A CONSTITUIÇÃO DA CENOGRAFIA NA LITERATURA DE … · superstesi, ou seja, é aquele que viveu ......
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A CONSTITUIÇÃO DA CENOGRAFIA NA LITERATURA DE
TESTEMUNHO: O SONHO DOS PRISIONEIROS, DE PRIMO LEVI
Anderson Ferreira* (PUC-SP)
RESUMO: Este artigo tem por objetivo analisar a construção da cenografia em uma passagem do livro
É isto um homem? de Primo Levi, contida no sexto capítulo intitulado As nossas noites. Essa passagem,
tomada aqui como discurso, diz respeito à narração de um sonho de conteúdo comum a todos os
prisioneiros que estiveram em Auschwitz entre 1943 1944. Trata-se da descrição de uma cena da
memória do narrador. A construção da cenografia do sonho envolve o leitor e o coloca num lugar
comum, entre as relações familiares e sociais mais corriqueiras, no entanto o leitor é levado a colocar
em primeiro plano a cenografia já construída por toda narrativa pela qual se mantém enlaçado como
testemunha ao incorporar o mundo ético de um fiador. Privilegiamos como aporte teórico-metodológico
a Análise do Discurso de linha francesa, em particular, os estudos propostos por Dominique
Maingueneau sobre a noção de cenas de enunciação. A textualização do discurso nos revelou que por
meio das cenografias construídas o produtor-autor envolve o leitor em dois mundos incompatíveis, o
lugar do campo de concentração de Auschwitz – irrepresentável pelo sonho- e o lugar do seio familiar -
trivial, desejável e representativo de humanidade.
PALAVRAS-CHAVE: Cenografia; Primo Levi; literatura de testemunho.
ABSTRACT: This article aims to analyze the construction of scenography in a passage from the book It
this a man? By Primo Levi, contained in the sixth chapter titled Our nights. This passage, taken here as
discourse concerns the narration of a dream content common to all prisoners who were in Auschwitz
between 1943 and 1944. This is the description of a memory scene of the narrator in which he talks about
his experience as a prisoner. The construction of the scenery of the dream involves the reader and puts a
commonplace among the most ordinary family and social relationships , however the reader is led to
place in the foreground the scenery already built throughout the narrative which remains tied as a
witness to incorporate ethical world of a guarantor . Privilege as a theoretical and methodological
contribution Discourse Analysis of French line, in particular, the studies proposed by Dominique
Maingueneau on the notion of scenes of enunciation. The textualization of the speech showed us that
through sceneries built the producer -author engages the reader in two incompatible worlds, the place of
the concentration camp of Auschwitz - the unrepresentable dream - and the place of the family
environment - trivial, desirable and representative of humanity.
KEYWORDS: Scenography ; Primo Levi; testimony literature.
INTRODUÇÃO
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A literatura de testemunho tomou grande impulso a partir da segunda guerra mundial.
Narrada pela memória de sobreviventes de grandes acontecimentos históricos
traumáticos, ela é o testemunho de muitos daqueles que nada puderam dizer. As
palavras que não puderam ser pronunciadas estão textualizadas no discurso dessa
literatura.
Convencionamo-nos a descobrir nessa escrita uma ponta de dor acerca daquilo que não
vivemos, e nem acreditamos que alguém possa ter vivido. As palavras que testemunham
esse dilaceramento moral e físico que só o homem pode fazer a seu semelhante são os
registros de algo incompreensível e irrepresentável.
Esse discurso revela-nos algo entre a realidade e a ficção, esta que gostaríamos que
fosse a essência de tal narração, mas não é. Toda literatura de testemunho intriga pelo
viés histórico, não-ficcional e literário. Primo Levi é um bom exemplo desse fenômeno.
Sua escrita transita entre a memória, a realidade e a ficção. Sobrevivemos com ele, por
meio de seu discurso, vagamos por entre o campo de extermínio, junto aos prisioneiros
que ali circulam, marcham, dormem, trabalham, sonham e morrem sem saber o porquê.
