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1 A CONSTITUCIONALIDADE DO ATO DAS MESAS LEGISLATIVAS EM OPORTUNIZAR DIREITO DE DEFESA A PARLAMENTAR E A POSSIBILIDADE DE REVERSÃO ADMINISTRATIVA DA DECISÃO JUDICIAL QUE DECRETOU A EXTINÇÃO DO MANDATO Abraão Soares dos Santos Mestre e Doutor em Direito Constitucional Professor de Direito Constitucional SUMÁRIO: 01- INTRODUÇÃO; 02- A SEPARAÇÃO DOS PODERES COMO GARANTIA DA AUTONOMIA DO PODER LEGISLATIVO E A INAFASTABILIDADE DA JUSTIÇA ELEITORAL; 03- A GARANTIA CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA EM ÂMBITO ADMINISTRATIVO PERANTE A CASA LEGISLATIVA E A POSSIBILIDADE DE REVERSÃO DA DECISÃO JUDICIAL; 04-CONSIDERAÇÕES FINAIS; 05- BIBLIOGRAFIA; RESUMO Além de aplicar equivocadamente o termo “cassação”, instituto este extirpado do ordenamento jurídico brasileiro por força do art. 15 da Constituição da República de 1988, por ser considerado um ato unilateral, executado sem a ampla defesa e o contraditório, a doutrina brasileira, os juízes e os tribunais brasileiros permanecem a utilizar o referido termo até mesmo para classificar a perda de mandato e a suspensão de direitos políticos (art. 55). A mudança de postura não passa apenas por uma alteração semântica de uma palavra, mas da forma como se combate a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego. Não se pode defender o retrocesso das conquistas evolutivas no âmbito do Direito Parlamentar brasileiro, mas também o aprendizado institucional demonstra que não se pode descurar de princípios basilares da República que levam o poder judiciário a ser uma espécie de superego da sociedade (Ingeborg Maus). Desse, modo, em casos específicos poderá a Casa Legislativa deixar de cumprir uma decisão judicial de decretação de perda de mandato sem o trânsito em julgado (art. 41-A, Lei 9.504/97) que, após oportunizada a ampla defesa e o contraditório a seu membro, ficar demonstrada qualquer hipótese que autoriza a propositura de eventual ação rescisória ou revisão criminal. ABSTRACT Beyond applying the term mistaken “cancel”, institute this retired of the Brazilian legal order for force of art. 15 of the Constitution of the Republic of 1988, for being considered an unilateral act, being executed without legal defense and the contradictory, the Brazilian doctrine, the Brazilian judges and courts remain to use the cited term even though to classify

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A CONSTITUCIONALIDADE DO ATO DAS MESAS LEGISLATIVAS EM OPORTUNIZAR DIREITO DE DEFESA A PARLAMENTAR E A POSSIBILIDADE DE REVERSÃO ADMINISTRATIVA DA DECISÃO JUDICIAL QUE DECRETOU A EXTINÇÃO DO MANDATO

Abraão Soares dos Santos Mestre e Doutor em Direito Constitucional

Professor de Direito Constitucional

SUMÁRIO: 01- INTRODUÇÃO; 02- A SEPARAÇÃO DOS PODERES COMO GARANTIA DA AUTONOMIA DO PODER LEGISLATIVO E A INAFASTABILIDADE DA JUSTIÇA ELEITORAL; 03- A GARANTIA CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA EM ÂMBITO ADMINISTRATIVO PERANTE A CASA LEGISLATIVA E A POSSIBILIDADE DE REVERSÃO DA DECISÃO JUDICIAL; 04-CONSIDERAÇÕES FINAIS; 05- BIBLIOGRAFIA;

RESUMO

Além de aplicar equivocadamente o termo “cassação”, instituto este extirpado do ordenamento jurídico brasileiro por força do art. 15 da Constituição da República de 1988, por ser considerado um ato unilateral, executado sem a ampla defesa e o contraditório, a doutrina brasileira, os juízes e os tribunais brasileiros permanecem a utilizar o referido termo até mesmo para classificar a perda de mandato e a suspensão de direitos políticos (art. 55). A mudança de postura não passa apenas por uma alteração semântica de uma palavra, mas da forma como se combate a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego. Não se pode defender o retrocesso das conquistas evolutivas no âmbito do Direito Parlamentar brasileiro, mas também o aprendizado institucional demonstra que não se pode descurar de princípios basilares da República que levam o poder judiciário a ser uma espécie de superego da sociedade (Ingeborg Maus). Desse, modo, em casos específicos poderá a Casa Legislativa deixar de cumprir uma decisão judicial de decretação de perda de mandato sem o trânsito em julgado (art. 41-A, Lei 9.504/97) que, após oportunizada a ampla defesa e o contraditório a seu membro, ficar demonstrada qualquer hipótese que autoriza a propositura de eventual ação rescisória ou revisão criminal.

ABSTRACT

Beyond applying the term mistaken “cancel”, institute this retired of the Brazilian legal order for force of art. 15 of the Constitution of the Republic of 1988, for being considered an unilateral act, being executed without legal defense and the contradictory, the Brazilian doctrine, the Brazilian judges and courts remain to use the cited term even though to classify

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the loss of mandate and the suspension of rights politicians (art. 55). The position change does not pass only for an alteration semantics of a word, but of the form as if combat the influence of the economic power or the abuse of the function exercise, position or job. If it cannot defend the retrocession of the evolutives conquests in the scope of the Brazilian Parliamentary Law, but also the institutional learning demonstrates that if it cannot relinquish of fundamental principles of the Republic that take it can judiciary be a species of super-ego of the society (Ingeborg Maus). Of this, way, in specific cases will be able the Legislative House to leave to fulfill a sentence of decreement of loss of mandate without the transit in judged (art. 41-A, Statute Law 9.504/97) that, after opportunity legal defense and the contradictory its member, to be demonstrated any hypothesis that authorizes the bringing suit of eventual action for rescission or criminal revision.

PALAVRAS-CHAVES: Direito Parlamentar – Perda de mandato- Decisão Judicial – Separação de Poderes- Reversão Administrativa.

KEYS- WORDS: Parliamentary Law – Loss of mandate – Judicial decision – Separation of powers – Administrative reversion.

01- INTRODUÇÃO

Na perspectiva da Idade Antiga (século VIII a.C ao IV d.C), como agregadora de um imaginário social que não consegue conviver com as diferenças, diante da necessidade de eliminá-las ou, no mínimo, segregá-las, tem-se o homem com uma origem e destino fixos. As eventuais crises eram resolvidas pelos fundamentos absolutos. Com o recrudescimento do modo de produção escravagista nos tempos homéricos, o surgimento de uma aristocracia proprietária de terras favorece o advento das cidades-estado (pólis), ainda como um espaço privado em que a atribuição de participação era restrita aos iguais (identidade), por meio do homem grego (cidadão). O resto era a diferença (escravos, mulheres, crianças e estrangeiros). Mas é no apogeu da Antigüidade grega que a expressão política da democracia direta ateniense marca o inseparável conjunto entre indivíduo e sociedade.

Com o advento de uma fundamentação racional das inquietações dessa legitimidade, em contraponto com as explicações sobrenaturais da civilização miscênica, essa sociedade tem em Aristóteles a justificação das forças abstratas da unidade do corpo político grego (politéia) pelo permanente risco da instauração da stásis, inclusive defendendo a prática da escravidão (liberdade é dar a cada um o que é seu).

Nesse sentido, com a res publica romana (Cícero) mantém-se o espaço de identidade consensual diante de um modelo de equilíbrio entre monarquia, aristocracia e democracia. Mesmo assim, essa construção política não foi suficiente para conter a queda do Império Romano (século V d.C) e o surgimento da Idade Média.

