ser aliada ao espao literrio para que
cheguemos noo de espao literrio como redescrio.
No segundo captulo propomos a nomenclatura romance de internato para o
tipo de romances que estamos estudando aqui. Fazemos um contraponto com a
tradio do Bildungsroman para concluirmos que tanto O Ateneu como Doidinho
possuem caractersticas comuns ao gnero, mas no se configuram stricto sensu
como Bildungsromane.
J no terceiro captulo, passamos efetivamente para anlise dos romances. O
captulo trata do trnsito espacial nos dois romances. Destacamos que exitem dois
espaos predominantes em O Ateneu e Doidinho, a saber: a casa e o internato. So
dois polos opostos e essa oposio possibilita figurar nas personagens o que
chamamos de trauma da socializao. A casa aparece como meio protetor e de
liberdade, enquanto o internato se configura como um espao de opresso e
clausura.
No ltimo e mais extenso captulo, tratamos das relaes sociais que ocorrem
no espao do internato. Visto como um microcosmo social, o colgio interno se torna
palco de uma srie de aspectos da vida em comunidade tal como na sociedade
maior da qual faz parte. Nesse captulo, nos valemos da ideia de instituio total,
desenvolvida por Erving Goffman e da noo de idiorritmia proposta por Roland
Barthes, para expor a problemtica do saber conviver. Apresentamos tambm uma
srie de pontos que contribuem para socializao dos alunos dentro do internato.
Por fim, nossa abordagem comparativa se d por meio de idas e voltas que
exemplificam como a conformao do espao se assemelha nesses dois romances.
Em vez de separarmos a anlise em dois momentos dedicados cada um a um
romance, preferimos exemplificar cada tpico da anlise como exemplos, ora de um,
ora de outro romance. Com isso, mais do que ressaltar diferenas, que obviamente
existem, o trabalho procura demonstrar como so grandes as semelhanas no que
diz respeito a conformao espacial em O Ateneu e Doidinho. Deste modo, podemos
elencar uma srie de pontos comuns ao chamado romance de internato, que
podem servir de apoio para estudos de outros romances desse subgnero.
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Captulo I
Consideraes tericas: O espao literrio como redescrio
A palavra o prprio homem. Somos feitos de palavras. Elas so anossa nica realidade ou, pelo menos, o nico testemunho de nossarealidade. No h pensamento sem linguagem, nem tampouco objetode conhecimento...
(Octavio Paz, in: O arco e a lira)
s vezes uso o processo de esvaziar as palavras. Sabe como ?Pego uma palavra fundamental. Palavras fundamentais, curioso...Pego numa palavra fundamental: Amor, Doena, Medo, Morte,Metamorfose. Digo-a baixo vinte vezes. J nada significa.
(Herberto Helder in: Os passos em Volta)
1.1 Duas concepes de linguagem
Encarar a questo do espao literrio antes de tudo enfrentar o problema da
linguagem. A partir de uma dada concepo de linguagem que podemos assumir
uma postura diante do fato literrio e de como lidar com a categoria espacial na
literatura.
De maneira esquemtica, a filosofia da linguagem no sculo XX e, em linhas
gerais, at os dias de hoje, pode ser dividida, como assinala Robert Brandom
(1979), em dois tipos. Uma tendncia representacionista, em que a principal
caracterstica da linguagem representar as coisas como so (BRANDOM, 1979,
p.173) e uma tendncia cuja concepo de linguagem dada como um conjunto de
prticas sociais.
A primeira tendncia representada por pensadores como Gottlob Frege
(1848-1925) ou Bertrand Russell (1872-1970), que esto preocupados em saber
como a linguagem representa verdadeiramente um fato ou a realidade. A segunda
tendncia, representada, por exemplo, pelo Wittgenstein das Investigaes
filosficas (1953) e o pragmatismo norte-americano no do importncia busca
pela verdade, pois apaga a noo de representaes mais verdadeiras. A
linguagem para esta ltima tendncia um conjunto de ferramentas, cuja eficcia
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deve-se ao seu uso.
Outras posies, como por exemplo o da filosofia transcendental-pragmtica,
de Karl-Otto Apel (1999), desenvolvida concomitantemente s consideraes de
Random, nos anos 1970, e a partir dali, parecem se ligar, mais, ou menos, a um dos
dois extremos e no a algo radicalmente diverso. A ideia de linguagem como
medium da comunidade argumentativa , como entendemos, uma viso pragmatista
do sentido e, portanto, tem a ver com a segunda tendncia, pois apoia-se nos usos
que os falantes fazem da linguagem dentro de uma comunidade lingustica.3
Tambm nos Estudos Literrios h reflexos da diviso desses dois grupos. E,
ainda que de modo tcito, a tendncia representacionista parece ser predominante.
Nessa abordagem, a linguagem funciona como espelho do real e sempre se
compara o texto literrio em relao a como ele consegue representar determinadas
prticas sociais ou um processo histrico. O espao tratado como representao
sem uma discusso maior sobre o termo. Essa tradio se baseia numa srie de
dualismos como realidade versus aparncia e linguagem versus fato; o que nos
coloca numa distino entre o intrnseco do texto e a realidade extrnseca, sendo
esta ltima inferida como mais importante porque verdadeira. O principal problema
que o extrnseco se torna as coisas como so. Mas como nos diz o poema de
Wallace Stevens as coisas como so se modificam sobre o violo. As coisas
como so no tm uma natureza intrnseca, pois so mediadas pela linguagem e s
com ela podemos dizer algo sobre o eu ou o mundo. O extrnseco ou a realidade
no nos dada diretamente, pois, no dizer de Richard Rorty, que, como dissemos,
ter papel central nas consideraes do presente trabalho, nunca seremos capazes
de sair da linguagem, nunca seremos capazes de apreender a realidade no
mediada por uma descrio lingustica (RORTY, 2000, p. 48). Poderamos dizer
mais: as coisas como so no existem em si mesmas, e dessa forma optamos por
abandonar a distino entre extrnseco e intrnseco em favor da noo rortyana de
redescrio, pois o fato, para ns, tambm sempre uma entidade lingustica.
Segundo a viso antiessencialista que assumimos aqui, o modo como uma
3 Para uma sntese sobre os conceitos de medium e comunidade argumentativa em Apel, a partir dos
Estudos Literrios, ver SOETHE; PEREZ, 2007. Ver tambm AMARAL, 1994 e OLIVEIRA, 1996.
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coisa em si prpria no existe, sob qualquer descrio, para alm de qualquer uso
que o ser humano lhe queira dar (RORTY, 2007, p. 19-20). Ou seja, no queremos
comparar o quanto o discurso literrio imita ou representa a realidade, pois tal
realidade inexiste sem uma linguagem.
Chamamos essa viso de antiessencialista, porque evita encarar a realidade
como portadora de uma essncia a ser descoberta. Essa essncia tambm o que
o senso comum, e mesmo determinadas correntes filosficas, chamariam de
verdade. Mas do ponto de vista que assumimos a verdade criada e no
encontrada.4 Esse modo de encarar as coisas no se confunde com um idealismo
imaterial, no entanto. No dizemos que as coisas no existem ou que no h
impresses sensveis, como dor, medo ou prazer; mas que o mundo ou essas
impresses sensveis no contam como crena. Elas so estmulos que s adquirem
expresso e justificao dentro da linguagem.
Embora a formao de uma crena possa ser devida a algo pr ouno proposicional, sua expresso (que permite que ela sejacomunicada a outros ou a si mesmo num self futuro) e a justificaodessa crena expressada acontecem completamente dentro dalinguagem (DE WAAL, 2007, p. 209).