Nesse artigo, destacamos um procedimento de construção das cenas da enunciação.
Visamos com isso enfatizar de que forma o narrador/enunciador coloca o leitor/co-
enunciador na marcha, nos dormitórios, na labuta, no sonho e no anonimato de milhares
de vítimas dos campos de extermino. Destacamos, contudo, a cenografia que instaura no
discurso o lugar do homem na humanidade: na fraternidade entre os homens.
Esse artigo divide-se em três partes: Na primeira visamos a considerar as condições de
produção do discurso analisado. Na segunda fizemos alguns apontamentos acerca da
noção de cenografia proposta no quadro da Análise do Discurso de linha francesa em
que destacamos os estudos Maingueneau (2006; 2008; 2011). Na terceira parte, por
meio desse suporte teórico-metodológico e as condições sócio-histórica de produção do
discurso, examinamos um fragmento do livro, tomado aqui como discurso, em que se
destaca um sonho narrado pelo enunciador no campo de extermínio de Auschwitz.
Diante da impossibilidade de apreender a realidade dos acontecimentos, a enunciação
dispõe a cenografias sobrepostas, a cenografia no sonho envolve o leitor naquilo que se
apresenta como a mais natural das condições humanas, ou seja, a humanidade. Essa
cenografia recobre outra, presente durante toda a narrativa, sustentada por sua condição
‘quase’ ficcional: a degradação humana. A cenografia do sonho é um lugar possível,
desejável: a família, os amigos, o lar, enfim, a vida em sociedade.
1 PRIMO LEVI E A LITERATURA DE TESTEMUNHO
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Agamben (2008), ao analisar o papel do testemunho e sua significação dentro da
constituição discursiva, diz ser Primo Levi um tipo perfeito de testemunha. Para o
filósofo, o fato de Levi, contar a todos o que viveu o faz escritor unicamente para
testemunhar.
Primo Levi (1919-1987) foi um judeu italiano e esteve entre os prisioneiros no campo
de extermínio de Auschwitz, na Polônia. Logo depois de receber seu título de doutor
em Química pela Universidade de Turim, Levi decide formar um grupo para lutar contra
os fascistas, mas em meados de dezembro de 1943 é preso por milícias fascistas. Nesse
período, outros judeus eram enviados a campos de extermínio. Levi, assim como
centenas de judeus, foi enviado a um campo de extermínio perto de Módena, na Itália.
Contudo, dois meses depois, em 22 de fevereiro de 1944, todos foram deportados para
Auschwitz.
A viagem durou cinco dias dentro de vagões de trem chumbados. Todos já tinham
ouvido falar daquelas viagens de comboios realizadas pelos alemães. A notícia era de
que ninguém nunca voltara delas. De fato, conta Levi, dos 650 judeus deportados
naquele comboio, somente 29 sobreviveram. A morte anônima se baseava na ideia de
que aquele povo era diferente e inferior, Levi relata que aquilo o fez se sentir diferente e
superior, a diferença que lhe foi imposta deu-lhe a condição de afirmar sua identidade
como judeu.
Levi é a testemunha que conta tudo e a todos o que viveu. Quando muitos se calam, ele
decide contar, no entanto não se considera um escritor e, sim, um químico, torna-se,
pois, escritor para testemunhar. Segundo Agamben (2008), Levi é uma testemunha
superstesi, ou seja, é aquele que viveu algo, completou a trajetória desse evento, e,
portanto, pode testemunhar. Por outro lado, Levi não é uma testemunha que pode ser
imparcial (talvez nenhuma o seja), embora ele não se interesse pelo julgamento, não
julga os acontecimentos do ponto de vista da “vítima”. “Aliás, parece que lhe interessa
apenas o que torna impossível o julgamento, as zonas cinzentas em que as vítimas se
tornam carrascos, e os carrascos, vítimas”. (AGAMBEN, 2008, p. 27)
Levi escreveu dezenas de títulos, sua obra é marcada por uma divisão entre a literatura
de testemunho e a literatura que ele se considera despido da qualidade de testemunha.
