A Constituição e o Ser da Antropologia

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    A CONSTITUIO E O SERDA ANTROPOLOGIA:

    PROBLEMTICA E MTODO

    Christina de Rezende Rubim*

    A Constituio da Antropologia

    A conscincia da identidade de um grupo frente aosdemais sempre esteve presente na histria dos povos do mun-do. Em alguns momentos e lugares, os contatos entre elesforam mais frequentes e em outros, estes encontros foram es-pordicos e menos conflitivos. O certo que sempre existi-ram e foram eles os responsveis pela construo de uma iden-tidade que a caracterstica dos diferentes agrupamentos hu-manos.

    No desenvolvimento do mundo ocidental estas diferen-as foram construdas a partir das mais variadas respostas da-das pelos diferentes momentos desta histria. Na antiga Grciaeram chamados brbaros todos aqueles que no fossem gre-gos. Na Idade Mdia o pago no era considerado como fi-lho de Deus. Selvagem foram como ficaram conhecidos nossculos XVII e XVIII, o que o Evolucionismo do sculo XIXtransformou em primitivos e a modernidade chama de subde-senvolvidos ou emergentes.

    As diferenas sempre foram pensadas, na maior partedo tempo, como um desvio da normalidade e/ou da humani

    * Professora da UNESP - Marlia.

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    dade e a consequncia desta postura foram alguns tipos dediscriminao:social, racial, econnica, religiosa, cultural etc.Estas diferenas so vivenciadas, em maior ou menor grau,em todo tipo de agrupamento humano e podem se transfor-mar em srios conflitos, mas tambm reforar as respectivasidentidades grupais. A alteridade dos grupos humanos umaatitude que relega natureza todo aquele que diferente. Aantropologia torna-se um marco fundamental nesta histriaporque rompe com esta idia.

    A humanidade cessa nas fronteiras da tribo, do gru-

    po lingustico, s vezes mesmo da aldeia; a tal ponto, queum grande nmero de populaes ditas primitivas se

    autodesignam com um nome que significa os homens`

    (...) implicando assim que as outras tribos, grupos ou

    aldeias no participam das virtudes ou mesmo da natu-

    reza humana... (Lvi-Strauss: 1989, p. 334).

    Mesmo antes do Iluminismo, a conscincia da diferen-a entre os povos j existia na prtica atravs das guerras econquistas no Velho Mundo, o que tambm podemos supor,existia entre os diferentes povos das Amricas e entre os aus-

    tralianos. Isolamento absoluto por um espao de tempo con-sidervel, em qualquer lugar do globo terrestre, um fato quea histria desconhece e cada vez menos provvel, para nodizer impossvel de acontecer ou ter acontecido no passado.

    O Renascimento - com a intensificao das rotas decomrcio entre Europa, sia e frica - contribuiu para a ace-lerao destes contatos que tiveram o seu pice nocolonialismo europeu, colocando-se pois como necessria, aformulo de respostas mais elaboradas que justificassem, tan-to teoricamente estas diferenas quanto o tratamento que lhesera dado na prtica, isto , a discriminao e o preconceito.

    Mesmo entre aqueles, como Rousseau (1978 [1754/55) eMontaigne(1972 [1580]), que enalteceram o bom selvagem

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    no conseguiram romper com a dicotomia bipolar entre natu-reza x cultura:

    No me parece excessivo julgar brbaros tais atos

    de crueldade, mas o fato de condenar tais defeitos no

    nos leve cegueira acerca dos nossos. Estimo que br-

    baro comer um homem vivo do que o comer depois de

    morto; e pior esquartejar entre suplcios e tormentos e

    queimar aos poucos, ou entreg-lo a ces e porcos, a

    pretexto de devoo e f, como no somente o lemos mas

    vimos ocorrer entre vizinhos nossos contemporneos; e

    isto em verdade bem mais grave do que assar e comer

    um homem previamente executado. (Montaigne: 1972, p.

    107).

    Tudo isso , em verdade, interessante, mas, que dia-

    bo, essa gente no usa cala.(Montaigne: 1972, p. 110).

    fundamental compreender que a resposta cientficado sculo XIX dada pela antropologia ao problema das dife-renas culturais somente uma alternativa entre muitas outraspossveis, que se firma como verdade tendo como critrio b-sico a razo ocidental e no momento em que o interesse pelo

    outro aparece como exigncia na medida em que til anossa sociedade, portanto, transformando-se num interessan-te e vantajoso objeto de estudo.

    O que proporciona as condies para o surgimento deuma cincia que trata destas diferenas a ruptura com a re-flexo teolgica anterior que tem como consequncia a for-mulao de um mtodo de observao e anlise a partir daexperincia1, e que o mtodo, por excelncia, das cinciasnaturais. A combinao da revoluo industrial inglesa com arevoluo francesa fortaleceram a idia de uma identidadeeuropia tida como superior, forte e racional e que colocava o

    homem como o centro de suas preocupaes. Esta foi umapoca em que o europeu comeou a confiar nas suas possibi-

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    lidades de triunfo ilimitado sobre a natureza, nas vantagensda civilizao, na tcnica e na cincia, considerando estranhotodo aquele que estivesse fora de sua histria e/ou cultura, oque prevalece de certo modo, at os dias atuais2 como sensocomum.

    Esta realidade contribuiu no sculo XIX para a forma-o da antropologia enquanto uma disciplina autnoma. Umacincia que tomando a vida humana como objeto de estudo,rompe com as especulaes teolgicas sobre o homem e coma idia de uma cincia que exclui o que no fsico e naturalporque no pode ser objetivo. No o homem enquanto serbiolgico que tomado como objeto de estudo pela antropo-logia mas a sua vida e o seu estar no mundo.

