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ii RÔMULO MORELATTO COLPANI A CONSTRUÇÃO DA FIGURA DO IMPERADOR JULIANO NA HISTORIOGRAFIA PAGÃ DO SÉCULO IV: O CASO DE AMIANO MARCELINO Curitiba 2007

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RÔMULO MORELATTO COLPANI

A CONSTRUÇÃO DA FIGURA DO IMPERADOR JULIANO NA HISTORIOGRAFIA PAGÃ DO SÉCULO IV:

O CASO DE AMIANO MARCELINO

Curitiba 2007

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RÔMULO MORELATTO COLPANI

A CONSTRUÇÃO DA FIGURA DO IMPERADOR JULIANO NA HISTORIOGRAFIA PAGÃ DO SÉCULO IV:

O CASO DE AMIANO MARCELINO

Monografia apresentada à disciplina Orien-tação Monográfica como requisito parcial à conclusão do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Univer-sidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Renan Frighetto.

Curitiba 2007

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A Deus, Numen, Sol Invictus ou Mithra, seja qual for o nome dessa força maior que em tudo nos guia. Aos meus pais Vergínia e Jacir Colpani que sempre me incentivaram e apoiaram nos estu-dos, aos quais devo, em grande parte, o que ho-je sou. Ao meu amor Schayane, por ser essa fantástica pessoa com a qual posso contar em todos os momentos de minha vida. Ao amigo, professor e orientador Renan Fri-ghetto pela colaboração e atenção dispensada durante este trabalho e nesses 4 anos de conví-vio. Enfim, a todos os familiares, amigos e profes-sores que acreditaram no meu trabalho.

Dedico.

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Alea jacta est1.

Gaius Julius Caesar, Imperador romano.

Aut inveniam viam, aut faciam2.

Hannibal, general cartaginês.

1 “Os dados foram lançados”. 2 “Ou encontrarei o caminho, ou eu mesmo o abrirei”.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 01

2 CONTEXTO ................................................................................................................. 04

2.1 A Política ................................................................................................................ 04

2.2 A Religião ............................................................................................................... 11

3 AMIANO MARCELINO ................................................................................................ 17

3.1 Miles Quandam et Graecus .................................................................................... 17

3.2 A Res Gestae como a História da Decadência do Império Romano ...................... 23

4 IMPERADOR JULIANO SEGUNDO AMIANO MARCELINO ........................................... 32

4.1 Flávio Cláudio Juliano ............................................................................................ 32

4.2 Juliano Augusto ...................................................................................................... 37

4.3 Juliano segundo a construção de Amiano Marcelino: as virtudes .......................... 42

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 52

REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 56

ANEXOS ......................................................................................................................... 62

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1 INTRODUÇÃO

Apostasia: do gr. apostasía. 1. Separação ou deserção do corpo constituído (de uma

instituição, de um partido, de uma corporação) ao qual se pertencia. 2. Abandono da fé de

uma Igreja, especialmente a cristã3.

O século IV da nossa era, período que deve ser entendido não como o ocaso do Impé-

rio Romano mas sim época de transição em que se fazem presentes permanências e mudanças,

é um dos mais ricos e fascinantes da História. Isso se deve por ser um momento de grande e-

fervescência de idéias, disputas políticas e religiosas que chegaram até nós por meio de inú-

meros autores que procuraram transmitir o seu juízo de valor sobre o período em que viviam.

Hoje, à luz desses legados, os debates sobre a Antigüidade Tardia são marcados por contro-

vérsias que aumentam cada vez mais o interesse pelo assunto.

E não é diferente com Flávio Cláudio Juliano, César e Augusto do Império Romano

entre 355 e 363 ao qual coube a alcunha de apóstata, legado da historiografia cristã do século

IV. Essa mesma historiografia e junto dela, a pagã, acabou por tornar a figura do Imperador

Juliano uma das mais polêmicas da História. São vários os autores contemporâneos seus4 que

nos passaram uma imagem maniqueísta de adorador de ídolos e perseguidor de cristãos ou de

restaurador dos antigos costumes, último baluarte do culto tradicional. Isso se deve, princi-

palmente, pelas medidas político-religiosas adotadas pelo Augusto durante o seu governo, en-

tre outubro de 361 e dezembro de 363, como por exemplo, a famosa lei que proibia os segui-

dores do credo cristão de lecionarem nas escolas.

Entre os diversos escritores, optamos pela análise da obra de um deles: Amiano Mar-

celino. Autor da Res Gestae ou História, como nos chegou traduzido, é uma fonte de suma

importância sobre os feitos históricos de Juliano e figura entre uma das grandes obras, na opi-

nião de diversos autores, para a compreensão da quarta centúria.

Neste sentido encaminhamos o nosso trabalho. Conforme o exposto acima, os autores

do século IV que escreveram sobre Juliano o fizeram de acordo com condicionantes particula-

res. Pretendemos, nesta monografia, expor como Amiano Marcelino construiu a figura do Im-

perador Juliano, retratando-o como um herói e edificando um mito na sua Res Gestae. Para

3 APOSTASIA In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário eletrônico Aurélio, versão 5.0.40, Positivo informática Ltda, 2004. 1 CD-ROM. 4 Entre os autores cristãos destacam-se Gregório Nazianzeno, Ambrósio de Milão e Agostinho de Hipona. Entre os nomes pagãos citamos, além de Amiano Marcelino aqui trabalhado, Libânio e Cláudio Mamertino.

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realizar o proposto, traçamos como objetivo identificar quais eram os elementos comuns que

associavam um ao outro e de que recurso se utilizou Marcelino para a construção de tal ima-

gem.

Uma hipótese levantada relacionava a proximidade entre Amiano e Juliano devido ao

fato de ambos compartilharem o culto aos deuses tradicionais do panteão romano. Juliano

propôs medidas de favorecimento ao Paganismo em detrimento do Cristianismo que vinha se

fortalecendo desde reinados anteriores e esse poderia ser um dos motivos que aproximavam

os nossos personagens.

A metodologia adotada para esclarecer a problemática seria através de uma leitura

crítica da fonte à luz da revisão do estado da arte. Para isso utilizamo-nos de uma seleção de

estudiosos da tardo-antigüidade que possuem suas pesquisas relacionadas direta ou indireta-

mente ao tema aqui abordado. Destacamos o professor J. M. Alonso-Nuñez que em seu traba-

lho intitulado La Visión Historiográfica de Ammiano Marcelino, publicado pela Universidad

de Valladolid, se propõe a fazer uma análise do escritor do século IV em si mesmo. Outro au-

tor de suma importância é Marcelo Martínez Pastor que aborda e apresenta Marcelino em sua

característica de escritor, para além de historiador. Não poderia deixar de mencionar a profes-

sora, pesquisadora julianista, Margarida Maria de Carvalho, também Maria Helena da Rocha

Pereira e Manuel J. Rodríguez Gervás. Da primeira utilizei diversos artigos e que, em linhas

gerais, pretendem tratar Amiano e o seu período não só de perspectivas estritamente religiosas

ou filosóficas mas, e sobretudo, do ponto de vista político-cultural. Os outros dois autores ci-

tados serviram de base para a discussão em torno das virtudes do Imperador Juliano.

Algumas justificativas para a elaboração deste trabalho, ao nosso entender, referem-

se quanto a necessidade de uma interpretação das ações de Juliano do ponto de vista da litera-

tura pagã. Muito já se escreveu sobre este Imperador mas em sua maioria em língua estrangei-

ra. No Brasil, o arco cronológico da Antigüidade Tardia ainda é pouco explorado e mais ainda

se for relacionado a escritos pagãos. Entendemos também ser necessário tal trabalho pois o

passado não é estudado em si mesmo mas sim a partir de questões levantadas no presente.

Destarte, a atualidade de nosso trabalho está ao resgatar os aspectos que levam um determina-

do autor a construir uma imagem a qual deseja repassar para a posteridade. Esse tipo de cons-

trução reflete a parcialidade que qualquer autor possui iniciada no momento da escolha do ob-

jeto e a qual reflete-se em seus escritos.

Para cumprir com nosso objetivo achamos ser necessário dividir o trabalho em três

capítulos: no primeiro fizemos um apanhado sobre o contexto do século IV; o segundo trata-

mos do autor Amiano Marcelino e de sua obra e no último abordamos o Imperador Juliano e a

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forma como foi transmitido para a posteridade de acordo com a perspectiva pagã. Ao final,

apresentamos uma lista com diversas referências bibliográficas que permitem uma iniciação

àqueles interessados nas linhas históricas do mundo conturbado que era século IV.

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2 CONTEXTO

O período denominado pela Historiografia como Antigüidade Tardia ou Baixo Anti-

güidade é um dos mais fascinantes e ricos da História. Período este que, por se encontrar a

meio caminho entre a Antigüidade Clássica e o Medievo, nos apresenta uma série de proble-

mas os quais suscitam muitas discussões entre os historiadores de hoje e também entre os con-

temporâneos. São problemas que se fazem presentes para a confecção deste trabalho e que

tentaremos não solucioná-los, visto essa não ser nossa intenção e tão pouco nossa pretensão,

mas sim apresentá-los estabelecendo um diálogo com os diversos autores os quais de longa

data já se dedicam ao seu estudo.

Um dos primeiros problemas que se colocam é sobre a datação da Antigüidade Tar-

dia ou quando termina o mundo antigo e começa o que convencionamos chamar de Idade

Média. Cientes de que esse balizamento é unicamente para fins didáticos, as datas variam en-

tre 284 e 8005. A primeira refere-se a ascensão de Diocleciano a dignidade de Imperator a que

alguns já indicam os primórdios da Idade Média. A coroação de Carlos Magno como primeiro

Imperador do Sacro Império Romano do Ocidente em 800 é vista por outros autores como a

continuação do Império Romano e, por isso, até esse momento deve ser considerado vincula-

do a Antigüidade e só a partir de então, o início do medievo6.

O recorte a partir do qual iniciaremos o nosso trabalho também se apresenta como

um problema pois para compreender certo contexto precisamos rever seu momento anterior

imediato e, além disso, aqueles que estão mais afastados temporalmente. Não descartando a

importância da “crise” do século III ou o início da restauração do Império iniciada por Dio-

cleciano e a Tetrarquia, definimos como ponto de partida o ano de 324 quando Constantino I

derrota o Imperador do Oriente, Licínio, em Crisópolis e se consagra como único soberano do

Império Romano.

2.1 A POLÍTICA

5 Todas as datações apresentadas nesse trabalho referem-se aos anos depois de Cristo (d.C.) salvo quando houver indicação contrária. 6 ARCE, Javier. De la Antigüedad al Medievo: III Congreso de Estudios Medievales. Ávila: Fundación Sán-chez-Albornoz, p. 145-158, 1993. Cf. também FRIGHETTO, Renan, Cultura e Poder na Antiguidade Tardia Ocidental. Curitiba, Juruá Editora, pp.19-21, 2000.

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Com Diocleciano, de fato, inicia-se o processo de dominato do Império o qual se

mantém com a Tetrarquia mas que, ao fim e ao cabo, termina por efetivar-se com Constantino

I. Esse renova a forma de administrar o Império no processo de centralização do poder. Pode-

se questionar que Constantino I divide o Império entre os seus filhos, fragmentando o mando

e permitindo a descentralização. Mas há de lembrar que é um dos filhos de Constantino I,

Constâncio II, que perseguindo os seus irmãos termina por centralizar o poder em suas mãos.

Podemos pensar que, de certa forma, Juliano a partir de 360 volta seu olhar ao modelo de seus

antepassados, buscando essa centralização para a unificação do Império.

Compartilhamos, então, da mesma opinião de Averil Cameron ao referir-se que

Constantino pondría en movimiento grandes transformaciones que han invitado tan-to a los historiadores de su época como a los modernos a contraponerlo tajantemente con Diocleciano; pero él mismo era producto de la Tetrarquía y, en muchos sentidos, el heredero de Diocleciano; así, gran parte de las transformaciones sociales, admi-nistrativas y económicas ocurridas durante su reinado simplemente llevaron a su ló-gica conclusión las innovaciones iniciadas por Diocleciano7.

O estudo sobre Constantino I e seu período quando não se centra sobre seu apoio e

favorecimento ao Cristianismo passa, necessariamente, por ele. De fato, esse foi o feito mais

marcante durante seu reinado, feito que para além da influência que teve no Império Romano

contribuiu para relegar à Igreja cristã o título de religião universal alguns séculos depois.

A principal fonte que temos sobre o Imperador é o seu contemporâneo Eusébio, bis-

po de Cesaréia na Palestina, que escreveu História Eclesiástica e a Vida de Constantino

ambas obras que glorificam a figura do Imperador apresentando-o como um governante cris-

tão exemplar. Sem levar em consideração as características particulares de cada obra há de se

mencionar que a visão de Eusébio de Cesaréia é uma visão unilateral marcada pelo partida-

rismo do autor. Embora exista a possibilidade de encontrarmos outras obras seculares que nos

proporcionem uma visão mais imparcial, a mais importante é a de Eusébio. Certamente, al-

gum dos livros perdidos do autor pagão Amiano Marcelino8 fazia referência ao Imperador

mas por infortúnio do destino não chegou até nós. Seria um ponto de vista interessante pois

Amiano era favorável ao Imperador Juliano o qual sofreu quando do reinado dos filhos de

Constantino I e, por isso, teria razões para demonstrar hostilidade.

De fato, antes mesmo de 324, Constantino já havia promulgado o Édito de Milão

junto com o Imperador do oriente Licínio. A partir de então qualquer religião seria tolerada no

7 CAMERON, Averil. El Bajo Imperio Romano (284-430 d. de C.). Madrid: Ediciones Encuentro, p.57, 2001. 8 Pela seqüência que segue a obra, provavelmente o livro 12 ou 13 referia-se ao governo do Imperador Constan-tino I.

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Império o que favoreceu, principalmente, o desenvolvimento do Cristianismo. Com efeito, a

partir de 313, o Paganismo começa a sofrer reveses9 dentro da sociedade romana e de forma

lenta e gradativa vai perdendo terreno até ser proibido em 392 durante o Império de Teodósio

I (379-395).

Mas é a partir de 324 que Constantino consuma as suas mais significativas medidas

políticas iniciadas com Diocleciano. Frente a inflação estarrecedora e o colapso do denarius

de prata, a nova moeda – o solidus – conseguiu impor o seu valor de compra e seu lastro se

manteve até épocas tardias. A causa disso se deve não tanto pela medida administrativa ado-

tada pois não possuía significativas diferenças do período antecedente mas sim por possuir em

reserva o ouro necessário para garantir o valor da moeda. Ouro esse vindo de uma reforma no

sistema fiscal e de arrecadação o qual passou a ser cobrado per capita (capitatio) e pelo ren-

dimento da terra (iugatio) além das contribuições em ouro e prata impostas aos Senadores (o

follis e o chrysargyron) 10. Essas medidas, a título de ilustração, e outras mais iniciadas com

Diocleciano, mantidas e centralizada com Constantino não conseguiram conter a alta dos pre-

ços mas foram capaz de parar a desvalorização da moeda. Entretanto, como muito bem lem-

bra Peter Brown, a riqueza continuava mal distribuída na sociedade do século IV e o imposto

era inexorável11.

Zósimo, escrevendo em época posterior, nos deixa um relato do período de cobrança

dos impostos. [...] Cuando había de pagarse este impuesto cada cuatro años, se oían llantos y

lamentaciones por toda la ciudad, porque se reservaban castigos y torturas a quienes no po-

dían pagar debido a su extrema pobreza [...]12.

Quanto ao Senado Romano, Constantino I aumentou a ordem senatorial durante o seu

mandato possibilitando que os Senadores não mais residissem em Roma e não os obrigando a

participar das reuniões senatoriais. Com isso, muitos acumulavam cargos de dirigentes nas re-

giões em que possuíam suas propriedades. Cameron afirma que esse aumento foi de grande

importância para os períodos posteriores pois possibilitou a extinção da ordem eqüestre, os

cavaleiros que detinham cargos políticos, e o seu lugar foi ocupado por uma classe de oficiais

assalariados, os amicus ou comes do princeps. Esses “amigos” do Imperador passaram cada

vez mais a substituir o Senado nos assuntos administrativos e o aumento gradual do número

de amicus fez-se necessário a sua divisão em comitivas as quais passariam com Constantino I

9 Salvo no período 360-363 quando da restauração pagã do Imperador Juliano. 10 CAMERON, El Bajo Imperio…, p. 46 e 63. 11 BROWN, O Fim do Mundo Clássico: de Marco Aurélio a Maomé. Lisboa: Editorial Verbo, p. 37-38, 1972. 12 ZÓSIMO. Nueva Historia. Madrid: Gredos, livro II,38, 1992.

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a serem dignidades oficiais13. De fato, a função do Senado Romano desde o início do Império

nunca mais recuperou a importância político-administrativa que possuía em tempos de Repú-

blica. Segundo Lot, o Senado havia perdido as suas atribuições financeiras bem como a sua

iniciativa política e não possuía nem mesmo uma função determinada. Aproximava-se mais

de um tribunal de justiça do que uma instituição que outrora foi o centro legal do Império.

Mas os Senadores continuavam a ter uma série de regalias fiscais e a manter o seu status de

dirigentes mantendo-se como corpo político.

Os aspectos militares sob o período de Constantino também sofreram modificações

significativas. Desde Adriano, passando por Septimo Severo o exército passou a ter recruta-

mento regional. No tempo de Severo foi-lhes permitido casar o que fez com que os soldados

adquirissem os costumes, hábitos e a língua da região em que passaram a habitar. Constantino

trouxe as legiões que estavam encarregadas de proteger as fronteiras do Império e as aquarte-

lou nas cidades deixando o limes protegido apenas por soldados-camponeses que se mostra-

ram incapazes de deter o avanço bárbaro14.

Pode-se entender a necessidade de trazer os exércitos que antes protegiam as frontei-

ras pelo motivo do conflito civil que travou Constantino e Licínio. Os exércitos no período

Imperial eram leais a seu general e o acompanhavam conforme sua campanha seja ela contra

o inimigo externo (bárbaros) ou contra o “usurpador” interno. Entretanto, tal ponto de vista

pode ser questionado conforme a fonte em que se baseia a análise. Assim, temos em Zósimo,

autor pagão, a defesa de que Constantino ao diminuir os efetivos nas regiões de fronteira tor-

nou-se o responsável pelos problemas que o Império passou a enfrentar pois permitiu aos bár-

baros acesso livre ao território romano. Além do mais, as altas cifras dispensadas com o efeti-

vo não condizia com a sua participação na defesa do território. Contraposto a Constantino I, o

autor cita Diocleciano que manteve as fronteiras seguras não permitindo a entrada bárbara15.

Enfim, vale ressaltar o exposto por Cameron sobre a mudança dos usos do exército

romano. A annona, ou o soldo pago aos soldados, era grande parte em espécie o que implica-

va uma relação mais estreita entre o contribuinte e o soldado. Ao soldado coube também a ta-

refa de recolher os impostos e transportar a annona o que abriu espaço, dentre outros proble-

mas, à corrupção mesmo correndo o risco de serem torturados16. Essa mesma linha segue o

sucessor de Constantino I, Constâncio II, o qual luta contra Magnêncio em 350 e contra os

13 Cf. CAMERON, El Bajo Imperio…, p. 65; BROWN, O Fim do Mundo Clássico..., p. 29; LOT, Ferdinand. O Fim do Mundo Antigo e o Princípio da Idade Média. Lisboa: Edições 70, p. 103, 1968. 14 LOT, O Fim do Mundo Antigo..., p. 101. 15 ZÓSIMO, Nueva Historia, II.34.2. Em geral, os capítulo 30-38 do livro II apresentam uma série de críticas quanto as reformas administrativas e militares de Constantino I. 16 CAMERON, El Bajo Imperio Romano..., p. 159.

