A Construção da Toxicodependência como Doença Através das Práticas.pdf toxicodependencia e...

download A Construção da Toxicodependência como Doença Através das Práticas.pdf toxicodependencia e doença.pdf

of 100

Transcript of A Construção da Toxicodependência como Doença Através das Práticas.pdf toxicodependencia e...

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    1/100

    DEPARTAMENTO DE CINCIAS DA VIDA

    Faculdade de Cincias e TecnologiaUniversidade de Coimbra

    A Construo da Toxicodependnciacomo Doena atravs das Prticas

    Ana Raquel Rodrigues Loio Pinto

    2012

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    2/100

    i

    DEPARTAMENTO DE CINCIAS DA VIDA

    Faculdade de Cincias e TecnologiaUniversidade de Coimbra

    A Construo da Toxicodependnciacomo Doena atravs das Prticas

    Ana Raquel Rodrigues Loio Pinto

    2012

    Dissertao apresentada Universidade deCoimbra para cumprimento dos requisitosnecessrios obteno do grau de Mestreem Antropologia Mdica, realizada sob aorientao cientfica do Professor DoutorLus Quintais (Universidade de Coimbra)

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    3/100

    ii

    AGRADECIMENTOS

    A todas as pessoas que contriburam, de forma direta ou indireta, para a realizao do

    presente estudo.

    Agradeo ao professor Lus Quintais pela orientao, disponibilidade e pelas sugestes

    que me permitiram desenvolver a capacidade crtica e reflexiva para a concretizao da

    dissertao.

    Agradeo ao Dr. Joo Curto pela autorizao da pesquisa, assim como a todos os

    profissionais de sade da Unidade de Desabituao de Coimbra que, desde o incio, se

    mostraram interessados e disponveis para participar no estudo, seja para responder s

    entrevistas ou para conversas informais que foram contributo importante. Este agradecimento

    estende-se aos utentes, aos quais se direcionam as intervenes dos tcnicos.

    A todos os professores das unidades curriculares pela facilidade com que transmitiram

    novos conhecimentos, que foram suporte para o planeamento do tema, e aos colegas de

    mestrado, com os quais pude partilhar ideias, dvidas, preocupaes.

    Agradeo tambm minha famlia pelo apoio, leituras e comentrios efetuados

    relativamente a este estudo ao longo do mesmo.

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    4/100

    iii

    RESUMO

    As prticas que giram em torno de um objeto, atribuem significado a esse mesmo

    objeto, constroem-no. De acordo com esta ideia, foi definido o objetivo de compreender de

    que forma as prticas permitem construir a toxicodependncia como um facto biomdico,

    nomeadamente uma doena. Para isso, foi efetuada recolha de dados numa unidade de

    desabituao de substncias psicoativas, a unidade T, durante um semestre letivo, atravs da

    observao participante, realizao de entrevistas semidiretivas aos tcnicos e anlise de

    documentao.

    A unidade T apresenta como objetivo a desabituao de substncias psicoativas. Os

    profissionais da T constituem uma equipa multidisciplinar, porm fazem parte de um coletivo

    de pensamento que compreende a toxicodependncia como uma doena, de acordo com o

    conhecimento biomdico. O programa teraputico compreende a farmacoterapia, a

    psicoterapia e abordagens socioteraputicas e ludicoteraputicas. A farmacoterapia tem em

    conta a neurobiologia da adio e o aspeto central do tratamento, reforando a ideia doself

    neuroqumico. As outras abordagens tm em conta as vertentes psicolgica e social e visam o

    reconhecimento da doena e a aquisio de estratgias para prevenir a recada. Mantm-se a

    ideia de um self neuroqumico vulnervel recada. Porm, a toxicodependncia pode ser

    mltipla, dada a variedade de prticas que sobre ela atuam.

    Para concluir, as prticas tm subjacente um discurso influenciado por determinados

    estilos de pensamento. O discurso da biomedicina determina intervenes especficas para se

    lidar com um objeto. Essas intervenes, por sua vez, do significado ao objeto. Assim, a

    ateno centra-se nas prticas, avaliando se estas se adequam ao objeto com todos os seus

    aspetos. A toxicodependncia surge como doena ao ser alvo de intervenes biomdicas.

    Porm, dada a complexidade deste fenmeno, a abordagem sobre o mesmo deve estender-se a

    todos os campos do saber.

    Palavras-chave

    Toxicodependncia; Biomedicina; Prticas.