    Mas apesar da chamada pr-histria da antropologia nose iniciar apenas com a descoberta do Novo Mundo, este um momento privilegiado para a construo posterior de no-es tais como a de unidade da espcie humana, cultura erelativismo cultural entre outras. O conceito moderno de cul-tura, por exemplo, est ligado ao conceito de relativismo cul-tural que por sua vez foi construdo a partir de uma crtica anoo de desenvolvimento unilinear da espcie humana.

    A antropologia nasceu com os olhos voltados para aproblemtica da tenso entre a unidade da espcie humana ea diversidade cultural, oscilando entre ser a cincia das dife-renas ou a cincia da igualdade, o que atualmente cada vezmais parece ser as duas faces de uma mesma moeda, poisqualquer um destes conceitos s pode ser pensado em funodo outro3

    Morgan foi um dos primeiros autores a dar um trata-mento diferenciado a questo das diversidades culturais. Oautor rompe com a postura epistemolgica que tinha comoobjetivo a excluso da humanidade daqueles que eram vistoscomo diferentes, iniciando assim os primeiros passos em di-reo ao conhecimento antropolgico como ns o conhece-

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    mos atualmente, e em consequncia desta reflexo, a idia daunidade da natureza humana que inclui a todas as culturasnuma mesma linha histrica.

    Sistematicamente Morgan organizou suas reflexes so-bre estas bases, mas apesar do avano em relao ao pensa-mento da poca, o autor reafirma a ideologia etnocentristaque segue com o privilegiamento do eu como o superior, omais completo e o mais desenvolvido frente aos demais queso olhados de cima da cadeia evolutiva. O Evolucionismo,portanto, rompe com a idia da excluso mas no consegueainda romper com o etnocentrismo4, o que fundamental noentendimento e na construo da noo de relativismo cultural.

    O conceito de relativismo cultural vem acompanhandoa antropologia no decorrer de sua histria e tem sido justa-mente este conceito, em meu entender, a sua grande contri-buio para as demais cincias sociais. O entendimento deque existem outras escolhas que no exclusivamente a nossano acontece apenas fora dos limites da nossa cultura, mastambm internamente ao nosso prprio mundo e at dentrode uma mesma cincia5.

    As contingncias das diversidades culturais nada mais

    so do que isto: contingncias. Uma alternativa entre tantasem se ser. O relativismo como foi construdo pela antropolo-gia, no tem como fundamentao o niilismo ou algo pareci-do, com o qual tentam alguns autores identific-lo hoje(Trajano: 1986). Em ltima instncia, o ataque ao relativismo um brado de guerra contra a prpria antropologia e a fa-vor de sua extino. Se como diz Herskovitz (1963: p. 81)aceitarmos como tarefa da antropologia a busca do lugar ocu-pado pelo homem no mundo, eu diria que o relativismo umpasso significativo nesta direo.

    O que fundamenta a problemtica da relatividade cul-tural, na realidade uma discusso sobre o relativismo doconhecimento ocidental e at mesmo da prpria cincia en-

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    quanto verdade absoluta. como se houvesse uma pretenoem colocar a cincia acima das diversidades culturais e, por-tanto, como um critrio nico e incontestvel de verdade.

    A Antropologia enquanto Cincia

    Quando nos questionamos acerca da cincia, no po-demos deixar de refletir e pensar sobre a natureza do conheci-mento, do sujeito cognoscente e de categorias como a de ob-jetividade, neutralidade e verdade6.

    O conhecimento cientfico como entendido tradicio-nalmente pela cincia - enquanto acumulao unilinear deverdades inabalveis, incontestveis e experimentais, onde so-mente o objeto possue direito a palavra e o conhecimento cpia fiel do que se deseja conhecer - vem sendo questionadopelas cincias modernas, seja ela exata, natural, social ou his-trica. A idia de uma cincia desvinculada da realidade, deum objeto descontextualizado e de um sujeito neutro, vemsendo colocado em dvida at mesmo pelas chamadas hardscience (Bachelard: 1968).

    Nas cin ci as mode rn as , su je ito e ob je to seinterpenetram, sendo o conhecimento o produto da constru-o do objeto atravs de um sujeito historicamente determi-nado. A cincia entendida como plural e est definitivamen-te marcada pelo seu tempo e o seu lugar. As cincias, seusconceitos, suas teorias e verdades so parte da histria e pos-suem os seus limites nela, porque entre outros motivos, nopo dem se r pensad as in dependen tementes dos su je itoscognoscentes.

    No por acaso, diz Bachelard (1968), que as cinciascomo ns a conhecemos hoje, se desenvolveram num deter-minado momento histrico da sociedade ocidental. Momento

    fundamental de grandes transformaes, de expanso da so-ciedade europia, da Revoluo Industrial e da Revoluo

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    Francesa; da redescoberta do homem pelo homem, de seupoder de criao e transformao do mundo, da f inabalvelno poder da cincia enquanto conhecimento e tcnica e narazo humana enquanto critrio de verdade e ilimitadas pos-sibilidades. A cincia aliada a tecnologia, tornou-se to fun-damental no mundo moderno que a cultura, inicialmenteinfluenciadora deste modo peculiar de apreenso do objetopelo sujeito, torna-se hoje dependente do modo como a cin-cia apreende esta realidade. A cincia no apenas represen-tao, mas tambm ato. No somente contemplando, mastambm e principalmente construindo, refletindo e ratifican-

    do que se chega verdade (Bachelard: 1968 e 1977).Para Thomas Khun (1991 [1960]), a cincia se desen-

    volve por revolues paradigmticas porque a apreenso darealidade constantemente se modifica, transformando-se emalgo novo que anteriormente era impensvel, modificando orelacionamento do homem com o mundo ao seu redor e asconcepes e atitudes que aquele tem em relao a este. Oque faz caminhar a cincia, tanto em Khun como em Bachelar,no a acumulao do saber, porm as suas rupturas, os seusconflitos, os inconformismos, a criatividade humana e os de-bates de idias.