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persas sassânidas na parte oriental do Império debilitando ainda mais as fronteiras do ocidente,

principalmente com a Gália. É nesse contexto que assume Juliano a dignidade de César a qual

será tratada em momento oportuno17.

A sociedade tardo-antiga possuía sua economia baseada na agricultura e dependia de

víveres vindos do ultramar. Prova disso encontramos no livro XIX, capítulo 10 de Amiano

que trata sobre um período de agitação popular motivado pelo risco de falta de alimentos. As-

sim diz ele:

[...] pues él [Tértulo, prefeito de Roma] no tenía ninguna culpa de que no llegaran a tiempo los barcos cargados con el alimento, ya que las dificultades del mar, más du-ras de lo usual, y la fuerza de los vientos, que soplaban con la fuerza de una tempes-tad, los habían llevado a puertos más cercanos, y sentían pánico de entrar en el puer-to de Augusto [...]

e continua mais à frente [...] se calmo el mar y el viento se transformó en una suave brisa del

sur, de manera que las naves llegaron al puerto a toda vela e hicieron rebosar de trigo los

graneros18. As transferências monetárias dentro do Império Romano não giravam de forma a

manter um fluxo financeiro estável mesmo após o início da cobrança de impostos em moeda

dos Senadores e grandes proprietários de terras. É possível ver no século IV uma soma de

homens ricos gastando fortunas em suas terras natais, rivalizando entre si por prestígio, ador-

nando com construções e estátuas os seus palácios e villas19. Verificamos, então, um grande

abismo entre os que possuíam muito dinheiro e aqueles, a maioria da população, que viviam

nos subúrbios de cidades que se tornavam a cada dia mais precária para habitação, como Ro-

ma.

Essa distância entre os “notáveis” e os seus inferiores era marcada não só pelo fator

econômico como também pela diferença cultural e de educação que eles impunham impri-

mindo a mensagem de que aquele estilo de vida não podia ser partilhado. A educação de um

“bem nascido”, utilizando aqui a expressão de Peter Brown, se dava não na escola mas sim na

cidade. A criança era conduzida pelo seu paedagogus (preceptor) ao foro, centro da vida ur-

bana em Roma, onde aprendia a conviver com os seus pares, era iniciado nos misteres da vida

(officia vitae), aprendia as técnicas tradicionais e solenes condizentes com a sua classe superi-

or20. Com o seu preceptor aprendia literatura e retórica, disciplinas fundamentais para sua

17 Ver capítulo 3, página 34. 18 MARCELINO, Historia, XIX,10,1 e XIX,10,4. 19 BROWN, O Fim do Mundo Clássico..., p. 41. Cf. também FRIGHETTO, Renan, "Estruturas sociais na Antigui-dade Tardia Ocidental (séculos IV/VIII)" In: Repensando o Império Romano. Perspectiva Socioeconomica, Política e Cultural. Rio de Janeiro, Mauad X, p. 227-30, 2006. 20 BROWN, Antigüidade Tardia..., p. 230-231.

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formação moral. Ainda segundo Brown, era através das expressões corporais que o “bem nas-

cido” romano mostrava sua distância social aos que não estavam a sua altura. Assim, exercí-

cio, dieta e banhos – heranças gregas – garantiam essa separação através dos códigos de com-

portamento.

Condena-se espancar um escravo num acesso de raiva. Não porque se trata de come-ter um ato desumano contra um irmão humano, mas porque tal rompante representa uma ruptura da auto-imagem harmoniosa do homem “bem nascido”. A irrupção de uma violência anormal constitui uma forma de “contágio moral” que leva o senhor a comportar-se com um escravo de modo tão incontrolado como o do próprio escra-vo21.

O enriquecimento que se deu no ocidente deve ser diferenciado do oriente. No oci-

dente a concentração de riqueza, expressa aqui principalmente pela posse de grandes proprie-

dades rurais, pode ter suas raízes em finais do século III quando famílias romanas que possuí-

am já um certo patrimônio tiveram acesso a terras desertas ou isoladas pela guerra as quais e-

ram vendidas por preços baixos. Esse fator teria um maior reflexo na sociedade romana de fi-

nais do século IV e V quando essas famílias passaram a rivalizar com o governo que se apre-

sentava cada vez mais deficitário. Ao que parece, na parte oriental as concentrações de terra

foram em menor volume e extensão e a lealdade ao Império era mais significativa fato que

aumentava a popularidade do Imperador22.

A Igreja também foi beneficiária de grandes extensões de terra seja através da aquisi-

ção direta ou, principalmente, por herança e doação de fiéis. Os bispos se tornaram proprietá-

rios e passaram a dedicar-se, do mesmo modo, a iniciativas comerciais contribuindo para a

movimentação econômica no Mediterrâneo.

Após a morte de Constantino, em 337, eliminados por Constâncio II todos os des-

cendentes e partidários de Constâncio Cloro e Teodora23 a fim de não haver pretendentes ao

trono, o Império foi dividido em três unidades administrativas que ficaram a cargo dos três fi-

lhos de Constantino I: Constantino II ao qual coube a administração das Gálias, Britânia e 21 BROWN, Antigüidade Tardia..., p. 232. 22 BROWN, O Fim do Mundo Clássico..., p. 45. 23 Segundo o testamento de Constantino I para além da divisão estabelecida na continuação do parágrafo, cabia também a Delmácio, neto de Constâncio Cloro e meio irmão de Constantino, a Mesia e Trácia. Quanto aos títu-los Anibaliano, irmão de Delmácio e genro de Constantino, recebia o de rei da Armênia e dos territórios ponti-cos. Júlio Constâncio, meio irmão de Constantino I e filho de Constâncio Cloro e Teodora, havia sido nomeado cônsul no ano de 335. Estes que aqui foram citados pereceram a mando de Constâncio II. Da Da linhagem cons-tantiniana, restaram somente os filhos de Constantino I e Juliano e seu meio irmão Galo, filhos de Júlio Constân-cio. Entre várias hipóteses sobre a matança tem grande aceitação a que afirma que foi um movimento espontâneo realizado pelo exército o qual, de acordo com a sucessão dinástica estabelecida por Constantino I, reconhecia como Imperadores legítimos somente os filhos deste. Cf. ZÓSIMO, Nueva Historia, p. 225-227, notas 104 e 106.

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Hispania; Constante I encarregado da Itália e Panonia; e Constâncio II responsável pelo Egi-

to e parte oriental do Império Romano.

Em 340 Constantino II invade a Itália reivindicando para si a posse dos territórios de

seu irmão. É derrotado por Constante I próximo a Aquiléia que passou a ter jurisdição sobre

os territórios do irmão derrotado, ou seja, sobre a parte ocidental do Império.

Uma década depois, Magnêncio, comandante nas Gálias das Herculianas e Jovianas24,

apoiado pelo exército é nomeado Imperador o qual usurpa o poder de Constante I, que veio a

falecer no mesmo ano.

Até então Constâncio II havia se preocupado somente com os conflitos contra os per-

sas, no oriente. A partir de 351, ameaçado pelo usurpador Magnêncio, decidiu depô-lo pelas

armas. Nomeou, então, seu primo Galo como César nas províncias orientais e partiu ao oci-

dente onde, na batalha de Mursa Maior derrotou os exércitos de Magnêncio que veio a se sui-

cidar em 353. Constâncio II tornara-se único Imperador dos domínios romanos.

Um dos autores que escreveram sobre o Imperador Constâncio II foi Amiano Marce-

lino que em várias passagens da sua Res Gestae deixou relatos os quais nos permitem formar

uma imagem do princeps. Neste sentido, como é característica na obra do autor, são aponta-

das as virtudes e também os defeitos do Imperador. Podemos confiar no relato de Amiano

pois, como veremos no momento adequado25, sua intenção ao escrever História é “ser total-

mente sincero”26.

Constâncio II governou sozinho de 353 a 361, quando morreu na região da Cilícia vi-

timado por uma forte febre. Destacava-se por não se preocupar com a popularidade, manter

sempre a dignidade esperada de sua autoridade, ser cuidadoso ao atribuir cargos tanto milita-

res quanto civis e também quanto a proteção de seus soldados. Apesar de possuir gosto pela

cultura não produziu nada que merecesse destaque. Levava uma vida moderada, sóbria e casta.

O Imperador Juliano destaca três virtudes, segundo o professor Gilvan Ventura Silva no seu

artigo A Construção da Imagem Heróica de Constâncio II na Oratio III de Juliano27,

sendo elas a clemência, a piedade para com os deuses e a prudência. Dessas, Amiano faz

menção a prudência28 e também a sua recusa à violência29. Mas ao referir-se a clementia, A-

24 Eram importantes unidades do exército romano que tinham seus nomes derivados de divindades (Hércules e Júpiter). Cf. ZÓSIMO, Nueva Historia, II,42.2. 25 Ver capítulo 3, p. 49 e ss. onde relacionamos as virtudes de Juliano expostas por Amiano e as comparamos com as apresentadas por outros autores sobre o mesmo Imperador a fim de verificar a ueritas que se propõe o antioquiano nas passagens XVI.1.1; XXXI.16.9, entre outras. 26 MARCELINO, Historia, XXXI,5,10. 27 SILVA, Gilvan Ventura da. A Construção da Imagem Heróica de Constâncio II na Oratio III de Juliano. Revis-ta Phoînix: Rio de Janeiro, v. 11, p. 76-78, 2005. 28 MARCELINO, Historia, XXI,16,2-3 e 6.

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miano traça o perfil de um Imperador que [...] en tales asuntos [a respeito de suspeitas sobre

eventuais usurpadores] odiaba la justicia, aunque hacía cualquier cosa por parecer justo y

clemente30. Outros defeitos apontados são sua torpe atuação judiciária, excessivo grau de vio-

lência com os acusados de tentarem usurpar o poder, era influenciável pelos que o cercavam –

esposa, eunucos ou membros da corte31 – e suas vitórias militares em conflitos externos (guer-

ras contra os bárbaros) foram marcadas por êxitos inexpressivos. Constâncio II, sempre teme-

roso quanto a tentativa de usurpação do poder, manteve a continuidade de uma política inicia-

da ainda com seu pai em que reduzia ou anulava a influência da esfera civil, Senadores prin-

cipalmente, no âmbito militar. Dessa forma as altas classes não poderiam manipular o exército

contra o poder estabelecido do Imperador.

O século IV também foi marcado por uma linha sucessória, dinástica, no governo do

Império contraposto ao século anterior em que se sucederam no poder uma série de imperado-

res que muitas vezes não possuíam ligação sangüínea entre si. Assim, Constantino I legou o

poder a seus filhos e sobrinhos e no século V temos ainda uma dinastia teodosiana. Não que

essas dinastias conviviam em perfeita harmonia, longe disso. Exemplo temos na própria casa

de Constantino, como vimos anteriormente e, com exceção sua e de Juliano, nenhum usurpa-

dor teve sucesso ao usar a diadema.

Juliano, filho de Júlio Constâncio e primo de Constâncio II, exilado junto ao seu

meio irmão Galo após o massacre de 337, foi um dos únicos sobreviventes da casa constanti-

niana. Elevado a condição de César em 355, um ano depois é enviado as Gálias para lutar

contra os alamanos e francos que estavam penetrando no território romano. Último descen-

dente vivo de Constantino I, torna-se Augusto em 361, ano da morte de seu primo e, entre ou-

tras características, destaca-se pela tentativa de uma restauração pagã aos moldes das velhas

tradições romanas32.

2.2 A RELIGIÃO

29 MARCELINO, Historia, XXI,16,1. 30 MARCELINO, Historia, XXI,16,11. 31 O termo “corte” neste trabalho é utilizado para fazer referência a “totalidade dos órgãos de governo que se en-contram na presença do Imperador”, sendo aceito também os vocábulos domus, castra, comitatus, palatium. A esse respeito ver SILVA, Gilvan Ventura da. A domus imperial e o fenômeno das usurpações no IV século. Re-vista Phoînix: Rio de Janeiro, p. 73, nota 1, 1995. 32 O capítulo 3 do presente trabalho tratará mais a fundo algumas questões sobre o Imperador Juliano.

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Ainda sob o reinado de Constantino I é permitido o culto a qualquer religião garanti-

do pelo Édito de Milão, de 313. Para além dos fatores que levaram o Imperador a tornar-se

cristão (se é que alguma vez realmente o foi) interessa-nos aqui compreender quais foram as

nuanças que tal atitude refletiu no Império e, mais ainda, como ela influenciou uma pequena

seita que de minoria em inícios do século IV tornou-se, ao final, a única religião aceita no Im-

pério.

De fato, se tomarmos por conversão como uma reformulação moral interna isso não

ocorreu mas o que importa é se Constantino deu mostras aparentes de adesão a nova religiosi-

dade, e isso não há como negar33. Logo após a batalha da ponte Mílvio, o “décimo terceiro

apóstolo”, como se autointitulava, passou a intervir nos assuntos da Igreja ao mesmo tempo

em que tomava uma série de medidas econômicas e sociais junto ao clero a fim de cristianizar

as manifestações externas imperiais34. Em contrapartida, Constantino nunca deixou de cunhar

em suas moedas a inscrição SOLI INVICTO COMITI35, referência ao deus solar Hélios que

segundo a tradição pagã representava o deus supremo, restaurador da civitas e promotor da

paz.

Mesmo favorecendo a religião cristã, Constantino I não se voltou contra as crenças

tradicionais e continuou usando os símbolos pagãos como forma de exaltação do poder impe-

rial, como no caso das moedas. O que para nós torna-se mais aceitável e seguindo as idéias de

Ramón Teja, o que o Imperador fez não foi nada além de utilizar-se das religiões pagã e cristã

como suporte da ideologia imperial36. Logro esse não alcançado por nenhum outro soberano

anterior a ele. Com isso conseguiu arrefecer consideravelmente os conflitos entre as religiões

e trazer para si, ou para o Império, o apoio de uma leva de fiéis que não se interessavam pelo

bem da urbe, já que conforme a doutrina cristã a vida terrena é apenas uma passagem. Os cris-

tãos, imersos pelo triunfo da nova religião, não se opuseram ao processo que colocava a Igreja

ao serviço do poder imperial mesmo que isso lhes custasse uma profunda paganização de seu

credo. Pelo contrário, sabiam que necessitavam do braço secular para sobreviver seja contra

as dissidências internas (principalmente o confronto entre arianos e atanasianos) seja contra

outras crenças ou mesmo para poder se organizar civil e politicamente.

Após a morte de Constantino I, seu filho e sucessor Constâncio II, educado na fé cris-

tã, deu continuidade a política religiosa caracterizando-se por levar a extremos o processo de

33 LOT, O Fim do Mundo Antigo..., p. 45. 34 TEJA, Ramón. El Cristianismo Primitivo en la Sociedad Romana. Madrid: Ediciones Istmo S.A., p. 38-39, 1990. 35 Ver anexo 1. 36 TEJA, El Cristianismo Primitivo..., p. 42.

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cristianização de instituições, impondo sua convicção teológica pela força. Os maiores adver-

sários não eram os cultos exteriores mas sim os próprios dissidentes internos e a conseqüência

disso é que Constâncio II exilou e perseguiu com mais afinco bispos do que seguidores do pa-

ganismo. Mesmo assim a Igreja continuava a consolidar o seu poder social e econômico, pas-

sou a ser proprietária de terras e os bispos desfrutaram de influência tal qual os altos funcioná-

rios do Império. Constâncio II, a partir de 354, ordenou o fechamento dos templos pagãos,

aumentou a proibição sobre adoração a estátuas e retirou o altar da deusa Vitória do Senado.

Junto a isso, sofreram perseguições incitadas pelos bispos cristãos e, indiretamente, apoiada

pelo Imperador. Tiveram templos e estátuas destruídas37.

O paganismo do século IV havia sofrido mutações em seu seio que o diferenciava

daquele originário do período em que se iniciou a helenização do Império (séculos IV e III

a.C.). Mudanças estruturais, políticas e econômicas na evolução da sociedade romana foram

fatores responsáveis por essa transformação. Ao final da República, com a unidade de Roma

destruída pelas guerras civis, a religião passou a ser moldada conforme o interesse do gover-

nante. Dessa forma, a divisão entre assuntos religiosos e civis deixou de existir e o líder tor-

nou-se senhor do sagrado e do profano. Essa mudança é observada a partir de Júlio César o

qual passou a ser adorado como um semideus e divinizado após sua morte.

Entretanto, o Paganismo manteve o ritual de euocatio, ou seja, continuou a incorpo-

rar novos deuses e cultos, reinterpretando-os a sua maneira. Mas isso não livrava o Paganismo

da transformação e, a partir do momento em que as respostas esperadas da religião passaram a

não satisfazer os fiéis, os cultos exteriores tiveram um papel mais relevante frente a religião

tradicional. Esse fator se verifica no século I e II quando da incorporação dos cultos marca-

damente orientais de Cibele, Átis, Mithra, Ísis e Dionísio38.

Esses cultos não excluíam o Paganismo tradicional mas se associavam a ele forman-

do um sincretismo religioso que, após adquirir características do neoplatonismo, formaria o

que podemos chamar de Paganismo Tardio, conforme expressão utilizada por Teja.

O Paganismo tardio procurou substituir a idéia de numen, um princípio não muito

claro que animava os deuses, pela de um deus superior, transcendente, mais palpável39. Assim,

temos Mithra associado ao sol, como seu próprio epíteto indica: Sol Inuictus, doutrina caracte-

rizada pelo otimismo e que não possuía oposição entre sacerdotes e fiéis. Tinha uma hierar-

quia que lembrava a estrutura do exército, onde possuía junto com a aristocracia grande parte

37 Cf. PINTO, Paulo G. H. da R. Transformações no Paganismo Romano. Rio de Janeiro: Revista Phoînix, n.º 3, p. 365, 1997. 38 ROUCHÉ, Michel. Os Impérios Universais: séculos II ao IV. Lisboa: Dom Quixote, p.358-359, 1980. 39 Cf. ROUCHÉ, Os Impérios Universais..., p. 269.

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de seus seguidores. Foi esse deus Mithra, Sol Inuictus ou Hélios que Constantino I nomeou

protetor do Império antes de sua adesão ao Cristianismo e que Juliano tentaria restaurar poste-

riormente.

Não foi somente o Paganismo que se utilizou do neoplatonismo para desenvolver ou

aperfeiçoar a idéia de deus. O Cristianismo também foi muito influenciado por Plotino, quem

desenvolveu a idéia do deus Uno, responsável pela luz divina que opõe as trevas. De uma

forma geral podemos associar Mithra ou Hélios no Paganismo ao Deus dos cristãos. Na es-

sência, segundo o neoplatonismo, eles formam o Uno, a realidade suprema aos quais os de-

mais deuses ou os anjos estão associados.

O Paganismo já vinha sofrendo no século IV uma decadência literária originada ain-

da no século II e muito influenciada pela crise da época da anarquia militar. A medida que as

letras pagãs no ocidente não se aproximavam dos escritos feitos outrora por pensadores con-

sagrados como Cícero, com a literatura oriental não ocorria da mesma forma. Seu período de

estagnação havia sido o século I e após Nerva e Trajano até Diocleciano passou por uma es-

pécie de renascimento vindo a difundir-se pelos territórios próximos. Mostra disso são os pró-

prios Imperadores; Adriano era heleno em seus gostos, Marco Aurélio escreveu seus pensa-

mentos em grego e, se Constantino não deu mostras de sua proximidade com a cultura vizinha,

seu neto Juliano cresceu e se educou na Grécia40. É tempo de ascensão das biografias de Im-

peradores e dos Panegíricos, discursos laudatórios sem censura ou crítica e que, nas palavras

da professora Maria Margarida de Carvalho, formavam “um julgamento das ações passadas,

futuras e presentes [...] dos imperadores no século IV d.C.”41. As biografias, a exemplo da

Historiae Augustae, são obras cheias de anacronismos e seus autores, conforme Lot “[...] fo-

ram os espíritos mais medíocres, mais limitados que seja possível imaginar, os mais acabados

representantes dessa decadência intelectual, dessa barbárie do século III”42. Entretanto, tais

obras não devem ser descartadas pois sua função marcou a renovação e valorização das tradi-

ções pagãs ancestrais que levaram Roma à hegemonia. Quanto ao gênero histórico temos em

Amiano Marcelino o representante mais expressivo desta vertente desde Tácito. Sua obra é

uma das fontes mais fidedignas para o estudo do século IV nos mais variados aspectos: militar,

político, social ou econômico e será tratado neste trabalho, com mais vigor, no capítulo se-

guinte.