Focalizaremos em nosso artigo essa primeira produção que no século XX, sobretudo
pós-guerra teve grande penetração na literatura mundial. Dessa produção separamos o
livro É isto um homem? Escrito um ano após sua libertação do campo de extermínio em
1945. Levi relata os onze meses de privação em que sobreviveu no campo de extermínio
Auschwitz.
Essa narrativa contada por um narrador homodiegético revela o processo de
desumanização e degradação que sofreram os prisioneiros. Na verdade, conta-se o
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projeto essencial dos campos de extermínio, a saber: a destruição do ser humano pela
humilhação, pela privação, pela negação de qualquer condição que o faça lembrar-se de
sua humanidade. Como, por exemplo, nessa passagem:
Obviamente, isso não impede que muitos deles [soldados alemães] nos
joguem, de vez em quando, um pedaço de pão ou nos confiem (após a
distribuição da "sopa para trabalhadores externos", na fábrica) as suas
gamelas para raspar e devolver limpas. São levados a isso para não continuar
sentindo sobre si algum importuno olhar faminto, ou por um momentâneo
impulso de humanidade. Ou pela simples curiosidade de nos ver disputando
um com o outro o naco de comida como bichos, sem pudor, até que o mais
forte engula e os demais vão embora frustrados, claudicantes. (LEVI, 1988,
p. 123)
Separamos, para objetivo de nossa análise, uma passagem do livro presente no capítulo
As nossas noites. Esse fragmento relata um sonho do narrador. Este sonho é descrito
como um sonho comum a todos os prisioneiros, a memória onírica os leva para suas
casas, junto a suas famílias, mas como um fantasma, alguém que ninguém ouve e nem
vê. O sonho não é uma ruptura entre a realidade e o mundo onírico, ele se configura
entre um leve sono cujos fatores externos se reverberam em outra dimensão, em outro
lugar muito longe dali, um lugar mais reconfortante no seio familiar. O apito de trem
conduz a viagem entre os dois mundos.
Tenho os olhos fechados; não quero abri-los, não, para que o sono não fuja de
mim, mas ouço os ruídos: este apito ao longe eu sei que é de verdade, não é
da locomotiva do sonho. É o apito do trenzinho da fábrica, que trabalha dia e
noite. Uma longa nota firme, logo outra, mais baixa de um semitom, logo a
primeira nota de novo, mas curta, truncada. Esse apito é importante; é, de
certo modo, essencial: tantas vezes já o ouvimos, ligado ao sofrimento do
trabalho e do Campo, que se tornou seu símbolo, evoca diretamente a ideia
do Campo, assim como acontece com certos cheiros, certas músicas. (LEVI,
1988, p. 59-60)
A sequência seguinte a essa será o objeto de nossa análise. Para tanto, discutiremos, na
próxima seção, a noção de cenas da enunciação proposta por Maingueneau (2006; 2008;
2011).
2 CENAS DA EUNCIAÇÃO
Ao falarmos em cenas de enunciação, estamos nos referindo a duas noções contidas na
sentença: cenas de enunciação. A primeira diz respeito ao item lexical cena. Podemos
nos remeter de imediato à cena de peça teatral. Neste caso, temos a concepção de partes
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temáticas que se realizam durante um espetáculo teatral. Cada cena teatral é composta
por uma situação de comunicação, num quadro pré-construído, onde as falas já estão
prontas, bem como já está previsto o desenrolar do enredo. Independente do tema de
cada cena, ou da quantidade de personagens, existe, no interior de cada uma, um
começo, um meio e um fim, pelo menos num tempo físico, que se desenrola entre
rupturas, num lugar onde se realiza o ato.