    ...uma das tarefas principais de uma cincia da ci-

    ncia consiste em determinar o que o campo cientfico

    tem em comum com os outros campos, o campo religioso,

    o campo filosfico, o campo artstico, etc., e no que ele

    difere deles.7(Bourdieu: 1996, p. 52)

    O tema proposto por ns no recente no campo dascincias e nos remete as discusses filosficas desenvolvidasnos ltimos sculos por autores como Descartes, Kant, Webere Durkheim entre outros e que caminha ao lado da formao

    da prpria cincia: a cincia da cincia e a produo do co-nhecimento.

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    Nas cincias sociais o tema gira em torno dos limites epossibilidades de cientificidade do que no natural nem fsi-co, isto , do social e/ou humano e da problemtica de ummtodo especfico para as suas disciplinas. mile Durkheim(1987) um marco para as disciplinas que compem as cin-cias sociais quando afirma que devemos trabalhar os fatossociais como coisas, ou seja, como exteriores e independen-tes do sujeito cognoscente, propondo regras rigorosas e espe-cficas ao mtodo propriamente sociolgico.

    Na antropologia esta discusso aparece na literatura dosanos 50/60 com a chamada crise do objeto quando Lvi-Strauss (1962) faz um alerta sobre a possibilidade do desapa-recimento das sociedades tribais, tradicionalmente o objetode estudo antropolgico. Os trabalhos de Firth (1956), Leach(1961), Worsley (1966), Kuper (1973) so exemplos de auto-res que procuram repensar a antropologia em relao a suacontribuio histrica, ao seu objeto e mtodo de investiga-o (Peirano: 1981). Mais recentemente so significativos ostrabalhos de Geertz (1973), Dumont (1985), Stocking Jr.(1983; 1991) e os chamados ps-modernos8.

    As cincias sociais tambm comearam a se desenvol-ver em um determinado momento da histria ocidental nosculo XVII e XVIII - com o capitalismo, a formao dosEstados Nacionais e o colonialismo - e a sua problemticaterica deve ser entendida neste contexto especfico.

    Historicamente o objeto de estudo da sociologia temsido a nossa prrpia sociedade; o da antropologia as demais.Com base nesta constatao Ernest Gellner9 pergunta-nos:como pode haver mtodos e teorias diferentes para objetos deuma mesma natureza?

    Em termos lgicos, no existe uma boa justificao

    para distinguirmos entre sociologia e antropologia so-

    cial; existe uma lei para uma parte da humanidade eoutra para a restante? (...) Mas as fronteiras das cinci-

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    as, tal como as dos estados, no se originam, de um modo

    geral, em consideraes lgicas e, amide, desafiam-nas

    at. As duas disciplinas nasceram de preocupaes dife-

    rentes. A sociologia apareceu porque os homens se aper-

    ceberam do contraste existente entre uma velha ordem

    social aristocrtica-agrria-militar e uma outra ordem

    comercial-industrial-burguesa que parecia estar a subs-

    titu-la e procuraram o significado desta transio e do

    seu lugar na histria humana em geral. A antropologia

    como disciplina independente nasceu mais tarde e era,

    parece-me, a consequncia inevitvel de uma srie detemas muito universais no sculo XIX: o evolucionismo

    inspirado por Darwin e pelos ento evidentes factos da

    histria europia, bem como a incorporao de povos

    muito estranhos no mundo acessvel. O evolucionismo

    (...) Via na evoluo e no progresso as noes chave para

    a interpretao da vida humana... (...) Com efeito, a An-

    tropologia nasceu como a cincia mquina-do-tempo.

    (Gellner: 1981 [1960], pp. 19-20)

    O grande avano do pensamento ocidental moderno

    sobre as diferenas entre as populaes, mais particularmentedo pensamento antropolgico, est na sua capacidade de pen-sar-se a si mesmo criticamente e criticamente refletir sobreestes confrontos e estas diferenas.

    Como toda cincia, a antropologia trabalha com cate-gorias de entendimento que como as demais tenta dar contada problemtica suscitada por ela. As categorias chaves daantropologia que dizem respeito ao contexto histrico de seunascimento e que as acompanharam em seu desenvolvimentoposterior, so as categorias de homem, cultura e natureza(Montero: 1992).

    A antropologia desde ento, vem trabalhando com aproblemtica da natureza x cultura, isto , de uma mesma uni-

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    dade biolgica humana em confronto com a sua multiplicidadecultural. A questo bsica colocada pela antropologia tem sido:frente a unidade biolgica comum a todos os seres humanos,como se explicariam10 as diferenas visveis (Lvi-Strauss:1988 [1948])?

    Esta multiplicidade que aparentemente comeam a setransformar com o prprio colonialismo, foram alvo de refle-xo da antropologia, que por muito tempo encontrou nelas oseu objeto de estudo. Mas, como deixa entender Claude Lvi-Strauss em Raa e Histria (1988 [1948]), estes encontroscontribuiram no aprofundamento dessas diferenas, mesmoquando as correlaes de foras eram diferentes entre os po-vos. Para o autor, as diferenas persistem, algumas vezes comsignificados diferentes, outras como insistncia da afirmaodo eu em relao ao outro ou ainda como desigualdadessociais.