40 Cf. LOT, O Fim do Mundo Antigo..., p. 165-166. 41 CARVALHO, Margarida Maria de. Paidéia, retórica e uma nova abordagem sobre Contra Juliano de Gregório Nazianzeno. Dimensões: Revista de História da UFES, Vitória, n.º 16, p. 197, 2004. 42 LOT, O Fim do Mundo Antigo..., p. 166.

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Enfim, Amiano escreve sua obra em finais do quarto século da era cristã, em um pe-

ríodo conhecido por “Renascimento Teodosiano” (379-395) onde os autores contemporâneos

se propuseram a escrever sobre Roma e seus Imperadores mais destacados43. Período o qual

terminou por refletir uma herança literária que vinha desde o século II caracterizado pelo afas-

tamento das letras pagãs dos círculos que a cultivavam. Ao mesmo tempo em que a literatura

tradicional mostrava-se estéril no século III e parte do IV, uma outra ocupava cada vez mais o

seu lugar: falamos aqui dos escritos cristãos.

Era época dos autores da Igreja do ocidente, chamados “doutores” diferenciando-os

dos seus antepassados que eram, em sua maioria, apologistas e polemistas contra o paganismo.

No século IV esses doutores empenharam-se em unificar a Igreja lutando contra os dissidentes

internos e promovendo os escritos sagrados. Referimo-nos a Hilário de Poitiers, Ambrósio de

Milão, Agostinho de Hipona entre outros que trataram de elaborar hinos utilizados posterior-

mente nas liturgias, os quais tinham por público os fiéis e que podiam, por eles, serem com-

preendidos e que os cativavam. No oriente a situação não era diferente: apesar do mérito lite-

rário e filosófico do Imperador Juliano a literatura cristã era predominante. Nomes como Ata-

násio, Basílio de Cesaréia, Gregório de Nazianzo, João Crisóstomo legaram-nos diversas car-

tas, homilias, tratados e discursos carregados da qualidade própria dos gregos mas agora vol-

tados à defesa do Cristianismo. Na História temos em Eusébio de Cesaréia e Paulo Orósio

seus principais representantes preocupados em elaborar uma história da Igreja. Da aretologia,

gênero literário pagão onde eram tratadas as vidas dos sábios e filósofos, herdou o Cristianis-

mo as “Vidas dos Santos”, nem sempre fiéis mas dedicadas a exaltar a trajetória de mártires e

bispos.

Segundo Cláudio Umpierre Carlan, o grande golpe dado no Paganismo no século IV

foi o seu estrangulamento econômico que, através de confiscos e proibições, dificultou o reco-

lhimento de rendimentos. Junto a isso, de acordo com Paulo Gabriel, a crise do terceiro século

que provocou a desestruturação do Império e o conseqüente crescimento e organização do

Cristianismo contribuíram também para que o Paganismo viesse a ser proibido por lei com

Teodósio em 392 e, em 416, as medidas afastavam também do exército e da administração os

que ainda cultuavam os deuses antigos44.

43 Ferdinand Lot discorda do termo “Renascimento”. Acredita ser um exagero o uso de tal termo para se referir a alguns poucos nomes em todo século IV que, apesar de serem importantes, não representam o brilhantismo de tempos passados. Cf. LOT, O Fim do Mundo Antigo..., p. 166 e 169. 44 A esse respeito ver CARLAN, Cláudio Umpierre. O mundo romano no século IV: decadência ou reestruturação. Revista Fênix, v. 4, ano IV, n. 1, p. 13-14. PINTO, Paulo G. H. da R. Transformações no Paganismo Roma-no..., p. 364-366.

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O Cristianismo, tendo em seu auxílio o braço secular, passou a perseguir os pagãos,

destruir seus templos e a influenciar os Imperadores contra a velha religião. Aperfeiçoou sua

literatura na defesa de seus dogmas e, auxiliado a isso, elaborou uma doutrina mais palpável

ou mais próxima da grande massa urbana. É uma religião apoiada em um personagem que re-

almente existiu, Jesus Cristo, e que tem uma obra como guia, a Bíblia. Ao contrário do Paga-

nismo que não possuiu nem um nem outro. Neste sentido, o Cristianismo tornava-se uma reli-

gião mais simples e mais fácil de ser entendida pelos fiéis conforme afirma Amiano no livro

XXI,16.845.

45 MARCELINO. Historia, XXI.16.8

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3 AMIANO MARCELINO.

Nesta etapa trataremos, mais especificamente, do autor Amiano Marcelino contem-

plando aspectos de sua vida, obra e a sua relação com o IV século, período em que escreve e

que vivencia. Partindo do pressuposto de que Amiano elabora uma imagem heroificada do

Imperador Juliano e amparados no princípio de que toda imagem é uma construção elaborada

de acordo com tendências e condições do momento a qual reflete aquilo que o autor deseja

passar para o seu público, torna-se pertinente estudar os fatores que influenciaram essa cons-

trução a fim de termos uma noção mais próxima da realidade do momento para além daquela

que o escritor queria nos passar.

3.1 MILES QUONDAM ET GRAECUS

Amiano Marcelino, na opinião de vários autores, é o “último grande representante da

historiografia latina”46. Sua obra está entre as principais fontes relacionadas a crise do Império

Romano no século IV, a figura de Juliano e seus feitos enquanto César e Augusto entre outros

aspectos. Ademais, Amiano é a principal fonte sobre si mesmo; a maior parte daquilo que co-

nhecemos sobre o antioquiano é o que ele mesmo deixa entrever em sua obra. Dessa forma, os

elementos aqui apresentados estarão direta ou indiretamente ligados a Res Gestae.

Apesar de não se saber ao certo qual a data exata de nascimento, é de acordo o ano de

330, conforme uma pequena passagem em que Amiano faz referência a sua adolescência em

35747. Outro dado também de consenso é quanto ao seu local de nascimento, Antioquia, atual

Turquia, ao norte da Síria48. Esta cidade possuía grande importância no século IV servindo

46 Cf. ALONSO-NUÑEZ, La visión historiográfica de Ammiano Marcelino. Valladolid: Universidad de Vallado-lid, p. 196, 1975; MARCELINO, Amiano. Historia. Edición de Mª L. H. Trujillo, p. 13, nota 1. Madrid: Akal/Clásica, 2002; PASTOR, Marcelo Martínez. Amiano Marcelino, escritor romano del s. IV: Perfil Literario. Estudios Clásicos, Tomo 34, n.º 102, p. 91, 1992. 47Cf. Ammianus Marcellinus on-line Project. Disponível em: <http://odur.let.rug.nl/~drijvers/ammianus/biography.htm>. Acesso em: 15/08/2007. A datação é exposta por Sa-ra Wijma e que também apresenta o ano de 325 para o nascimento de Amiano, defendido por John Matthews em The Roman Empire of Ammianus Marcellinus. London: 1989. PASTOR, Amiano Marcelino, escritor..., p. 92 concorda com 331 ou 332. 48 Sara Wijma, em sua biografia sobre Amiano cita alguns autores que discordam dessa localidade como Bower-sock (1990) que sugere Alexandria, Fornara (1992) Tessalônica, Barnes (1998) aponta como origem a Síria, Tiro ou Sídon. Cf. Ammianus Marcellinus on-line.

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como residência imperial, sede principal da administração no oriente, centro militar devido a

sua localização estratégica, difusora de cultura e berço de outros grandes nomes da tardo-

antigüidade como Libânio e o bispo João Crisóstomo. O latim era a língua comum nos círcu-

los oficiais e militares. Em diversas passagens de sua obra deixa relatado o profundo apreço e

orgulho que tinha por sua terra natal como na digressão que faz sobre as províncias orientais

onde esta región [Síria] es valorada gracias a la ciudad de Antioquia, famosa en todo el

mundo y con la que no puede competir ninguna otra en abundancia de recursos, ya sean pro-

pios o importados49.

Nascido no seio de uma família grega nobre como podemos deduzir através da auto-

qualificação de ingennus50, ou seja, nascido livre, Amiano em 354 fazia parte do efetivo do

exército romano, engajado na categoria de protector domesticus, um corpo seleto da guarda

pessoal do Imperador que tinha funções tanto cerimoniosas quanto militares e, por vezes, po-

deria participar de missões51. Foi como protector que Amiano serviu a Ursicino, comandante

do exército na parte oriental do Império. Junto a ele combateu contra o usurpador Silvano em

355, sobreviveu ao cerco de Amida e uma série de outras missões até não mais relatar sua par-

ticipação no exército. Isso se deu após a destituição de Ursicino em 359-360, quando este foi

acusado de traição pela corte de Constâncio II. Deixa claro que era homem de confiança no

exército após ser enviado por seu comandante para obter informações a respeito da aproxima-

ção de Sapor, rei dos persas52. Após a deposição de Ursicino acusado, segundo Amiano, injus-

tamente pelo fracasso de Amida53 o autor reaparece servindo a Juliano na campanha contra os

persas nos deixando um relato que é uma das melhores fontes para o estudo desta expedição.

Foi lutando contra os persas, em 363, que Juliano morreu e logo em seguida Amiano

abandona a vida militar e retorna a Antioquia, talvez desiludido com a morte de seu herói. Lá

permanece até 378 quando, então, se dirige a Roma e inicia a sua obra. É provável que duran-

te esse período em sua cidade natal, Amiano aprofundou seu latim e leu diversas obras de es-

critores antigos e contemporâneos os quais aparecem na sua Res Gestae. Em Roma testemu-

nhou os vícios de uma sociedade em transformação e a isso dedica duas digressões uma no li-

vro XIV.6 (Defectos del senado y del pueblo romano) e outra no XXVIII.4 (Acerca de la pre-

fectura urbana de Olibrio y Ampelio. Defectos del senado y del pueblo romano) sem, no en-

49 MARCELINO, Historia, XIV.8.8. 50 MARCELINO, Historia, XIX.8.6. Na tradução consultada o trecho que no original consta ingennus, é traduzido como nobre. Cf. HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 349. 51 HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 137, nota 79. 52 Cf. MARCELINO, Historia, XVIII.6. 53 Ao que tudo indica, Amiano possuía uma relação muito próxima ao comandante Ursicino.

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tanto, deixar de admirar a urbs aeterna54. A esse respeito nos diz Amiano sobre os nobres que

el magnífico esplendor de nuestra historia se ve oscurecido por la incultura y ligereza de

unos pocos, que no se dan cuenta del lugar en el que han nacido, y que, como si tuvieran li-

cencia plena para sus vicios, caen en el error y en la lascivia [...] e continua ao se referir a

masa de clase indigente y de clase inferior, unos duermen en las tabernas, otros se protegen bajo los toldos que dan sombra en el teatro [...] o bien pelean riñendo por los juegos, haciendo ruidos vergonzantes con sus narices ruidosas al sorber el aire, y si no, lo que es el mayor de sus afanes, se agotan desde el amanecer hasta la noche, ya haga sol o llueva, examinando cuidadosamente cada detalle de las cualidades o de los defectos de los aurigas y de sus caballos55.

Certamente esta crítica é reforçada pelo fato de sua expulsão e de outros estrangeiros

da cidade, em 383, devido a uma crise de víveres que causou o problema da fome. Mas após

ser expulso o Senador Romano Quinto Aurélio Símmaco56 o trouxe de volta o que podemos

deduzir que Amiano pertencia ao seu círculo de amigos. Contudo, não deixou de fazer críticas

à nobreza romana e suas atitudes frente aos estrangeiros57.

Em Roma, Amiano Marcelino viveu seus últimos dias por volta do ano 400, fazendo

leituras públicas de sua obra conforme consta em uma carta de seu contemporâneo Libânio

datada de 39258, narrando o momento de crise pela qual passava o Império Romano. Alonso-

Nuñez afirma que após o livro 26 Amiano não mais faz referências autobiográficas justamente

quando do fracasso da expedição persa e da morte de seu herói. Podemos considerar esse o

motivo que levou Amiano a abandonar definitivamente o exército e a se dedicar a leitura de

autores clássicos os quais se fazem presentes em sua obra. Aliás, ainda de acordo com Alon-

so-Nuñez, foi ao se retirar à vida privada em Antioquia que Amiano escreveu ou deu continu-

54 Cidade Eterna. Roma é critica pelos vícios de sua população mas sua história, seus monumentos e seu legado são admirados por Amiano Marcelino. 55 MARCELINO, Historia, XIV.6.7 e XIV.6.25. 56 Símmaco (340 – 402) foi Próconsul na África em 373, prefeito de Roma entre 383 e 385, Cônsul em 391. Bom conhecedor da literatura greco-latina era também adepto do Paganismo, fato que o levou a uma polêmica com Ambrósio de Milão quanto a restauração do altar da deusa Vitória, na cúria do Senado Romano. In: Enciclopédia Encarta Online. Disponível em: <http://it.encarta.msn.com/encyclopedia_981534492/Simmaco_Quinto_Aurelio.html>. Acesso em: 18/10/2007; Enciclopédia Wikipédia. Disponível em: <http://it.wikipedia.org/wiki/Quinto_Aurelio_Simmaco>. Acesso em: 18/10/2007. 57 Quanto as críticas dirigidas a nobreza em relação aos estrangeiros ver MARCELINO Historia, XIV.6.12-15. 58 Temos a citação de uma parte da carta em FONTAINE, Jacques. Ammien Marcellin: Histoire. Tomo I. Paris: Les Belles Lettres, 1978. Nesta carta (epist. 1063), Libânio demonstra o prazer em receber o seu amigo em Ro-ma e também o elogia e a sua obra dizendo que a parte escrita já conhecida pelo público faz com que se interes-sem e busquem as demais (tradução nossa). Provavelmente, Libânio estava incentivando Amiano a continuar o seu trabalho já que, segundo alguns autores (ver p. 27), o projeto inicial era terminar no livro XXV. Também faz alusão a proximidade entre Libânio e Amiano e a carta escrita daquele para este. PASTOR, Amiano Marcelino, escritor..., p. 92-93.

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idade ao seu trabalho historiográfico tendo que ir a Roma, mais tarde, para uma elaboração

mais refinada59.

Amiano nos deixa mostras de que era uma pessoa profundamente impregnada da cul-

tura clássica. Tinha conhecimento não só dos gêneros literários escritos em língua helênica

como também em latim. É natural que tenha um maior aprofundamento sobre autores gregos

pois como é indicado, escreve ele como graecus60 entretanto, demonstra grande apreço por

Homero e Cícero este talvez o autor latino que mais influência teve sobre Amiano devido a

quantidade de citações presentes na Res Gestae61. Para não repetirmos o vasto elenco de auto-

res que Amiano utilizou os quais já foram apresentados por Alonso-Nuñez destacamos a pre-

sença dos historiadores Tucídides, Políbio e Salustio além dos filósofos Demócrito, Pitágoras,

Sócrates, Platão e Aristóteles. Também Epicuro, Plotino e Catão, este na literatura62.

No último parágrafo de seu livro, Amiano deixa claro de qual posição escreve.

O livro XXXI,16,9 assim informa: ut miles quondam et Graecus a dizer, “sou antigo

militar e grego”. Grego como aqui está apresentado significa que Amiano ao escrever sobre

Roma e sobre a sociedade romana escrevia com os olhos de um grego, ou seja, como alguém

que podia contemplar a história de uma posição mais objetiva não pertencendo a nenhum gru-

po ou influenciado por determinada tendência63. Trujillo, concordando com J. Stoian, acredita

que, devido as diversas menções sobre os povos conhecidos pelos romanos, o que dá ares de

obra etnográfica a Res Gestae, a autodefinição como graecus indica o caráter universal que

Amiano carregava consigo diferenciado-se dos escritores romanos que a tradição os impunha

fortes traços nacionalistas64.

Grego também remete a formação que teve o nosso autor ou a sua paidéia. Segundo

Henri-Irénée Marrou, paidéia vem a significar

a cultura, entendida não no sentido ativo, preparatório, de educação, mas no sentido perfectivo que a palavra tem hoje entre nós: o estado de um espírito plenamente de-senvolvido, tendo desabrochado todas as suas virtualidades, o do homem tornado verdadeiramente homem65.

59 Cf. ALONSO-NUÑEZ, La visión historiográfica de..., p. 80; HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 16. 60 MARCELINO, Historia, XXXI, 16,9. 61 Sobre Homero, por exemplo, temos citações em XV,8,17 entre outras. Cícero aparece em XVI,1,5; XXI,1,14 etc. 62 ALONSO-NUÑEZ, La visión historiográfica de..., p. 80-81. 63 HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 21-22; também SABBAH, G. apud HARTO TRUJILLO. La methóde d’Ammien Marcellin: recherches sur la construction du discourse historique dans les Res Gestae. Paris, 1978. 64 HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 53, nota 51. 65 MARROU, Henri-Irénée. História da Educação na Antiguidade. São Paulo: E.P.U./Mec., p. 158-159, 1975.

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Ora, se voltarmos a Res Gestae, e a trataremos mais detalhadamente no tópico se-

guinte, notamos que Amiano faz uma divisão de Roma em quatro idades: infância (monarquia

e inícios da república caracterizada pela austeridade), juventude (período republicano, de ex-

pansão territorial e heroísmo), maturidade (época dos triunfos e transição ao Império o que

traz consigo os vícios e violência) e senectude (quando Roma estaria em paz). Não é uma di-

visão formulada por si próprio mas sim herdada de escritores anteriores a ele como o grego

Políbio, em Sêneca e Floro66. Essa divisão coloca a evolução da história social tal qual o da

vida biológica e Amiano estava ciente de que o período em que vivenciava e escrevia era ou

estava a caminho do último estágio, ou seja, o da velhice o qual para que Roma pudesse en-

contrar o descanso correspondente ao seu derradeiro período seria necessário que os romanos

dissipassem as suas “nuvens negras”, nas palavras de Maria Luíza Trujillo, que pairavam so-

bre a cidade eterna, ou seja, que combatessem os seus erros e vícios tal como fizeram seus an-

tepassados superando as dificuldades que se impunham através de seus valores.

XIV.6.4.: Pues bien, este pueblo, desde su nacimiento hasta el final de la niñez, en un período que comprende casi trescientos años, soportó guerra en torno a sus mura-llas. Pero después, entrando ya en la adolescencia, tras esas múltiples calamidades de la guerra, cruzó los Alpes y el mar. Llegada ya la juventud y la madurez, detonas las zonas que comprende el vasto mundo se trajo laureles y triunfos y, ya en los comienzos de la vejez, venciendo a veces tan sólo gracias a su fama, se retiró a una vida más tranquila. XIV.6.5.: Por eso esta Ciudad Venerable [Roma], después de someter las cabezas soberbias de los pueblos más fieros, de darles leyes, fundamentos y garantías eternas de libertad, a la manera de un padre frugal, prudente y rico, entregó a los Césares, como si fueran sus hijos, el derecho de regir su patrimonio. XIV.6.6.: Y, aunque ya hace tiempo que están ociosas las tribus y apaciguadas las centurias, aunque no hay disputas en los sufragios, ya que ha vuelto la seguridad del reinado de Numa Pompilio, por todas las costas y por todas las partes de la tierra Roma es recibida como señora y como reina, y por doquier es reverenciada la cabe-za blanco de los senadores por su autoridad, y el nombre del pueblo romano es hon-rado y respetado. XIV.6.7.: Pero he aquí que el magnífico esplendor de nuestra historia se ve oscure-cido por la incultura y ligereza de unos pocos, que no se dan cuenta del lugar en el que han nacido, y que, como si tuvieran licencia plena para sus vicios, caen en el error y en la lascivia. Y es que, como escribe el lírico Simónides, al que quiera vivir feliz y en perfecta armonía le conviene por encima de todo que su patria alcance la gloria. XIV.6.8.: Algunos de éstos, creyendo que, mediante estatuas, pueden legar su nom-bre a la eternidad, se aferran a ellas afanosamente, como si fueran a obtener una re-compensa mayor de unas imágenes inanimadas de bronce que de la conciencia de hechos honestos y rectos […].67

66 A esse respeito cf. HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 55. 67 MARCELINO, Historia, XIV.6.4 - XIV.6.8 e ss.