A realidade fsica e todo e qualquer estmulo so formulados no interior de
uma certa descrio. A verdade sobre as coisas como so uma questo de
aceitabilidade dentro de prticas sociais. E, assim sendo, o mundo ou quaisquer
presses causais no so fundaes neutras que possuem uma essncia, pois so
descritas de diferentes maneiras em diferentes pocas dentro de diferentes
comunidades de falantes e para diferentes propsitos.
1.2 A redescrio
A ideia de resdescrio tem a ver com a crtica que Richard Rorty faz teoria
do conhecimento e filosofia fundacionalista. Ideia que perpassa os escritos do
4 Para um apanhado geral sobre teorias da verdade na filosofia, ver KIRKHAM, 2003.
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pensador norte-americano desde o livro A filosofia e o espelho da natureza, a
redescrio funciona como substituto busca da filosofia por argumentos
apropriados ou verdade:
A filosofia interessante raras vezes o exame de prs e contras deuma tese. Usualmente, ela , implcita ou explicitamente, umadisputa entre um vocabulrio arraigado, que se transformou numincmodo, e um novo vocabulrio, parcialmente formado, que traz avaga promessa de coisas grandiosas (RORTY, 2007, p. 34).
Para Rorty, a histria da filosofia uma sucesso de vocabulrios e
redescries em competio5. Assim, h um progresso ao se apresentar novos
vocabulrios e novas descries. O rigor cientfico e a lgica so substitudos pelo
apelo narrativa, uma atividade sem exigncias e critrios rgidos. A redescrio
no tem como objetivo representar um objeto, pois esse objeto no possui uma
essncia que precede a linguagem:
O mundo no fala. S ns o fazemos. O mundo, depois de oprogramarmos com uma linguagem, pode fazer-nos sustentarconvices, mas no pode propor uma linguagem para falarmos.Somente outros seres humanos so capazes de faz-lo. (RORTY,2007, p.30).
Portanto, a redescrio se ope ao dualismo platnico da aparncia versus
realidade. Em vez de descobrir a essncia das coisas, podemos decidir entre
redescries do mundo mais, ou menos, teis.
Ainda para ilustrar a questo, podemos recorrer ao exemplo que Rorty nos
oferece no livro Contingncia, ironia e solidariedade (2007), quando comenta a ideia
de redescrio. Para o filsofo norte-americano, mesmo uma revoluo cientfica
no decidida somente com base em observaes e experimentos, mas aceita e
divulgada a partir de uma mudana cultural que faz com que tomemos por certo um
novo modo de falar sobre o mundo. Para ele, a Europa decidiu menos com base em
observaes telescpicas que a Terra no era o centro do universo, mas aos poucos
as pessoas abandonaram uma redescrio ptolomaica em favor da copernicana.
5 Rorty usa o termo vocabulary, que abrange tanto um discurso como a escolha de determinadaspalavras e metforas por um falante ou uma comunidade lingustica.
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No entanto, podemos objetar que, desse modo, ns decidimos qual a rbita
da Terra. Na verdade, o que decidimos qual vocabulrio iremos aceitar. Com esse
exemplo, abandona-se a ideia de que para aceitarmos uma redescrio preciso
que ela seja totalmente regulada por algo externo linguagem. A aceitabilidade de
uma redescrio, por mais estranha que ela possa ser, regida graas a
dinmicas internas da linguagem por comunidades interpretativas que
compartilham semelhantes interesses e propsitos.
Isso remonta ideia de aceitabilidade de uma interpretao, de Stanley Fish
(1982). Em sua coletnea de ensaios intitulada There is a text in this class?, Fish
apresenta o conceito de comunidades interpretativas. Essas comunidades so
criadas atravs de um sistema (que pode ser institucional ou no) ou contextos
criados. E elas so responsveis pela aceitabilidade de uma interpretao. Podemos
pensar esses sistemas como comunidades que compartilham interesses e
propsitos semelhantes como, por exemplo, um grupo de estudiosos de orientao
marxista ou feminista. At mesmo um grupo de adeptos da quiromancia ou
nefelomancia, que compartilhariam a crena de que os traos da mo ou as nuvens
no cu no esto dispostos acidentalmente. J em relao aos contextos
compartilhados, eles podem ser grandes ou restritos. Fish (1980) d o exemplo da
interpretao que seus alunos tinham da expresso Is there a text in this class?. Aos
que frequentavam os cursos de Fish, text no significava apenas text ou text
book, mas sim uma entidade instvel e que no possui contedos predeterminados.
Portanto, devido ao contexto tnhamos pelo menos dois significados para a
expresso:
[...] nunca ser possvel atribuir-lhes uma classificao imutvel edefinitiva, uma classificao que seja independente da sua utilizaoou no-utilizao em situaes concretas (porque somente em taissituaes que esses enunciados sero ou no utilizados) (FISH,1992, p. 195).
O contexto pragmtico faz que o texto seja algo instvel e no tenha uma
verdade dentro de si. Para Fish, a estabilidade de um texto algo que no pode ser
sempre justificado e o mesmo podemos dizer e estender para as coisas como so,
j que elas so sempre linguisticamente mediadas quando partilhadas nas
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dinmicas sociais.
Na perspectiva que adotamos, devemos dizer que as comunidades
interpretativas no orientam o significado, mas sim a aceitabilidade de uma
redescrio, a ponto de ela se tornar um discurso normal ou uma verdade. Essa
aceitabilidade, assim como o objeto, no estvel, j que os interesses e propsitos
das comunidades interpretativas so constantemente renegociados.
Em suma, definimos redescrio como a prtica de colocar as ideias em
novos contextos e apresentar novos vocabulrios para se lidar com o mundo. A
redescrio no nos leva natureza das coisas ou a uma nica redescrio final.
Ao contrrio, ela abre espao para uma pluralidade de formulaes em diferentes
vocabulrios, um repertrio de redescries alternativas, que nos levam a ver
determinados campos de investigao de diversas formas.
1.3 A redescrio e o espao literrio
Partindo da ideia rortyana de redescrio, queremos aliar seu conceito aos
estudos literrios e a uma abordagem do espao literrio. Primeiro preciso apontar
algumas linhas de foras no estudo da categoria espacial dentro dos estudos
literrios.
Luis Alberto Brando (2013) faz um apanhado dos principais modos de
abordagem do espao na literatura, em especial nos estudos literrios do sculo XX.
Brando conclui que existem quatro tipos de abordagens dominantes, segundo o
aspecto que priorizam: a representao do espao; o espao como forma de
estruturao textual; o espao como focalizao; e o espao da linguagem. Ainda
que as quatro abordagens sejam importantes para nosso estudo, nossa ateno se
voltar para a representao do espao e o espao como focalizao. Se
pensarmos nos estudos literrios brasileiros, esses dois tipos so os predominantes
em relao abordagem do espao na literatura. Para ficarmos com apenas trs
nomes importantes da crtica literria brasileira (sugeridos por Brando em seu livro),
podemos pensar de maneira bastante resumida como a categoria espacial
abordada por Antonio Candido, Osman Lins e Luis Costa Lima.