    O prprio conceito de cultura, inicialmente utilizado naantropologia por Tylor em Primitive Culture (1871), est deacordo com a tradio alem do sculo XVIII que contrapeo conceito de kultur ao conceito de civilizao11 como cate-goria dinmica que engloba alm dos artefatos materiais, oscostumes dos diferentes povos (Elias: 1994 [1936]).

    Nas ltimas dcadas comea a exist ir uma ampliaodo objeto de estudo da antropologia que vai das sociedadestribais - onde a cultura era entendida como totalidade fechadae a garantia de objetividade era dada pela distncia cultural egeogrfica do pesquisador em relao ao seu objeto - a socie-dade do antroplogo - onde a totalidade no pode ou difcilde ser considerada enquanto tal, pois existem mltiplas e infi-nitas diferenas em sua estrutura e a distncia entre objeto esujeito cognoscente, se que existe, muito pequena, muitasvezes imperceptvel. A antropologia encontra-se na atualida-de frente a uma nova problemtica e comea a questionar a si

    mesma enquanto cincia, aos seus sujeitos de pesquisa, os

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    seus objetivos, enfim, o seu projeto de compreenso da reali-dade.

    A antropologia contempornea deve enfrentar proble-mas como as diferenas de poder12 entre o pesquisador e seusinformantes parceiros de pesquisa -, dos conflitos e das de-sigualdades sociais entre os povos que so substancialmentediferentes da diversidade cultural enfocadas pela disciplinano passado.

    Atualmente, o mundo passa por um momento crtico dereflexo e questionamento de seus valores, modos de vida,

    perspectivas para o futuro etc. A ocidentalizao crescente e acrise econmica internacional com o surgimento de novas for-mas de capitalizao13 no pode deixar de ser consideradanessa reflexo, criando muitas vezes desesperanas e aindividualizao exarcebada, pois ao lado de uma civilizaoque muito tem prometido, encontramos a fome e a injustiaque teimam em continuar existindo. Esta crise mais geral estpresente tambm nas cincias, na confiana em sua atual ca-pacidade explicativa (Montero: 1992) e nas suas possibilida-des de resposta para os problemas criados pelo mundo con-temporneo.

    Christina de Rezende RubimNo caso brasileiro - quepossui um espao determinado na diviso do trabalho inter-nacional, na cincia e na cultura ocidental contempornea - eque ao lado de sua especificidade multinacional e multicultural(Oliven: 1989) convive com a dificuldade em aceitar estasdiferenas - como o exemplo da ideologia da democraciaracial - a antropologia tem tido um papel relevante.

    A antropologia foi fundamental na contribuio de umareflexo mais aprofundada e desmistificada de algumas idi-as errneas do passado sobre a nossa realidade. Atualmenteconsolidou-se como conhecimento/autoridade que vem dis-cutindo a problemtica do contexto scio-poltico do pascomo a questo da redemocratizao social, da crise na tica

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    poltica e a falta de confiana em suas instituies pelo povobrasileiro.

    A Problemtica Metodolgica

    Existe uma verdade na antropologia que quase nunca dita: a preteno por parte de alguns autores em transform-lana cincia natural da cultura. Mas apesar de todas as tentati-vas neste sentido, o objeto da antropologia persiste em seu sersocial e cultural, no movimento da vida e da histria, que por

    isto mesmo transforma a si e ao mundo constantemente e in-definidamente numa direo nem sempre esperada. Ao con-trrio do mundo fsico, o mundo dos homens dinmico e,portanto, imprevisvel, transformador e ilimitado no seu dese-jo de querer saber, compreender e explicar. O estar do homemno mundo essencialmente plural e, portanto, um campo ines-gotvel de problemticas e temticas para a antropologia.

    A caracterstica constitutiva do ser do objeto das cinci-as sociais e histricas no ser objeto14e sim sujeito. A obje-tividade, caracterstica fundamental das cincias exatas e na-turais, parte intrnseca do que se quer conhecer nestas cin-

    cias e da postura que o sujeito do conhecimento pretende nes-te confronto. Nas cincias sociais o que se quer conhecer nopode, por assim dizer, ser tratado como objeto fsico, porquea sua natureza essencial no de ser fsico, mas ser vivo.Portanto, esta vida que impregna de subjetividade o objeto doconhecimento nas cincias sociais vem se somar asidiossincracias do sujeito cognoscente, que tambm impreg-nado de paixes e valores, transforma e transformado poraquele, caracterizando assim as subjetividades inerentes aoobjeto e a si mesmo como outro, como diferente e ao mes-mo tempo como participante de uma mesma espcie.

    A valorizao/resgate da subjetividade do pesquisador um momento fundamental na busca da objetivao nas ci-

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    ncias sociais, porque o que peculiar na relao do conheci-mento social que o sujeito cognoscente e o objeto cognoscvelso vicissitudes15 que se transformam mutuamente. A relaosujeito-objeto nas cincias sociais , antes de tudo, uma rela-o humana e, portanto, uma relao de troca e transforma-o.

    A antropologia vem se destacando na sua histria re-cente dentro das cincias sociais, pela contribuio de estarincluindo no seu pensar este lado subjetivo do fazer antropo-lgico, e ao mesmo tempo oscilando entre este e o seu serenquanto cincia que busca alcanar leis gerais, por analogiaas cincias consideradas mais duras.

    Com a consolidao da antropologia no decorrer destesculo, tem se firmado como seu principal objetivo a compre-enso do outro atravs da tcnica de tentar se colocar nolugar dele, isto , o trabalho de campo via pesquisa partici-pante. Consequentemente, a relatividade dos valores cultu-rais e a interpretao do que para ns diferente atravs da-quilo que nos familiar, est presente no ser constitutivo daantropologia. Mesmo Bronislaw Malinowski j possuia cons-cincia em relao a esta discusso quando afirmava:

    ... em trabalho etnogrfico s ter valor cientficoirrefutvel se nos permitir distinguir claramente, de um

    lado, os resultados da observao direta e das declara-

    es e interpretaes nativas e, de outro, as inferncias

    do autor, baseadas em seu prprio bom-senso e intuio

    psicolgica. (Malinowski: 1976 [1922], p. 22).