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Com efeito, o período medieval (século V ao XV) marca a descentralização do exercício do poder, ao passo que cada feudo torna-se uma “ordem normativa”. Após a Alta Idade Média (476 a 1.100), o equilíbrio dessa sociedade é cada vez mais problemático. Por isso a necessidade de constantes arranjos para sua manutenção. Assim, tem-se a Magna Carta de 1215, com suas reafirmações posteriores, como um contrato particular entre barões que visava manter suas ordens de privilégios numa sociedade que não concebia a diferenciação. Por sua vez, temos em Salisbury (século XII) a tentativa de distinção entre rei, príncipe (legitubus solutus) e tirano (transforma o nascente espaço público em privado). Na mesma linha, Tomás de Aquino (século XIII) elege a Monarquia como a forma ideal de governo, buscando sustentá-la preventivamente (consilium regni) ou repressivamente (direito de resistência), quando o príncipe torna-se tirano. Construções semelhantes a estas demonstram que as teorias surgem quando os problemas de fundamentação de determinadas práticas sociais são percebidos, como também se vê na doutrina medieval do King in parliament de Henry Bracton (séc. XIII), por meio da convocação de cavalheiros e burgueses para se reunirem esporadicamente com o rei e os lordes. A mera conveniência administrativa da coroa (século XIV) indica a precariedade dos fundamentos daquela comunidade de castas. Tanto assim que em Marsílio de Pádua (século XIV) tem-se uma das últimas tentativas de se juntar os frangalhos da noção de identidade por meio da combalida monarquia, agora defendida como eletiva, além de indicar o fenômeno do município naquele dissolvente modo de produção.

É exatamente no território inglês, mais precisamente no final de suas guerras civis (século XVII), que se assiste no Parlamento o julgamento e a decaptação do rei Carlos I, por Oliver Cromwell, que proclama a República e se autodenomina o lord protetor perpétuo da Inglaterra. Nota-se que a ruptura de uma sociedade do equilíbrio para a sociedade do risco, como possibilidade de emancipação, marca o fim da Idade Média. Esse giro entre Guerra Civil, o Protetorado e a Commonwealth coloca, repentinamente, o Parlamento como a única instituição capaz de escolher o líder do governo para governar a nação, diante do enfraquecimento da Monarquia.

A possibilidade de, pela primeira vez na história da humanidade, poder fundar uma sociedade de indivíduos que permanentemente buscam liberdade e igualdade, partindo do pressuposto de que são proprietários, no mínimo, do próprio corpo, perfaz o nascente modo de produção capitalista, que necessitava de uma mão-de-obra rotativa e, nos dizeres de Karl Marx, de um “exército de reserva de mão-de-obra”. Ao contribuírem para o advento da Modernidade, essas características dessacralizam a representação temporal (mundana) da divina (atemporal). Nesse contexto, tem-se a passagem do teocentrismo para o antropocentrismo (Galileu Galillei), bem como a separação entre direito (lícito/ilícito), política (poder/não-poder), religião (credo/não-credo), moral (certo/errado), ética (bom/ruim) e estética (belo/feio), antes (Idade Antiga e Idade Média) considerados um “amálgama normativo” (Carvalho Netto).

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Por sua vez, o surgimento do constitucionalismo como mecanismo de acoplamento entre direito e política tem no paradigma do Estado Liberal de direito (século XVII ao XIX) a tentativa de reagir à diferenciação social, buscando esconder seus paradoxos (Luhmann).

Nesse contexto, a política assume a forma de Estado Nacional sob o background das revoluções burguesas, de modo que é nos idos de 1651, com a publicação do Leviathan, que a idéia de representação passa a ser examinada no âmbito da teoria política , mesmo que ainda por uma perspectiva da autonomia privada e muito mais como limites sobre o que o representante deve fazer ou as obrigações as quais cercam a sua atividade (Pitkin).

O Poder Legislativo, enquanto representação da nação, nesse contexto liberal era considerado o centro do ordenamento jurídico, tendo em vista o deslumbramento da época diante da possibilidade da positivação de condutas até então afetas às práticas ordinariamente inoculadas. Os excessos desse Estado Liberal, com a prevalência exacerbada da autonomia privada e a participação política delimitada pela propriedade (voto censitário), até as décadas finais do século XIX, ensejam o aparecimento de um novo paradigma.

É no paradigma do Estado Social que se observa a preponderância do Poder Executivo consubstanciada na aplicação de instrumentos com “forza di leggi”, como os “decreti-leggi” 1 (Duce) e as “medidas excepcionais”, do art. 48, § 2º, da Constituição de Weimar (Führer), justificados pela “lentidão” dos processos legislativos ordinários diante da necessidade de efetivação de políticas públicas para as “massas de clientes”. Assim, a prevalência agora é da autonomia pública (“público” passa a ter o mesmo significado de “estatal” ), eliminando-se qualquer dimensão privada, além da existência de sobreposição da mediação parlamentar por meio do contato direto com as massas pela defesa schmittiana da identidade governante/governado. Seus excessos, com as conseqüências da Segunda Grande Guerra, geram questionamentos que, na segunda metade do século XX ensejam o surgimento do paradigma do Estado Democrático de Direito.

Sob os auspícios do Estado Democrático de Direito , “público” passa a ser mais amplo que “estatal”.Em vez de o público preponderar sobre o privado, tem-se uma tensão permanente entre eles, ou seja, uma relação tensionada mais para a complementaridade do que para a contrariedade. O Poder Legislativo passa a ser “mera porta de entrada do ordenamento” (discursos de justificação), ao passo que o aplicador torna-se o centro do ordenamento (discursos de aplicação), principalmente por parte do Poder Judiciário com seu caráter vinculante, em tempos de transconstitucionalismo (Marcelo Neves).

Nesse sentido, o tema em investigação é justificado pela preocupação com o tratamento formalista dado à defesa do parlamentar na Casa Legislativa quando declarada a perda de mandato pela justiça eleitoral, de que trata o art. 55, inciso, V, § 3º, da Constituição

1 Inspirados na Lei Rocco de 1926 (VIRGA, Pietro. Diritto costituzionale. 8ª ed., Milano: Giuffrè, 1975, p. 303).

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da República. Nota-se o esgotamento do entendimento que, em nenhuma hipótese, a Casa Legislativa poderia deixar de cumprir a decisão judicial.

Essa nova interpretação exige uma postura diversa diante do que se passou a entender sobre os conceitos de público e privado, de soberania popular e de direitos humanos numa sociedade pós-convencional que transcende à distinção anêmica entre forma e conteúdo, diante de uma história institucional de crença fundada no convencionalismo entre adequação de meios a fins.

Em vez de combater a mediação , o presente trabalho busca aprofundá-la ao problematizar o instituto da ampla defesa administrativa na Casa congressual como capaz de ilidir uma decisão judicial questionável diante da concepção procedimentalista de democracia.

02- A SEPARAÇÃO DOS PODERES COMO GARANTIA DA AUTONOMIA DO PODER LEGISLATIVO E A INAFASTABILIDADE DA JUSTIÇA ELEITORAL

A construção de representação é moderna, uma vez que na Antigüidade e na

Idade Média, esse nome era desconhecido.2 O povo, até então nunca tivera “representantes”,

mesmo com manifestações primárias, a noção que se tinha de representação estava ligada

diretamente às relações familiares e de fidelidade.3

O processo histórico demonstra que a Constituição como conquista evolutiva

implica o fato de o poder sufragado não se identificar necessariamente com as pessoas que o

exercem, uma vez que não está mais encarnado no corpo físico do soberano4, passando a ser

considerado como um lugar vazio, objeto das tensões próprias do jogo político na busca

permanente de sua ocupação.