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    5/100

    iv

    ABSTRACT

    The practices around an object are what give it a shape, a meaning. According to that,

    it was set the goal of understanding how the practices can be the cause of the construction of

    drug dependence as a biomedical entity, as a disease. Therefore, it was performed a data

    collection through participant observation, interviews to the technicians and documentation

    analysis, in an addiction recovery unit, called unit T, in order to examine the practices and its

    environment.

    Unit T aims to help patients recover from drug addiction by creating programs of

    detoxification designed to purge the body of addictive substances. The unit T staff is qualified

    and instructed in different but essential areas of health and psychology, however despite of

    the multidisciplinary component, they are all part of a collective of thought that understands

    addiction as a disease, thus being in accordance with biomedicine knowledge. The unit T

    detoxification program includes not only pharmacotherapy, but also psychotherapy and social

    and recreational approaches. Pharmacotherapy is based on biomedical knowledge and it is

    crucial in the treatment, reinforcing the idea of the neurochemical self. The other approaches

    take into account the psychological and social aspects of addiction aiming the implementation

    of strategies to prevent a serious relapse. Hence, remains the idea of a neurochemical self that

    is vulnerable. However, addiction may be multiple, given the variety and nature of the

    practices that act on it.

    Finally, it is important to enhance the fact that practices are influenced by styles of

    thought. People determine, through their actions, the meaning and perception of an object,

    being the object the drug dependence. The biomedical speech dictates specific interventions to

    deal with drug addiction, which is essentially constructed as a disease. However, given the

    complexity of this phenomenon, the approach should extend to all fields.

    Keywords

    Addiction; Biomedicine; Practices.

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    6/100

    v

    ABREVIATURAS E SIGLAS

    ABREVIATURAS

    et al. E outros (et alii)

    g Grama

    h Hora(s)

    min Minuto(s)

    Pg. Pgina

    SIGLAS

    APA Associao Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association)

    CD Disco Compacto (Compact Disc)

    DSM Manual de Diagnstico e Estatstica das Perturbaes Mentais (Diagnostic and

    Statistical Manual of Mental Disorders)

    DSM-II Segunda Edio do Manual de Diagnstico e Estatstica das Perturbaes Mentais

    (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Second Edition)

    DSM-III Terceira Edio do Manual de Diagnstico e Estatstica das Perturbaes Mentais

    (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Third Edition)

    DSM-IV-TR Quarta Edio, com Reviso de Texto, do Manual de Diagnstico e Estatstica

    das Perturbaes Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth

    Edition, Text Revision)

    ICD-10 Dcima Reviso da Classificao Estatstica Internacional de Doenas e Problemas

    Relacionados com a Sade (International Statistical Classification of Diseases and Related

    Health Problems, Tenth Revision)IDT, IP Instituto da Droga e da Toxicodependncia, Instituto Pblico

    SNS Servio Nacional de Sade

    SOS Pedido de Socorro (Save Our Souls)

    VIH/SIDA Vrus da Imunodeficincia Humana/Sndrome da Imunodeficincia Adquirida

    WC Casa de Banho (Water Closet)

    WHO Organizao Mundial de Sade (World Health Organization)

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    7/100

    vi

    NDICE GERAL Pg.