    O autor considera a relatividade de sua prpria inter-pretao quando discorrendo sobre a metodologia emprega-da, faz a distino entre observao dos fatos e a sua conclu-so (Malinowski: 1976 [1922]). Malinowski considera que

    possam existir outras possveis interpretaes, mas no en-tanto, no consegue perceber que a prpria observao dos

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    fatos j requer em si mesma uma primeira traduo por partedo pesquisador.

    O relativismo cultural se firmou como pensamento, por-tanto, junto com a antropologia enquanto a cincia ocidental(Dumont: 1985 [1983]) por excelncia que visa a compreen-so das diferentes culturas. Deste modo a antropologia se des-tacou enquanto um tipo de conhecimento cientfico modernoque possua como um dos seus principais objetivos a sujeiodos povos que se confrontava no encontro colonial.

    A partir do final da segunda guerra mundial comea a

    existir no s uma mudana no objeto de estudo antropolgi-co, mas tambm uma modificao da fase do querer explicaro outro substituindo-a pelo querer compreender o outro,ou seja, o que est implcito nesta afirmao o reconheci-mento da antropologia no mais como uma ciencia natural dacultura e/ou dos imponderveis da vida (Malinowski: 1976[1922]), e sim como uma cincia construtivamente social quetenta resgatar a riqueza intrnseca do seu ser: a dinmica davida humana. O momento atual, mesmo no adimitido, pare-ce-me que vem sendo cada vez mais questionado e por estemotivo surgem muitas vezes as mais heterodoxas propostas16

    e diferentes alternativas no campo antropolgico.

    Parece existir um sentimento que vem principalmentedos grandes centros irradiadores do pensar antropolgico deque ... alguma coisa no vai bem.17Um sentimento no toclaro quanto parece de que as velhas (ou modernas?) frmu-las do saber sobre o outro j no conseguem satisfazer comoantes a antropologia. Consequentemente comeam a surgirexperimentaes, tanto em teoria quanto na prtica, tentando-se um novo relacionamento entre sujeito e objeto na pesquisade campo e atravs da apresentao destas concluses: o texto.

    So estas entre outras, muitas das questes que povoamas inquietaes dos antroplogos contemporneos. Est claropara ns que o repensar da antropologia no um problema

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    puramente terico ou inerente somente as humanidades. justamente porque as cincias esto atentas a estas mudanasque a crtica sobre si mesma acontece e positiva para o seurefinamento.

    Alm disso, parece haver no somente uma possvelcrise do objeto antropolgico ou dos modelos explicativos(Cardoso de Oliveira: 1994), mas tambm a necessidade dedelimitao do campo de estudo da disciplina j que ao de-bruar-se sobre si mesma, esta cincia pode vir a ocupar es-paos pertencentes a outras disciplinas afins como por exem-plo a sociologia e as cincias polticas ou at mesmo a filoso-fia.

    Parece-me claro que o consenso entre a comunidadeantropolgica resguarda para si mesma uma certa identidadeque vem sendo garantida principalmente pelo ritual do traba-lho de campo. O olhar antropolgico fica garantido por estaprtica que vem caracterizando a disciplina18 e que tem comoconsequncia uma nfase maior na anlise microscpica19.

    No campo da histria ocidental moderna, a situao daantropologia deve ser analisada sem se perder de vista os se-guintes momentos que so constitutivos do seu ser: 1) o avan-

    o da cincia e da tcnica que como consequncia trouxeramo desenvolvimento das comunicaes e dos transportes, en-curtando significativamente as distncias entre os diferentesagrupamentos humanos e conseqentemente possibilitandoum confronto mais acirrado entre eles com uma disputa porespaos polticos, econnicos e geogrficos; 2) este confron-to se manifestou principalmente atravs do colonialismo cls-sico que em busca de novos mercados e com a diviso inter-nacional do trabalho, criou a necessidade de se teorizar cien-tificamente acerca do eu e do outro, justificando assim apretensa superioridade dos primeiros; 3) a poltica colonialaliada a tecnologia favoreceu o contato mais estreito entre

    culturas diferenciadas criando as condies bsicas para osurgimento da antropologia. Principalmente aps o trmino

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    da II Guerra Mundial esta poltica20tem sido responsvel pelocrescente desaparecimento das sociedades tribais, diluindo-as muitas vezes em ns mesmos e contribuindo, portanto, como desaparecimento do objeto de estudo antropolgico e decerta forma, conclamando o fim da disciplina enquanto cin-cia o que afirma alguns autores21.

    A Relao Sujeito-Objeto

    Como j foi dito, a crise que vem se manifestando na

    antropologia uma crise de seu objeto, ou seja, com o desa-parecimento crescente das sociedades tribais, a antropologiaestaria questionando o seu ser enquanto cincia e de seu obje-to, voltando-se cada vez mais para a sociedade do antroplo-go. A crise a que nos referimos, no desagregadora, maspelo contrrio, tem ampliado a perspectiva dos antroplogossobre a pluralidade do mundo e sobre o prprio pensamentoantropolgico enquanto conjunto de idias que visa o conhe-cimento das diferenas e, portanto, tem reforado a contribui-o da antropologia enquanto tentativa de compreenso dasdiferenas entre os homens. Conseqentemente vem fortale-

    cendo o seu papel como um plo do pensamento social con-temporneo fundamental e imprescindvel no mundo de hoje.