As gramáticas de práticas sociais da Modernidade vêm inaugurar uma

realidade complexa no constitucionalismo, de modo que os diferentes possam conviver

mediante uma racionalidade diversa do contexto da Idade Antiga e da Idade Média , em que a

grande dificuldade era como reger uma sociedade que não podia ter pluralismo5, devendo ser

um espaço de identidade consensual, em que o público requer comunhão (ethos

compartilhado). A medida de vivência desses complexos implementou mecanismos de

convivência ao buscar pensar instituições que acreditavam resolver os problemas

2 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Trad. Rolando Roque da Silva. São Paulo: Cultrix, 1971, p. 95-97. 3 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la constitución. Barcelona: Ariel, 1965, p. 58. 4 KANTAROWICZ, E.H. The King’s two Bodies: A study in medieval political Theory. Princeton, 1957. 5 Cf. o temor da stásis na Grécia antiga e a busca de uma constituição mista na Idade medieval .

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crescentemente complexos, possibilitando momentos de democracia surgida com respeito às

diferenças ao incorporar, contrafactualmente, o contrário (a diferença), e não apenas

instrumentalizar meios a fins mediante uma “ditadura da maioria”.

Nessa perspectiva, a opção pela teoria crítica da sociedade moderna vem

incorporar tanto suas falhas como suas realizações positivas, com o objetivo único de

entender a potencialidade dessa sociedade em construir uma vida humana coletiva.

Um dos expoentes dessa concepção é Jürgen Habermas que, após seu

rompimento com a Escola de Frankfurt, amplia o conceito de racionalidade, em que o pano de

fundo não consiste mais na relação sujeito - objeto como na filosofia da consciência, mas na

relação entre sujeitos: a razão comunicativa. Esta guinada pragmática, ao abandonar até

mesmo a vertente marxiana, não significa uma ruptura absoluta com sua origem pessimista6,

mas também não se alinha com a razão instrumental, buscando sempre a legitimidade da

reflexão crítica.

Ao configurar que a dessacralização do mundo da vida possui a anomia como

risco permanente, ao passo que não mais se têm ordens de privilégios estancadas como na

pré-modernidade aristotélica e, muito menos, a confiança em uma razão existencialista, vê-se

a possibilidade precária de vislumbrar a artificialidade e o contingenciamento do “iluminismo

do iluminismo”. Assim, necessário se faz conceber, modernamente, a existência de uma razão

contingente, precarizada pela categoria da verdade e sem conteúdo dogmático estruturante

“substituindo” a razão prática pela razão comunicativa, transportando o conceito de razão

para o compartilhamento lingüístico, sendo que aquela já havia sido implodida pela filosofia

do sujeito.

A razão comunicativa, ao contrário da razão prática, não é uma fonte de

normas do agir. Seu meio lingüístico direciona a interações que estruturam o mundo da vida -

ou seja o telos do entendimento passa a habitar na linguagem. No desenvolvimento de uma

teoria material da representação, importa destacar que sob o pano de fundo normativo, o

enfoque performativo entre o falante e o destinatário passa a ser a base de validade da

comunicação (distinção entre fins locucionários = locução / falar, ilocucionário = relacionado

ao sentido realizativo do que se diz e perlocucionário = reação7).

6 Jürgen Habermas é considerado um dos grandes expoentes da “Segunda geração’ da Escola de Frankfurt. 7 Dimensão dos atos de linguagem de Austin.

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O processo de aprendizado remonta à intranscendência de idealizações

inevitáveis (contrafactual) de práticas de entendimento (factual), passível de se voltar

criticamente contra seus próprios resultados (contingentes), de forma que a tensão entre ideal

e real é constitutiva da “realidade” estruturada lingüisticamente, sem preocupação de chegar a

uma síntese, visto que suas asserções permanecem sempre abertas a um esclarecimento

argumentativo sobre as pretensões de validade, a veracidade subjetiva e a correção normativa,

suplantando o enfoque moral e prático de outrora. Dessa forma, a normatividade, no sentido

da orientação obrigatória do agir, não coincide com a racionalidade do agir, orientado pelo

entendimento em seu todo em sociedades funcionalmente diferenciadas8 pressionadas por

imperativos sistêmicos.9

O autor assume que o princípio da teoria do discurso, desse ponto de vista

funcional, de modo que uma moral e uma ética pós-tradicional, dependem do direito

positivo.10Essa categoria é eleita por Habermas como pavimentadora da integração social.

Na perspectiva de que o projeto pós-Segunda Guerra busca desvincular a idéia

de Modernidade da racionalidade ocidental e resgatar a representação sob o olhar pedagógico

dos excessos do Estado Social, o afastamento da metafísica rompe com o paradigma da

filosofia da consciência.11 À vista da derrocada do projeto iluminista, esse giro hermenêutico

caracteriza-se pela consciência da frágil e complexa cientificidade das ciências sociais e de

seu estatuto epistemológico. Nesse aspecto, tem-se que,

[...] os conceitos céticos de razão tiveram um efeito terapêutico sobre a filosofia, desencantando-a e confirmando-a na sua função de guardiã da racionalidade. De um lado, porém, difundiu-se também uma crítica radical à razão, a qual não somente protesta contra a transformação do entendimento em razão instrumental, como também identifica a razão em geral com repressão procurando, a seguir, de modo fatalista ou extático, encontrar refúgio em algo totalmente Outro. Finalmente, o esclarecimento sobre os nexos da teoria com a prática protege o pensamento filosófico contra as ilusões de independência e abre a visão para um espectro de pretensões de validade, que ultrapassam o nível de uma pretensão assertórica. É verdade que muitos, seguindo

8 Niklas Luhmann (Intersubjetividade ou comunicação: 1986) 9 Tendo como processo de racionalização do mundo da vida formas de comunicação, como a formação política da vontade no Estado de Direito por meio da legislação e da jurisprudência. 10 No entanto, não mais sob a retórica hegeliana, que dava conta da existência de um direito natural a que o direito positivo deveria acatar. 11 Relação sujeito-objeto.

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este caminho, escorregaram para um produtivismo <Marx12>, que reduz a prática ao trabalho e esconde os nexos que existem entre o mundo da vida, estruturado simbolicamente, o agir comunicativo e o discurso.13

Ao fazer uma genealogia da trajetória dessa relação entre teoria e prática,

Habermas remonta as críticas de Aristóteles14 a Platão, de Rousseau a Kant, de Marx a Hegel,

da primeira geração de Frankfurt a Marx e, por sua vez, a sua crítica a essa Escola ao declarar

que

Adorno15 encontrou também no impulso pós-hegeliano um fazer prático da teoria um núcleo totalitário de uma razão exclusivamente instrumental [...] É difícil evitar a sensação de que uma filosofia que se tem convertido em uma mera disciplina acadêmica já não é filosofia.16

Assim, verifica-se que a existência não é mais um sujeito para o qual há um

objeto, mas um ser no ser, precedendo a questão sujeito - objeto, no qual o ser-no-mundo, por

meio da circularidade hermenêutica17, relaciona-se com a tradição historiográfica, que é

anterior à relação teoria e prática. Diante da constatação de que a noção de práxis é anterior à

divisão entre teoria e prática, entende-se a reconstrução da relação entre as duas partes do