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Ainda que no tenha se dedicado sistematicamente ao estudo do espao na
literatura, em alguns textos de Antonio Candido a categoria espacial de suma
importncia. So os casos, por exemplo, dos ensaios: Degradao do espao (1993)
e Entre campo e cidade (2006). Nos dois exemplos temos a predominncia da
abordagem da representao do espao. No primeiro ensaio, Candido busca
comprender a funo do espao no romance L'assomoir, de Zola. O foco principal da
abordagem uma possvel dialtica entre espao ficcional e espao real: O espao
do livro definido por esse sistema topolgico, articulado tanto no plano da
sonoridade quanto no plano do significado, que transpe e organiza espaos reais
da cidade, correlacionando-os vida do pobre (CANDIDO, 1993, p. 60).
interessante notar que apesar da abordagem representacionista da linguagem,
Candido no esquece em nenhum momento da dimenso esttica do texto e
tambm trabalha com as funes que a sonoridade das palavras e as metforas
espaciais tm no romance.
J no segundo ensaio, o crtico aponta para a dialtica entre campo e cidade
em alguns romances de Ea de Queirs. Nesse momento, Candido procura
demonstrar como Ea consegue representar dentro dos seus romances dinmicas
da realidade social do espao urbano e rural. Essa escolha metodolgica bastante
coerente para a perspectiva da crtica sociolgica to difundida por Antonio Candido.
Passando para outro caso, O livro Lima Barreto e o espao romanesco, de
Osman Lins incorpora a tendncia do espao como focalizao, criando uma
tipologia para diferenciar espao de ambientao. A abordagem de Osman Lins
nos moldes do estruturalismo propem uma tipologia para a categoria da
ambientao. Na viso do autor de Avalovara, a ambientao, diferentemente do
espao, requer um certo conhecimento da arte narrativa (LINS, 1976, p. 71). A
ambientao seria a fuso dos espaos conhecidos pela nossa experincia mais o
reconhecimento de tcnicas prprias da narrativa. Partindo de exemplos da literatura
brasileira, Osman Lins prope trs tipos de ambientao: franca, reflexa e oblqua.
Esses trs tipos tomam como base o ponto de vista narrativo ou da personagem,
como o espao apresentado pelo narrador ou personagens cria determinado tipo de
ambientao.
A contribuio de Luiz Costa Lima a de repensar o conceito de mimesis.
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Seus estudos do uma nova dimenso ideia de representao do espao. Para
Lima (2012) a questo da representao no uma correspondncia entre algo
produzido e seu suposto referente, mas a de apreender o cdigo cultural que motiva
o que se considera semelhante ao que se representa e, a partir da, verificar como a
obra se impe diante do que a motiva (LIMA, 2012, p. 99).
Desta forma, coloca-se em evidncia a obra literria e sua linguagem no em
relao ao tipo de representao que faz de um objeto e sua aparncia fsica e
material, mas em como uma semelhana culturalmente partilhada pode motivar
determinada representao.
Os trs exemplos nos colocam aspectos cruciais para o conceito que
queremos apresentar: o do espao como redescrio. Para o nosso trabalho,
imprescindvel pensar no espao como focalizao. Quem, no texto, faz as
observaes sobre o espao que nos apresentado pelas narrativas e de onde faz
essas observaes so questes que nos ajudam a perceber como a figurao do
espao se constri. Em nenhum momento da anlise dos romances que iremos
trabalhar nos distanciaremos sobre a questo do foco narrativo para afigurao do
espao. J para questo da representao do espao, preferimos no seguir o
caminho apontado pelo texto de Antonio Candido, pois nossa concepo de
linguagem se ope ideia de representao. Assim, optamos por rediscutir essa
ideia luz da noo de redescrio para, por fim, ver nos textos a que nos
dedicaremos no uma dialtica entre espao ficcional e espao real, mas uma rede
textual na qual diferentes discursos competem e coabitam.
Com redescrio queremos assinalar que o espao no dado de antemo
ou descoberto pelas personagens, mas sim criado pela linguagem, ou seja, o
espao se constri e apresentado no texto a partir de um ponto de vista lingustico
e, portanto, depende do sujeito que o percebe, de seu vocabulrio e das prticas de
linguagem desse sujeito. Assim, entendemos esse sujeito como participante do jogo
de linguagem que abarca uma prtica social. Ou seja, se existe algum que percebe
e redescreve um espao, ele est inserido em uma comunidade lingustica e leva em
conta os usos e discursos sobre esse espao.
Essa escolha metodolgica evita que pensemos o espao literrio como
espelho da realidade ou imitao dela e faz com que coloquemos os sujeitos e a
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linguagem em primeiro plano. Nosso acesso a qualquer realidade dado por meio
da linguagem. Na literatura em particular, esse processo radicalizado e o acesso
realidade, a realidade mesma, exclusivamente lingustico. Assim, o acesso
categoria espacial nos romances exclusivamente textual, isto , h to-somente
uma linguagem que redescreve a experincia perceptiva. Portanto a dico literria
revela de modo especial essa dimenso e dinmica da constituio do espao
humano. Note-se que a ideia de experincia perceptiva no deve negar o ato criador
dentro da fico. O que se nega aqui que a literatura crie outros mundos, como
pode afirmar o senso comum. Pois nesse gesto de encenao e evidenciao dos
processos lingusticos, ela mesma acontece e se constitui sempre inserida dentro de
nossos jogos de linguagem.
Outro problema que, desta forma, buscamos evitar o de privilegiar um
discurso ou uma das linguagem com que descrevemos o mundo ou a ns mesmos.
Supor que existem discursos que esto mais ajustados ao mundo ou em um contato
mais prximo a ele voltar a buscar uma essncia. achar que o nosso ou
qualquer vocabulrio pode abarcar uma totalidade que represente as coisas como
elas realmente so, pois s podemos comparar linguagens ou metforas umas com
as outras, e no com algo alm da linguagem, chamado fato (RORTY, 2007, p. 52.).
Nunca estamos fora da linguagem, ou para falar com um clebre textualista: no h
nada fora do texto.6 Isso no quer dizer que voltamos a imanncia da obra, mas,
sim que fora do texto h mais textos e textos, e no um fato sem sua interpretao.
No existe um critrio de escolha objetivo que nos faa dizer que uma linguagem
realmente representa melhor ou corretamente um dado objeto. Se isso de fato
ocorresse, deveramos estender a noo de representar o mundo a todos os
domnios da cultura. Logo, se um discurso tem a faculdade de representar o mundo,
ento todos os discursos tm essa faculdade (ENGEL & RORTY, 2008, p. 57).
Ento, cairamos em uma aporia e no poderamos optar por qual discurso nos
mais til para determinado fim.
Desta forma, o tratamento que propomos em relao ao espao literrio no
nos faz inferir que o discurso histrico ou da sociologia seja uma representao
melhor do mundo (porque se baseia em fatos). Para ns, os fatos so tambm
6 A clebre frase Il n'y a pas de hors texte, de Jacques Derrida, presente no livro Gramatologia.
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interpretaes e os discursos so instrumentos para lidarmos com o mundo visando
determinados propsitos e fins. Portanto, o discurso literrio no tenta imitar ou
funcionar como espelho do real, mas tambm parte e se utiliza talvez com maior
liberdade e conscincia das redescries do mundo que temos ao nosso dispor,
como as da histria, sociologia, psicologia, fsica etc.). O que est em jogo que o
espao que o texto literrio redescreve no precisa ser comparado em termos de
representao, pois ele no emula ou imita um fato verdadeiro, pois s as
redescries do mundo podem ser verdadeiras ou falsas. O mundo em si sem o
auxlio das atividades descritivas dos seres humanos no pode s-lo. (RORTY,
2007, p. 28).