    Houve um momento que o objeto da antropologia foi ooutro enquanto um todo fechado e distante geograficamen-te. Hoje, alm dos distantes culturalmente, acrescentamos anossa prpria sociedade. Esta ampliao nas opes de esco-lha do objeto antropolgico no acontece somente porque esteoutro est desaparecendo. Ela parte de umaproblematizao terica desde sempre presente na disciplina,da procura de uma natureza humana comum para os diferen-tes povos: o outro s tem sentido na medida em que contri-

    bui para o entendimento da nossa prpria realidade. o ama-

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    durecimento do pensamento antropolgico sobre as diferen-as entre os agrupamentos humanos.

    Existe uma tenso no ser da disciplina que se expressana determinao de seus pares em encontrar um consensoacerca de seu objeto, traduzindo-se recorrentemente na se-guinte questo: qual o objeto privilegiado22 da antropolo-gia?

    O relacionamento entre sujeito e objeto como enten-dido e praticado pela antropologia, requer um pouco mais denossa ateno pois aqui esto implcitas as discusses sobre

    verdade, objetividade e neutralidade nas cincias. Primeiro, orelacionamento do pesquisador com seu objeto no campo edeste enquanto indivduo e ser social com o resto do mundo antes de tudo um relacionamento poltico23. Segundo, a apre-sentao das concluses do trabalho de campo acontece fun-damentalmente atravs do texto recurso de compreenso ecrtica de nossa cultura especfica -, onde a tradio antropo-lgica diz que devem estar claras a presena e o posicionamentodo autor-pesquisador enquanto ser social e poltico, e tam-bm de seu objeto. Depois do trabalho de campo realizado,nem o pesquisador ser o mesmo nem o grupo em que eleesteve seguir sendo igual, mesmo que isto parea ser assim.

    A histria da disciplina est marcada, de um lado, poreste aproximar-se do outro e at mesmo colocar-se no seulugar atravs da pesquisa participante. De outro lado porm,o texto antropolgico tornou-se o divisor de guas entre pes-quisador e pesquisado que devem ser apresentados como dis-tantes e diferenciados um dos outros.

    O critrio de verdade na antropologia fica garantido pelacombinao destes dois momentos. Duas faces de uma mes-ma moeda, o texto respaldado pelo trabalho de campo temcomo presena obrigatria o antroplogo, ao contrrio do queacontece nas demais cincias sociais, onde o texto mesmo,como diz Foucault24 a garantia de cientificidade e no o

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    indivduo que o escreveu, devendo este esconder-se aomximo, o que uma das garantias de objetividade nestascincias. A influncia da sociologia durkheimiana de afastartodos os preconceitos e pr-noes25 tem muitas vezes comoconsequncia nas cincias sociais a iluso de que a ausnciado autor no texto a garantia da sua neutralidade. Na antro-pologia, porm, devido a peculiaridade da pesquisa partici-pante, esta presena se tornou obrigatria e presente cada vezmais, apesar da necessidade tambm de se traar nos textosuma linha divisria entre o eu e o outro.

    O texto o intermedirio entre o objeto, o sujeito e oleitor. O texto no deve e no pode ser o objeto de estudo daantropologia, como muitas vezes os ps-modernos nos fazemcrer26. O objeto vivo que o pesquisador encontra no cam-po, no da mesma qualidade daquele objeto exposto no tex-to antropolgico. Este apresentado atravs da compreensox que o pesquisador y faz27 dele.

    Parece-me que esta tentativa de querer eliminar o pes-quisador do texto deixando o objeto de estudo livre parafalar por si mesmo no a soluo no relacionamento entresujeito e objeto porque este falar - mesmo que no declaradoou apenas selecionado e organizado - ocidental, do pes-quisador e escolhido por este numa infinidade de outrasfalas possveis. um experimento puramente formal e estti-co e no de contedo, porque se d exclusivamente no cam-po do pesquisador. No se tenta uma mudana de qualidadeno relacionamento com o outro no campo dele mesmo oucom um questionamento e uma crtica do confronto entre osdois.

    No somente e principalmente atravs do texto quedevemos experimentar, porque o texto essencialmente nos-so. nosso instrumento de trabalho e atravs dele que apre-sentamos as nossas concluses enquanto cientistas. Do con-

    trrio, como querer fazer antropologia atravs da fsica ououtra cincia qualquer que seja de uma qualidade diferente. O

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    dilogo intelectual no mundo moderno acontece fundamen-talmente atravs do texto, atravs da palavra escrita que cir-cula em meio a academia e privilegiado por ela.

    Ento, ocorre-me que a crtica ao relacionamento entresujeito e objeto na antropologia deve comear pelo outro lado- o lado do confronto, do poder poltico e cultural - no pelotexto que sempre vai estar amarrado a viso do pesquisador, oque no deve ser pejorativo em se tratando de cincias soci-ais. Se o que importa deixar o outro falar por si mesmo,isto no deve acontecer exclusivamente atravs do texto cien-tfico que sempre vai ser um instrumento onde o pesquisadorapresenta as suas concluses.

    Clifford Geertz (1978 [1973]) defende que a antropolo-gia deve ser entendida como uma cincia interpretativa quevisa buscar os significados culturais o que no quer dizer quedevemos cair no extremo oposto:

    Nunca me impressionei com o argumento de que,

    como impossvel uma objetividade completa nesses as-

    suntos (o que de fato ocorre), melhor permitir que os

    sentimentos levem a melhor. Conforme observou Robert

    Solow, isso o mesmo que dizer que, como impossvel

    um ambiente perfeitamente assptico, vlido fazer uma

    cirurgia num esgoto.(p. 40).