12 “O colapso do socialismo de Estado e o final da ‘guerra civil mundial’ colocaram em evidência a falha teórica do partido fracassado: descobriu-se que ele <Marx> confundira o projeto socialista com o esboço – e a imposição forçada – de uma forma concreta” (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I, Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p.12). 13 HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: Estudos filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p. 16-17. 14 Para Aristóteles, somente quem age eticamente é capaz de discutir sobre ética (Teoria da Essência). O autor divide em três os principais tipos de vida: a vida em que se identifica o bem ou a felicidade com o prazer; a vida política; e a vida contemplativa. A última é debatida de forma a ensejar a experiência de forma que, “[…] ainda que as compilações de leis e constituições possam prestar serviços às pessoas capazes de estudá-las, de distinguir o que é bom do que é mau e a que circunstâncias melhor se adapta cada lei, as pessoas que examinam essas compilações sem a ajuda da experiência não terão o reto discernimento (a não ser acidentalmente, não obstante talvez possam tornar-se mais entendidas em relação a tais assuntos.)” (ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2003, p. 21 e 238-239). 15 Thedor Adorno, em uma entrevista à revista alemã, “Der Spiegel”, no ano de sua morte (1969), chegou a declarar que seu “pensamento sempre esteve numa relação muito indireta com a prática”, ainda, “[...] creio que uma teoria é muito mais capaz de ter conseqüências práticas em virtude de sua própria objetividade do que quando se submete de antemão à prática. O relacionamento infeliz entre teoria e prática consiste hoje precisamente em que a teoria se vê submetida a uma pré-censura prática.” (“A astúcia da dialética”. Folha de S.Paulo, Caderno Mais, 31.12. 2003, p. 04.) 16 “Adorno encontró también en el impulso posthegeliano a hacer practica la teoría en núcleo totalitario de una razón exclusivamente instrumental [...] Es difícil de evitar la sensación de que una filosofía que se ha convertido en una mera disciplina académica ya no es filosofía” (HABERMAS, Jürgen. (1999) “Una vez más: sobre a relación entre teoría e praxis. In : Verdad e Justificación: ensayos filosóficos. Trad. Pere Frabra e Luíz Díez. Madrid: Trotta, 2002, p. 312.) 17 O destino é, ao mesmo tempo, princípio originário do fim. Ou seja, o ponto de partida requer o ponto de chegada desde o início.

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pressuposto heideggeriano de que não há mais instância metateorética justificando a teoria, ao

passo que essa é uma prática do ser-no-mundo.18

A tensão entre a facticidade e a validade embutida na linguagem e em seu uso

passa a ser estabilizada de modo peculiar na integração social realizada por intermédio do

direito positivo de sociedades complexas que têm que considerar tanto a regulação imparcial

dos conflitos quanto a garantia de identidades e formas de vida19, ensejando assim a

necessidade de uma representação plural.

Num primeiro nível, tem-se a distinção entre a idealidade da generalidade dos

conceitos e significados para, num segundo nível, distinguir a idealidade dos conceitos de

validade. Tudo isso na perspectiva da utilização da linguagem orientada para o entendimento

numa sociedade bem ordenada, que respeita as diversas visões de mundo seus integrantes,

representados em suas diversas dimensões.

Essa universalidade da aceitabilidade racional mantém a tensão pela não

ocorrência de síntese hegeliana de todos os contextos, como o ocorreu na representação do

Estado liberal (excessos do Poder Legislativo) e na representação do Estado social (excessos

do Poder Executivo). No mais, somente a aceitação obrigatória da contingência gerada por

essa tensão permanente pode fazer das pretensões de validade caminhos para uma prática

cotidiana ligada ao contexto (concepção principiológica da linguagem) da representação

política institucionalmente aceita como uma construção.

Como conceito complementar à teoria do agir comunicativo, o lebenswelt20

assume a forma precária do risco do dissenso imanente ao próprio mecanismo de

18 HABERMAS. Jürgen. “Heidegger: obra e cosmovisión”. Trad. Manuel Jiménez Redondo. 1996, 75-113; 19 Tendo em vista que a possibilidade da ordem social é uma questão clássica que busca ser problematizada sobre o ponto de vista das estruturas supra-subjetivas da linguagem em contraposição aos ‘sistemas que mantêm seus próprios limites’ (Parsons/Luhmann). Dessa forma, a ordem social como estabelecedora de processos de formação de consenso tem como característica a dupla contingência, visto que “[...] la inverossimilhança desta idea <pretensões colocadas na orden social> se torna clara en cuanto recordamos que todo acuerdo alcanzado comunicativamente depende de tomas de postura de afirmación o negación frente a pretensiones de validez susceptibles de crítica. La doble contingencia que han de ser absorbida por todo proceso de interación, cobra en el caso de la acción comunicativa la forma especialmente precaria, de um riesgo de disentimiento, siempre presente, inscrito en el mecanismo mismo del entendimiento, habiendo de tenerse presente que todo disenso origina altos costes” (HABERMAS, Jürgen. “Acciones, actos de habla, interacciones lingüisticamente mediadas y mundo de la vida. In Pensamento pós-metafísico,1988, p. 85-86). 20 O lebenswelt (“mundo da vida”, termo cunhado por Edmund Husserl), constituído pelos padrões culturais (cultura), as ordens consideradas legítimas socialmente (sociedade) e as estruturas de personalidade (indivíduo), possui um “[...] plexo de sentido simbólicamente estructurado, que opera y penetra a través de las distintas

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entendimento, sob um pano de fundo comum. Se na pré-Modernidade21 tem-se a fusão entre a

facticidade e validade pelo peso da tradição, na Modernidade a estabilidade da ordem social

imuniza o mundo da vida contra a pressão de experiências geradoras de contingências.

Enquanto alimenta o aumento de complexidade social (evolução) em que na própria dimensão

da validade extingue-se o momento contrafactual de uma idealização, a qual ultrapassa o

factual, que, por sua vez, propiciaria uma decepção real, simultaneamente, a dimensão do

saber oculto permanece intacta e extraindo seu convencimento. Por isso a decepção

contigencial de uma representação que não preenche todas as expectativas normativas dos

representados, por si só, não estrangula funcionalmente o instituto. Isso porque,

contrafactualmente, a representação, por interligar vínculos com o futuro, não deixa de prestar

a legitimidade a novas expectativas de comportamento.

Como mecanismo reconstrutivo de sociedades que fundam a si mesmas, além

de fundamento de validade de sua própria ordem social, o direito, ao ser reconhecido como

categoria de integração, enseja ações comunicativas autônomas e distintas das ações

estratégicas.22 Para Habermas, diante da ausência de “instituições fortes” ou “autoridade

sagradas”, reitera o risco do dissenso nos domínios do agir comunicativo. De certo, o

cumprimento estratégico de uma norma para evitar sanção tem na autoridade a capacidade de

revestir a validade com força do fático, até mesmo, como “equivalente funcional” das

“instituições fortes” pré-modernas.

Para fins de contextualizar a subsunção do monopólio da força para o Estado,

com o advento do direito positivo, o direito subjetivo de ação passa a ser o meio adequado de

utilização desta força pelos membros dessa sociedade.23 Ao retomar o conceito de legalidade

de Kant, por meio da relação interna entre coerção e liberdade como componentes de

formas de materializaçión y funciones señaladas, se compone ‘cooriginariamente’ de esos tres componentes ‘entrelazados entre sí” (HABERMAS, Jürgen. “Acciones, actos... p.87). 21 A autoridade estabilizadora de expectativas de comportamentos estava vinculada às instituições arcaicas, num complexo cristalizado de convicções factuais. 22 “O agir estratégico usa a linguagem comum como meio para transmissão de informações, já o agir comunicativo, como fonte de integração social [...] o ato de fala se justifica normativamente conforme pretensões de validade, pretensões de verdade proposital, à correção normativa e à veracidade subjetiva” (REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo. Habermas e a desobediência civil. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 63-64). 23 “[...] a possibilidade de integração pela solidariedade é transposta para o Direito, por ser este um meio social capaz de agir como sistema, impondo coercitivamente as decisões, mas em constante procura da legitimidade racional de tais decisões, explorando os fragmentos de racionalidade já existentes e liberados no processo de modernização. O Direito tem essa capacidade de promover a integração social via solidariedade, ou seja, via ação comunicativa. Nesse sentido ele age como o tradutor entre a lógica estratégica dos sistemas e o mundo da vida racionalizado” (REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo. Habermas e a desobediência civil. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 66).