As cenas, no caso das peças teatrais, já estão construídas pelos seus autores e servem de
guia para diretores, atores e atrizes e toda equipe que trabalha na produçãoii. O que
queremos dizer é que, mesmo com todo o talento do elenco envolvido na peça teatral, as
cenas já estão previstas e descritas pelo autor da peça. Dessa ideia de pré-constituição,
portanto, é que tendemos a inferir o sentido de cenas a um lugar e um momento, dados
pelos marcadores de espaço e tempo (aqui-agora). O que sugere a expressões do tipo:
Ele estava na cena do crime ou Não me lembro dessa cena.
Enunciação, por sua vez, significa o ato do acontecimento. Sua concepção pode ser
tanto linguística como discursiva. No primeiro caso, podemos apreender a enunciação
enquanto prática individual do sujeito falante, pondo em funcionamento a língua. No
segundo caso, a que tomamos como referência nesse trabalho, a concepção de
enunciação pode ser apreendida como fatos, ou seja, como acontecimento em “um tipo
de contexto e apreendido na multiplicidade de suas dimensões sociais e psicológicas”.
(CHARAUDEAU. P; MAINGUENEAU, p.193). Esse acontecimento é constituído de
enunciado(s). Assim, para que se haja enunciação é preciso existir a marca verbal que a
constitui. Desde já, na perspectiva da Análise do Discurso de linha francesa, o
enunciado se opõe a enunciação.
No discurso, as cenas são construídas por meio das marcas linguísticas selecionadas
pelo enunciador e, sobretudo, por uma relação interdiscursiva. Essas marcas, por sua
vez, ancoram os enunciados na situação de enunciação – sistema de coordenadas
abstratas, associadas a toda produção verbal. As cenas de fala são constitutivas do
discurso. Dessa forma, “a situação de enunciação não é uma situação de comunicação
socialmente descritível, mas o sistema onde são definidas as três posições fundamentais
do enunciador, do co-enunciadoriii
e da não-pessoa”. (MAINGUENEAU, 2006, p. 250).
Portanto, a situação de enunciação constrói um conjunto de posições abstratas onde se
estabilizam as atividades enunciativas, sua base é, em particular, a marcação dos
dêiticos. Consideramos, portanto, a enunciação ocorrendo em um espaço instituído, que
o gênero do discurso irá definir e de onde se construirá uma cena no e pelo discurso.
Para desenvolvermos essa estratégia falaremos das três cenas propostas por
Maingueneau (1997; 2006; 2008; 2011).
O que define o quadro cênico do texto, o espaço estável no qual o enunciado tem
sentido, são as cenas de enunciação chamadas cena englobante e cena genérica. A
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primeira corresponde a um tipo de discurso, ou seja, confere ao discurso um estatuto
pragmático, quais sejam: literário, religioso, filosófico etc. A segunda diz respeito ao
gênero do discurso que - como o definiu Bakhtin (2010) – são tipos relativamente
estáveis de enunciados. Há ainda uma terceira cena com a qual o co-enunciador se
confronta: a cenografia. Essa cena não é imposta pelo gênero, mas é construída pelo
próprio texto à medida que a enunciação se desenvolve.
Situando o nosso objeto de estudo nesse quadro cênico, teríamos: o livro de Primo Levi
intitulado É isto um homem? como parte da cena englobante. Essa cena confere ao
discurso um estatuto pragmático, integrando-lhe em um tipo, nesse caso, diz repeito ao
discurso literário. A cena genérica está ligada aos gêneros de discurso particulares,
podemos falar aqui de literatura de testemunho, particularmente, considerando que tal
narrativa não contém fatos ficcionais, como o próprio autor ressalta em seu prefácio. Ou
seja, esse gênero discursivo tem uma função social definida pelo produtor, mas nem
sempre conseguimos especificar uma cena genérica no interior da obra literária, pois
precisaríamos discutir se a literatura tem ou não uma função social, o que não é o
objetivo desse trabalho. Resta lembrar que Primo Levi visou uma função para sua
escrita, a saber: testemunhar. “O livro foi escrito para satisfazer essa necessidade em
primeiro lugar, portanto, com a finalidade de liberação interior”. (LEVI, 1988, p. 7)
Assim, a cena genérica pode ser classificada como relato testemunhal.