    Geertz diz ter como perspectiva uma antropologiahermenutica que estaria ligada principalmnete ao filsofofrancs Paul Ricoeur. Esta identificao da antropologia coma hermenutica - a grande contribuio do autor - essencialpara a disciplina porque demonstra a precariedade do argu-mento de neutralidade do eu frente ao outro, ressaltandouma relao de poder. At a mais simples descrio sobre ooutro povoada por concepes sobre ns mesmos.

    No meu entender, a aplicao da hermenutica na an-tropologia se baseia principalmente na questo da interpreta-

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    o cultural, que como consequncia nega s cincias sociaisa objetividade como entendida e aplicada nas cincias exa-tas. Ricoeur (1968 [1956]) define a objetividade como ...aquilo que o pensamento metdico elaborou, ps em ordem,

    compreendeu e que por essa maneira pode fazer compreen-

    der.(p. 23).

    Chega-se em consequncia a conceitualizao daintersubjetividade entre as diferentes culturas, que na realida-de a relativizao do conhecimento do pesquisador frenteaos seus sujeitos de pesquisa como nica verdade absoluta eacabada. este o tipo de relativismo que deve estar presentena antropologia e demais cincias sociais e no aquele quetem por trz de si o niilismo onde tudo permitido, e queperigosamente pode transformar-se em nada.

    Estas experimentaes no campo da antropologia ain-da so muito recentes. De certa forma preciso entrar nestedebate e contribuir com ele, questionando estes novos expe-rimentos e problematizando acerca do mundo e da vida. preciso esperar para melhor compreender estas propostas,apostando na antropologia. O debruar-se sobre si mesma,talvez seja a grande contribuio que frente ao desencanta-mento do mundo, encanta-se com o cotidiano de nossas vi-das, sem perder de vista a totalidade do mundo.

    A antropologia no pode e no deve negar o seu papelde ser um campo do conheciemtno ocidental que visa inter-pretar/compreender o outro. Ela no pode abdicar do seuser enquanto cincia pois do contrrio, transforma-se em li-teratura, o que no mau por si mesmo, somente no antro-pologia.

    O que a antropologia pode e deve fazer ter uma posi-o crtica frente ao que ideologicamente divulgado comocultura do outro, tentando mostrar no seu discurso e na pr-tica as contradies no dizer oficial, mesmo que este dizerseja o seu prprio. A relativizao cultural deve estar presente

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    A aceitao de verdades outras, que no somente a darazo ocidental, cada vez mais se firma no campo antropol-gico, mas deve-se ter certos cuidados em no cair, por exem-plo, num certo pessimismo que tem como consequncia anegao da prpria cincia.

    A Antropologia no Mundo Contemporneo

    Existe hoje uma transformao crescente e global napoltica, na economia, na sociedade e na cultura que muda

    substancialmente a qualidade do mundo em que vivemos. Hoje,o planeta j no est mais dividido em dois blocos e ainternacionalizao do capital, h algum tempo, uma reali-dade que interfere em nossas vidas dirias.

    A tendncia homogeneizadora da cultura coloca emdvida os limites entre o eu e o outro. Os antroplogospodem no estar mais escrevendo para os colonizadores mascontinuam produzindo para os seus iguais, para as elites.

    A antropologia comeou a ser pensada a partir das dife-renas. Durante o decorrer de sua histria, o seu objeto deestudo comeou a se ampliar: aquilo que foi a sua inspiraoinicial - as diversidades culturais - vem se transformando cadavez mais em desigualdades sociais.

    Frente a esta realidade, o que acontece com a relaosujeito-objeto na antropologia? O que muda nesta relao - se que ela muda - e por que acontece esta mudana? Ser que somente colocando-se no lugar do outro - ainda existe umoutro? - que a antropologia pode chegar a compreend-lo?

    Para comear a responder a estas perguntas necess-rio no perder de vista o que j consenso entre os antroplo-gos. O primeiro destes consensos a constatao de que opesquisador nunca se transformar em nativo dentro dos limi-tes estritos da sua cincia. A sua compreeno do outro vai

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    se dar sempre atravs da sua prpria cultura. Em segundolugar, tambm concordamos quanto a necessidade do antro-plogo relativizar o seu conhecimento e desconfiar do discur-so oficial sobre a cultura do outro, levando-se em conta acorrelao de foras existente entre ambos. Por ltimo, a afir-mao de que a antropologia uma cincia social antes detudo. Isto quer dizer que a vida (a nossa e a deles) dinmicae que a cultura (a nossa e a deles) histrica. A objetividadenas cincias sociais de uma qualidade diferente daquela co-locada em prtica nas cincias naturais e exatas. Esta objetivi-dade deve estar imbuda de uma certa dose de subjetividade,

    o que Adam Schaff (1991 [1971]) chama fator subjetivo -uma reflexo crtica empreendida pelo pesquisador em rela-o a sua teoria e a realidade estudada.

    Quem habitualmente lida com diferenas, como o casodos antroplogos, no pode deixar de ter uma certa simpatiapelo que a antropologia Interpretativa chama de encontrosetnogrficos ou intersubjetividade. Mas importante quens nos coloquemos numa posio de estranhamento frenteaos caminhos que nos so oferecidos. A novidade que fazavanar a cincia no pode deixar de ser por isto mesmocriticada, fazendo-nos repensar a prpria disciplina. Repen-

    sar este, que no significa apenas remetermo-nos a histria ouaos paradigmas propostos pela cincia. Requer tambm umquestionamento filosfico por parte dos profissionais da reaacerca dos fundamentos do pensar/criar/fazer antropolgico.