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validade do direito, interessam, para a estrutura da argumentação a facticidade como limite do

agir individual e a validade como reconhecimento de legitimidade da norma.

Ao passo que a validade social das normas do direito é determinada pelo grau

em que consegue ser aceito faticamente no círculo dos membros do direito, a validade

convencional dos usos e dos costumes, o “direito normatizado”, não se apóia sobre a

facticidade de formas de vida tradicionais e sim sobre a facticidade artificial da ameaça de

sanções definidas conforme o direito.

Essa definição normativa não é mais tarefa exclusiva do legislativo e muito

menos o pode judiciário pode se arvorar dela permanentemente, salvo em situação

contigenciais específicas de omissão legislativa na efetivação de direitos fundamentais (MI

721/STF). Em contrapartida, a independência e harmonia entre os poderes (art. 2º, da CR/88)

está fundada no consenso por meio do dissenso, uma vez que o reconhecimento da

necessidade de manter a integridade dos direitos não está nos caprichos decisionistas de um

ou outro poder (checks and balances). A concepção jurídica e institucional da representação

passa necessariamente pela adesão reflexiva, principalmente do próprio poder legislativo de

que sua função mediadora é insubstituível e deve ser defendida como caixa de ressonância de

uma sociedade arredia e não a utilização do mandato parlamentar como um meio de

incrementar negociatas que buscam transferir patrimônio público para o privado ou de refúgio

de meliantes que, contando com a inadequação do Supremo Tribunal Federal como uma

“delegacia de polícia”, busca no foro privilegiado uma forma de romper os marcos da

prescrição da pretensão punitiva do Estado.

Por outro lado, necessário se faz dissipar qualquer esperança na democracia

direta como agregadora de maior legitimidade - ou seja, como o bastião da democracia - o

qual o Estado Social foi uma escola durante o século XX. Esse período foi capaz de

demonstrar que o exercício direto do poder pelo povo, ou por meio de um eleito que encarne a

relação direta entre governantes e governados, não é esta a garantia de maiores momentos de

democracia. Até pelo contrário. A partir do momento em que exige identidade entre

governantes e governados, a democracia direta passa a ser utilizada de forma estratégica e

parasitária por regimes autoritários, sob a justificação de que são democráticos, como o

conceito de político e a representação formalística em Carl Schmitt.

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A artificialidade da representação, na esfera do exercício do poder, perpassa

por diversas construções no âmbito dos modelos constitucionais contemporâneos. No entanto,

se a representação em Hobbes está vinculada ao exercício privado de prerrogativas do

soberano24, aos designadores do “mandato livre”25 e aos excessos do “mandato imperativo”,

tal noção traduz a vinculação institucional direta entre representante e representado.

Com a abolição do “mandato imperativo” em praticamente todos os regimes

constitucionais modernos,26o desafio colocado é: Como lidar com o exercício de uma função

de natureza pública, num órgão congregacional permanente e renovável, mediante um

procedimento competitivo de escolha a cada tempo?

Neste ponto, o que se busca é romper com a tradicional teoria do mandato, a

qual entende o estatuto jurídico da representação como de direito privado, mesmo quando o

representante exerce suas atribuições perante o conjunto dos governados.27 Por isso, no nível

congregacional a expressão democracia representativa

[...] já adquiriu, de modo estável, os dois sentidos: uma democracia é representativa no duplo sentido de possuir um órgão no qual as decisões coletivas são tomadas por representantes, e de espelhar através desses representantes os diferentes grupos de opinião ou de interesse que se formam na sociedade.28

Essa tomada de posição não está imune a abusos por parte do representante,

pois, segundo Bentham, em uma formulação clássica a loucura era mais freqüente do que a

disposição de sacrificar o egoísmo pelo interesse público. O utilitarismo inglês defende que

24 “Dado que a multidão naturalmente não é ‘uma’, mas ‘muitos’, eles não podem ser entendidos como um só, mas com muitos autores, de cada uma das coisas que o representante diz ou faz em seu nome. Cada homem confere a seu representante comum sua própria autoridade em particular, e a um pertencem todas as ações praticadas pelo representante, caso lhe haja conferido autoridade sem limites” (HOBBES, Thomas. O leviatã. Ob. Cit. p. 98). 25 “O representante, uma vez eleito, rescinde a relação de mandato, no sentido técnico da palavra, com o eleitor, e deve ocupar-se dos assuntos gerais do país, donde, por conseguinte, não pode ser revogado por não executar as ‘instruções’ daqueles que o elegeram” (BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Trad. Daniela Beccaccia Versiane. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 462). 26 Vedado expressamente no artigo 27, da Constituição francesa; no artigo 38, parágrafo primeiro, da Lei Fundamental de Bonn, e artigo 67, parágrafo segundo, da Constituição da Espanha. 27 Esse entendimento está ancorado no art. 3º, da Declaração e Direitos do Homem e do Cidadão no qual “O princípio de toda a soberania reside essencialmente na Nação. Nenhuma corporação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que daquela não emane expressamente.” 28 BOBBIO, Norberto. Teoria.... Ob. Cit. 458.

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“ninguém sabe o que é do seu interesse tão bem quanto você mesmo”.29 Muito menos

desprovido de interesse particular, visto que não se pode exigir

[...] que o cidadão seja um homem sem interesses particulares, absolutamente independente, isento de preconceito e de paixões, incapaz de pensar nos seus próprios interesses, para só cogitar e procurar atender aos da coletividade. Nem o eleitor reúne essas condições, nem seus representantes, pois somos todos os homens, todos mais ou menos influenciados pela educação recebida, pelo ambiente em que vivemos, pela classe a que pertencemos, pelo nosso temperamento, profissão, idade, fortuna, etc. Nenhum homem poderia transformar-se em anjo, para ser eleitor ou representante do povo. Outra ficção: a de que a vontade do representante seja sempre idêntica. Em cada momento, e a propósito de cada problema, à dos seus representados30 (ênfase adicionada)

Ao contrário do que parece ser uma fundamentação contra a representação, na

verdade, é um discurso em seu favor, mas já exorcizando qualquer pretensão utópica de

inexistência de interesse pessoal por parte do representante. Para tanto, justifica, por

influência da experiência americana, que pelo princípio da deslocabilidade o interesse

público será alcançado à medida que os representantes passam a preencher as expectativas de

correção discursiva (normativa) de seus eleitores no sentido de viabilizar a sua reeleição.

É neste contexto que a teoria política normativa de Pitikin elabora o conceito

material de representação não mais como uma relação, mas como uma atividade de fazer

presente algo que, não obstante, não está presente literalmente. O representado está presente

tanto pelas características do representante quanto pela forma na qual ele é observado ou nos

arranjos formais que precedem ou seguem à representação.31 Uma vez concebida como um

arranjo público institucionalizado que envolve diversas pessoas e grupos, operando mediante

complexas formas da larga escala social e ideológica, a representação não é um ato isolado de

29 BENTHAM, Jeremy. Works. Edinburgh: Wilian Tait, 1843, p. 33. 30 TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 488. 31 PITKIN, Hanna Fenichel. The concept…Op. Cit. p. 144. Para quem, [...] when we conventionally speak of political representation, representative government , and the like, we do not mean or require that the representative stand in the kind of one-to-one, person-to-person relationship to his constituency or to each constituent in which a private representative stands to his principal. Perhaps when we call a governmental body or system ‘representative’, we are saying something broader and more general about the way in which it operates as an institutionalized arrangement. And perhaps even the representing done by an individual legislator must be seen in such a context, as embodied in a whole political system.”(p.221).