Contudo, cada gênero de discurso implica uma cena específica. As duas primeiras cenas
definem o quadro cênico do texto, o espaço estável, por assim dizer, no qual o
enunciado tem sentido. Por fim, a cenografia, instituída pelo próprio discurso nessa
obra, se manifesta mantendo certa distância do seu co-enunciador. Esta distância
implica - pelas condições que cria para se construir uma consciência de identidade e
pelo seu ponto de vista crítico-reflexivo - uma narrativa de história em detrimento a uma
narrativa de relato.
Para Maingueneau (2006), todo enunciado literário está associado com uma cena
englobante literária, pela qual se permite que o autor use pseudônimo e que os estados
de coisas que se propões sejam fictícios. Nesse ponto há uma tensão no que tange a obra
de Primo Levi. O autor, em seu prefácio, faz-nos a seguinte consideração:
Este meu livro, portanto, nada acrescenta, quanto a detalhes atrozes, ao que já
é bem conhecido dos leitores de todo o mundo com referência ao tema
doloroso dos campos de extermínio. Ele não foi escrito para fazer novas
denúncias; poderá, antes, fornecer documentos para um sereno estudo de
certos aspectos da alma humana. [...] O livro foi escrito para satisfazer essa
necessidade em primeiro lugar, portanto, com a finalidade de liberação
interior. Daí, seu caráter fragmentário: seus capítulos foram escritos não em
sucessão lógica, mas por ordem de urgência. O trabalho de ligação e fusão foi
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planejado posteriormente. Acho desnecessário acrescentar que nenhum dos
episódios foi fruto de imaginação. ( LEVI, 1988, p. 7, ênfases nossas).
Ora, como bem disse o autor, os ‘estados de coisas’ relatados no livro não são fictícios,
nem ele se utiliza de um pseudônimo para relatá-los. Tal obra, como sabemos, é tida
como literatura de testemunho - tipo de escrita cujo foco central é narrar um
acontecimento como evento extraordinário cujas ações apresentam uma ruptura com o
cotidiano. Maingueneau (1996; 2006) não se debruça nesse tipo de escrita literária em
seu estudo sobre o discurso literário, uma vez que propõe como possiblidades desse tipo
de discurso a ficcionalidade da obra e o apagamento do autor empírico.
Sendo assim, podemos redefinir, para fins didáticos, o quadro cênico da obra de Primo
Levi nos seguintes termos: A cena englobante se refere à literatura de testemunho, a
cena genérica - longe de ser um espaço estático do campo de extermínio - diz respeito
ao contrato associado ao gênero discursivo, logo, o domínio desse gênero é de
fundamental importância para se interpretar e produzir enunciados decorrentes de uma
formação discursiva. No caso, o domínio desse gênero tanto do produtor – sobrevivente
do campo de extermínio- como do leitor que dispõe de algum conhecimento sobre o
fato, firmam o contrato associado ao gênero discursivo que classificamos como relato
de testemunho. Este quadro cênico é afastado e dá lugar a uma cena narrativa construída
pelo texto: a cenografia.
Assim, a cenografia do relato em Primo Levi institui no e pelo discurso aquilo que é
irrepresentável, no momento enunciado, como instância do real. Na verdade, a própria
construção da literatura de testemunho coloca em questão a relação entre a literatura de
ficção e o real. O co-enunciador/leitor está no limiar dessas concepções. A instituição
das cenografias contribui para a reflexão sobre o discurso não ficcional, sobre o discurso
histórico e sua relação com o discurso literário. O ethos do enunciador se especifica e se
valida pelo discurso. O que vale dizer que todo e qualquer enunciado pretende agir
sobre o outro. “Todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si”
(AMOSSY, 2011, p. 9).