    Esta polmica no interessa somente a ns antroplo-gos. O estudo da totalidade uma exigncia da vida e, por-tanto, a nossa disciplina no pode ficar a sua margem. Estaproblemtica da mudana na conjuntura mundial est presen-te na sociedade como um todo em consequncia daglobalizao, o que interfere direta ou indiretamente nas dife-rentes cincias.

    A relao entre antropologia e modernidade (ou ps-modernidade?) ainda precisa ser melhor discutida. O lado ino-

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    vador da antropologia talvez esteja na busca de perspectivasoutras que no podem ser pensadas como alternativas ao mes-mo. O que parece ser um debate sobre o fazer antropolgico, na realidade um debate da validade ou no do conheciemtnocientfico/antropolgico.

    A minha pretenso no foi oferecer respostas ou atmesmo alternativas, porm, levantar questes que so funda-mentalmente histricas, conjunturais e constitutivas da antro-pologia. Estas questes devem nos fazer pensar acerca daqui-lo que estamos vivenciando no presente. A histria segue umcaminho entre tantos outros possveis e ns que dizemos en-tender que este caminhar no unvoco e linear, quando nosreferimos ao nosso campo de interesse ou at mesmo as nos-sas vidas, muitas vezes nos recusamos em nos deparar comcontradies e rupturas. Afinal, a cincia tambm histrica.Ela nos faz pensar porque essencialmente como a vida, ela atravessada por conflitos.

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    NOTAS

    1Mtodo indutivo.

    2Como exemplo temos as teorias geopolticas contemporneas sobre um norte

    desenvolvido e um sul subdesenvolvido; as divises entre Primeiro, Segundo eTerceiro Mundos tambm.

    3 neste sentido que Roque de Barros Laraia (1986) diz que a unidade da espcie

    humana s pode ser explicada pela sua diversidade cultural e em outras palavrasLaplantine afirma...aquilo que os homens tem em comum a sua capacidade

    para se diferenciar um dos outros.(1988: p. 22).

    4Sobre o etnocentrismo como sentimento natural ver Lvi-Strauss: 1948 [1989], p.

    333 e seguintes.

    5"... o SER eminentemente histrico da antropologia no era seno o conjunto de

    suas verses paradigmticas - ou em outras palavras, subculturas de uma

    cultura cientfica global chamada Antropologia, ou ainda - se se prefeir a met-

    fora da linguagem dialetos do idioma` antropolgico... (Cardoso de Oliveira:1986, p. 229).

    6Sobre o tema ver Rubim: 1994.

    7O proposto por Bourdieu como a principal tarefa da cincia da cincia, em ltima

    instncia uma tarefa essencialmente antropolgica, pois tem como objetivo aapreenso da singularidade do objeto e a comparao de objetos substancial-mente comparveis.

    8Michael Taussig, George Marcus etc.

    9In: Evans-Pritchard (1981 [1060]).

    10Para Eric Wolf, a fora de um pensamento est na sua tentativa de explicao do

    real, o que poderamos tambm acrescentar compreenso.

    11O conceito de cultura aparece nesta poca como alternativa ao conceito de

    civilizao que vinha sendo desgastado pela sua analogia com a civilizaoindustrialincapaz de levar a todos os seres humanos os benefcios conseguidos(Montero: 1992).

    12Ver Bourdieu (1983; 1996) sobre capital cultural.

    13Veja-se, por exemplo, a quebra de uma das mais tradicionais agncias financei-

    ras da Inglaterra em 1995, alm das crises mexicana (1996) asitica (1997), russa(1998) e mais recentemente, a brasileira (1999). Ou seja, comeam a existir novosplos de poder do capital que extrapolam o capital financeiro e/ou capital cultural.

    A informao tem sido fundamental na acumulao de capitais no mundo inteiro,

    por exemplo.

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    14No sentido inerte em que o conceito de objeto quando contraposto ao de sujeitodo conhecimento, trs intrnseco a sua ontologia histrica. Este conceito estligado as cincias naturais e carrega consigo toda uma significao que estimpregnada de idias tais como as de objetividade, neutralidade e verdade.

    15Segundo Herdotos (1968)... o homem no seno vicissitudes.p. 50.

    16Como por exemplo, a concepo de que a antropologia tudo pode (Caldeira:1988).

    17Caldeira: 1988.

    18Muitas vezes outras disciplinas correlatas tambm se utilizam desta tcnica,mas no to fundamentalmente e prioritariamente como utilizada pela antropo-logia.

    19Mesmo uma anlise comparativa feita entre dois ou mais microcsmos.

    20Atualmente o colonialismo no se manifesta mais na sua vertente clssica, masse faz presente atravs das polticas dos pases do Primeiro Mundo como, porexemplo, o Fundo Monetrio Internacional (FMI).

    21Principalmente Lvi-Strauss: 1960 [1960].

    22Estranho e no concordo com a utilizao deste termo por entender que acincia, qualquer que seja ela, possui objeto de estudo e no um primeiro, umsegundo ou um ensimo objeto de estudo como nos faz o termo subentender.Cada vez mais eu me conveno que o objeto de estudo da antropologia no soas culturas, mas as diferenas entre os grupos humanos, suas singularidadese o que proporciona a ns enquanto representantes de uma determinadatradio cultural a compreenso do outro e vice-e-versa.

    23Entendido como um relacionamento que no est isento de valores e, portanto,no neutro. O ser social - e o cientista entendido como tal - aquele que semovimenta no mundo e que se relaciona com este atravs de posicionamentos,conscientes ou no, que esto impregnados de vida, de contradies e confli-tos.

    24Idia transmitida por Caldeira: 1988, p. 134.

    25Durkheim: 1987 [1896].

    26Caldeira: 1988.

    27Fazer no sentido de construir.

    28Geertz: 1988, p. 8.