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Nestas passagens ressaltamos a importância em nossa opinião, subjetiva, que Amiano

concede ao período anterior ao da velhice, ou seja, o período em que os senadores eram reve-

renciados por suas cabeças brancas, sinal de sabedoria, ou então a época do lendário rei de

Roma, Numa Pompílio, reconhecido pela tradição como um governante justo e pacificador68.

Como abordamos no capítulo anterior, no século IV o Senado sequer possuía função determi-

nada e, junto a isso, a crítica seguinte aos representantes políticos entregues aos vícios e a lu-

xúria, estes sim políticos contemporâneos seus, ao nosso entender indica que a visão de Ami-

ano como grego, ou seja, a sua paidéia grega o permitiu fazer essa crítica endereçada a classe

nobre romana pois aqueles homens para os quais se voltava Amiano não tornaram-se verda-

deiramente homens, a exemplo dos antigos senadores, já que estavam corrompidos preocupa-

dos mais com o bem estar pessoal do que o do Império. Mesmo estando ele, Amiano, incluso

nos círculos da aristocracia romana, graças a sua paidéia helênica podia realizar tais críticas

as quais como romano nato, caso o fosse, não poderia ser feita pois o colocaria contra os seus.

O outro elemento exposto pelo antioquiano foi o de miles quondam, <antigo militar>.

Antigo militar pois ao escrever, em finais do século IV, já não mais o era. Havia deixado as

fileiras do exército após a morte do Imperador Juliano, como já foi comentado. Também po-

demos entender por antigo militar um ex-soldado que conheceu e, além disso, participou de

inúmeros acontecimentos relevantes para a história de Roma, ou seja, que era uma pessoa ex-

periente porém expresso com certo grau de humildade, característica de Amiano Marcelino.

Sua obra pode ser qualificada como “história militar” e, na opinião de Alonso-Nuñez, a pro-

fissão de Amiano o fez ver o suceder histórico do ponto de vista militar69. Em inúmeras pas-

sagens demonstra sua experiência e seus conhecimentos a respeito da arte da guerra como, por

exemplo, em uma digressão sobre artigos bélicos. El propio relato me lleva, en la medida en

que me lo permiten mis mediocres condiciones, a describir brevemente estos artilugios de

guerra para aquellos que los desconozcan. Para ello, comenzaré con la ballesta […]70 e se-

gue descrevendo alguns artefatos como a balista, o ariete, o helépolis entre outros tal como

sua forma e modo de funcionamento detalhado.

Amiano era um explorador. Viajou muito pelo Império Romano não só quando este-

ve engajado no exército, onde lutou tanto no ocidente quanto no oriente, mas também após se

retirar à vida privada. Prova disso são algumas passagens presentes na Res Gestae as quais

comenta sobre o Egito, a Grécia e sobre a Trácia, entre outros. Assim, podemos dizer que a

68 Sobre Numa Pompílio (aproximadamente 715 – 674 a.C.) cf. LÍVIO, Tito, História de Roma, I,21,5; I,32,5; CÍCERO, Da República, II,14,26. 69 ALONSO-NUÑEZ, La visión historiográfica de..., p. 89-90. 70 MARCELINO, Historia, XXIII,4,1-15.

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visão de mundo que tinha Marcelino não era uma visão unilateral ou que escreveu sobre Ro-

ma apenas por ser um dos poucos locais que conhecia. Escreveu sobre Roma porque admirava

a sua história, os seus monumentos e sua política. Uma admiração de um passado glorioso, de

uma cidade que foi criada para ser eterna mas que agora estava em decadência. E foi sobre es-

ta decadência que Amiano optou por historiar.

3.2 A RES GESTAE COMO A HISTÓRIA DA DECADÊNCIA DO IMPÉRIO ROMANO

Após uma breve passagem sobre a vida e personalidade de Amiano Marcelino, o que

é essencial para a compreensão de seu alvitre, vamos a Res Gestae ou História, como nos

chegou traduzido71. Não é nosso alvo fazer um estudo aprofundado de todos os livros que res-

taram pois como nosso foco será o Imperador Juliano, com a sua morte o herói sai de cena.

No capítulo seguinte onde abordaremos temas como Juliano e seu tempo, a relação entre A-

miano e Juliano e a formação da imagem heroificada desse por aquele faremos uso dos livros

XV ao XXV, ou seja, os que vão desde a sua ascensão a dignidade de César até sua morte em

363. Entretanto, para entendermos a Res Gestae de Amiano na qual é construída a imagem do

princeps far-se-á necessário por vezes extrapolar esses 10 livros.

Já vimos de qual posição escreve Amiano – antigo militar e grego – vejamos agora

quais são as suas balizas cronológicas. Novamente reportamos o último parágrafo do último

livro: he narrado los hechos comprendidos entre el principado de Nerva y la muerte de Va-

lente, en la medida en que me lo permitían mis fuerzas, siendo yo como soy antiguo militar y

griego [...]72. Assim, o período que dedica sua obra compreende o início da dinastia dos An-

toninos com a ascensão do Imperador Nerva, em 96 até o final do reinado de Valente, no ano

de 378.

As fontes utilizadas por Amiano são várias: vivência pessoal, fontes orais por meio

de testemunhos oculares, fontes escritas como documentos, cartas, mapas, fontes arqueológi-

cas entre outras73. Thompson74 (1947, apud Alonso-Nuñez, 1975, p. 61, nota 2) sustenta que

sua fonte primária é o próprio Amiano e aquilo que presenciou seguido dos registros públicos.

71 Optamos neste trabalho por utilizar o nome em latim, Res Gestae. 72 MARCELINO, Historia, XXXI,16,9. 73 ALONSO-NUÑEZ, La visión historiográfica de..., p. 44-45. 74 THOMPSON, E. A. The historical work of Ammianus Marcellinus. Cambridge, cap. 2, p. 20-41, 1947.

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Maria Harto Trujillo também compartilha da opinião de que Amiano dá mais impor-

tância aos testemunhos diretos do que as fontes escritas. Isso se explica pela própria caracte-

rística da historiografia clássica ao considerar a visão direta um argumento decisivo e infalí-

vel75. Algumas passagens ilustram a afirmação acima:

XXVI.1.1.: Una vez narrados en orden y con todo el esmero posible los hechos acaecidos hasta una época cercana a la actual, sería conveniente no adentrarnos en asuntos demasiado cercanos, pues así evitaría los peligros que conlleva decir la ver-dad y no tendría que soportar después las duras críticas de los que examinen mi obra y me critiquen por haberles perjudicado […] XVIII.8.1.: […] creo que es un buen momento para describir detalles de las tierras más lejanas de Tracia y de la región del golfo Póntico, utilizando para ello la infor-mación que me ofrecen mis viajes o mis lecturas. XXIX.1.24.: Y puesto que he visto cómo muchos soportaban terribles torturas y eran condenados, aunque la confusión lo mezcla todo como en profundas tinieblas y se me escapa el conocimiento completo de lo sucedido, voy a exponer brevemente aquello que puedo recordar.

A passagem do livro XVIII.8.1 também demonstra que Amiano utilizou não só fon-

tes visuais ou orais mas também escritas. Essas podem ser as elaboradas por outros autores

anteriores ou contemporâneos seus como Eunápio de Sardes, Eutiquiano de Capadócia, Mag-

no de Carras, Timágenes, o egípcio Ptolomeu, Sexto Aurelio Víctor, Oribásio (médico do Im-

perador Juliano), o próprio Juliano entre outros76. Inúmeras são as referências a documentos e

cartas, algumas manuseadas nos arquivos públicos:

XVI.12.70.: Y, ya para finalizar, se han conservado declaraciones de este emperador en los archivos públicos del reino, donde se demuestra claramente su ambición y su deseo de ser elevado al cielo […] XX.8.18.: Junto con esta carta [carta de Juliano a Constâncio que teve seu conteúdo citado nos parágrafos anteriores, 5-17] envió otra de carácter más privado, para que se le entregara en secreto a Constancio. Era más dura y mordaz. Personalmente, no he podido conocer su contenido y, aunque hubiera podido hacerlo, no sería prudente mostrarla al público.

O trecho do livro XX demonstra que Amiano teve contato com algumas cartas envia-

das por Juliano, o que possivelmente foram concedidas pelo próprio Imperador77 mas também

pode levar a entender que sendo Amiano tão próximo do Imperador decidiu por não revelar o

75 HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 43; PASTOR, Amiano Marcelino, escritor..., p. 95. 76 Cf. PASTOR, Amiano Marcelino, escritor..., p. 94-95; HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 43-44; ALONSO-NUÑEZ, La visión historiográfica de..., p. 20-31, 40-51. 77 ALONSO-NUÑEZ, La visión historiográfica de..., p. 46.

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conteúdo da outra carta para preservar a imagem de seu ídolo que desejava passar ao longo da

obra devido a conter um caráter mais agressivo.

Não querendo alongar essa discussão sobre as fontes, as quais foram bem delineadas

pelos autores que aqui mencionados, vale dizer que Amiano, ao tratar de suas fontes, fazia

com um olhar crítico. O exemplo vem quanto da origem dos galos que

XV.9.2.: Los escritores antiguos, con sus dudas acerca del primer origen de los ga-los, nos dejaron noticias inexactas acerca de este tema. Pero después Timágenes [...] reunió datos desconocidos durante mucho tiempo. Así pues, siguiendo sus conoci-mientos y evitando ya toda oscuridad, vamos a exponer este mismo tema con clari-dad y orden78.

O conjunto da obra conta com trinta e um livros dos quais chegaram até nós somente

os dezoito últimos. Dessa forma temos uma lacuna do período que vai de 96 a 353. O que nos

restou abarca parte do reinado de Constâncio II, seguido de Juliano, Joviano, Valentiniano I,

Valentiniano II, Valente e Graciano parcialmente. Amiano se coloca como o continuador das

Historiae de Tácito seguindo uma tradição presente na historiografia clássica, a dizer, a de

manter as convenções literárias passando de um historiador a outro. Assim temos com Tucí-

dides continuando a obra de Heródoto e Xenofonte a de Tucídides na Grécia e entre os latinos

podemos citar Sisena que está entre Sempronio e Salústio, por exemplo79. O décimo quarto

livro ou o primeiro que dispomos inicia com a repressão ao usurpador Magnêncio pelo então

Imperador Constâncio II e finaliza, no livro trinta e quatro com a vitória dos godos sobre os

romanos na Batalha de Adrianópolis. Com isso, afirma Alonso-Nuñez, quer o autor passar aos

seus ouvintes que os bárbaros já não podem mais ser detidos, ou seja, que a ruína do Império

está próxima80.

Trujillo, no prefácio que compôs para a tradução da obra aminiana ao espanhol, colo-

ca a Res Gestae como um subgênero da historiografia clássica. Ela diferencia as res gestae

dos annales, sendo estes uma espécie de diário conciso que narram os sucessos ano a ano. Já

as res gestae, para além de possuir as características de anais, possuem também características

de historiae, ou seja, centram o seu foco em sucessos contemporâneos buscando as causas que

permitiram esses sucessos81.

Podemos aceitar essa característica tanto de annales quanto de historiae sugerida por

Trujillo a partir dos comentários feitos por outros autores sobre o trabalho de Amiano. Anali-

78 MARCELINO, Historia, XV,9,2. 79 HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 58-59. 80 ALONSO-NUÑEZ, La visión historiográfica de..., p. 39. 81 HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 18.

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sando o recorte temporal dedicado pelo autor aos seus livros, podemos supor que a composi-

ção dos catorze primeiros livros, aqueles que não chegaram até nós, foram elaborados em

forma de compêndio ou epítome pois trata Amiano 257 anos em apenas 13 livros enquanto

que os últimos 18 tomos referem-se a tão somente 26 anos. Assim, podemos considerar que

Amiano escreve em forma de anais o período em que conheceu através de relatos ou docu-

mentos e de maneira detida a sua época. A transição na forma de narração também é um pon-

to discutido entre vários autores: M. Pastor e R. Syme defendem que, baseando-se no livro

XVII,8,4 em que há um comentário que mostra a existência de uma narração já ampla, inclu-

sive com digressão, para o ano de 343. Assim, ambos pesquisadores acreditam que a separa-

ção entre a forma de annales e a historiae acontecera no livro XI, ou seja, o começo da narra-

ção contemporânea a Amiano. Entretanto, M. Pastor (1992, p. 93) cita uma opinião divergente

defendida por Arnaldo Momigliano em que a passagem ocorreu de forma gradual no decorrer

de vários livros82. Essas questões tornam-se relevantes a partir do momento em que surgem

dúvidas quanto a composição dos primeiros livros por Amiano, se eles fazem parte de uma

mesma obra ou são tomos separados ou mesmo a existência desses escritos. Visto as inúmeras

referências as quais o antioquiano remete podemos considerar que essas partes de fato existi-

ram e que foram compostas por ele mesmo. Trata-se não de dois livros distintos mas sim de

duas partes de uma mesma composição83.

Duas passagens tornam-se emblemáticas quando tratamos desse assunto referente a

divisão da obra de Amiano. A primeira é o início do livro XV dedicado a morte de Galo, a a-

cusação de traição de Ursicino, a tentativa de usurpação de Silvano e a nomeação de Juliano

como César. Como falamos, os livros XV ao XXV marcam o período em que Amiano esteve

ativo, a dizer, os fatos que seriam escritos nesses livros são os que Amiano vivenciou. Diz ele:

En lo que he podido conocer la verdad y siguiendo el orden de los distintos sucesos,

ha narrado aquello que he contemplado personalmente, o bien lo que he logrado conocer in-

terrogando minuciosamente a los protagonistas […]84. Essa passagem indica a preocupação

que carrega o autor, durante toda a obra, com a verdade. E para reforçar esse caráter de ueri-

tas de seu trabalho afirma que o que irá narrar é aquilo que conheceu e vivenciou pessoalmen-

82 MOMIGLIANO apud PASTOR, The lonelly historian Ammianus Marcellinus. ASNP, Classe di lettere e filosofia 4, 1975, 1303-1407, p. 1397. Ver também: SYME apud PASTOR. Ammianus and the Historia Augusta. Oxford, 1968, p. 8, n. 4. PASTOR, Amiano Marcelino, escritor..., p. 93-94 83 HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 21. A tradutora aponta um trabalho do século XIX em que seu au-tor defende a existência duas obras distintas, uma até o livro 14 e outra do 14 ao final. Cf. MICHAEL, H. Die verlorenen bücher des Ammianus Marcellinus. Ein beitrag zur römischen literaturgeschicht. Breslau, 1880. A respeito da discussão em torno da composição da Res Gestae ver também ALONSO-NUÑEZ, La visión historio-gráfica de..., p. 40 e 44. 84 MARCELINO, Historia, XV,1,1.

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te ou que soube, após acurada investigação, através dos protagonistas. A outra passagem, e

aqui concordam os autores consultados85, diz respeito a intenção de Amiano escrever somente

até o livro XXV, ou seja, até a morte do Imperador Juliano e um breve epílogo ao reinado de

Joviano, seu sucessor.

XXVI.1.1.: Una vez narrados en orden y con todo el esmero posible los hechos acaecidos hasta una época cercana a la actual, sería conveniente no adentrarnos en asuntos demasiado cercanos, pues así evitaría los peligros que conlleva decir la ver-dad y no tendría que soportar después las duras críticas de los que examinen mi obra y me critiquen por haberles perjudicado […]86

Talvez devido ao sucesso obtido com as leituras públicas dos livros anteriores, Ami-

ano decidiu dar continuidade ao trabalho mesmo ciente do perigo que é escrever sobre acon-

tecimentos contemporâneos. A meu ver, essa citação reflete a preocupação em cometer algum

equívoco visto a importância que concede Amiano a verdade e a investigação.

Quanto a data da composição da Res Gestae, ou melhor dizendo, das partes que a

formam, nos deixa Amiano algumas pistas já que o autor em momento algum as menciona di-

retamente. Isso faz com que aja uma pequena discordância, variando apenas alguns anos, en-

tre os autores que utilizamos como bibliografia para o desenvolvimento deste trabalho. Alon-

so-Nuñez e M. Pastor afirmam, baseados em uma passagem do livro XIV,6,19 a qual trata so-

bre um período de fome que castigava Roma e fez com que se expulsassem os estrangeiros da

cidade, que tal acontecimento ocorreu no ano de 38387. Já Harto Trujillo em uma nota de ro-

dapé em sua tradução informa que além da data defendida pelos dois autores, também se no-

tou expulsões do tipo nos anos de 353, 356 e 38488. Para todos os casos, a data de 383 é aceita

como a de conclusão do primeiro livro conservado.

Já em XXI,10,6 Amiano comenta sobre a carreira política de Sexto Aurelio Víctor, o

qual era prefeito da cidade de Roma. Temos conhecimento que isso se deu nos anos de

388/389, sendo essa a data final para a composição do livro XXI89. Para não nos alongarmos

demasiado nessas questões vale citar novamente a carta enviada por Libânio a Amiano que,

segundo O. Seek apud M. Pastor (1992, p. 94) é datada de 392, torna-se aceita pela unanimi-

85 PASTOR, Amiano Marcelino, escritor..., p. 93; HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 20; ALONSO-NUÑEZ, La visión historiográfica de..., p. 40 86 MARCELINO, Historia, XXVI,1,1. 87 ALONSO-NUÑEZ, La visión historiográfica de..., p. 52; PASTOR, Amiano Marcelino, escritor..., p. 94. 88 HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 124, nota 48. 89 ALONSO-NUÑEZ, La visión historiográfica de..., p. 52.

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dade dos autores consultados como o término ante quem para as obras até o livro XXV, o qual

na opinião de Sabbah apud M. Pastor (1992, p. 94) concluía o plano original de Amiano90.

Dessa forma, os 6 livros restantes tem a sua composição entre 392 e 39791 segundo

Trujillo e após 395 de acordo com Alonso-Nuñez, já com o Imperador Teodósio falecido92.

A importância em saber quando determinado autor escreveu sua obra se faz mister

pois está ele sujeito aos condicionantes que imperam em seu meio. O período em que Amiano

escreve, sobretudo os livros XV ao XXV que aqui são a nossa fonte de pesquisa, corresponde

aos anos entre 383 e 392. Essa era a época do Império de Teodósio I, hispano que governou

entre 379 e 395. Próximo ao Cristianismo, dando continuidade a uma política de favorecimen-

to cada vez maior a religião monoteísta, declara por meio do édito De Fide Católica, datado

de 380, como única religião oficial do Império Romano o Cristianismo. Uma década depois

os cultos pagãos são proibidos e seus templos confiscados.

Também no período de Teodósio ocorreu o que chamamos de “Renascimento Teodo-

siano”. Na segunda metade do século IV e, em maior grau entre os anos de 379 – 395, há um

movimento na literatura clássica, seja ela no meio pagão ou cristão, de retorno a antigüidade

romana. Vários escritores se propuseram a escrever sobre os feitos dos grandes imperadores

do passado e sobre a história de Roma ao mesmo tempo em que se preocupavam em conser-

var as obras latinas antigas93. Para Amiano e o grupo ao qual pertencia, a aristocracia romana,

mais do que um ressurgimento cultural o renascimento representava, acima de tudo, um retor-

no aos tempos áureos de Roma sendo possível associar esse movimento cultural a uma preo-

cupação política, social e religiosa quanto ao futuro da civitas. E isso se reflete na obra de

Marcelino quando das suas críticas a classe senatorial, dos vícios, do perigo bárbaro e ao se

associar a figura de Juliano, que representava esse retorno ao passado94.