Isso nos leva a inferir que nunca poderemos afirmar indubitavelmente que um
discurso realmente verdadeiro, j que o mundo indiferente a nossas redescries
e no nos oferece um critrio para isso. Somente podemos aceitar determinada
redescrio em acordo com nossos propsitos e interesses. Com isso, no negamos
a existncia do mundo ou dos objetos, mas refutamos a noo de um possvel
carter de imutabilidade e de essncia das coisas. O que se impe nas nossas
redescries sobre o mundo so semelhanas culturalmente partilhadas a partir da
linguagem mais do que seu aspecto fsico e material.
... sem sentido perguntar se a realidade independente do nossosmodos de falar sobre ela. Dado que h condies para se falar demontanhas, como certamente h, uma das verdades bvias sobremontanhas que elas estavam aqui antes de falarmos delas. Sevoc no acredita nisto, provavelmente voc no sabe como jogar osjogos de linguagens habituais que empregam a palavra montanha.Porm, a utilidade desses jogos de linguagem no tem nada a fazercom a questo de se a realidade em si mesma, parte do modo que conveniente para os seres humanos descrev-la, possuimontanhas. (RORTY, apud GHIRALDELLI Jr, 1998, p.85-7)
No dizemos que o mundo ou os estmulos sensoriais inexistam, mas que
no temos como falar de fatos sem interpret-los, ou seja, no fazemos a distino
entre linguagem e fato.
Em resumo, buscamos entender o espao literrio no como representao,
pois como observa Luiz Costa Lima (2012, p. 101): em seu emprego usual,
representao supe a preexistncia de um real demarcado e anterior ao prprio ato
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de convert-lo em uma figurao. No nosso entendimento, o fato ou lugar do objeto
representado inexiste como essncia imutvel e fora das redescries que fazemos
dele. Iremos comparar o espao dos romances O Ateneu e Doidinho em relao a
outras redescries ou outros textos, sejam eles procedentes da sociologia,
psicologia ou quaisquer outros. A conformao do espao nesses romances tem
relao com outros discursos sobre o internato, mas no representa um fato ou um
objeto. Pois, mesmo quando vemos uma realidade como uma rvore, a
possibilidade dessa percepo dependente de um esquema conceitual global, em
uma linguagem em vigor (PUTNAM, s/d, p. 103).
Logo, a redescrio nos textos que iremos trabalhar uma cadeia intertextual
e composta a partir de muitos discursos, mas no algo para alm da linguagem e
sem que haja representaes mais acuradas ou mais verdadeiras que outras.
Tentamos dissolver o problema das representaes mais verdadeiras quando
afirmamos que nenhuma linguagem realmente representa o objeto e que o discurso
literrio se vale de outros discursos em sua composio. Dessa forma, no dizemos
que romances como O Ateneu ou Doidinho representam uma instituio chamada
internato. Mas que redescrevem esse espao a partir de novas metforas e sob o
uso crtico, e portanto transformador ou ratificador, das antigas metforas.
Ao evocarmos a noo de novas e antigas metforas, estamos pensando em
como certas metforas entram nos diferentes jogos de linguagem. Os discursos da
cincia ou da histria, por exemplo, se valem tambm de metforas em suas
redescries. O tomo de Demcrito, a fsica newtoniana ou a psicanlise e suas
formulaes so metforas. A diferena que elas entraram no jogo de linguagem e,
com seu vasto uso, tornaram-se metforas mortas (no sentido em que Nietzsche
[1974] emprega). Em oposio, a metfora nova ou metfora viva pela prpria
evidenciao do carter metafrico da formulao lingustica inusitada, na dinmica
discursiva em que ela se apresenta uma caracterstica importante do discurso
literrio (mas no determina sua especificidade).
[...] no existe um vocabulrio constante para descrever os valores aserem definidos ou os objetos a serem imitados, ou as emoes aserem expressas, ou seja, o que for, em ensaios ou poemas ouromances (RORTY, s.d., p. 210).
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No texto literrio, a metfora no se torna morta, ou como queria Adorno, a
linguagem no reificada. Ou ainda, no sentido de sua interpretao, a metfora
viva , segundo Donald Davidson (1992) de quem Rorty empresta a noo
entendida usualmente no como uma assero, mas como um valor de falsidade, ou
seja, no vlida como justificativa para um argumento. Dessa forma, dificilmente
torna-se paradigma, pois no aceita como verdade por uma comunidade
lingustica. Todavia, isso no torna o discurso literrio algo estvel e especfico, pois
qualquer metfora viva pode se tornar morta, assim como o discurso literrio no se
compe somente de metforas novas: pois entendemos a metfora no sentido
davidsoniano, segundo o qual seu uso depende inteiramente dos significados
comuns daquelas palavras e, por conseguinte, dos significados comuns das
sentenas que eles abrangem (DAVIDSON, 1992, p. 32).
Diferente de teorias da metfora, como a de BLACK (1992) que busca pensar
em um sentido metafrico (um significado novo ou ampliado em relao ao
significado denotativo que ela possui), Davidson no v outro sentido para metfora
que no seja o literal. A teoria de Davidson nos permite ver a metfora como o
modelo de acontecimentos no familiares dentro do mundo natural. Segundo Rorty,
que segue a teoria da metfora de Davidson, ela mais/antes uma causa de
mudanas nas crenas e desejos do que uma representao de mundos
desconhecidos, que so mais simblicos do que naturais (RORTY, 1987, 266).7 A
metfora pertence ao domnio do uso, portanto ela no cria novos mundos, mas
opera dentro das possibilidades dos nossos jogos de linguagem.
Como observamos anteriormente, outros discursos compem o texto literrio
e ele no uma linguagem totalmente metafrica.
As metforas so usos pouco conhecidos de velhas palavras, mastais usos s so possveis tendo por fundo outras velhas palavras,usadas de velhas maneiras conhecidas. Uma linguagem que fossetoda metfora seria uma linguagem sem serventia, e, portanto, noseria uma linguagem, mas apenas balbucio (RORTY, 2007, p. 85).
Aliadas a outras formulaes contidas no texto literrio, as metforas
7 Nesse mesmo ensaio, intitulado Unfamiliar noises: Hesse and Davidson on metaphor, Rorty revelasua dvida para com a teoria da linguagem e da metfora de Davidson.
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adquirem tambm um contedo cognitivo: as metforas frequentemente nos fazem
notar aspectos das coisas que no havamos notado antes, sem dvida, trazem
nossa ateno analogias e similaridades surpreendentes (DAVIDSON, 1992, p. 49).
No entanto, podemos dizer que a linguagem literria dificilmente se torna um
paradigma e transforma-se em instrumento cotidiano. Apesar de no ser um meio de
representao, contudo, ela continua a ser, potencialmente, meio de comunicao.
Em outros termos, a linguagem literria no um discurso normal (nos termos da
cincia normal, de Thomas Kuhn [2003]), nem um discurso explicativo8. As
metforas do discurso literrio, na maioria das vezes, no formam um discurso
normal, com o qual a cultura est de acordo nos padres e normas relevantes. E
tambm no um discurso explicativo como muitas vezes a cincia natural ou a
filosofia , em que h um desacordo irresolvel e necessrio que se estabelea
uma ligao espao-paradigma para sua aceitabilidade.
Se buscarmos um exemplo em nossos textos, podemos ver como a metfora
no texto literrio no se apresenta como discurso explicativo. Raul Pompia, em O
Ateneu, opera com diversas imagens expressionistas para evocar o espao do
internato e descrever as personagens que circulam nesse universo. Vejamos como
descrito um momento em que Srgio, com a ajuda de Sanchez, se pe a estudar a
gramtica:
A seu turno a gramtica abria-se como um cofre de confeitos pelaPscoa. Cetim cor de cu e acar. Eu escolhia a bel-prazer osadjetivos, como amndoas adocicadas pelas circunstnciasadverbiais da mais agradvel variedade; os amveis substantivos!(POMPEIA, 1981, p. 134).