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um participante, mas uma estrutura sobreposta que funciona como um sistema padrão que

emerge das múltiplas atividades de seus componentes.

Admite como configurada a representação se os representados (constituency)

estão presentes nas ações governamentais, embora literalmente, não seja um ato executado

por eles mesmos. Outrossim, se o representante não examinar sua consciência de acordo com

o interesse público em cada assunto, mesmo assim ele deve continuar a seguir promovendo

esse interesse no qual fora designado. Isso demonstra um pouco o motivo no qual essa obra

causou tamanho impacto, pois parece, inicialmente, tratar-se de um conceito radical de

representação. No entanto, esse rigor é mitigado ao defender que, caso efetivamente o

representante decida ignorar ou sobrepor a opinião do representado, deve ele oferecer

justificações racionais.32

Para tanto, Pitkin apresenta cinco categorias nas quais busca fazer analogia de

como se configurariam com a atividade política representativa. A primeira categoria

denomina como um “agente” ou um “ator”, que deriva originariamente do latim agere, uma

vez que atuaria em substituição ao outro sem qualquer autonomia ou iniciativa própria.33

A segunda categoria refere-se ao “guardião” ou “curador” que cuida do outro.

Geralmente estaria ligada à idéia segundo a qual o representado seria incapaz ou imaturo para

agir por si mesmo e, portanto, necessitaria de um representante mais apto que ele.34

A terceira categoria seria a analogia quanto ao “deputado” (do latim deputare)

ou “procurador” (do latim attornare) que agiriam em vez do outro no qual representa. Com

fundamento em Hans Wolf a autora defende como primordial a diferença entre substituição e

representação.35Ao contrário da representação, nas diversas hipóteses de substituição o

procurador eclipsa totalmente o representado, não havendo a atribuição que tenha algum

mecanismo de controle sobre ele ou sua ação.

A quarta categoria é analisada no sentido em o representante seria um

“delegado” (do latim legare) enviado na condição de comissionário ou um “embaixador” (do

latim ambactiare) que possuiria uma missão (enviado ou emissário). Dadas as explícitas

instruções de sua atividade,36 justifica-se daí que poderes inerentes à atividade representativa

32 PITKIN, Hanna Fenichel. The concept…Op. Cit. p. 232. 33 PITKIN, Hanna Fenichel. The concept…Op. Cit. p. 122. 34 No entanto, a autora faz questão de diferenciar a curadoria da representação para refutar aquela como uma categoria adequada à representação democrática. (PITKIN, Hanna Fenichel. The concept…Op. Cit. p. 128-129. 35 PITKIN, Hanna Fenichel. The concept…Op. Cit. p. 133. 36 PITKIN, Hanna Fenichel. The concept…Op. Cit. p. 134.

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do Congresso Nacional (intuito personae) não podem ser objeto de extensão da delegação

(delegação da delegação), como dispõe o art. 68, § 1º, da Constituição da República de 1988,

mas apenas aquelas ordinárias ou comuns.

Por fim, a quinta categoria estaria ligada ao “especialista” que agiria de forma

independente, mas no interesse de outro37. Justificaria a sua atuação pela crescente

complexidade social, na qual as pessoas não poderiam estar em vários lugares ao mesmo

tempo. Entre elas, a escolha dos representantes políticos para cuidar da política para ele, assim

como se faz para escolher um médico para cuidar da saúde ou de um advogado para cuidar de

uma demanda.

Nota-se nesta discussão a tensão fundamental entre público e privado. De um

lado, a representação do direito civil (natureza privada), instrumentalizada no paradigma do

Estado Liberal como uma procuração de cessão de poderes, tem seu conteúdo previamente

delimitado, inclusive com a possibilidade de responsabilizar o procurador por eventual abuso

ou leniência no seu desempenho (mandato imperativo), visto que este não possui autonomia

decisória. Assim, a vontade do representado guarda estreito liame com a atuação vinculada do

representante. Por outro lado, a representação política não pode mais ser concebida como no

paradigma do Estado Social, por meio de uma visão minimalista de que se trata de um “falso

problema”, como justifica o positivismo jurídico, ao delimitá-la como a satisfação pelo

cumprimento formal da norma autorizativa institucionalmente posta.38

Desse modo, citando importante trabalho de Mark Kishlansky a respeito do

nascimento do processo eleitoral inglês, Nadia Urbaldi conclui que

[...] a representação não pode ser reduzida nem a um contrato (de delegação) firmado através das eleições nem à nomeação de legisladores como substitutos do soberano ausente, porque sua natureza consiste em ser constantemente recriada e dinâmicamente ligada à sociedade. Em suma, a história moderna sugere que a genealogia da democratização começou com o processo representativo. A democratização do poder estatal e o poder unificador das idéias e movimentos políticos levados a cabo pela representação foram interconectados e mutuamente reforçadores.39

37 PITKIN, Hanna Fenichel. The concept…Op. Cit. p. 135. 38 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Representação política. São Paulo: Ática, 2000. 39 URBINATI, Nadia. Representação: O que torna a representação democrática? Lua Nova: revista de cultura e política. O futuro da representação. São Paulo, n º 67, p. 195, 2006.

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Por sua vez, ao contrariar a vertente liberal no tocante às relações do

representante com as expectativas do representado, Kelsen indica, sob os auspícios do Estado

Social:

A fórmula segundo a qual o membro do parlamento não é o representante dos seus eleitores, mas do povo inteiro, ou, como diziam alguns autores, do Estado inteiro, e que, portanto, não está obrigado por quaisquer instruções dos seus eleitores e não pode ser por eles destituído, é uma ficção política. A independência jurídica dos eleitos perante os eleitores é incompatível com a representação jurídica. A afirmação de que o povo é representado pelo parlamento significa que, embora o povo não possa exercer o poder legislativo direta e imediatamente, ele o exerce por procuração? Mas se não houver nenhuma garantia jurídica de que a vontade dos eleitores será executada pelos eleitos, se os eleitos são juridicamente independentes dos eleitores, não existe nenhuma relação jurídica de procuração ou representação. O fato é que um corpo eleito não tem chance, ou de apenas uma chance reduzida, de ser reeleito caso sua atividade não seja considerada satisfatória pelos seus eleitores, constitui, é verdade, uma espécie de responsabilidade política; mas essa responsabilidade política é inteiramente diferente de uma responsabilidade jurídica e não justifica a suposição de que o órgão eleito seja um representante jurídico do seu eleitorado, e muito menos a suposição de que um órgão eleito apenas por uma parte do povo seja o representante jurídico do Estado inteiro. Tal órgão “representa” o Estado tanto quanto um monarca hereditário ou um funcionário por ele nomeado. Se os autores políticos insistem em caracterizar o parlamento da democracia moderna, a despeito da sua independência do eleitorado, como um órgão “representativo”, se alguns autores chegam mesmo a declarar que o mandat impératif é contrário ao princípio do governo representativo, eles não apresentam um teoria científica, mas advogam uma ideologia política. A função dessa ideologia é dissimular a situação real, é sustentar a ilusão de que o legislador é o povo, apesar do fato de que, na realidade, a função do povo – ou, formulando mais corretamente, do eleitorado – limita-se à criação do órgão legislativo. A resposta à questão de saber se, de lege ferenda, o membro eleito de um corpo legislativo deveria estar juridicamente obrigado a executar a vontade de seus eleitores e, portanto, a de ser responsável para com o eleitorado depende da opinião sobre a amplitude em que é desejável que se concretize a idéia de democracia. Se é democrática a legislação a ser exercida pelo povo, e se, por motivos técnicos, é impossível estabelecer uma democracia direta e se torna necessário conferir a função legislativa a um parlamento eleito pelo povo, então é democrático garantir, tanto quanto possível, que a atividade de cada membro do parlamento reflita a vontade de seus eleitores. O chamado mandat impératif e a cassação de mandato de funcionários eleitos são