Amiano, de fato, pertencia aos círculos cultos de Roma. A visão que nos passa na

Res Gestae é a de uma aristocracia que tinha por modelo as tradições passadas, preocupada

com o futuro da “cidade eterna”, centrada em figuras que, através de seus feitos, suas ações

políticas, militares e religiosas contribuíam para o devir histórico e relegando aos demais per-

90 Segundo o mesmo autor, a prova que os livros XV ao XXV já estavam concluídos no ano de 392 é o fato de que eram esses os recitados em público na cidade de Roma conforma menciona Libânio na epístola 1063. 91 Autores como R. L. Rike e J. Mathews defendem a data da composição final da obra íntegra entre 390/391, respectivamente. Cf. PASTOR, Amiano Marcelino, escritor..., p. 94. O. J. Maenchen-Helfen, p. 384-389, 1955, chega a conclusão de que Amiano concluiu no inverno de 392 a 393. Cf. ALONSO-NUÑEZ, La visión historio-gráfica de..., p. 61, nota 4. 92 HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 20; ALONSO-NUÑEZ, La visión historiográfica de..., p. 53, basea-do no livro XXIX,6,15. 93 PASTOR, Amiano Marcelino, escritor..., p. 108; CARVALHO, A heroificação do Imperador Juliano no relato de Amiano Marcelino. Revista de História da UFOP, Mariana, n.º 6, p. 161, 1996. 94 HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 31.

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sonagens uma posição meramente ilustrativa, como espectadores de uma história que se edifi-

ca pela ação de poucos.

Apesar de Amiano não deixar claro qual era o seu objetivo ao escrever a Res Gestae,

certamente o fez nos primeiros livros se considerarmos a obra como um todo e seguindo um

padrão estilístico, pode-se deduzir que o seu intento foi de historiar sobre a decadência do Im-

pério Romano95. Seu objeto não é outro senão Roma e todo o seu Império96, conservando aqui

traços de seu helenismo com características mais universalizantes, oposto a xenofobia de au-

tores latinos sempre preocupados com a história da cidade de Roma. A intenção seria, talvez,

advertir a nobreza não deixar sucumbir a urbs aeterna e isso se mostra nas soluções que apre-

senta o autor para a saída da crise e no elogio ao Imperador Juliano, que trataremos mais a

frente.

Amiano era consciente dos problemas pelos quais passava o Império, sua obra traduz

a situação presente.

XXV.9.9.: Y es que, en mi opinión, nunca desde la fundación de la cuidad, por mu-cho que se estudien los anales, se hallará una ocasión en la que una parte de nuestras tierras fueran concedida al enemigo por un emperador o un cónsul. Ni tampoco que se otorgaran las glorias del triunfo por recuperar lo que habíamos perdido, sino por aumentar nuestros dominios.

O trecho do livro XXV acima citado faz referência a um tratado entre o Imperador

Joviano, sucessor de Juliano, e os persas em que lhe eram entregues diversas províncias ro-

manas. Amiano vê isso como vergonhoso, inédito na história de Roma acostumada sempre a

angariar glórias e honras, prova da decadência do Império frente a um de seus inimigos, os

bárbaros.

Mas o Império não caminhava para a sua ruína devido somente a fatores externos.

Segundo Amiano, os elementos intestinos compõem a principal causa de seu ocaso. A isso

dedica o antioquiano duas extensas digressões sobre os vícios e atitudes da classe aristocrática

e senatorial que podem ser resumidas, segundo Maria Harto Trujillo, nos seguintes pontos:

- Falta de cultura;

- Desperdício, vícios e corrupção;

- Hipocrisia e falta de hospitalidade97.

95 ALONSO-NUÑEZ, La visión historiográfica de..., p. 51 e 148. 96 HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 52-53. 97 HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 23-25.

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Um parágrafo do livro XIV ilustra a situação social de Roma:

XIV.6.2.: Y como pienso que, al leer esto, algunos extranjeros – si es que llegara ese caso –, pueden extrañarse de que, cuando mi narración se desvía un tanto para mostrar lo que sucede en Roma, no aparecen más que sediciones, taberna y otras vi-lezas de este tipo, voy a exponer brevemente las causas de ello sin alejarme nunca de la realidad a propósito98.

Para além da ameaça persa e bárbara e da crise no interior do Império acima citado,

outras críticas mais pontuais são delineadas por Demandt apud Alonso-Nuñez (1975, p. 153,

nota 7): o exército pela sua debilidade, a cobiça e a excessiva influência dos que cercavam os

dirigentes políticos do Império, a arbitrariedade do sistema judicial, o abuso nos impostos, a

imposição da censura, as disputas dos chefes da Igreja assim como a política religiosa adotada

por Juliano.

Surge-nos, então, uma questão: como poderia Amiano criticar os círculos nos quais

estava ele próprio inserido? Não está claro na obra qual a efetiva relação que mantinha o autor

com os nobres romanos. Fica a impressão de que, procurando preservar a parcialidade do rela-

to, não quer dar a conhecer as suas amizades e seus vínculos pessoais. M. Pastor nos diz que

Amiano produz uma certa impressão de “isolamento ou solidão”99 que o permitira criticar os

seus sem, no entanto, modificar o horizonte comum que os unia, a dizer, a nostalgia da Roma

clássica, sua tradição e glória. Ora, Amiano escreve em sua velhice, seu ponto de vista é de

uma pessoa madura que busca no passado a solução para um futuro incerto.

Enfim, interessa-nos demonstrar que Amiano era consciente da crise, crise provocada

pelos próprios romanos devido aos fatores expostos acima e nos indica qual seria a saída para

esse problema.

XIV.6.21.: Sin embargo, es indudable que, en al Roma que fue en otro tiempo la se-de de todas las virtudes, muchos nobles […] retenían a los extranjeros nacidos libres con múltiples atenciones propias de su humanidad. XXXI.5.14.: Pero, después de esta calamitosa situación, Roma se recuperó gracias a que la molicie de la vida licenciosa aún no había mancillado nuestra sobria tradición, que aún no se veía inmersa en banquetes de manjares exóticos y lujos excesivos. Todo lo contrario, ya que luchando unidos nobles e pueblo bajo, con ese esfuerzo unánime, se lanzaran dispuestos a morir noblemente por el estado [Imperio] como quien se apresura a llegar a un puerto plácido y tranquilo100.

98 MARCELINO, Historia, XIV.6.2. 99 PASTOR, Amiano Marcelino, escritor..., p. 111. 100 MARCELINO, Historia, XIV.6.21; XXXI.5.14.

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Somente recuperando as virtudes que em outro tempo fizeram Roma se tornar a “rai-

nha do mundo” e superando os vícios que corrompiam a aristocracia é que o esplendor de ou-

trora poderia ser restabelecido. A partir desse ponto é que podemos entender a apreciação de

Amiano por Juliano, seu herói, que quando Augusto procurou fazer uma restauração aos mol-

des da sociedade clássica.

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4 IMPERADOR JULIANO SEGUNDO AMIANO MARCELINO.

Neste terceiro e último capítulo vamos apresentar o Imperador Juliano na forma em

que foi representado por Amiano Marcelino. Como já abordamos na introdução deste trabalho,

a historiografia do século IV a respeito de Juliano não possui característica de imparcialidade.

Pelo contrário, a maioria dos escritores que se propuseram a escrever sobre o imperador-

filósofo emitiram seus próprios juízos de valor e nos legaram uma visão seja de adorador de

ídolos e perseguidor de cristãos ou de restaurador dos antigos costumes, último baluarte do

culto tradicional.

Amiano Marcelino não foi diferente. Apesar de sua obra possuir características sin-

gulares sobre o IV século e tentar mostrar uma posição equilibrada, a imagem que nos passa

de Juliano é a do homem singular, o herói, aquele capaz de fazer Roma superar a crise e bri-

lhar novamente. Entretanto, não o isenta de crítica.

Enfim, tentaremos demonstrar o porquê desta proximidade entre o antioquiano e o

Imperador e como aquele faz o engrandecimento deste na sua Res Gestae.

4.1 FLÁVIO CLÁUDIO JULIANO

Nascido por volta do ano de 331 em Constantinopla, havia estado só desde muito ce-

do devido ao assassinato de seu pai, Júlio Constâncio, em 337 e a morte de sua mãe, Basilina,

a qual era de família nobre101. Foi criado, junto a seu meio irmão Galo, pela avó materna, na

Bitínia (parte setentrional da Ásia menor onde hoje é o noroeste da Turquia) local em que re-

cebeu uma educação cristã por meio do bispo ariano Eusébio de Nicomédia102 e onde teve

seus primeiros contatos com as obras de Homero, Hesíodo e outros pagãos através do eunuco

Mardônio, um godo de tendências helenizantes e que muita influência teria sobre Juliano103.

Em 352, por ordem de Constâncio II foi exilado em Macellum, na Capadócia, com a finalida-

101 MARCELINO, Historia, XXV.3.23. 102 Cf. MARCELINO, Historia, XXII.9.4. 103 SÁNCHEZ, Juan A. J. El emperador Juliano e su relación con los juegos romanos. Polis: revista de ideas e formas políticas de la Antigüedad Clásica, n.º 15, p. 109, 2003; MEDEIROS, Walter de. Venceste, Ó Galileu!: Memória do último Imperador pagão. Revista Ágora. Estudos Clássicos em Debate, n.º 4, p. 120-121, 2002.

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de de ficar sob constante vigilância104 devido a desconfiança do Imperador de alguma tentati-

va de usurpação do poder105. Em Macellum permaneceu seis anos, até 358, sempre dedicado

aos estudos até quando o foi permitido regressar para Constantinopla e Nicomédia para apro-

fundar os seus conhecimentos.

No ano de 351 seu meio irmão Constâncio Galo é nomeado César e passa Juliano a

ter maior liberdade. Foi a partir de então que teve contato com os círculos neoplatônicos106,

especialmente o de Aedésio de Pérgamo e Máximo de Éfeso. Este último era muito admirado

por Juliano como deixa relatado Amiano:

XXII.7.3.: [...] Y cierto día que se hallaba allí actuando como juez, cuando se anun-ció que había llegado de Asia un filósofo llamado Máximo, se levantó de forma na-da apropiada y, olvidando quién era, tras recorrer a la carrera la larga distancia que le separaba de él, le recibió respetuosamente, le besó y le condujo a su lado en me-dio de agasajos inoportunos, pues daba la sensación de buscar con ansia una gloria vana. […]

E mais a frente informa que para além de ter apresentado Juliano ao neoplatonismo

Máximo, aquel ilustre filósofo, un hombre reconocido por su saber y gracias a cuyos cultos

discursos consiguió el emperador Juliano destacar también en el ámbito de la ciencia […]107.

Iniciado nos cultos de mistérios do Paganismo em sua juventude108, adorador do Sol

Invictus e inclinado as artes da adivinhação e augúrios, Juliano manteve a postura que se exi-

gia de um herdeiro de Constantino. Enquanto esteve subordinado a seu primo tentou não dar

mostras de sua simpatia pelo Paganismo nem mesmo após ser elevado a César. Provavelmen-

te sabia Juliano das desconfianças que tinha o Imperador Constâncio II, principalmente quan-

to aos sobreviventes de sua estirpe, e das intrigas palacianas levadas a cabo pelos que o cerca-

vam. Isso conduzia a uma sempre presente vigilância sobre a sua pessoa e qualquer deslize

poderia ser o fim.

Amiano em algumas passagens reporta a apostasia de Juliano:

104 CAMERON, El Bajo Imperio…, p. 98. 105 Amiano retrata a desconfiança que tinha Constâncio II quanto aos que o rodeavam e, especialmente, entre os que possuíam o sangue da dinastia constantiniana, a dizer, Galo e Juliano. Cf. MARCELINO, Historia, XXI.16.8-9. 106 Não é nosso objetivo e nem nossa pretensão neste trabalho fazer uma discussão em torno do neoplatonismo de Juliano pois trata-se de um tema complexo que extrapolaria as linhas dessa monografia. Para um maior enten-dimento do assunto recomenda-se acessar o site Juliano: os dilemas do helenismo, que faz parte do Projeto de Pesquisa do Núcleo de Estudos Antigos e Medievais da Faculdade de Letras (FALE) da Universidade Federal de Minas Gerais; o qual traz uma seção particular sobre neoplatonismo: Disponível em: <http://juliano.multiculturas.com/> Acesso em: 08/11/2007. Gostaria de agradecer ao professor Felipe Delfim de Saavedra e Santos, autor do site, pelo apoio e interesse dis-pensados em relação ao tema “Juliano e neoplatonismo”. 107 MARCELINO, Historia, XXII,7,3 e XXIX,1,42. 108 Ver anexo 2.

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XXI.2.4.: Y para ganarse a todos sin contar con ningún obstáculo, simulaba haberse hecho partidario de la religión cristiana, de la que se había alejado en secreto tiem-pos atrás. Y mientras muy pocos conocían esta actitud suya, se dedicó al arte de la adivinación, de los augurios y de todas las prácticas que siempre han realizado los que adoraban a los dioses. XXI.2.5.: Además, para mantener aún más oculto su secreto, en un día festivo que los cristianos denominan <Epifanía> y celebran en enero, acudió a una de sus igle-sias, marchándose allí después de haber rezado solemnemente a su dios [numen, em latim].

E afirma que sua predileção pelo Paganismo vinha desde a mais tenra infância: Y

aunque Juliano, desde su más tierna infancia, estuvo inclinado al culto de los dioses, y poco a

poco fue creciendo, aumentaron sus deseos de practicarlo, sin embargo, realizaba los ritos

pertinentes a la forma más secreta posible109.

César Constâncio Galo é morto a mando de Constâncio II em 353110 e dois anos de-

pois, impossibilitado de lutar ao mesmo tempo contra os persas comandados por Sapor no ori-

ente e contra as investidas vindas da margem esquerda do Reno principalmente alamanos,

germanos e francos, decide compartilhar o poder com o único sobrevivente de sua linha-

gem111. Tal decisão, conforme indicam as fontes, teve muita influência da esposa de Constân-

cio II, Eusébia:

XV.8.3.: Sólo la reina hacía frente a esta obstinada resistencia [dos membros da cor-te de Constâncio II], ya fuera porque temía los peligros de un viaje a lugares aleja-dos, o ya porque, por su prudencia innata, deseaba el bien general, y decía que los parientes debían anteponerse a todos los demás. Después de muchos rodeos y deliberaciones vanas, Constancio tomó una decisión firme y, obviando disputas inútiles, decidió compartir el imperio con Juliano112.

Assim nos informa Amiano sobre a decisão de elevar a César seu primo Juliano após

a intervenção de Eusébia. Zósimo também relata a influência do cônjuge na decisão e ilustra

ainda mais a sua persuasão:

Como sabía Eusebia que el emperador Constancio albergaba sospechas contra toda su parentela, persuadió de esta manera a su marido: «Es joven», le dice, «de carácter

109 MARCELINO, Historia, XXI.2.4-5; XXII.5.1. 110 FABBRO, Eduardo. Juliano, o apóstata e a entrada dos francos no Império Romano, primavera de 358. Revista Brathair, n.º 7, p. 52-53, 2007; defende que Galo, após ter cumprido com sucesso a sua missão encomendada por Constâncio II, já não tinha mais utilidade e que a sua morte foi derivada do perigo que Galo impunha a uma sucessão dinástica. Juliano, segundo o autor, sabia bem disso e, ao se tornar César além de combater os invasores no norte precisava preparar um exército que lhe garantisse caso Constâncio II investisse contra ele. Por isso, Ju-liano passou a incorporar em seus efetivos os guerreiros rendidos. 111 Cf. MARCELINO, Historia, XV,8. 112 MARCELINO, Historia, XV,8,3.

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sencillo, ha dedicado toda su vida al ejercicio de las letras y desconoce por completo la política; y para nuestros intereses será mejor que ningún otro: pues o bien se ve favorecido por la suerte, y entonces lo que obtendrá será que el Emperador se anote los éxitos en su cuenta, o bien, derrotado por quien quiera que sea, morirá, y enton-ces ya no habrá ante Constancio nadie que en virtud de real estirpe pueda ser llama-do al poder supremo»113.

O diálogo exposto por Zósimo pode ser creditado pois sabemos, através de Amia-

no114, que Eusébia era simpatizante de Juliano e, Constâncio II sempre desconfiado de seus

próximos mas precisando dividir o poder para conter o limes e lutar contra os inimigos, sejam

eles externos ou internos, convocou aquele que lhe parecia o menos astuto para a função. Juli-

ano de fato possuía pouca ou nenhuma experiência militar, sua morte tornaria Constâncio II o

único sobrevivente da casa constantiniana ou então sua vitória manteria as fronteiras do Impé-

rio. Ao que tudo indica, de uma forma ou outra, não haveria prejuízos para o Imperador.

Entretanto, os acontecimentos tomaram rumo reverso e Juliano se mostrou grande

comandante submetendo os insurretos, apaziguando os conflitos e administrando as conquis-

tas. Devemos ter cuidado ao analisar as vitórias de Juliano na Gália pois as fontes de que dis-

pomos são, geralmente, favoráveis ao César e com tendências a desvalorizar Constâncio II115.

Mas conforme os acontecimentos vindouros, o apoio de seu exército ao nomeá-lo Augusto e a

bibliografia disponível é possível crer que os feitos na parte ocidental foram de grande valia.

Logo de sua nomeação a César, Juliano tinha poderes limitados não podendo, por e-

xemplo, chefiar os exércitos e era assessorado por uma comitiva designada por Constâncio II.

Só em 357 é que teve o direito de liderar as tropas conduzindo-as, em seguida, a vitória na

Batalha de Estrasburgo116.

Já mencionamos a influência do comitatus que cercava o Imperador Constâncio II.

Esse mesmo comitatus, citado na passagem de Amiano acima transcrita (p. 34) opunha cons-

tante oposição ao César Juliano principalmente após as vitórias obtidas na Gália. Sentiam-se

ameaçados de perder os seus privilégios sumariamente e, persuadindo ao Imperador, fizeram

com que chamasse grande parte dos soldados de Juliano para auxiliar no combate contra as

tropas de Sapor, no oriente. Afirmar que Constâncio II desejava enfraquecer o poder de Julia-

no diminuindo os seus efetivos é arriscado, talvez realmente necessitasse de uma maior força

militar para deter o avanço persa mas, ao fim e ao cabo, o resultado dessa atitude foi a acla-

113 ZÓSIMO, Nueva Historia, III,1,2-3. A respeito da intenção de Constâncio II em elevar Juliano a César, ver também MARCELINO, Historia, XVI,11,13. 114 Cf. MARCELINO, Historia, XV,2,8; XXI,6,4 115 CAMERON, El Bajo Imperio…, p. 101. 116 PIGANIOL, André. História de Roma. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires, p. 435, 1961.

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mação de Juliano a co-Augusto pelas suas tropas117, em sua residência de inverno na cidade

de Lutécia (hoje Paris), em 360.

O exército de Juliano era formado, em grande parte, por homens que habitavam o

norte da Itália. Não lhes agradava a idéia de ter que deixar sua terra para combater no oriente

sob as ordens de outro general. Juliano havia dado provas de seu valor militar, participava das

campanhas na linha de combate, junto ao exército arriscando sua vida118. Amiano nos relata

que Juliano foi feito Augusto contra sua vontade e forzado hasta esta situación extrema, sien-

do consciente de que no podría evitar un peligro ya inminente si continuaba negándose, pro-

metió a cada uno cinco piezas de oro y una libra de plata119.