É, contudo, a cenografia construída que colocará o co-enunciador/leitor no campo de
extermínio. Esse procedimento é suficiente para propor valores. É pela construção da
cenografia que o enunciador valida a posição do autor-produtor, aquela de não ser juiz,
porque “toda obra, por sua própria apresentação, pretende instituir a situação de
enunciação que a torna pertinente”. (MAINGUENEAU, 2006, p. 253)
Proporemos, na análise que se segue, que a pertinência da obra de Primo Levi na
literatura de testemunho, muito se deve processo bem sucedido de textualização do
discurso testemunhal, entre esses mecanismos e procedimentos, destacamos a
cenografia.
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3 AS NOSSAS NOITES
Recorte 1.
Aqui está minha irmã, e algum amigo (qual?), e muitas outras pessoas.
Todos me escutam, enquanto conto do apito em três notas, da cama dura,
do vizinho que gostaria de empurrar para o lado, mas tenho medo de
acordá-lo porque é mais forte que eu. Conto também a história da nossa
fome, e do controle dos piolhos, e do Kapo que me deu um soco no nariz e
logo mandou que me lavasse porque sangrava. É uma felicidade interna,
física, inefável, estar em minha casa, entre pessoas amigas, e ter tanta coisa
para contar, mas bem me apercebo de que eles não me escutam. Parecem
indiferentes; falam entre si de outras coisas, como se eu não estivesse.
Minha irmã olha para mim, levanta, vai embora em silêncio. Nasce então,
dentro de mim, uma pena desolada, como certas mágoas da infância que
ficam vagamente em nossa memória; uma dor não temperada pelo sentido
da realidade ou a intromissão de circunstâncias estranhas, uma dor dessas
que fazem chorar as crianças. Melhor, então, que eu torne mais uma vez à
tona, que abra bem os olhos; preciso estar certo de que acordei, acordei
mesmo. O sonho está na minha frente, ainda quentinho; eu, embora
desperto, continuo, dentro, com essa angústia do sonho; lembro, então, que
não é um sonho qualquer; que, desde que vivo aqui, já o sonhei muitas
vezes, com pequenas variantes de ambiente e detalhes. Agora estou bem
lúcido, recordo também que já contei o meu sonho a Alberto e que ele me
confessou que esse é também o sonho dele e o sonho de muitos mais; talvez
de todos. Por quê? Por que o sofrimento de cada dia se traduz,
constantemente, em nossos sonhos, na cena sempre repetida da narração
que os outros não escutam?
LEVI, Primo. É isto um homem? Tradução de Luigi Dei Re. - Rio de Janeiro:
Rocco, 1988. p. 60.
Insistimos que a cenografia é aquela com a qual o co-enunciador se defronta. É a partir
da própria enunciação que a cena vai sendo construída, portanto, não existe um quadro
construído a priori e independente no interior do espaço. Considera-se aqui o desenrolar
da enunciação, o acontecimento propriamente dito, isto é, a iniciação dentro da própria
progressão do mecanismo de fala.
Temos, então, os seguintes constituintes da cena com a qual se defronta o co-
enunciador/leitor no trecho do sonho comum aos prisioneiros do campo de extermínio:
A irmã e um amigo, e “muitas outras pessoas” essa textualização engendra um lugar
familiar, a casa do narrador. Essas outras pessoas estão lá, talvez por ocasião de uma
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festa, ou uma reunião entre amigos. A cenografia vai sendo construída de forma paralela
com aquele que o co-enunciador já se vê enlaçado. O co-enunciador se vê movido de
um lugar – campo de extermínio – a outro, seio familiar.