De maneira bastante subjetiva, Srgio, entusiasmado pela compreenso que
comea a ter da lio estudada, aproxima as nomenclaturas da gramtica a uma
caixa de doces. Em vez de discorrer sobre a metalinguagem que classifica as
categorias da gramtica, Srgio usa metforas que, mais que explicar algum
aspecto do seu conhecimento da matria estudada, apontam para sua relao
ntima com o estudo e tambm com a linguagem. Assim como se escolhe um doce
8 Thomas Kuhn ope a cincia normal cincia extraordinria. A primeira um paradigmacompartilhado por muitas pessoas, enquanto o segundo o perodo de criao de possveis novosparadigmas.
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pela sua aparncia ou possvel sabor, o heri seleciona as palavras que mais lhe
apetecem e as saboreia em forma de metforas. No h um carter explicativo ou
passvel de parafraseamento das imagens criadas por Srgio, no entanto, elas nos
chamam a ateno para aspectos que seriam ignorados numa linguagem composta
de formulaes argumentativas.
Porm, aqui, mais do que tentar romper o cipoal sobre a questo da
linguagem literria e suas possveis especificidades, queremos afirmar, com o jogo
de metforas, que nenhum vocabulrio ou discurso representa corretamente o
mundo ou mais verdadeiro, j que, em sntese, as linguagens so feitas e no
descobertas e a verdade uma propriedade de entidades lingusticas, de frases
(RORTY, 2007, p. 31).
Diante disso, nossa anlise recai sempre em textos e mais textos. Mesmo
quando evocamos o internato como instituio marcadamente social ou sobre a
experincia traumtica da vida como interno de um colgio, estamos nos referindo a
discursos sobre aspectos da realidade social, mas sem nunca sair da linguagem:
nossa nica ferramenta para falar sobre o mundo
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Captulo IIO romance de internato e a tradio do Bildungsroman
Pensar os romances O Ateneu e Doidinho como Bildungromane propor
uma chave de leitura para essas duas obras, mais do que caracteriz-las. inseri-
las em uma comunidade de comunicao em que assumem o status de
redescries de questes relativas ao universo formativo e educacional no
processo de modernizao no Brasil e de redescries de questes relativas aos
debates internos quanto ao gnero literrio a que podem ser associadas. Quanto a
este ltimo aspecto, precisamos justificar e analisar semelhanas e afinidades ao
gnero tipicamente alemo9. O que pretendemos aqui no ler nessa direo os
dois romances, mas, ao estud-los comparativamente, estabelecer uma nova
classificao. Para facilitar nosso trabalho comparativo, propomos a nomenclatura
romance de internato para exemplos como O Ateneu e Doidinho.
Ainda que no sejam Bildungsromane stricto sensu, os dois romances
estudados guardam uma srie de pontos de contato com esse gnero. Portanto,
para conceituarmos o romance de internato, agruparemos semelhanas entre O
Ateneu e Doidinho e seus dbitos e desvios em relao tradio do
Bildungsroman.
Se por um lado, tomaremos como base a categoria espacial predominante
para chegarmos nomenclatura romance de internato, esse mesmo critrio no se
aplica de modo suficiente ao Bildunsroman. Gnero altamente historicizado,
preciso remontar a origem do termo para podermos entender melhor sua
classificao.
2.1 Origem do conceito de Bildungsroman
Em 1810, o fillogo Karl Morgenstern criou o termo Bildunsroman para
9 Massaud Moses, no Dicionrio de termos literrios, coloca O Ateneu como exemplo deBildungsroman dentro da tradio brasileira. Porm, ele assinala que o gnero uma modalidade deromance tipicamente alem (2004, p. 56).
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classificar um tipo de romance que representa a formao do protagonista em seu
incio e trajetria at alcanar um determinado grau de perfectibilidade
(MORGENSTERN, Apud MAAS, 2000, p. 19). O romance cobriria, ento, uma faixa
de tempo que acompanha o desenvolvimento e aperfeioamento das qualidades de
uma formao ideal. A narrativa exemplar e paradigma do gnero e que continuar
sendo nas intepretaes posteriores sobre o conceito seria Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe.
Essa ideia de formao como busca da perfectibilidade ser endossada,
ampliada e difundida pelo filsofo Wihelm Dilthey (1833-1911), que ver na forma
literria do romance de Goethe a caracterizao do esprito nacional alemo. Para o
filsofo, o Bildungsroman ser um gnero tipicamente alemo, visto a
impossibilidade de separar seu surgimento ao contexto social em que ele emerge.
O termo Bildungsroman nasce da juno de duas palavras: Bildung (que
poderamos traduzir como formao) e Roman (romance). Se quanto ao segundo
termo no h controvrsias no que tange a sua traduo, o segundo carece de
explicaes. A Bildung refere-se a um conceito abrangente de formao. No se
trata apenas da educao ou uma formao adquirida de fora, mas tambm a
autoformao. Ou seja, a Bildung no se restringe s instituies de ensino, pois
essa formao inclui alm do abandono do lar e a atuao de instituies escolares,
a experincia no mundo do trabalho e o contato com a vida pblica e poltica. No
entanto, a experincia profissional no implica em uma educao voltada para uma
futura atividade. O protagonista do romance de Goethe, Wilhelm Meister, se
pergunta: De que me serve fabricar um bom ferro, se o meu prprio interior est
cheio de escrias? E de que me serve tambm colocar em ordem uma propriedade
rural, se comigo mesmo me desavim? (GOETHE, 2006, p. 284).
Alm disso, o termo nos remete ao mundo burgus de seu tempo e vem
atrelado aos fenmenos sociais e culturais do Iluminismo alemo do sculo XVIII:
[...] o Bildungsroman desvenda-se como instituio social, como ummecanismo de legitimao de uma burguesia incipiente, que quis verrefletidos seus ideais em um veculo literrio (o romance) que apenascomeara a se firmar. assim que, na Alemanha, o Bildungsromanmostrou-se a contrapartida esttica de acontecimentos que naFrana, se davam no plano poltico. (MAAS, 2000, p. 17).
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Portanto, a simples traduo do termo como romance de formao pode
ocultar seu aspecto histrico, j que ele traduz a formao do jovem de famlia
burguesa, seu desejo de aperfeioamento como indivduo, mas tambm como
classe, coincidem historicamente com a cidadania do gnero romance (MAAS,
2000, p. 13). O gnero, por nascer em meio s transformaes sociais alems, um
esforo para a consolidao e afirmao do carter nacional da literatura alem.
Tambm vale lembrar que assim como a Bildung parte da ideologia burguesa, o
romance tambm visto como um gnero burgus, ou, para falarmos com Lukcs,
a pica burguesa. pica de um mundo no mais regido por deuses, mas com o
homem comum ao centro.
Desde de sua origem e nas interpretaes posteriores sobre o termo,
veremos que o processo social e o Bildungsroman esto imbricados e difcil
separ-los. Ou, mais adequado a nossa viso, o discurso literrio no acontece sem
se referir a discursos histrico-sociais e polticos de sua poca. Ele parte essencial
da formao do novo discurso que surge a partir do prprio romance.
Um dos elementos desse novo discurso ser a formao do protagonista sob
a dialtica entre o aprendizado privado burgus e o aprendizado pblico, em um
meio social que abriga processos de modernizao. As bases do Bildungsroman
assentam-se
primeiramente no conceito teleolgico do desdobramento gradativodas potencialidades do indivduo, no sentido de uma entelquia, e,em segundo lugar, na teoria da socializao como interaonecessria entre indivduo e sociedade, eu e o mundo (MAZZARI,1999, p. 69).