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instituições democráticas, desde que o eleitorado seja democraticamente organizado. A independência jurídica do parlamento diante do eleitorado pode ser justificada apenas pela opinião de que o poder legislativo é melhor organizado se o princípio democrático, segundo o qual o povo deve ser o legislador, não for levado a extremos. A independência jurídica do parlamento em relação ao povo significa que o princípio da democracia é, de certo ponto, substituído pela divisão do trabalho. A fim de dissimular essa mudança de um princípio para o outro, usa-se a ficção de que o parlamento “representa” o povo.40

De sobremodo, no Estado Democrático de direito o público não existe sem o

privado; ele precisa do privado (garantia de cidadania e integridade do direito). De outro lado,

o privado sem o público é egoísmo; por isso também necessita da dimensão pública. Podem

ser aparentemente contrários, no entanto, no caso concreto, não são contraditórios, mas

complementares. Segundo a teoria procedimentalista da democracia,

[...] o direito positivo, por depender das resoluções adotadas por um legislador, tem que distinguir, na autonomia das pessoas jurídicas, uma autonomia privada e uma pública, as quais se encontram numa relação complementar, permitindo que os destinatários do direto estabelecido possam entender-se, ao mesmo tempo, como autores que criam o direto.41

Com efeito, a democracia não é um ente absoluto, abstrato e muito menos um

simples

[...] dispositivo de técnica jurídica sobre como colocar em vigor textos de normas; não é, portanto, apenas uma estrutura (legislatória) de textos, o que vale essencialmente também para o Estado de Direito. Não é tão-somente “status activus” democrático. 42

Nesse sentido, ao criticar o conceito de legitimidade de Weber, por estar

condicionado às convenções sociais43 ligadas ao carisma, à tradição e à legalidade, Habermas

40 KELSEN, Hans. Teoria geral do direto e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. 3ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 416. 41 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia...vol. II, Ob. Cit. p. 157 42 MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da Democracia. Trad. Peter Nauman , São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 114-115. 43 “Por política entenderemos tão-somente a direção do agrupamento político hoje denominado ‘Estado’ou a influência que exerce nesse sentido [...] o Estado não se deixa definir, sociologicamente, a não ser pelo específico meio que lhe é peculiar, da forma como é, peculiar a todo outro agrupamento político, a saber, o uso

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indica o esvaziamento da normatividade da representação por Weber, pelo fato de este não

haver entendido o sentido no qual o representante deve atuar em benefício dos representados,

para simplesmente existir enquanto forma de legitimação.44

Por isso a função de moderadora do poder judiciário passa a ser inafastável

(art. 5º, inciso XXXV, da CR/88), uma vez que atua no processo eleitoral para manter a

normalidade e a legitimidade do pleito, além de processar e julgar o deputado e o senador por

fatos praticados antes ou depois do mandato que não possuem relação com os atributos do

cargo (art. 53, da CR/88). Porém, deve se guardar as bases normativas exigidas pelo Poder

Constituinte originário como sucedâneo da coerência normativa da decisão judicial e sua

adequação às especificidades de cada situação concreta45.

da coação física [...]Primordialmente existem – e veremos aqui três razões internas que justificam a dominação, existindo, consequentemente, três fundamentos de legitimidade. Inicialmente, a autoridade do ‘passado eterno’, ou seja, dos costumes santificados pela validez imemorial e pelo hábito, enraizado nos homens, de respeitá-los. Assim, se apresenta o ‘poder tradicional’, que o patriarca ou o senhor de terras exercia antigamente. Em segundo lugar, existe a autoridade que se baseia em dons pessoais e extraodinários de um indivíduo (carisma) - devoção e confiança estritamente pessoais depositadas em alguém que se diferencia por qualidades prodigiosas, por heroísmo ou por outras qualidades exemplares que devem fazer o chefe. Desse jeito é o poder ‘carismático’, exercido pelo profeta ou - no domínio político – pelo dirigente guerreiro eleito, pelo soberano escolhido por meio de plebiscito, pelo grande demagogo ou pelo dirigente de um partido político. Em suma, existe a autoridade que se impõe pela legalidade , pela crença na validez de um estatuto legal e de uma ´competência´positiva, estruturada em regras racionalmente estabelecidas ou, em outras palavras, a autoridade fincada na obediência, que reconhece obrigações concernentes ao estatuto estabelecido. Assim é o poder tal qual o exerce o ‘servidor do Estado’ atualmente e como o exercem todos os detentores do poder que dele se aproximam sob esse aspecto” (WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. Tradução: Jean Melville. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002, p. 59, 61- 62). 44 “El concepto de poder legítimo, de Max Weber, concentra la atención en el nexo existente entre la creencia en la legitimidad y el potencial de justificaciones de ciertos ordenamientos, por un lado, y sua validez fáctica, por el otro. La base de legitimidad permite conocer ‘los principios ultimos en que puede apoyarse la vigencia de un poder , es decir, la pretensión de que el gobernante sea obedecido por sus funcionarios, y todos ellos por los gobernados’. [...] El reconocimiento fático de un sistema de normas de ese tipo no se basa solamente, desde luego, en la creencia de legitimidad que los gobernados alientan, sino en el temor a sanciones que constituyen una amenaza indireta, y la resignación ante ellas, así como en el mero dejar hacer (compliance) teniendo en cuenta la impotencia percibida en uno mismo y la carencia de alternativas [...]Un procedimiento, como tal, no puede produzir legitimación, mas bien, la sanción mista necesita ser legitimada. Debe cumplirse entonces otra condición, por lo menos, si es que el poder legal ha de considerar-se legítimo: deben aducirse razones para la virtud legitimante de ese procedimiento forma, por exemplo, afirmando que la competencia del procedimiento reside en una autoridade estatal formada constitucionalmente [...] En este sentido, en mi polémica con Luhmann, deduje la creencia en la legalidad a partir de una creencia susceptible de fundamentación, en la legitimidad [...] En un régmen fascista, por ejemplo, el hecho de que el gobierno se ajuste, en sus actos, a la formalidad jurídica puede cimplir una función de encubrimiento ideológico; ello significa que la sola forma técnico-jurídica, la legalidad pura, no puede asegurar el acatamiento, en el largo plazo, si el sistema de poder no puede legitimar-se con independencia de sus ejercicio ajustado a las formas correctas” (HABERMAS, Jürgen. Problemas de legitimación en el capitalismo tardío. Tradução: José Luis Etcheverry. Madrid: Cátedra, 1999, p. 161/169. 45 SANTOS, Abraão Soares. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental e o Direito Ambiental: a identidade constitucional para além da tutela do Ministério Público e o axiologismo do Judiciário. In Direito Ambiental visto por nós advogados. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

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Desse modo, a democracia procedimentalista passa a ser dotada de idealidades

e passível de críticas, refutações em que cada inclusão pressupõe uma exclusão, sendo que

nenhuma das funções de poder está acima dessa adesão política ligada a uma forma de vida de

vinculada coletivamente com compromissos de construção permanente de um projeto de

sociedade que cada vez mais busca liberdade e igualdade. Eis a modernidade da

modernidade, na qual se consegue ver os erros e busca-se controlá-los, tendo em vista que

cada vez que se lança luz em algo, simultaneamente, se produz sombra.