Trata-se da enunciação colocada num quadro onírico. Na verdade, tal relato enunciativo,
no sonho, não é ficcional. Seu conteúdo é exatamente aquilo que aconteceu durante o
período de aprisionamento, sobrepondo-se a uma memória externa: a reunião familiar. É
o desejo de se contar. O sonho é realização desse desejo. O conteúdo do sonho é
justamente a memória e não a esperança de estar entre os entes queridos. No sonho, o
narrador é um ‘fantasma’ para os outros “ mas bem me apercebo de que eles não me
escutam. Parecem indiferentes”. A enunciação do sonho respeita o fato de serem os
diálogos oníricos imprevisíveis do ponto de vista de seu controle.
O enunciador constrói a cena a partir do lugar familiar. O co-enunciador/leitor se
defronta com essa cenografia peculiar do narrador, uma vez que a narrativa não é
ouvida pelas pessoas no sonho, conta-se algo ‘banal’ em relação ao acontecimento
histórico dos horrores acontecidos nos campos de extermínio, conta-se “da cama dura,
do vizinho que gostaria de empurrar para o lado, mas tenho medo de acordá-lo porque é
mais forte que eu”. Essa aparente ‘banalidade’ em relação ao conteúdo do relato, diz
respeito à sobrevivência pelo discurso daqueles que sobreviveram aos campos de
extermínio, testemunhar é a forma de viver com o constrangimento por ter sobrevivido.
Em última instância, o testemunho, como o atesta Primo Levi, tem caráter de impulso
imediato e violento, colocando-se a frente de outras necessidades. “Todos me escutam,
enquanto conto do apito em três notas”.
Da felicidade do sonho a dor da realidade. O sonho, na verdade, confunde-se com a
realidade vivida no campo de extermínio “o sonho está na minha frente ainda
quentinho”. As duas cenografias do sonho e do campo agora se hibridizam. A
cenografia revela dois lugares que se confundem. De um lado, a testemunha que, num
ímpeto, relata sua experiência aos presentes de forma contínua e sem coesão. Dentro
desse relato, aparecem outras cenas, que surgem como fotografias. Temos, então, cenas
sobrepostas. “Conto também a história da nossa fome, e do controle dos piolhos, e do
Kapoiv que me deu um soco no nariz e logo mandou que me lavasse porque sangrava”.
Esse ímpeto de contar é verificado no fluxo contínuo em que se conta sobre o campo de
extermínio. Há uma tendência no sonho de sintetizar todo o acontecimento. Do outro
lado, as pessoas do sonho: “irmã, amigo (qual?), e muitas outras pessoas”. Elas atuam
de forma paralela na cena. Primeiro passivamente, “todas me escutam”; depois a parte,
“falam entre si de outras coisas, como se eu não estivesse”.
Contudo, somente a irmã, o ente mais próximo e, provavelmente, mais querido, age na
cena em favor do narrador. “Minha irmã olha para mim, levanta, vai embora em
silêncio”. A instituição da cenografia aqui funciona para justificar a irrepresentabilidade
do real. Tudo parece estar chegando ao fim, e ao mesmo tempo é impossível ouvir
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aqueles entes queridos, também é impossível que eles acreditassem em tal história, em
tal degradação moral e física do ser humano por seus semelhantes. A cenografia no
sonho perde força conforme a enunciação avança, ela vai sendo comprimida por outra
cenografia que coloca o co-enunciador em um não lugar. “Nasce então, dentro de mim,
uma pena desolada, como certas mágoas da infância que ficam vagamente em nossa
memória”.