Em suma, a criao do termo e suas primeiras interpretaes iro gravitar em
torno da morfologia da palavra, com especial ateno palavra Bildung e seus
desdobramentos no contexto alemo. Com isso, a nfase na formao do heri
dada no como uma sequncia de aventuras e descobertas arbitrrias, mas sob a
conscincia da formao por parte do heri. Isso aparece explicitamente no romance
paradigma do Bildungroman, quando Wilhelm Meister anuncia:
Instruir-me a mim mesmo, tal como sou, tem sido obscuramente meudesejo e minha inteno, desde a infncia. Ainda conservo essa
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disposio, com a diferena de que agora vislumbro com maisclareza os meios que me permitiro realiz-la (GOETHE, 2006, p.284).
Tendo isso em vista, temos que pensar sobre os desdobramentos do termo na
teoria da literatura. Partiremos de Bakhtin e do jovem Lukcs, at chegarmos aos
estudos mais recentes de Franco Moretti.
2.2 Interpretaes sobre o conceito
Em sntese, o Bildungsroman v na juventude, ou verses dela, a parte mais
significativa da vida. Esse tipo de narrativa cobre o perodo de aprendizagem e
socializao de um heri problemtico. Esse heri visto como um aprendiz da
sociedade em devir (DO CARMO, 1998, p. 29) e ele mesmo tambm um sujeito em
devir. No entanto, no possvel uma definio unvoca do termo, j que suas
caractersticas acompanham as transformaes histricas, ou seja, o gnero
Bildungsroman modifica-se no tempo.
Portanto, faremos aqui a reviso de algumas interpretaes sobre o conceito
que nos serviro para chegarmos a uma definio do romance de internato com
base em referncias ao Bildungsroman.
Como aponta Franco Moretti (2000), o Bildungsroman ocupa um espao
central dentro dos estudos sobre o romance. Da Teoria do Romance, de Georg
Lukcs (1885-1971), passando por Mikhail Bakhtin (1895 -1975) e Erich Auerbach
(1892-1957), o gnero recebeu grande interesse nos primeiros estudos de flego
sobre o romance at a metade do sculo XX.
Bakhtin, no ensaio O romance de educao e sua importncia na histria do
realismo (1992), elenca quatro modalidades do gnero romanesco que para ele
seriam a gnese do chamado romance de educao. Para o pensador russo,
romance de educao traduz os termos Erziehungsroman ou o prprio
Bildungsroman.10 Aqui ainda no h uma ruputra entre a Bildung e Erziehung, como
10 O termo original, traduzido como romance de educao roman vospitanya. A palavravospitanie, usada geralmente para indicar um tipo de educao que no se restringe apenas ainstituies de ensino. Est presente em expresses como shkola integral'nogo vospitanya (escolade educao integral), mas tambm vospitanie kharaktera (formao do carter).
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veremos na interpretao de Moretti. Os quatro tipos, a saber: romance de viagens,
romance de provao, romance biogrfico e romance didtico-pedaggico, diferem
do romance de educao por apresentarem seus protagonistas como algo pronto e
imutvel. Enquanto nesses romances o espao, o destino e outros elementos da
vida eram variveis, o heri permanecia como uma grandeza constante.
Para Bakhtin, o romance de educao se forma no sculo XVIII e o seu
principal representante, assim como em Dilthey, Os anos de aprendizado de
Wilhelm Meister. Nele, o heri uma unidade dinmica e sua mudana ganha
significado de enredo. O que importa mostrar a personagem inacabada e que
muda seu carter e concepo de mundo. H uma assimilao do tempo histrico
na imagem do homem em formao no romance. Se no romance didtico-
pedaggico, como o Emlio (1762), de Jean-Jacques Rousseau, o mundo histrico
era mais estvel, com mudanas perifricas que no afetavam os fundamentos da
obra romanesca, o romance de formao situa-se no limiar de uma poca para
outra. O tempo histrico est numa relao indissolvel com a formao da
personagem:
Em romances como Garagntua e Pantagruel, Simplicissimus,Wilhelm Meister, a formao do homem apresenta-se de mododiferente. J no um assunto particular. O homem se formaconcomitantemente com o mundo, reflete em si mesmo a formaohistrica do mundo. O homem j no se situa no interior de umapoca mas na fronteira de duas pocas, no ponto de transio deuma poca a outra (BAKHTIN, 2011, P. 222).
Os protagonistas desses romances so os representantes do novo homem e
de um novo tempo. Ainda que os exemplos de Bakhtin ultrapassem os limites
cronolgicos do sculo XVIII e incluam romances anteriores, o Bildungsroman
acompanha o processo de modernizao da Europa e o apogeu do sculo das
luzes.
Outra questo que Bakhtin levanta que a formao que acompanhamos no
Bildungsroman surge da inadequao do personagem ao seu destino ou situao, o
que seria tpico e caracterstico tambm do romance como um todo. Nesse sentido,
as ideias do pensador russo esto muito prximas a de Georg Lukcs, a saber: se
para Bakhtin, no romance o homem ou superior ao seu destino ou inferior sua
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humanidade (BAKHTIN, 1998, p. 425), em Lukcs, vemos que a inadequao do
heri pode ser de dois tipos: a alma mais estreita ou mais ampla que o mundo
exterior que lhe dado como palco e substrato de seus atos (LUKCS, 2007, p.
99).
Para Lukcs, no entanto, essa inadequao se encerra como uma sntese
entre interioridade e mundo ao final do Bildungsroman. O autor de A teoria do
romance faz uma distino entre romance de desiluso e Bildungsroman para
concluir que o ltimo seria uma sntese entre indivduo e mundo. Para ele, no
romance de desiluso a incongruncia entre interioridade e mundo convencional
tem de conduzir a uma negao completa desse ltimo (LUKCS, 2007, p. 145),
enquanto que o Bildungsroman a reconciliao do indivduo problemtico, guiado
pelo ideal vivenciado, com a realidade social concreta (LUKCS, 2007, p. 138). O
exemplo mximo e paradigma dessa sntese o Wilhelm Meister, de Goethe. O
tema desse romance, para Lukcs, seria a busca penosa e rdua do indivduo para
integrar-se no mundo social. Ao trmino do Bildungsroman existe
a adaptao sociedade na resignada aceitao de suas formas devida e o encerrar-se em si e guardar-se para si da interioridadeapenas realizvel na alma. O gesto desse advento exprime o estadopresente do mundo, mas no nem um protesto contra ele nem suaafirmao, somente uma experincia compreensiva umaexperincia que se esfora por ser justa com ambos o e vislumbra,na incapacidade da alma em atuar sobre o mundo, no s a falta deessncia deste, mas tambm a fraqueza intrnseca daquela(LUKCS, 2007, p. 143).
A individualidade conciliada com o mundo social. O que Lukcs prope,
portanto, uma explicao dialtica do conceito, em que tese e anttese apontam
para uma sntese final. Ele contrape alma versus mundo para apresentar o
Bildungsroman como uma experincia-sntese entre esses dois elementos. Contudo,
essa sntese no acontece de forma amena. O enredo do Bildungsroman ou para
usarmos uma palavra mais justa para o ensaio de Lukcs a forma a
problematizao entre a subjetividade do heri e a sua socializao. Ou ainda, a
contemplao diante do mundo e uma efetiva ao.
Ao fim e ao cabo, a formao do heri passa por saber como agir e se
adaptar ao mundo exterior. Para o filsofo hngaro, o autodesenvolvimento uma
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tarefa que acontece atravs da socializao da personagem mais do que na
contemplao interior.