A usurpação de Juliano foi uma das únicas no século IV que pode ser considerada

bem-sucedida enquanto governo efetivo e aceito120. Amiano, em nossa opinião, tentou mini-

mizar com seu discurso a forma como seu herói chegou ao poder. Assim nos informa em duas

passagens:

XXI.15.2.: Poco a poco, una terrible fiebre abrasó sus venas [de Constâncio II] has-ta tal punto que ni siquiera podía tocarse su cuerpo, pues ardía como un hornillo. Y como las medicinas no producían resultado alguno, suspiró y se sintió morir con tristeza. Y se dice que, mientras estaba aún consciente, nombró como sucesor en el imperio a Juliano. XXII.2.1.: Mientras se debatía [Juliano] en esa situación tan tensa [sobre qual atitu-de tomar frente a aproximação de Constâncio II e seu exército], súbitamente llega-ron ante él los mensajeros que le habían sido enviados, Teolaifo y Aligildo, quienes le anunciaron la muerte de Constancio y añadieron que éste, al morir, le había nom-brado como su sucesor121.

Na literatura tardo-antiga, principalmente nos panegíricos, a figura do usurpador re-

presentava a antítese do bom governante, ou seja, para engrandecer determinado Imperador e

torná-lo um legítimo optimus princeps este era retratado comparando-o ao usurpator, o qual

carregava uma imagem denegrida através da atribuição de más virtudes como a perfídia, iniu-

ria, crudelitas, libido, impietas ou então se ausentado as qualidades características do bom

imperador, a dizer, fides, iustitia, clementia, pudicitia, pietas, entre outras. Essa era uma for-

ma utilizada desde o século V a.C., na Grécia, ao se estabelecer a antítese entre democracia e

tirania na literatura de Heródoto, por exemplo. Tal tradição se estendeu até os domínios ro-

117 SILVA, A domus imperial..., p. 79-80. 118 CARLAN, O mundo romano..., p. 5. Sobre a participação de Juliano nos combates ver, por exemplo, MARCELINO, Historia, XVI,12,29; XXV,3. 119 MARCELINO, Historia, XX,4,18. 120 A outra usurpação foi a de Constantino I. 121 MARCELINO, Historia, XXI,15,2; XXII,2,1.

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manos e Cícero também fez uso dela122. Ora, Amiano conhecia Heródoto123 e, mais ainda, Cí-

cero o que podemos imaginar que também fez uso desse artifício literário. Mas então, quem

era para Amiano, a antítese de Juliano? Se voltarmos aos livros que tratam sobre Constâncio

II, perceberemos que é concedido um maior espaço e são ressaltadas as suas más qualidades

do que suas virtudes.

4.2 JULIANO AUGUSTO

Apesar de Amiano tentar passar uma certa relutância de Juliano em aceitar o título de

Augusto, é pouco provável que realmente não o queria. O convinha demonstrar que foi força-

do pelo seu exército. Enviou uma carta a Constâncio II explicando a situação e foi ordenado

que imediatamente negasse o posto e mantivesse a dignidade de César. Porém suas ordens não

forma cumpridas e no verão de 361, iniciou Juliano uma marcha contra seu primo. Enquanto

isso acontecia, Constâncio II regressava da Pérsia para dar combate ao usurpador mas veio a

falecer em Cilícia, vitimado por uma forte febre. Tornava-se Juliano único Imperador de Ro-

ma124.

Mesmo estando na regência do Império durante um curto período de tempo (outubro

de 361 a dezembro de 363) isso não significa que suas ações foram parcas. A bibliografia atu-

al tende a ressaltar as modificações no campo religioso empreendidas por Juliano, contudo,

sua atuação não se limita somente a esse aspecto. Em outras esferas importantes também se

fez presente o príncipe-filósofo como na militar, literária, administrativa e legislativa. Essas

últimas são as menos exploradas na opinião da professora Margarida Maria de Carvalho, a

qual dedicou sua dissertação de mestrado125.

Um esclarecimento torna-se necessário seguindo a idéia da professora supra citada de

que ao trabalhar o período tardo-antigo e, neste caso, o de Juliano, a discussão a ser feita deve

ser entendida em uma dimensão político-cultural e não de maneira simplista como debates pu-

ramente religiosos ou filosóficos ou então entre Paganismo versus Cristianismo. Político no

122 ESCRIBANO, Maria Victoria. Usurpación y religión en el s. IV d. de C. Paganismo, Cristianismo y legitima-ción política In: Antigüedad y Cristianismo: monografías históricas sobre la Antigüedad Tardía. Universidad de Murcia, n.º VII, p. 248-251, 1990. 123 Cf. MARCELINO, Historia, XXII,15,28. 124 CAMERON, El Bajo Imperio…, p. 100. 125 CARVALHO, Margarida Maria de. Código legislativo em Juliano: cúrias e Decuriões. Revista Phoînix, Rio de Janeiro, n.º 2, p. 169, 1996.

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sentido de que, as atitudes tomadas pelo Augusto Juliano em suas diversas esferas – incluindo

a religiosa – vão ao encontro da sua preocupação acerca da “unidade imperial romana” amea-

çada seja por invasões bárbaras ou pela crise interna. Suas atitudes refletem e tentam superar

esses problemas. Culturais se entendermos por cultura “um sistema de atitudes, modos de

pensar e de agir de acordo com costumes e instituições, valores espirituais e materiais de uma

dada sociedade”126 toda a discussão desse período se encaixa perfeitamente nessa concepção.

Enfim, o que queremos dizer é que apenas um aspecto explica insatisfatoriamente o período

aqui abarcado visto que as ações de Juliano não se davam isoladas mas sim em um intricado

conjunto que almejava restaurar a honra de Roma.

Isto posto, tratemos agora brevemente visto não ser o nosso objeto principal neste

trabalho mas necessário para a compreensão daquilo que queremos expor, a posição de Julia-

no quanto a administração e a religião no período em que esteve a frente do governo romano.

Já mencionamos que Juliano teve contato com os círculos neoplatônicos. Seu modo

de governar condiz com a teoria platônica sobre o rei-filósofo. Ao tornar-se Augusto procurou

estar próximo aos cidadãos recusando a denominação de dominus e rechaçando os elementos

de ritual e cerimonial da corte. Para Juliano, o povo deveria ser educado na liberdade e ter

como único dono a lei. A lei, portanto, estaria acima de todos os cidadãos inclusive do próprio

Imperador visto ser ela a representação da vontade divina127. Desse modo vai contra a idéia

generalizada na época de Constantino I de que o soberano era a lei viva, ou seja, o poder ab-

soluto.128

O governante, então, seria aquele que possuía as virtudes necessárias para fazer com

que a lei fosse comum aos cidadãos. Sendo ele, o governante, responsável por essa tarefa deve

ser superior aos governados ainda que submetido às leis, pois estas foram estabelecidas por

alguém de inteligência superior. Assim, a natureza do soberano seria uma natureza sobre-

humana devendo ele sempre buscar a imitatio dei129.

A teologia política expressa por Juliano reunia o platonismo adaptado as necessida-

des do Paganismo de seu tempo. Isso significa que as atitudes políticas deveriam expressar

uma boa relação entre o Império e os deuses pois era dessa relação que dependia a prosperi-

dade dos romanos. O Paganismo clássico, reinterpretado principalmente a partir da segunda

126 CARVALHO, Margarida Maria de. Temístio, o Imperador Juliano e a discussão em torno do conceito de reale-za no século IV d.C. História Revista, Goiânia, v. 11, n.º 1, p. 121-122, jan./jun 2006. 127 VEGA, Maria José Hidalgo de la. La teología política de Juliano como expresión de la cultura de su tiempo In: El intelectual, la realeza y el poder político en el Imperio Romano. España: Ediciones Universidad de Sala-manca, cap. V, p. 239; CARVALHO, Código legislativo em Juliano..., p. 170. 128 CARVALHO, Temístio, o Imperador Juliano..., p. 129. 129 VEGA, La teologia política de Juliano…, p. 237-241.

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metade do século II devido ao sincretismo causado pela inserção de cultos de mistérios orien-

tais e divindades estrangeiras, criou uma forma de monoteísmo que, diferenciado do Cristia-

nismo, não era exclusivista. Esse Paganismo permitia que as divindades dos mais diversos

cultos fossem aceitas visto que, em qualquer um deles, havia uma entidade superior seja ela o

Uno (segundo Plotino), o Bem (em termos platônicos), Hélios, Mithra, Sol-Invictus ou o Deus

dos cristãos dos quais se derivavam as outras deidades subordinadas130. Foi este Paganismo

que Juliano favoreceu frente ao orgulho e fanatismo dos cristãos que impunham o seu Deus

como único e exclusivo, não aceitando os demais. Além disso, o imperador-filósofo os acusa-

va de terem uma inclinação demasiada às riquezas e hostis e destrutivos a cultura pagã. Mes-

mo assim, proíbe que lhes cometam injustiças131.

O Paganismo que Juliano abraçou, diferentemente do tradicional que carecia de um

corpo doutrinal que lhe desse unidade, pretendia ser aceito por todas as pessoas, por mais que

acreditassem em cultos diferentes. Buscou ele formular um sistema religioso coerente que pu-

desse fazer frente ao Cristianismo, que apresentava propostas universais e autônomas e o qual

estava em constante crescimento. Neste sentido, considerar que a restauração pagã empreen-

dida pelo princeps foi um simples retorno aos moldes da religião tradicional torna-se insatis-

fatória132.

Podemos considerar que a teologia política de Juliano via na união entre política e re-

ligião o fator de coesão do povo romano e do seu conseqüente sucesso. Ambas deveriam ca-

minhar juntas se desejasse a prosperidade do Império Romano.

O imperador [...] deve estar imbuído de uma educação especial e se suprir da filoso-

fia, isto é, da virtude, qualidade máxima que distingue o rei do tirano. O príncipe dotado de

conhecimento filosófico, ou tendo uma boa educação, saberá resolver os problemas adminis-

trativos internos e externos, como, por exemplo, lidar com os bárbaros. Para Juliano, a pai-

déia clássica tornava o homem superior aos que não tivessem uma educação aos moldes tradi-

cionais133. E isso incluía o culto aos deuses antigos. O homem com essa educação teria suces-

so em qualquer tarefa que realizasse seja na administração, no exército ou outra empresa134.

De acordo com a professora Margarida Maria de Carvalho a paidéia, na concepção de Juliano,

conduzia as pessoas e o Império a um certo nível de conhecimento que teria como resultado a

130 PINTO, Transformações no Paganismo..., 358 e ss.; VEGA, La teología política de Juliano…, p. 242-243. 131 PÉREZ, Carles Buenacasa. La persecución del emperador Juliano a debate: los cristianos en la política del úl-timo emperador pagano (361-363) In: Cristianesimo nella Storia. 21/3, p. 512, 2000. 132 VEGA, La teología política de Juliano…, p. 243. 133 CARVALHO, Temístio, o Imperador Juliano..., p. 125 e 127. 134 VEGA, La teología política de Juliano…, p. 226.

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prosperidade. O início desse intento seria fortalecendo a base do Império, ou seja, as cida-

des135.

Neste sentido, após se aclamado Augusto, Juliano procurou restabelecer a vida muni-

cipal, afetada pelos governos anteriores. Deu início a medidas que visavam restaurar as Cúrias

municipais. Os membros dessas Cúrias tinham por função decidir as responsabilidades que

cabiam aos magistrados e, junto com os Senadores Municipais, compunham as aristocracias

da cidade. O Decurião, em geral, faria parte da Cúria até morrer e suas atividades eram liga-

das a administração municipal e Imperial136. Tinham alguns privilégios como não poder ser

castigados, torturados ou condenados a pena de morte, salvo algumas exceções. Entretanto,

deveriam arcar com certos encargos os quais eram decididos pela legislação Imperial como a

munera patrimonialia (encargos financeiros) e a munera personalia (prestações de serviços

gratuitos).

Os Decuriões, obrigatoriamente, precisavam possuir terras. Assim, havia dentro das

Cúrias uma divisão entre os que possuíam mais riquezas e os menos afortunados. Os encargos

eram iguais para todos o que fazia com que o valor elevado para uns poderia ser insignificante

a outros ocorrendo, com isso, divisões dentro da Cúria marcadas por relações de domínio e

submissão.

Com Constantino I, principalmente, ocorreu aumento de impostos além da multipli-

cação de províncias e de funcionários o que refletia diretamente nas finanças e administração

das cidades. Além disso, a legislação sobre os Decuriões passou a ser mais repressiva o que

causou deserção das Cúrias municipais. Aqueles que possuíam condições compravam cargos

na administração imperial que lhe garantia o direito de isenção de impostos, outros passavam

a integrar os efetivos do exército ou então nas ordens religiosas cristãs. Aqueles que não con-

seguissem arcar com as suas dívidas poderiam ter até suas propriedades confiscadas. Enfim,

com o abandono das Cúrias, a administração citadina ficava afetada e junto com as fraudes

fiscais e corrupção, visto por exemplo na venda de cargos ou isenção de impostos a determi-

nada classe, contribuíam para alavancar a crise. Soma-se a isso, as incursões bárbaras nas

fronteiras, e o futuro do Império encontrava-se em risco.

135 CARVALHO, Temístio, o Imperador Juliano..., p. 128. 136 Quanto as obrigações em relação a administração municipal, os Decuriões eram encarregados de empregar a justiça, construção e restauração de edifícios públicos, organização dos jogos, distribuição de pão a preços aces-síveis, seleção de médicos e professores públicos entre outros. Já os encargos da administração do Império refe-riam-se ao aprovisionamento de cavalos para o serviço de correios, fornecimento de recrutas, manutenção de es-tradas e pela entrada de impostos bem como a segurança dos armazéns onde estavam os produtos in natura. CARVALHO, Código legislativo em Juliano..., p. 175-176.

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Juliano era ciente desses problemas e, através de leis, procurou firmar as bases do

Império. Para citar algumas providências emergenciais tomadas pelo príncipe-filósofo estão

medidas antiburocráticas que buscavam a contenção de recursos e finanças, diminuição da au-

toridade de determinados funcionários que, em geral, eram ligados a corrupção imperial e

procurou reestruturar as Cúrias aumentado o número de Decuriões e aliviando os encargos

que sobre eles recaíam. Também ordenou a volta de todos aqueles que haviam se refugiado no

clericato cristão, sejam eles já clérigos ou candidatos ao cargo137.

Uma lei aqui nos interessa em particular: a nona lei relativa às Cúrias e Decuriões de

17 de junho de 362.

Essa lei referia-se a proibição dos professores cristãos de lecionarem nas escolas e

gerou muita polêmica tanto no século IV quanto ainda hoje entre os pesquisadores julianistas.

Assim escreve Amiano sobre a atitude de seu herói:

XXII.10.7.: Ciertamente, además de otras muchas cuestiones, mejoró algunas leyes, eliminando ciertas ambigüedades y consiguiendo que se supiera claramente qué de-bía o no debía hacerse. Sin embargo, hizo algo injusto y que merecía ocultarse en el más profundo de los si-lencios: no permitir que los maestros de retórica y de literatura pudieran impartir sus enseñanzas si eran seguidores de la fe cristiana138.

Este é um dos aspectos que mais contribuíram para que lhe fosse dado o cognome de

Apóstata139 sobretudo pelos escritores cristãos da quarta centúria que procuraram elaborar a

imagem de um Juliano caracterizando-o como implacável perseguidor do Cristianismo e seus

adeptos140.

Em nossa pesquisa não foram encontradas evidências claras que o colocavam em tal

posição. Neste sentido, concordamos com as opiniões da professora Margarida Maria de Car-

valho e do professor Carles Buenacasa Pérez de que tal medida não foi um ato de perseguição

senão uma medida política de fortalecimento das bases do Império e essas bases, eram agora,

pagãs. A administração, seguindo os preceitos do neoplatonismo, deveria ser feita por filóso-

137 As informações aqui contidas sobre a legislação curial empreendida por Juliano referem-se ao trabalho de CARVALHO, Código legislativo em Juliano..., p. 173-184. 138 MARCELINO, Historia, XXII,10,7. Ver também XXV,4,20. Amiano, na citação do livro XXII tenta amenizar uma atitude que considera injusta de Juliano antecipando aspectos positivos a notícia. Entretanto, não ausenta de crítica aquele que considera o modelo de Imperador. 139 Há outros elementos que podem ser considerados como a obrigação dos clérigos que haviam deixado as Cú-rias de retornarem aos seus postos, a revogação das penas de exílio feitas por Constâncio II, a reabertura, recons-trução e suprimento de templos pagãos e a publicação do Édito de Tolerância que previa a legalidade de todos os cultos cristãos sem distinção de credo, a restituição dos bens tomados pela Igreja das comunidades pagãs entre outros. Cf. PÉREZ, La persecución del emperador…, p. 514-524. 140 Cf. CARVALHO, Margarida Maria de. Três notícias sobre o Imperador Juliano: Amiano Marcelino, Libânio e São Gregório de Nazianzo. Revista Phoînix, Rio de Janeiro, n.º 4, p. 324, 1998.

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fos que tivessem uma paidéia clássica. Ora, aqueles que desprezavam a cultura pagã não po-

diam se dedicar ao ensino pois sua ideologia seguia em sentido oposto àquilo que pretendiam

ensinar sendo impossível formar bons homens que levassem com sucesso as obras de reestru-

turação do Império141. Além do mais, Juliano considerava que muitos dos problemas de sua

época deviam sua causa a simpatia dos imperadores anteriores ao Cristianismo que levou o

Império como um todo a esquecer o respeito às divindades tradicionais, louvadas e protegidas

pelos antepassados142. Em suma, tratou-se mais de medidas políticas do que perseguição reli-

giosa afinal o apoio do Império se voltou para outra religião e com isso o seu posicionamento

político frente ao Cristianismo – ou qualquer outro credo – também se modificou143.

Após expostos esses elementos retornemos a Amiano Marcelino e sua Res Gestae. O

caráter biográfico expresso na obra, continuando uma prática da historiografia romana, apare-

ce na série de retratos que faz o autor geralmente após a morte do personagem. Assim apre-

senta ele as virtudes e qualidades, os defeitos e aspectos físicos. A Juliano, o personagem cen-

tral, dedica o maior número de páginas em sua maioria elogiosas, mas também com algumas

críticas sendo a mais destacada quanto a proibição aos professores cristãos de lecionar, visto

anteriormente.

Vejamos agora quais motivos levaram Amiano a produzir um estereótipo heroificado

do Imperador Juliano e de que forma ficou registrado na Res Gestae.

4.3 JULIANO SEGUNDO A CONSTRUÇÃO DE AMIANO MARCELINO: AS VIRTUDES.

O patriotismo de Amiano é o próprio de um romano ocidental, ainda que fosse grego.

Prova disso é o fato de ter escrito em latim sendo que sua língua materna era a grega, prefere

Roma enquanto fala só de passagem sobre Constantinopla. Enfim, seu objeto é a Roma de

passado glorioso mesmo estando ciente de todos os problemas que enfrentava e o iminente

ocaso cada vez mais próximo. Acreditava que ela precisava de uma defesa mais eficaz, uma

sociedade menos torpe e uma maior tolerância entre cristãos e pagãos144.

141 CARVALHO, Código legislativo em Juliano..., p. 185; PÉREZ, La persecución del emperador…, p. 519-520. 142 PÉREZ, La persecución del emperador…, p. 512. Em relação a esse pensamento ver VEGA, La teología po-lítica de Juliano…, p. 226. 143 Essa lei de Juliano foi revogada em 11 de janeiro de 364, quando os professores cristãos reassumiram suas cátedras. MARROU, História da Educação..., p. 494. 144 PASTOR, Amiano Marcelino, escritor..., p. 112; CARVALHO, Margarida Maria de. A heroificação do Impe-rador..., p. 161.