03- A GARANTIA CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA EM ÂMBITO ADMINISTRATIVO PERANTE A CASA LEGISLATIVA E A POSSIBILIDADE DE REVERSÃO DA DECISÃO JUDICIAL

O resgate da concepção jurídica e institucional da representação política estabelece um dilema sobre a possibilidade de aplicação direta da pena de perda de mandato, vulgarmente denominada de “cassação” que , para o Supremo Tribunal Federal, quando decorre do art. 41-A da Lei Federal nº 9.504/97, é executável sem necessidade do trânsito em julgado (MS 27.613), fazendo-se distinção desta com a declaração de inelegibilidade, prevista no artigo 22 da Lei Complementar nº 64/90, que estabelece os casos de inelegibilidade e prazos de cassação, cuja execução está condicionada ao trânsito em julgado.

Com efeito, dispõe a Constituição de República que

Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador: [...] V - quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição; [...] § 3º - Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa. (Ênfase adicionada) .

Mesmo diante do princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CR/88), não se pode concordar que a ampla defesa assegurada como um direito fundamental (art. 5º, LV, da CR/88) seja meramente pró-forma e que a Mesa da Casa legislativa deve apenas cumprir mecanicamente a ordem judicial. A prevalecer esse entendimento decisionista ou com referência a um direito suprapositivo originado do Poder Judiciário que passa a conceber a Constituição como uma ordem concreta de valores que cabe a ele densificar, tem-se a manifesta infração a texto expresso da Constituição, contrariando o princípio da conformação constitucional ou da correção funcional, que, segundo, Canotilho, tem em vista impedir, em sede de concretização da constituição, a alteração da repartição de funções constitucionalmente estabelecidas. Como limite ao órgão encarregado da interpretação da

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Constituição, não pode ele chegar a um resultado que subverta ou perturbe o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido46.

É imperativo categórico que a presunção da higidez da decisão judicial seja inexorável, porém não pode ser uma presunção absoluta e intransponível. A necessidade da ampla defesa em âmbito administrativo após a decisão judicial, ao contrário do que ordinariamente acontece, mitiga o caráter imediatista da decisão judicial. E não poderia ser diferente, pois se trata de representação popular de caráter público indisponível, cuja lesão se torna irreparável.

Nota-se que é o próprio constituinte no art. 5º, inciso, LXXVI, que prevê a indenização por erro judiciário, sendo que no âmbito cível e penal tem-se a possibilidade de reversão da decisão até mesmo transitada em julgado, mesmo sendo em caráter excepcional. Assim preconiza o art. 485, do Código de Processo Civil:

Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: I - se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz; II - proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente; III - resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei; IV - ofender a coisa julgada; V - violar literal disposição de lei; Vl - se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória; Vll - depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de Ihe assegurar pronunciamento favorável; VIII - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença; IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa;

Por sua vez, dispõe o Código de Processo Penal a reversão da decisão judicial a qualquer tempo:

Art. 621 - A revisão dos processos findos será admitida: I - quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos; II - quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos;

46 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Teoria da Constituição de Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 2001.

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III - quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena.

A estabilização das relações no âmbito da representação parlamentar e as expectativas coletivas dos representados exigem dos poderes judiciário e legislativo uma interpretação do ordenamento como uma integridade, devendo a Casa oportunizar a ampla defesa efetiva de modo a levar a sério as pretensões do parlamentar como legítimas, de modo que a decisão deve ser fundamentada, sendo que, em hipóteses extremas, poderá reverter a decisão judicial que até então possuía o caráter de definitividade. Neste diapassão, ao problematizar a democracia como um governo do povo, Dworkin defende a idéia de liberdade posta sob o background das discussões sobre as técnicas de representação, periodicidade das eleições e suas modalidades deliberativas. A democracia passa pelo sentido do que se denomina como democracia e o seu objetivo fundamental. Para tanto, busca desconstruir os argumentos da concepção majoritária da democracia como a essência da democracia, sob a tese de que seus resultados tidos como justos em um processo político pressupõem uma maioria de cidadãos informados adequadamente e com tempo suficiente para reflexão. Outrossim, ao atuar como poder “contramajoritário” no controle de constitucionalidade, o Poder Judiciário está cumprindo sua função constitucionalmente vinculada numa comunidade de princípios bem ordenada, pois

[...] a premissa majoritária traz em si a definição e a justificação últimas da democracia aceitam mesmo assim que em certas ocasiões a vontade da maioria não deve predominar. Concordam que a maioria não deve ser sempre a juíza suprema de quando o seu próprio poder deve ser limitado para protegerem-se os direitos individuais, e aceitam que pelo menos algumas das decisões da Suprema Corte que repudiaram leis populares, como aconteceu com a decisão do caso Brown, foram corretas [...] Em outras palavras, a premissa <majoritária> supõe que, quando uma maioria política não pode fazer o que quiser, isso é sempre injusto, de tal modo que a injustiça permanece mesmo quando existem fortes razões que a justifiquem.47

Para superar a premissa majoritária fundada na idéia de democracia como o procedimento de decisões coletivas em que a maioria dos cidadãos tomaria se fosse plenamente informada, esta é rechaçada como força legitimadora pelo argumento da autoridade, pois não pode ser considerada uma meta e muito menos uma definição de democracia. Para tanto, Dworkin passa a defender o que ele denomina de concepção constitucional de democracia fundada na premissa segundo a qual “as decisões coletivas sejam tomadas por instituições políticas cuja estrutura, composição e modo de operação dediquem a todos os membros da comunidade, enquanto indivíduos, a mesma consideração e respeito.”48

47 DWORKIN, Ronald. O direito a liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 25. 48 DWORKIN, Ronald. O direito à liberdade...Ob. Cit. p. 26.

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Embora exija que as decisões políticas cotidianas sejam tomadas por representantes escolhidos em eleições populares, a concepção constitucional de democracia utiliza os procedimentos majoritários, preocupada com a igualdade dos cidadãos, e não pautada por objetivos exclusivos almejados pela soberania da maioria, pois esta deve respeitar as condições democráticas. Desse modo, o controle de constitucionalidade dos excessos praticados pela premissa majoritária legislativa ou mesmo contramajoritária judiciária, principalmente quando esta busca se destacar, não mais como uma independência funcional, mas como um poder desvinculado da autoridade das leis e da Constituição49, não compromete a democracia, mas a reafirma. 04- CONSIDERACÕES FINAIS

Ao se exigir hodiernamente que as crises não mais sejam resolvidas com argumentos absolutos, o controle da atividade política perpassa por uma integração hermenêutica das instituições do poder público, sem os excessos axiologistas do Poder Judiciário de submeter o sistema do direito à moral, implementando indistintamente o mesmo método de solução de conflitos de valores (escolhas por determinados bens) à solução de conflitos aparentes de princípios (expectativas compartilhadas de comportamento) e, muito menos, o corporativismo privatista do Poder Legislativo que, em vez de continuar caminhando para um agir estratégico, deve-se buscar a integração social de uma comunidade de princípios e suas expectativas de comportamento, por meio do agir comunicativo. Contudo, não se pode atropelar os ditames estabelecidos pelo poder constituinte originário no art. 55, § 3º, que determina que, mesmo ao receber uma ordem judicial de perda de mandato (art. 55, inciso V), deve se oportunizada a efetiva defesa ao parlamentar e, em hipóteses extremas que, por analogia, justifiquem eventual ação rescisória ou revisional criminal, deve o poder legislativo superar a presunção de suprapositividade da atual jurisdição constitucional e manter a vontade sufragada pela soberania popular. Para tanto, a Casa Legislativa deve integrar a lide na qualidade de litisconsorte necessário para que, diante de uma decisão dessa envergadura, possa, além de negar a execução da ordem judicial em suas paragens, propor imediatamente a competente ação rescisória.

05- BIBLIOGRAFIA

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49 FRANCO BAHIA, Alexandre Gustavo Melo. Ingeborg Maus e o judiciário como superego da sociedade. Revista CEJ, Brasília, n. 30, p. 10-12, jul/set. 2005.

23

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