Franco Moretti (2000), assim como e partindo de Lukcs, v no
Bildungsroman um vnculo inseparvel do processo social. O crtico italiano v esse
gnero romanesco como forma simblica da modernidade. Preocupado
especialmente com o que ele chama de Bildungsroman clssico, isto , o paradigma
goethiano do Wilhelm Meister, chegando at romances do sculo XIX; Moretti traa
dialeticamente aspectos do Bildungsroman para chegar a sua tese de que o gnero
se configura como forma simblica do processo de modernizao.
O crtico italiano nota que a juventude o perodo crucial e mais significativo
para o Bildungsroman. Ela a primeira ddiva que Mefistfeles oferece a Fausto. E
ela que vrios autores do sculo XIX, assim como Goethe no sculo XVIII,
escolheram como parte da vida do heri que o leitor ir acompanhar. David
Copperfield, Evgueni Oneguin, Julien Sorel, Rastignac, encontramo-nos todos como
jovens e aprendizes nas linhas de algumas das principais narrativas do sculo XIX.
Mas o que ser jovem? Qual a noo de juventude que apreendemos do
Bildungsroman? Para Moretti (2000) o conceito moderno de juventude
problematizado justamente com a formao do Bildungsroman. Se at ento ser
jovem era o mesmo que no ser adulto ainda, as mudanas sociais e do mundo do
trabalho tornam essa noo algo implausvel. O perodo de juventude e formao
no mais visto como uma parte insignificante da vida que serve apenas para
preparar para a vida adulta e um progresso em direo ao trabalho do pai (Moretti,
2000, p. 04). A aprendizagem da juventude no mais a profissionalizao, mas
uma explorao incerta do espao social, que o sculo XIX atravs das viagens e
aventuras, do vagar e se perder, bohme e parvenir ir sublinhar inmeras
vezes (Moretti, 2000, p. 04). O heri experimenta uma mobilidade desconhecida e
necessria a sua socializao. No entanto, essa mobilidade acontece em meio a um
dilema interior, uma autodeterminao que, a princpio, se ope s normas sociais.
Em termos freudianos, Moretti aponta que o Bildungsroman uma tentativa de
construir o Ego e fazer dele o centro inquestionvel de sua estrutura (2000, p. 11). E
, talvez, na juventude o perodo mais frtil para se pensar a construo do Ego.
Nesse perodo da vida, ao se deparar com amplo espectro humano e de normas
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sociais, o indivduo caminha para alm do princpio de prazer e tambm desenvolve
uma srie de mecanismos de defesa para lidar com o mundo e as normas sociais
que o reprimem. Mantendo o dilogo que Moretti faz com Freud, poderamos dizer
que o Bildungsromam a narrativa sobre a maturao do Ego, uma superao do
princpio de prazer.
A insistncia e a centralidade na juventude faz com que Moretti afirme que o
Bildungsroman a forma por excelncia da modernidade. Tanto os romances do
gnero como a modernidade buscam seu significado no futuro, mais do que no
passado (2000, p. 10). Os discursos sobre a modernidade, no auge do chamado
Bildungsroman clssico, ressoam a ideia de permanente revoluo. uma
modernidade, como alude Moretti, cheia de grandes esperanas e iluses
perdidas.11 Alm de conjugar os discursos sobre o seu tempo, os romances do
gnero tambm retratam a socializao moderna e tematizam conceitos ideolgicos
da modernidade.
A ideia de normalidade, por exemplo, central para a ideia de formao e
socializao do heri. O Bildungsroman clssico nos acostumou a ver a normalidade
como algo interiorizado e no uma srie de regras cujo significado encontrado fora
do ser. Ela produziu uma fenomenologia que faz a normalidade interessante e
significativa como normalidade (MORETTI, 2000, p. 11) e no como um conceito
negativo e de excluso. Diferente do sentido que assume no sculo XX, de Freud a
Foucault, a normalidade no definida em oposio a patologia ou marginalidade. O
trmino de um Bildungsroman aponta para uma maturidade e integrao social do
heri, sintetizando o dilema do ideal de autodeterminao versus a demanda de
socializao. Desse modo, esses dois opostos assumem trajetrias convergentes. A
normalidade social no exclui a individualidade da personagem ao final do
Bildungsroman, mas, sim, configura-se como uma harmoniosa soluo (MORETTI,
2000. p. 15) para o dilema da interioridade versus socializao.
Alm disso, e para completar sua tese, Moretti mostra atravs de alguns
romances do sculo XVIII e XIX que o heri do Bildungsroman clssico se encontra
na fronteira entre duas classes sociais. Seguindo a sugesto de Bakhtin de que o
heri desses romances est no limite entre duas pocas, Moretti v o Bildungsroman
11 Moretti faz uma brincadeira, de forma muito perspicaz, com os ttulos dos romances de Dickens eBalzac respectivamente.
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situado em um ponto de transio entre a burguesia e a aristocracia:
a histria do jovem comerciante Wilhelm Meister, adotado por umpequeno grupo de proprietrios esclarecidos, e da viagem deElizabeth Bennet de Cheapside para Pemberley, de Julien, deStendhal (dos provincianos ilustres para o Marqus de La Mole) eLucien, de Balzac (Lucien Chardon ou Lucien de Rubempr?), deJane Eyre (a governanta e a proprietria), e de uma forma um poucomais oblqua de vrios personagens de Dickens e Eliot. (MORETTI,2000, p. 08).
Portanto, mais uma vez esse gnero romanesco acompanha o processo de
modernidade, ao retratar as duas classes dominantes do perodo do apogeu do
Bildunsgroman clssico: tem-se aqui um reforo a mais para a tese de Moretti sobre
o Bildungsroman como forma simblica da modernidade. Porm, o problema dessa
tese ver o romance como forma caracterstica apenas de seu contexto histrico.
Ele se torna uma representao privilegiada dos fenmenos sociais em curso. Na
nossa viso, essa dialtica entre discurso ficcional e contexto social se d por meio
da apropriao de discursos prpria do romance. Mais do que simplesmente ser
uma forma simblica da modernidade, e estar subjugado a representar a sociedade
de seu tempo, a dico literria traz para dentro de sua narrativa interpretaes
sobre determinados contextos histricos-sociais e as faz coexistir. Dessa forma, o
romance pode revelar complexidades das dinmicas sociais em seu carter
propriamente lingustico e reflexivo, como figurao e exerccio de uma renovao
da linguagem e capaz de redescrever os debates que perpassam a condio do
indivduo em uma sociedade complexa.
Apesar de vrias tentativas de definio, no existe um conjunto de
caractersticas que defina de forma acurada o Bildungsroman. Gnero altamente
historicizado pela crtica, suas caractersticas oscilam e podem se modificar ao longo
do tempo, por isso a permanncia do gnero para alm de seu contexto temporal e
geograficamente especfico:
O Bildungsroman mostra-se, portanto, paradoxalmente, como umconceito facilmente identificvel em razo dos pressupostosextremamente datados que permeiam sua gnese, e ao mesmotempo como um conceito de difcil apreenso, em virtude doprocesso de vinculao aos diferentes ncleos discursivos que dele
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se apropriam (MAAS, 2000, p. 263).