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Sua posição era a de um romano conservador, moderado, de atitudes moralizantes e

espírito crítico. Estava vivendo após o longo período da anarquia militar do século III, dos

problemas políticos e econômicos herdados, do crescente aumento da força e influência do

Cristianismo tanto no governo quanto na sociedade e que, segundo o seu parecer, rompiam

com as tradições de uma época em que Roma era a “rainha do mundo”. Porém, acreditava a-

inda ser possível estabelecer essa Roma gloriosa, a qual conhecia por intermédio dos escrito-

res antigos, destinada a existir enquanto existissem os homens145. Juliano, enquanto Augusto,

lhe proporcionou essa esperança.

Na Res Gestae não encontramos uma defesa ou ataque ao Cristianismo. Também no

campo religioso Amiano refletia as características mencionadas acima de conservadorismo e

moderação. Entretanto, segundo a maioria dos estudiosos146, o antioquiano não era cristão vis-

to a distância de sua narrativa ao tratar da religião monoteísta oriental. Uma passagem em seu

texto ilustra essa afirmativa: Esta es la fórmula del bisextil aprobada por Roma, imperio des-

tinado a perdurar durante siglos, si así lo quieren los dioses147. Outra prova que nos faz crer

no Paganismo de Amiano é o fato de ter feito de Juliano seu herói, o que torna irreconciliável

um adepto do Cristianismo engrandecer um personagem que anulou os privilégios desse setor

da sociedade.

Enfim, em nossa opinião, não havendo juízos de valor frente ao Cristianismo mesmo

sendo o autor da Res Gestae adepto do Paganismo do século IV – o que significa que a obra

não foi escrita com fins religiosos – isso nos leva a crer que a admiração por Juliano devido a

fatores de credo não deve ter sido o elemento chave para a heroificação. No campo religioso,

a atitude de Amiano foi de tolerância pois, segundo Trujillo, sua preocupação estava mais vol-

tada as questões políticas e militares do que religiosas propriamente. Além disso, para Marce-

lino a integridade moral do indivíduo estava acima da sua religiosidade148.

Eliminado o fator religião voltemo-nos para o contexto sócio-político da época.

Mencionamos no capítulo anterior que Amiano era consciente da crise pela qual passava o

Império Romano. Crise essa devida a fatores externos (ameaça persa e o perigo bárbaro) e in-

ternos (corrupção, desvios morais e guerras civis) sendo que caso não fossem resolvidos a

derrocada do Império seria inevitável. Juliano apareceu como o restaurador da antiga ordem:

sua legislação buscava o combate a corrupção, o fortalecimento das cidades, a tolerância reli-

145 Cf. CARVALHO, A heroificação do Imperador..., p. 161; MARCELINO, Historia, XIV,6,3. 146 Para citar alguns: PASTOR, Amiano Marcelino, escritor..., p. 112; ALONSO-NUÑEZ, La visión historiográfi-ca de..., p. 101 e 159; HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 27; CAMERON, A. El Bajo Imperio…, p. 29; CARVALHO, Três notícias sobre..., p. 325. 147 MARCELINO, Historia, XXVI,1,14. 148 HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 28-29.

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giosa buscando o fim dos conflitos internos etc. Sua filosofia almejava que as pessoas tives-

sem acesso a paidéia clássica, que formava o homem capaz de ter sucesso em qualquer em-

presa. Com isso, o Império seria fortalecido com bons administradores, excelentes guerreiros

e cidadãos exemplares.

Amiano encontrou em Juliano alguém com as mesmas preocupações que as suas, ou

seja, com o futuro do Império. Juliano, no curto espaço de tempo em que esteve no topo do

poder, trouxe (ou pelo menos tentou) soluções para as crises de seu tempo; soluções essas

buscadas em modelos do passado como na figura do Imperador Marco Aurélio149, por exem-

plo. Amiano acreditou que com Juliano a crise poderia ser superada e a honra do Império res-

taurada. Por isso sua admiração ao príncipe-filósofo; por isso a sua heroificação na Res Ges-

tae.

Uma das formas pela qual a figura do Imperador Juliano foi arquitetada por Amiano

Marcelino, ao nosso ver, foi por meio da demonstração – através das virtudes – de que o prín-

cipe-filósofo era a pessoa ideal para restabelecer a glória de Roma.

Não é nosso objetivo aqui aprofundar uma discussão sobre o conceito virtude. Para

isso seria necessário adentrar os campos da filosofia e buscá-lo em Sócrates, Platão e Aristóte-

les o que foge a nossa competência neste momento seja pela complexidade do tema, pelo es-

casso tempo ou mesmo o nosso propósito. O que nos interessa são as virtudes como ideais

morais e políticos dos romanos, grande parte herdadas do pensamento grego, e que tenían,

pues, la función de elaborar, formalizar e intensificar la imagen imperial con el objetivo bá-

sico de crear una estructura política unitaria150. Dessa forma, as virtudes tinham uma função

propagandista nos discursos de louvor endereçados a determinado Imperador e, no nosso caso

específico, a Juliano. Além disso, e seguindo o pensamento de Gervás, nem todas adquirem a

mesma importância ao longo do tempo sendo que as condições políticas do momento ditavam

quais seriam mais relevantes151.

149 Segundo Amiano, Juliano por su búsqueda de la justicia y de la perfección, era semejante a Marco Aurelio,

en cuya imitación se esforzaba tanto en sus acciones como en sus costumbres. MARCELINO, Historia, XVI,1,4. Outra forma utilizada pelos autores da Antigüidade tardia de engrandecimento era a comparação com figuras i-lustres do passado. Amiano também se utilizou desse recurso para elevar Juliano comparando com Marco Auré-lio, Alexandre Magno entre outros. Nesta monografia escolhemos não desenvolver esse recurso pois extrapolaria as linhas pretendidas. A esse respeito conferir as seguintes passagens: MARCELINO, Historia, XXI,8,3; XXIV,1,3; XXIV,4,27; XXIV,6,14; XXV,2,3; entre outras. A passagem XVI,5,4-5 é marcante porque, para além de compará-lo a Alexandre Magno, Amiano o eleva com ainda mais intensidade. 150 GERVÁS, Manuel J. Rodrigues. La justificación del poder imperial: las “virtudes”. In: Propaganda política y opinión pública en los panegíricos latinos del bajo imperio. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, p. 77, 1991. 151 GERVÁS, La justificación del poder…, p. 77-78.

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É no livro XXV, principalmente, que é feito o retrato elogioso de Juliano. É nele on-

de está narrada a morte do príncipe seguida das suas virtudes e defeitos, sua constituição e es-

tatura. Amiano elenca quatro virtudes principais: moderación, prudencia, justicia e valor. A

essas se acrescentam outras adquiridas: arte militar, autoridad, fortuna e liberalidad152

.

É interessante notar que Marcelino não apenas cita tais virtudes como, no decorrer de

sua obra, as demonstra em atitudes concretas buscando talvez uma maior credibilidade a nar-

ração.

A moderación ou o seu termo latino temperantia aglutina formação cultural e clari-

vidência política e aproxima-se da idéia de bom senso, do preparo e da sensatez daquele en-

carregado de reger o Império153. Abaixo transcrevemos uma passagem em que Amiano faz re-

ferência a tal virtude presente em Juliano:

XVI.5.15.: Y ya para finalizar, sabemos que hasta el final de su mandato y de su vi-da, observó provechosamente esta norma: no rebajar parte de los tributos mediante lo que llaman indulgencias. Y es que sabía que, si hacía esto, iba a colaborar con los pudientes, cuando es evi-dente que los pobres, desde el mismo inicio de las colectas, se veían obligados a pa-gar sin que se les hiciera rebaja alguna. XVI.5.16.: Sin embargo, mientras daba estas muestras de gobierno y de moderación, que debían ser emuladas por todo buen emperador, la furia de los bárbaros se había desatado de nuevo aun con más violencia154.

A prudencia, relacionada também com a providentia, refere-se a virtude que assegura

ao governante a faculdade de preservar o Império contra as ameaças externas ou internas. A-

través dela pode o Imperador não só justificar suas ações como garantir a legitimidade no po-

der155.

XXV.4.7.: En cuanto a su prudencia, hubo muchísimas pruebas, de las cuales me bastará mencionar algunas. Era experto reconocido en los asuntos militares y civiles, muy inclinado a las cues-tiones políticas. Se preocupaba por sí mismo sin llegar en absoluto ni al desprecio ni a la insolencia. Era mayor por su valor [virtute] que por sus años. Le gustaban todos los asuntos judiciales y, en ocasiones, era un juez inflexible. Severísimo censor a la

152 Escolhemos manter o termo traduzido ao espanhol a fim de evitar equívocos. Na obra latina os termos são temperantia, prudentia, iustitia, fortitudo como virtudes primárias e scientia rei militaris, auctoritas, felicitas e liberalitas como virtudes adquiridas. Para os termos latinizados cf. RES GESTAE. Disponível em: <www.thelatinlibrary.com/ammianus/25.shtml#4>. Acesso em: 20 nov. 2007. 153 Maria Helena da Rocha Pereira associa temperantia a sapientia principalmente na carga moral que tal virtude carrega e entre as várias definições que podem ser dadas ao termo adotamos a que melhor condiz, em nossa opi-nião, com o contexto aqui trabalhado. Cf. PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Ideias morais e políticas dos roma-nos In: Estudos de História da Cultura Clássica, vol. II, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 407-415, 2006. 154 MARCELINO, Historia, XVI,5,15-16. 155 GÉRVAS, La justificación del poder…, p. 80.

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hora de regir las costumbres, despreciaba tranquilamente las riquezas y no prestaba atención a ninguna cuestión material. Finalmente, decía que era vergonzoso que un sabio, teniendo espíritu, buscara merecer alabanzas por virtudes físicas156.

A justicia se encontra entre as virtudes primordiais pois através dela se distinguia o

bom governante do usurpador. Inicialmente era uma qualidade própria do Senado a qual pas-

sou para os Imperadores157 e lembremos que Amiano tinha no passado glorioso de Roma um

exemplo a ser transcrito para o presente.

XXII.10.2.: Y aunque, en ocasiones, era algo inoportuno en sus actuaciones, pues preguntaba en momentos inadecuados cuál era la religión de los litigantes, sin em-bargo, ninguna de sus decisiones se apartó jamás de la verdad, y nunca pudo acha-cársele el que, por motivos religiosos o por cualquier otra causa, se había desviado del recto camino de la justicia158.

Associamos ao valor, na tradução para a língua espanhola, ou ao termo latino fortitu-

dinem a virtus. Essa virtude, de definição um tanto complexa por fundir idéias gregas e roma-

nas, pode ser entendida como “valentia” ou “coragem” sobretudo relacionada ao campo mili-

tar mas também muito próxima a areté grega, ou seja, uma multiplicidade de boas qualidades

que conduz ao máximo aperfeiçoamento do homem159. Amiano cita diversas vezes a busca de

Juliano pelo crescimento de seu espírito e a sua coragem em campo de batalha, incentivando o

exército mesmo ferido de morte.

XVI.5.6.: Una vez que resolvía los temas que consideraba arduos y serios, intentaba enriquecer su espíritu, y es increíble el afán con el que recorría mediante prudentes pensamientos todos los campos de la filosofía, avanzando así en la búsqueda de la esencia de materias sublimes, como si necesitara alimento para su ánimo, en un in-tento de elevarse a más altas esferas. XXV.3.8.: Después, al ir calmándose paulatinamente su dolor, dejó de temer y lu-chó con todas sus fuerzas contra la muerte reclamando sus armas y su caballo. Julia-no pretendía que le vieran de nuevo en el combate, para que recuperaran todos la confianza y para que pareciera que no se preocupaba por él mismo sino que luchaba solamente para salvar a los demás160.

Quanto as virtudes adquiridas, o domínio da arte militar por Juliano pode ser visto

nas diversas vitórias que obteve na Gália quando César e nas estratégias de ataque e defesa

tomadas em cada combate. Amiano se mostra também um grande conhecedor dos assuntos

156 MARCELINO, Historia, XXV,4,7. 157 GERVÁS, La justificación del poder…, p. 78. 158 MARCELINO, Historia, XXII,10,2. 159 PEREIRA, Ideias morais e políticas..., p. 397-407; GERVÁS, La justificación del poder…, p. 78. 160 MARCELINO, Historia, XVI,5,6; XXV,3,8.

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bélicos devido a sua profissão e este seu conhecimento é expresso nas narrações ricas em de-

talhes dos combates empreendidos por Juliano161.

O conceito de auctoritas é basicamente romano e “não se exerce pela função, pela

persuasão e convicção, mas apenas e somente pelo peso da pessoa ou corporação que toma ou

sanciona uma decisão”162. Amiano expõe a autoridade de Juliano ainda quando César, era te-

mido mas amado pelas suas tropas.

XXV.4.12.: Tenía tal autoridad que, siendo muy querido, era también respetado y, como compañero de fatigas y peligros, incluso en las más duras batallas, ordenaba que se prestara atención a los que se relajaban. Y, siendo aún simplemente César, di-rigía a sus soldados incluso sin pagarles y les movía a enfrentarse a los pueblos más fieros, como hemos apuntado antes. Cuando hablaba a hombres armados y amotinados, les amenazaba con retirarse a la vida privada si no desistían de su actitud. XXV.4.13.: Finalmente, entre lo mucho que podríamos contar, bastará conocer esto: cuando lo deseaba, con una simple asamblea conseguía que los soldados galos, acos-tumbrados al frío y al Rin, recorrieran enormes extensiones de terreno. Y de hecho los llevó por la calurosa Asiria hasta la tierra de los persas163.

Fica claro a influência que Amiano deseja passar do príncipe sobre suas tropas não

por causa da investidura de seu cargo mas sim pela sua personalidade e caráter.

A felicitas, termo do qual se originou a fortuna, é a expressão do apoio dado pelos

deuses ao Imperador. Para Amiano, a fortuna deve atuar unida a virtus a fim de que juntas

possam fazer brilhar a urbs aeterna tal como no princípio de Roma164. Possuindo o Imperador

ambas virtudes poderia ele superar o destino fatal que se aproximava; e Juliano expressava es-

sa união.

XVIII.3.1.: Mientras que, en la Galia [a dizer, onde estava Juliano], la protección de los dioses [!] iba solucionando estos problemas, en la corte del Augusto [Constâncio II] se produjo un torbellino de revueltas, que comenzaron como una minucia y llega-ron a producir dolor y lamentos […]. XXV.4.14.: La suerte [felicitas] brilló para él de tal modo que, a veces, parecía ir montado en los propios hombros de la Fortuna, su guía protectora, y así superó grandes dificultades en victoriosas campañas. Después de partir de la región occidental, mientras vivió, todos los pueblos pudieron estar tranquilos como si los rigiera plácidamente una especie de caduceo humano165.

161 A esse respeito ver MARCELINO, Historia, XXV,4,10-11. 162 PEREIRA, Ideias morais e políticas..., p. 352. 163 MARCELINO, Historia, XXV,4,12-13. 164 Cf. HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 48-49; GERVÁS, La justificación del poder…, p. 79. Ver também MARCELINO, Historia, XIV,6,3 onde Amiano trata sobre a união entre fortuna e virtus na origem de Roma. 165 MARCELINO, Historia, XVIII,3,1; XXV,4,14.

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Na passagem do livro XVIII Amiano ao mesmo tempo em que afirma o apoio dos

deuses as ações de Juliano, tendo ele sucessos graças a fortuna, faz uma crítica ao então Au-

gusto Constâncio II excluindo-o de portar a virtude pois sua administração passava por revol-

tas que não foram solucionadas, ou seja, ao contrário de seu primo não tinha o apoio das di-

vindades.

A última virtude de forma clara expressa por Amiano a que vamos aludir é a liberali-

dad. A tradução desse vocábulo refere-se a “generosidade”, muito próximo do congiarium166

mas que não se reduzia somente a distribuição de dinheiro diretamente a população. A libera-

lidad a qual quer nos passar Amiano é a de que Juliano se importava mais com a felicidade

dos cidadãos do que com a ganância ou enriquecimento próprio. Dessa forma seria o príncipe

zeloso não só com o patrimônio público mas também com as pessoas, sejam elas romanas ou

aliadas167.

XXV.4.15.: Hay muchísimos testimonios, y completamente ciertos, de su generosi-dad [liberalitatis], como la imposición de tributos nada elevados, el indulto del im-puesto de la corona, su perdón hacia muchas multas que se habían agravado con el paso del tiempo, tratamiento imparcial de las disputas del fisco con los ciudadanos, restitución a las ciudades de impuesto y tierras, excepto aquello que gobernantes an-teriores vendieron como una especie de venta legal. Además, como nunca fue ambi-cioso, a la hora de aumentar unas ganancias que creía más seguras en manos de sus dueños, con frecuencia exponía que, cuando le preguntaron a Alejandro Magno dónde tenía sus tesoros, éste respondió amablemente: «En manos de mis amigos»168.

Acima apresentamos as virtudes do Imperador Juliano segundo o relato de Amiano

Marcelino. Cientes de que em História a imparcialidade é uma quimera, com a Res Gestae,

mesmo se propondo o autor a fazer uma descrição sem corromper a verdade com faltas ou

mentiras169 não seria diferente. Resta-nos, então, não com o objetivo de conhecer o Imperador

Juliano tal como era mas sim para ter uma melhor noção do nível de uerita a que se propôs

Marcelino confrontar as virtudes atribuídas por ele a Juliano com outros escritos próximos ao

tema.

Elencamos algumas obras de autores pagãos para tal escopo: Nueva Historia, de Zó-

simo; Breviario, de Eutropio; Libro de los Césares, de Sexto Aurelio Víctor e um trabalho

de Manuel Gervás intitulado La justificación del poder imperial: las “virtudes” em que faz

166 Congiarium era a distribuição de dinheiro à plebe. Cf. GERVÁS, La justificación del poder…, p. 80. 167 Esse caráter de zelo fica muito evidente em relação aos soldados. Por exemplo, cf. MARCELINO, Historia, XVI,4,4; XVI,5,5; XVI,12,8 etc. 168 MARCELINO, Historia, XXV,4,15. 169 MARCELINO, Historia, XXXI,16,9.

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uma análise do panegírico de Cláudio Mamertino no qual este agradece a Juliano pelo Consu-

lado recebido.

Eutropio foi contemporâneo de Amiano e também de Juliano fazendo parte de sua

campanha na Pérsia170. Sua obra intitulada Breuiarium ab Vrbe condita publicada, provavel-

mente, em 369-370 compreende a história de Roma desde a sua fundação até Joviano (364)171.

No parágrafo 14 do livro X começa a narração sobre Juliano quando este é enviado

na qualidade de César à Gália. Seguindo a característica de compêndio da obra, após narrar a

morte de Juliano traça alguns aspectos que aqui nos interessam: caracteriza o Imperador como

homem extraordinário que teria feito um governo marcado pela moderación, erudito nas dis-

ciplinas liberais aproximando-se mais de um filósofo, generoso (liberalis) com os amigos e de

maneira geral, não muito preocupado com o tesouro público. Também foi assaz justo (iustis-

simus) com as províncias, reduzindo os impostos na medida do possível172. Temos, então, em

Amiano e Eutropio algumas virtudes análogas: moderación, justicia e liberalidad se apresen-

tam de maneira bem clara.

O outro autor, também contemporâneo de Amiano e de Juliano, é Sexto Aurelio Víc-

tor o qual foi nomeado governador da Pannonia Secunda em 361 pelo Augusto e tempos de-

pois (388-389) tornar-se-ia prefeito de Roma como demonstra a passagem na Res Gestae173.

Publica o epítome De Caesaribus na primavera de 361 com o intuito de narrar a história do

Império Romano desde Augusto até a data presente, ou seja, 360. Desse modo os dados que

Víctor nos informa sobre Juliano são do período em que foi César de Constâncio II e estão no

parágrafo 42 do Libro de los Césares. As qualidades relacionam-se unicamente as suas ações

na Gália, após submeter os povos bárbaros e capturar seus reis. São elas: valor, que entende-

mos por virtus, e boa fortuna ambas também citadas por Amiano. Além disso, Aurelio Víctor

procura deixar bem claro que os sucessos obtidos por Juliano se devem também aos conselhos

dados pelo Imperador Constâncio II174.