O cenografia revela dois mundos impossíveis de serem compartilhados, o co-
enunciador/leitor é enlaçado pelo primeiro mundo, o lugar do campo de extermínio e
nem é preciso descrever o absurdo desse lugar, ele já o sabe pela força narrativa do
texto, mas junto a esse mundo o discurso constrói uma cenografia por meio do sonho,
uma salvação, a família, os amigos, as conversas informais, um lar, a memória ainda
lúcida, o co-enunciador é convocado a participar desse mundo familiar desejável, mas
distante para quem perdeu a condição de humanidade, a cenografia do sonho aos poucos
se afasta, nada há mais possibilidade de narrar, o que resta é um sentimento, “uma dor
não temperada pelo sentido da realidade ou a intromissão de circunstâncias estranhas,
uma dor dessas que fazem chorar as crianças”.
É esta a cenografia que dizemos ser irrepresentável dentro de certa instância do real,
embora emergida do real. A narrativa que admite essa enunciação parece-nos carregada
de um paroxismo que reverbera no coenunciador/leitor. Esta narrativa se apresenta
como a mais veemente e verossímil realidade da alma humana. Aqui o co-enunciador,
segundo Maingueneau (1996), coloca em movimento o narrador percebido como
instância que sustenta o ato de narrar. Nesse sentido, é o co-enunciador que “enuncia a
partir das indicações cuja rede total constitui o texto da obra”. (MAINGUENEAU,
1997, p. 32). A cenografia, em questão, invoca a possibilidade de uma atividade do co-
enunciador/leitor na história assumida pela narração. Deixa, portanto, o juízo de valor
para o leitor da narrativa.
Em suma, a cenografia instituída valida o ethos que é incorporado pelo co-enunciador.
Este é chamado a ocupar um lugar na cena da enunciação. Um lugar remoto, onde o
irrepresentável, a impotência, o fracasso do ser humano é intensificado na realidade e no
sonho. O enunciador está aqui na condição de um narrador de uma narrativa das ruínas e
que - segundo Gagnebin (2006), analisando Benjamin - retemos da figura do narrador
um aspecto menos triunfante, comparada àquela figura da narração épica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um ponto alto na narrativa testemunhal de Primo Levi diz respeito à relação que o
narrador mantém com o narrado. Ao mesmo tempo em que se apresenta como um
narrador homodiegético, presente na ficção, revela, por uma perspectiva privilegiada,
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aquele que não julga as atrocidades sofridas, mas que testemunha por aqueles que foram
calados pela morte e sumiram anonimamente.
A cenografia instituída, por quase toda narrativa, coloca o leitor num lugar abjeto, em
que o homem como ser humano foi reduzido a nada. “Uma parte da nossa existência
está nas almas de quem se aproxima de nós; por isso, não é humana a experiência de
quem viveu dias nos quais o homem foi apenas uma coisa ante os olhos de outro
homem”. (LEVI, 1988, p. 173) A cenografia do sonho vem restituir, ao menos no tempo
narrativo, essa humanidade. Ela coloca o leitor em contato com banalidades mais
humanas que se pode ter na vida “é uma felicidade interna, física, inefável, estar em
minha casa, entre pessoas amigas”.
O leitor é envolvido por meio das cenografias construídas em uma narrativa que se
apresenta como irrepresentável do ponto de vista da realidade que ela reclama para si. A
constituição da cenografia envolve o leitor para que este por si próprio tire suas
conclusões. As atrocidades cometidas nos campos de extermínio foram temas de muitos
livros, filmes, documentário etc.; pós-guerra. Todos procuram um culpado, querem
julgar os carrascos. Primo Levi, por sua vez, embora tenha sido prisioneiro e tenha
sobrevido, como dizia, por sorte, não procura julgar seus algozes. A construção da
cenografia do sonho se mostra eficaz para que esse ‘julgamento’, se houver, seja feito
em cada um de nós.
REFEREÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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NOTAS
* Mestrando em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. 1 Uns dos termos em latim para representar testemunha.
2 Essa concepção de cena diz respeito ao teatro tradicional.
3 Tratamos as noções co-enunciador e leitor como sinônimos nesse trabalho.
4 Soldado alemão.