Sendo um gnero cuja classificao baseia-se tambm na sua apropriao de
discursos sociais e polticos, fica claro que algumas mudanas iro acontecer em
relao ao tratamento dado formao do protagonista. A resoluo do dilema da
individualidade e da socializao, por exemplo, tende a tomar um rumo diverso ao
que apontara o paradigma goethiano.
medida que o desenvolvimento da sociedade burguesa foitornando cada vez mais precria a possibilidade de uma integraoharmnica entre indivduo e meio social (por conseguinte, a formaoe o desenvolvimento de sua personalidade sob as condieshistricas vigentes), os escritores foram tambm, gradativamente,assumindo um posicionamento cada vez mais crtico em relao aoclssico goethiano (MAZZARI, 1999, p.68).
Portanto, devemos ter em mente a dimenso histrica do conceito para
podermos analisar os pontos de contato e diferenas entre o Bildungsroman e o
subgnero que chamaremos de romance de internato.
2.3 O romance de internato
Nesse panorama sobre o conceito de Bildungsroman, reunimos pensadores
avessos discusso que realizamos anteriormente. Seja para Bakhtin, Lukcs ou
Moretti, em maior ou menor grau a ideia de realismo e representao algo
essencial para se pensar o Bildungsroman como reflexo de um processo histrico.
Segundo nossa abordagem, porm, relacionaremos o gnero com outros discursos
e no com o mundo em si. O quanto o Bildungsroman se aproxima ou reflete a
prpria histria em uma relao de verossimilhana ou de realismo, para ns, tem a
ver com o uso de diferentes discursos e redescries.
Como nota Joo Adolfo Hansen em um artigo sobre o conto O imortal, de
Machado de Assis: a verossimilhana uma relao de semelhana entre
discursos. Ou seja: a verossimilhana decorre da relao do texto de fico no com
a realidade emprica da sociedade do autor, mas da sua relao com outros
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discursos da sua cultura (HANSEN, 2006, p. 71). Portanto, interessa-nos de que
maneira os discursos histricos e polticos afetam o modo como o espao se
apresenta nos romances que iremos analisar, mas no se os romances representam
tal espao ou refletem a histria.
Como dissemos anteriormente, possvel propor uma chave de leitura em
que O Ateneu e Doidinho sejam pensados como Bildungsromane. Porm, queremos
ressaltar algumas divergncias entre esses romances e o Bildungsroman clssico,
para propormos uma nova nomenclatura que favorea a especificidade de romances
centrados no espao do internato.
Insistimos em que a diferena entre o Bildungsroman e o romance de
internato sobretudo de escopo. Romances como O Ateneu e Doidinho cobrem
apenas parte da formao que discutimos anteriormente. O Bildungsroman centra-
se no processo de formao e socializao no somente a partir de um processo
objetivo, como a formao escolar. No se trata da antiga ideia de formao prtica
ou funcional voltada para uma profisso, como aparece no romance Jakob von
Gunten, de Robert Walser. Outra diferena marcante o perodo de vida do heri
que a narrativa acompanha. Se o romance de formao gira em torno do heri em
sua juventude, no romance de internato acompanhamos a infncia ou a
adolescncia do protagonista.
Ao levantarmos a bibliografia sobre o Bildungsroman e os romances
estudados aqui, pudemos localizar o termo romance de internato em duas
ocasies. Ele empregado somente de passagem, sem uma explicao mais
detida, por Antonio Carlos Villaa, em sua introduo a trigsima quinta edio do
romance Doidinho:
Doidinho ousa mais do que Menino de engenho como criao. umromance de internato. E nos lembra O Ateneu de Raul Pompia.Agripino Grieco contestou que Doidinho se filiasse a O Ateneu. Semdvida, no h uma filiao. Mas h pontos de contato (VILLAA,1995, p. xiv).
A classificao que o crtico prope serve apenas para acentuar a temtica do
romance, mais do que propor um gnero ou subgnero. Mais adiante no ensaio,
Villaa ir chamar Doidinho de romance de formao como Los rios profundos, do
peruano Jos Maria Arguedas, ou o Jovem Trless, de Robert Musil (VILLAA,
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1995, p. xvii).
Mas no estudo Adolescer em clausura, da pesquisadora portuguesa Carina
Infante do Carmo, que o termo receber uma ateno maior e ser central para a
discusso que a autora prope. O prprio subttulo do livro j traz a nomencaltura:
olhares de Aquilino Ribeiro, Rgio e Verglio Ferreira sobre o romance de internato.
Nele, Do Carmo (1999) analisa as figuraes romanescas do adolescente e como a
interiorizao de princpios pedaggicos antiquados atuam na psicologia dos heris.
Para tanto, ela parte de trs romances portugueses: Uma luz ao longe, de Aquilino
Ribeiro; Manh submersa, de Verglio Ferreira; e Uma gota de sangue, de Jos
Rgio. Como esses romances tm como espao predominante o internato, interessa
a autora como a vivncia no internato afeta e modifica o desenvolvimento das
figuras adolescentes nessas trs narrativas. Preocupada em analisar a psicologia
dos protagonistas de cada romance, Do Carmo sugere a classificao romance de
internato atravs dos fatores da aprendizagem e do espao social:
Atravs da figura oprimida e inquieta do adolescente, o vectorsemntico da aprendizagem intersecciona o lugar da educao econfluem, naturalmente, os dois subgneros deles resultantes: oromance de aprendizado e o romance de internato (DO CARMO,1999, p. 45).
Mais adiante, a pesquisadora sintetizar a definio de romance de internato
como as narrativas que juntam a retrospeco adulta ao olhar e ao protagonismo de
figuras adolescentes e masculinas (DO CARMO, 199, p. 53). O estudo de Carina
Infante do Carmo centra-se predominantemente na anlise psicolgica dos
narradores-personagens sem se deter, entretanto, na questo espacial, da qual
deriva a nomenclatura que a pesquisadora prope. Ela no dissocia o romance de
internato do Bildungsroman, para ela esse tipo de romance seria uma das formas da
tradio do romance de formao. Apenas uma invariante formal daquele
subgnero (DO CARMO, 1999, p. 48).
Inversamente ao trabalho de Do Carmo, queremos ver o romance de internato
como forma da impossibilidade de completar totalmente a Bildung do romance de
formao como o vimos at aqui. J que o romance de internato a rigor no se
enquadra nessa tradio, propomos uma leitura que privilegie suas diferenas mais
do que o levantamento de um conjunto de excees ao Bildungsroman.
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Ainda que a formao no romance de internato no se restrinja somente
educao institucional, ela traduz apenas parte da Bildung do romance de formao.
Se no Bildungsroman tnhamos uma formao que no era obtida somente pela
educao, pois exigia uma independncia e liberdade que favorecessem o
autodesenvolvimento, nos romances de internato a liberdade amputada e o cultivo
da subjetividade se d de forma clandestina. O espao fechado da instituio serve
como um aprendizado socializao, mas ao mesmo tempo funciona como entrave
para a ideia de uma Bildung em sentido completo. Para Bosi, comentando sobre O
Ateneu, a escola desvia o olhar que desejaria conhecer o mundo, talvez am-lo
(BOSI, 2003, p. 61). Os limites da instituio diminuem o alcance da formao,
desviam o olhar para a totalidade do mundo.
O trnsito espacial, no romance de internato, menor. A explorao do
espao social, diferentemente do Bildungsroman, restringe-se a apenas um local. O
convvio com um variado matiz de pessoas dentro do internato amplia o sentido de
formao para alm do sentido puramente pedaggico, entretanto, a diferena entre
os dois tipos de romance existe e uma diferena de escopo.
O trmino de um Bildungsroman aponta para uma maturidade e a sntese
entre individualidade e socializao. J no romance de internato isso no acontece,
os personagens desses romances nunca vo se sentir vontade no mundo e
completar totalmente a socia