Zósimo, autor grego da Nueva Historia, não é contemporâneo de Amiano e a data de

publicação de sua obra situa-se entre 498 e 518-27, pretendendo abranger em linhas gerais a

história da Roma Imperial. Dentre os escritores consultados é o que mais espaço reservou para

Juliano talvez por escrever em um período bem posterior. Assim, onze capítulos compreen-

dem o período em que Juliano foi proclamado César (355) até o início da campanha persa

170 EUTROPIO. Breviário. Madrid: Gredos, livro X.16.1, 1999. 171 EUTROPIO, Breviário, p. 14 e 39. 172 EUTROPIO, Breviário, X,16. Segue o autor demonstrando também as faltas do Imperador. 173 Cf. MARCELINO, Historia, XXI,10,6; VÍCTOR, Aurelio. Libro de los Césares. Madrid: Gredos, p. 163-164, 1999. 174 VÍCTOR, Aurelio. Libro de los Césares, 42.18.

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(363) e dezoito capítulos são dedicados aos quase quatro meses da expedição derradeira do

príncipe-filósofo. Entretanto, a biografia do Imperador é tratada com brevidade175 a partir do

livro III onde põe em relevo sua habilidade militar (p. 256, 267, 282), prudencia (p. 265, 274),

justicia (p. 274), conhecimento de vários assuntos (p. 282), simplicidade (sencillez), bravura e

energia (p. 259). Muitas dessas virtudes possuem igual correspondente na Res Gestae de Mar-

celino e dos demais autores supracitados, talvez não com igual tradução, mas mantendo o

mesmo sentido.

O último trabalho a que faremos referência no tocante as virtudes de Juliano em rela-

ção ao proposto por Amiano é o de Manuel José Rodríguez Gervás, professor na Universidade

de Salamanca, no qual apresenta as virtudes do Imperador Juliano expressas no panegírico de

Cláudio Mamertino, datado de 362. Segundo o professor, a intenção da obra de Mamertino é

de agradecimento ao Imperador pelo consulado que lhe foi concedido. A virtude que mais a-

parece é a fides, conceito que não encontramos nos demais autores aqui vistos. De uma ma-

neira mais geral, ela expressa um acordo ou um pacto entre o governante e o governado onde

ambos devem cumprir com suas obrigações para garantir o futuro do Império176. Entretanto,

Gervás afirma que tal virtude não se refere tanto a Juliano mas sim ao próprio Mamertino que

a utiliza como forma de expressar a fidelidade de um alto magistrado ao seu Imperador devido

a confiança do cargo177.

As demais virtudes expostas estão em consonância com as do antioquiano. Iustitiam,

fortitudinem, temperantiam e prudentiam são as quatro virtudes cardinais além da fortuna178.

Entrementes, associa ao conceito libertas a idéia de restauração imperial baseado em uma ins-

crição encontrada no vale do rio Jordão que expõe os principais princípios programáticos de

Juliano: liberador da orbe romana, restaurador de templos e restabelecedor das cúrias munici-

pais e do Império Romano179.

175 ZÓSIMO, Nueva Historia, p. 8-9,17. 176 GERVÁS, La justificación del poder…, p. 80. Segundo Maria Helena da Rocha Pereira a fides, na sua ori-gem, ou seja, na República, designava uma “garantia” ou juramento entre duas partes que garantia o cumprimen-to de um pacto. Citando Políbio, a autora diz que os romanos consideravam-se e eram considerados como um povo que respeitava o seu dever devido a fidelidade de seu juramento. PEREIRA, Ideias morais e políticas..., p. 320-326. 177 GÉRVAS, La justificación del poder…, p. 101. 178 GÉRVAS, La justificación del poder…, p. 101-105. 179 R(O)MANI ORBIS LIBERAT(ORI) / TEMPLORUM / (RE)STAVRATORI CVR / (IA)RVM ET REIPVBLICAE / RECREATORI BAR / BARORUM EXTINCTORI / D(OMINO) N(OSTRO) IOVLIANO PERPETVO AUGUSTO. Cf GÉRVAS, La justificación del poder…, p. 102.

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Amiano, no último parágrafo da Res Gestae, afirma sua preocupação em escrever a

obra sem corromper la verdad a sabiendas, ni con omisiones ni con mentiras180. Apesar de o

próprio reconhecer que não é completamente livre para relatar a verdade dos fatos181 podemos

constatar com o exposto acima que a heroificação do Imperador Juliano, justificada por meio

das virtudes, condiz com um padrão de ueritas a que se propôs o historiador, herança de histo-

riadores clássicos como Heródoto, Tucídides ou Cícero.

Não podemos, entretanto, acreditar na total imparcialidade do autor. Amiano vivia

uma época de crise, era consciente disso. Acreditava que a ameaça bárbara e o perigo persa

cada vez mais constante e a corrupção interna eram os principais motivos para a derrocada do

Império Romano. Na figura de Juliano depositou sua confiança. Seria ele o restaurador e

promotor do Império. Ambos buscavam a resolução dos problemas nos exemplos do passado

mas não uma simples volta e sim uma readaptação dos elementos culturais, religiosos e polí-

ticos do momento através de formulações clássicas. Neste sentido, se justifica o louvor a figu-

ra de Juliano e esse louvor foi feito preservando o seu caráter e de acordo com a tradição182.

180 MARCELINO, Historia, XXXI,16,9. 181 A esse respeito ver MARCELINO, Historia, XIX, 3,1. 182 Cf. HARTO TRUJILLO (introdução), Historia, p. 39-41; GERVÁS, La justificación del poder…, p. 103; CARVALHO, A heroificação do Imperador..., p. 159-163.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegando ao final deste trabalho, acreditamos haver alcançado o nosso objetivo. En-

tretanto, esse é um conteúdo que dificilmente se esgotará, pelo contrário, o leque de questões

se abre cada vez mais e inúmeras são as interpretações possíveis para essa figura emblemática

que foi Juliano. Aos olhos de Amiano o Imperador era tal qual um herói. Para os escritores

cristãos, um implacável perseguidor.

Iniciamos o estudo partindo do contexto do século IV. Foi olhando para o modelo de

seus antepassados que Juliano buscou a unificação do Império. Constantino I empreendeu

uma série de mudanças que visavam combater a crise vinda de séculos anteriores. Conseguiu

conter a desvalorização monetária, favoreceu uma nova classe de funcionários que substituí-

ram gradativamente os senadores nos assuntos administrativos favorecendo os interesses do

próprio Imperador mas facilitando a corrupção, alterou as funções do exército aquartelando-os

nas cidades, deixando as fronteiras precariamente guarnecidas e utilizou-se das religiões pagã

e cristã para fortalecer a ideologia imperial. Essas foram algumas atitudes tomadas por Cons-

tantino I a fim de estabilizar a grave situação que pairava sobre Roma nas primeiras décadas

do século IV.

Seu filho e sucessor, Constâncio II, fez um governo semelhante dedicando maior a-

tenção para os assuntos religiosos, principalmente relacionados ao Cristianismo ariano, no

qual havia sido educado e era ferrenho defensor. Para alcançar a diadema precisou eliminar

seus potenciais rivais, ou seja, aqueles que possuíam o sangue de Constantino. Dessa forma,

sobreviveram somente Galo e seu meio-irmão Juliano, poupados pela pouca idade.

Apesar de toda a desconfiança que tinha, grande parte devida a influência de seu co-

mitatus, Constâncio II impossibilitado de dar combate em duas frentes, a dizer, no ocidente e

no oriente, precisou primeiro de Galo e depois de Juliano. Galo foi morto em 353 e Juliano,

muito inclinado a filosofia e com pouca ou nenhuma experiência militar, não trazia esperan-

ças a Constâncio II quando o nomeou César na Gália.

Acontece que Juliano se mostrou excelente comandante e administrador e sua fama

cresceu a tal ponto que passou a incomodar o então Imperador. Juliano foi aclamado Augusto

por suas tropas em 361, na cidade de Lutécia.

Temos conhecimento dos feitos de Juliano enquanto César e Imperador através de

vários testemunhos. Optamos por um historiador, contemporâneo de Juliano, cuja obra é con-

siderada uma das mais importantes do século IV: Res Gestae ou História.

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Amiano escreve a Res Gestae entre 383 e 392183. Nascido na cidade de Antioquia da

Síria por volta de 330, oriundo de família grega nobre esteve no exército e lutou sob o co-

mando do Imperador Juliano. Era uma pessoa próxima do Augusto e fazia parte da aristocra-

cia romana.

Ao total, a obra é composta por trinta e um livros dos quais, por infortúnio do destino,

nos chegaram somente os dezoito últimos. A parte que nos interessa, ou seja, a que trata sobre

Juliano em sua vida política, corresponde aos livros XV ao XXV onde é traçada a biografia do

Imperador e feito seu retrato elogioso.

Apesar de Amiano não deixar claro qual era o seu objetivo ao escrever a Res Gestae,

pode-se deduzir que o seu intento foi de historiar sobre a decadência do Império Romano.

Roma e todo o Império eram o seu objeto. A intenção seria, talvez, advertir a nobreza não

deixar sucumbir a urbs aeterna e isso se mostra nas soluções que apresenta o autor para a saí-

da da crise e no elogio ao Imperador Juliano.

Essa crise estava muito clara para o antioquiano. Na política interior a corrupção in-

terna de Roma e as guerras civis; na política exterior a ameaça persa e o perigo bárbaro. Tais

problemas, caso não fossem solucionados, certamente conduziriam ao ocaso do Império. Sua

atitude política frente a todos esses problemas é de conservadorismo que volta o seu olhar pa-

ra as tradições do passado, fato comum nos círculos aristocráticos romanos. A solução para os

problemas seria baseada nos modelos do passado, do período em que Roma brilhava como a

“rainha do mundo”. Neste sentido, justifica-se o apreço que tinha por Juliano.

Na obra não encontramos acirradas críticas ao Cristianismo. Sua atitude frente ao

monoteísmo oriental pode ser resumido em conhecimento e objetividade. Aliás, os aspectos

religiosos são tratados de forma superficial por Amiano. Sua preocupação estava mais voltada

as questões políticas e militares do que religiosas propriamente.

Sua posição era a de um romano conservador, moderado, de atitudes moralizantes e

espírito crítico. Estava vivendo após o longo período da anarquia militar do século III, dos

problemas políticos e econômicos herdados, do crescente aumento da força e influência do

Cristianismo tanto no governo quanto na sociedade e que, segundo o seu parecer, rompiam

com as tradições da época áurea de Roma. Seu posicionamento aristocrático lhe fazia acredi-

tar que recuperando os elementos do passado, a sociedade poderia ser novamente aquela co-

roada pelos lauréis da vitória.

183 Essa datação refere-se a composição dos livros XV ao XXV pois são esses os quais utilizamos para esta mo-nografia.

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Mesmo tendo um governo efêmero, Juliano tomou diversas medidas visando, por e-

xemplo, combater a corrupção, aliviar, na medida do possível, a cobrança excessiva de impos-

tos, reestruturar as Cúrias diminuindo os encargos dos Decuriões, garantir o limes das inva-

sões bárbaras entre outras.

No campo religioso Juliano procurou restaurar o culto tradicional. Seu modo de go-

vernar estava ligado ao modelo platônico do rei-filósofo. A lei estaria acima de todos os cida-

dãos e, inclusive, do próprio Imperador. Este seria uma pessoa dotada das virtudes capazes de

fazer com que toda a população obedecesse a lei. Nesse sentido, seria o Imperador superior

aos governados mesmo que submetido as mesmas regras. Juliano tentou adaptar o neoplato-

nismo as necessidades do Paganismo de seu tempo. Isso significa que as atitudes políticas de-

veriam refletir uma boa relação entre o Império e os deuses, e dessa relação dependeria a

prosperidade dos romanos. Assim, o Paganismo clássico, reinterpretado, criou uma forma de

monoteísmo que, diferenciado do Cristianismo, não era exclusivista. Esse Paganismo permitia

que as divindades dos mais diversos cultos fossem aceitas visto que, em qualquer um deles,

havia uma entidade superior da qual derivavam as demais deidades. Foi este Paganismo que

Juliano favoreceu frente a um Cristianismo que se colocava como exclusivista, ignorando a

existência de outros deuses. O Paganismo tardio pretendia que os mais diversos cultos vives-

sem em harmonia dentro da sociedade, eliminando uma fonte de conflitos.

Em suma, Amiano era consciente da crise pela qual passava o Império Romano. Juli-

ano apareceu como o restaurador da antiga ordem: sua legislação buscava o combate a cor-

rupção, o fortalecimento das cidades, a tolerância religiosa etc. Sua filosofia almejava que to-

das as pessoas tivessem acesso a paidéia clássica, que formava o homem capaz de ter sucesso

em qualquer empresa. Amiano encontrou em Juliano alguém com as mesmas preocupações

que as suas, ou seja, com o futuro do Império. Por isso sua admiração ao príncipe-filósofo;

por isso a sua heroificação na Res Gestae.

Uma das formas que Amiano elaborou o retrato de Juliano foi por meio das virtudes.

Elas tinham uma função propagandista nos discursos de louvor endereçados a determinado

Imperador. É interessante notar que Marcelino não apenas cita tais virtudes como, no decorrer

de sua obra, as demonstra em atitudes concretas.

São destacadas por Amiano: moderação, prudência, justiça e valor (virtus) como vir-

tudes primárias seguidas de outras adquiridas: arte militar, autoridade, fortuna e generosidade.

Buscando a autenticidade de tais virtudes na pessoa de Juliano procuramos outros autores que

poderiam comprovar ou discordar do que escreveu Marcelino. Nas obras de Aurelio Víctor,

Eutrópio, Zósimo e Claudio Mamertino (de acordo com o trabalho de Gervás) constatamos

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que tais virtudes correspondem realmente à pessoa de Juliano e que não foram invenções para

a glorificação do Imperador. Podem ter sido manipuladas para sugerir um Príncipe ideal mas

que sejam criações de Amiano é pouco provável.

Enfim, chegando ao final de nosso trabalho algumas considerações podem ser feitas.

A nossa hipótese inicial não se confirmou; não era o fator religião que unia os nossos perso-

nagens e a Res Gestae nem a isso se propunha. Amiano admirava Juliano a ponto de colocá-lo

como herói pois, ciente da situação pela qual passava o Império, teve em Juliano a esperança

da restauração da glória de Roma. Para isso, seria necessário combater os bárbaros e os pro-

blemas internos. Juliano se propôs a isso: tentou reorganizar o núcleo do Império, ou seja, as

cidades; procurou eliminar os conflitos internos, por exemplo, os religiosos propondo uma re-

ligião que abarcasse todos os cultos; combateu os bárbaros enquanto César apaziguando as

fronteiras norte-ocidentais e estava empenhado a eliminar o perigo persa. Conflito esse que

lhe custou a vida.

É tentador suscitar a indagação de como teria sido a história do Império caso Juliano

tivesse vivido mais tempo. O destino não nos possibilitou estudar essa questão mas muitas ou-

tras ainda estão abertas a análise. Apresentamos aqui o ponto de vista da historiografia pagã.

A construção da figura do Imperador Juliano de acordo com a historiografia cristã segue em

sentido oposto ao que aqui foi tratado e, apesar dos excelentes estudos que vem sendo feitos

pela professora Margarida Maria de Carvalho, as pesquisas sobre esse tema no Brasil ainda

são escassas.

Outros elementos de Juliano também podem ser trabalhados associando, por exemplo,

diversas disciplinas. Na área de letras e filosofia importante investigação vem sendo desen-

volvida pelo Núcleo de Estudos Antigos e Medievais da Faculdade de Letras da Universidade

Federal de Minas Gerais184.

Enfim, Amiano edificou um mito que gerou e até hoje gera muitas discussões. É a

história escrita por um militar e por um grego que apreciava a cultura romana e que, naquele

momento, estava receoso de ver o seu triste fim.

184 A esse respeito, consultar nota 106.

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ANEXO 1 – MOEDA DE CONSTANTINO I

Moeda de Constantino I185, datada de 314-315 onde consta no verso a inscrição SOLI

INVICTO COMITI, que significa Ao Divino Augusto Sol ou Senhor do Império Romano186. A

imagem mostra o Sol na mão esquerda e à frente uma estrela de oito pontas, muito semelhante

as encontradas nas moedas de Juliano (vide anexo 2). No anverso aparece o busto do Impera-

dor coroado com os dizeres: IMP CONSTANTINVS PF [!] AVG187.

Este follis, cunhado após a conversão do Imperador, mescla elementos do culto pa-

gão e cristão.

185 Disponível em: <http://www.wildwinds.com/coins/ric/constantine/_ticinum_RIC_vII_021.1.jpg>. Acesso em: 30/11/2007. 186 Quanto a tradução ver: <http://www.tesorillo.com/roma/abreviaturas_px.htm#Letter%20S>. Acesso em: 30/11/2007. 187 IMP(erator) CONSTANTINVS P(ius) (et) F(elix) AVG(ustus). Pius refere-se a devoção ao culto cristão e Fe-

lix, realizado.

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ANEXO 2 – MOEDA DE JULIANO

Esta moeda188, um follis emitido pelo Imperador Juliano entre 361 e 363, demonstra a

associação do Augusto com os signos pagãos. No anverso aparece o busto do Imperador, bar-

bado189, com a couraça e a diadema de pérolas. O reverso aparece os dizeres SECVRITAS

REIPVB(licae). Aparece também a imagem de um touro com duas estrelas de oito pontas em

cima, uma delas entre os cornos. Diversas são as interpretações para essa figura190. Na opinião

de Francisco Marco Simón191, o significado mais plausível é a associação do touro e das estre-

las com a devoção do Imperador aos cultos tradicionais e uma tentativa, através do uso propa-

gandístico das moedas, de aproximar o espectador ao interesse imperial por meio do sacrifí-

cio192.

188Disponível em: <http://www.wildwinds.com/coins/ric/julian_II/_cyzicus_RIC_127.jpg>. Acesso em: 30/11/2007. 189 A abundância de barba era uma diferença entre Juliano e seus antecessores da casa constantiniana. Ver, por exemplo, as moedas do Anexo 1. 190 A representação do boi Apis; o touro mitraico; o símbolo do papel protetor do Imperador; a própria represen-tação astrológica deste que havia nascido sob o signo de touro. SIMÓN, Francisco Marco. "¿Taurobolios vascóni-cos? La vitalidad del paganismo en la Tarraconense durante la segunda mitad del s. IV". Gerión, n.º 15, p. 313-314, nota 55, 1997. 191 SIMÓN, Francisco Marco. "¿Taurobolios vascónicos?..., p. 313-314. Outras opiniões podem ser vistas em FERNÁNDEZ, Raquel Gil. Estudios de un grupo de monedas procedente de los yacimientos romanos de Los Paseí-llos, La Herradora, Las Campiñuelas y Los Torilejos. Espacio, Tiempo y Forma, serie II, Historia Antigua, t. 9, p. 333-404, 1998. Disponível em: <http://62.204.194.45:8080/fedora/get/bibliuned:ETFSerie2-F67B963A-5135-8D68-6409-D8C6C98244A2/PDF>. Acesso em: 19/11/2007. 192 O touro é associado aos cultos a Mithra, no qual foi iniciado Juliano. A tauroctonía ou Mitra Tauróctonos é a imagem central desse culto e representa o sacrifício ritual por Mithra do touro sagrado. Um dos significados que tinha esse sacrifício era o de salvação (como a morte de Jesus para a redenção da humanidade) e a participação nos mistérios de Mithra garantia a imortalidade. Mitraísmo In: Enciclopedia Wikipedia. Disponível em: <http://es.wikipedia.org/wiki/Mitraismo>. Acesso em: 19/11/2007.

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