    AGRADECIMENTOS.ii

    RESUMO..iii

    ABSTRACT..iv

    ABREVIATURAS E SIGLAS.v

    INTRODUO.1

    PRIMEIRA PARTE FASE CONCETUAL.3

    1 PRIMEIRO CAPTULO: O ESTADO DA ARTE..4

    2 SEGUNDO CAPTULO: CLARIFICAO DE CONCEITOS.12

    3 TERCEIRO CAPTULO: CONTEXTUALIZAO HISTRICA DO USO DE

    DROGAS..16

    4 QUARTO CAPTULO: FUNDAMENTAO TERICA.21

    4.1 O NORMAL E O PATOLGICO...21

    4.2 A BIOPOLTICA.23

    4.3 A BIOMEDICINA...25

    4.4 O SELFNEUROQUMICO....28

    4.5 VRIAS REALIDADES.30

    4.6 A CONSTRUO DE UM FACTO BIOMDICO COM A PRTICA...32

    SEGUNDA PARTE FASE METODOLGICA...345 QUINTO CAPTULO: MATERIAIS E MTODOS35

    TERCEIRA PARTE FASE DE APRESENTAO E DISCUSSO DE

    RESULTADOS39

    6 SEXTO CAPTULO: A UNIDADE T NA PRTICA..40

    6.1 O DIA DA ADMISSO..41

    6.2 O PROGRAMA TERAPUTICO...466.2.1 Farmacoterapia...46

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    8/100

    vii

    6.2.2 A neurobiologia da adio..48

    6.2.3 Psicoterapia..50

    6.2.4 Outras abordagens teraputicas51

    6.3 OS TCNICOS52

    6.4 OS UTENTES..56

    6.5 UM DIA NA UNIDADE T..59

    6.6 A QUESTO DA ALTA.62

    7 STIMO CAPTULO: AS PRTICAS CONSTITUTIVAS DA

    TOXICODEPENDNCIA.65

    7.1 TOXICODEPENDNCIA, A DOENA66

    7.2 AS PRTICAS NA UNIDADE T...70

    7.3 A QUESTO DA ESCOLHA INDIVIDUAL....73

    7.4 TOXICODEPENDNCIAS75

    CONCLUSO.79

    BIBLIOGRAFIA.81

    ANEXOS..86

    ANEXO A: AUTORIZAO PARA A RECOLHA DOS DADOS...87

    ANEXO B: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA

    ENTREVISTA..89

    ANEXO C: FORMULRIO DE ENTREVISTA QUALITATIVA91

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    9/100

    1

    INTRODUO

    O tema de pesquisa do presente trabalho incide sobre formas de criar um objeto

    atravs das prticas. Assim, pretende-se estudar como que as prticas que atuam sobre a

    toxicodependncia numa determinada unidade de sade a constroem. O interesse por esta

    temtica surge da experincia e atividade profissional da pesquisadora na rea da

    toxicodependncia, um fenmeno que abrange inmeras vertentes da vida da pessoa com

    toxicodependncia e que, alm disso, tem um grande impacto na sociedade.

    Outrora, o uso de drogas foi encarado das mais diversas formas, como um meio pelo

    qual o indivduo contactava com a divindade, uma forma de lazer ou de teraputica.

    Atualmente, o uso de drogas refere-se utilizao de substncias psicoativas com a

    finalidade de obter prazer. O uso de drogas encarado como algo disfuncional e destrutivo,

    que muitas vezes impede o indivduo de viver de acordo com as normas sociais vigentes.

    Assim, comea a ser descoberta a doena pela sua oposio com a normalidade, que

    corresponde ao estado ideal de sade. As investigaes laboratoriais vm cimentar esta ideia

    de doena, descobrindo como a droga atua nos mecanismos neuronais do prazer.

    O tema de investigao surgiu no decorrer da frequncia das aulas de mestrado, onde

    se abordou a ideia de criar determinadas categorias onde inserir pessoas, de criar doenas, de

    formar identidades. De facto, todo o objeto tem uma histria prpria que o torna naquilo que

    . Ento, ocorreu conhecer a origem da toxicodependncia. Contudo, dada a abrangncia do

    tema, colocou-se o foco na criao da toxicodependncia como doena atravs das prticas.

    Assim, o problema de investigao : como que a toxicodependncia, enquanto facto

    biomdico, criada na prtica? Para dar resposta a este problema foi efetuado um trabalho de

    campo na unidade T, durante um semestre letivo, com recolha de dados atravs da observao

    participante, realizao de entrevistas semidiretivas aos tcnicos e anlise de documentao.

    O objetivo consiste em compreender como que a toxicodependncia criada pelas prticasque a rodeiam. Os dados recolhidos so apresentados numa minietnografia e, posteriormente,

    com base na minietnografia e com o suporte bibliogrfico apresentado na fundamentao

    terica, tecida uma discusso que pretende dar resposta questo de investigao.

    A relevncia do presente estudo prende-se com a perceo de que um fenmeno pode

    ser mltiplo, pois as prticas que sobre ele atuam tambm so variadas. Assim, depreende-se

    que no existe uma nica verdade, nem uma nica abordagem. A abordagem deve ser

    holstica, isto , deve ter em conta a totalidade do indivduo. Para isso, assume-se de extremaimportncia a existncia de uma equipa multidisciplinar.

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    10/100

    2

    O presente trabalho divide-se em trs partes, a primeira concetual, a segunda

    metodolgica e a terceira parte constitui a apresentao e discusso de resultados.

    A fase concetual inicia-se com um captulo acerca dos trabalhos que tm sido

    efetuados em torno da conceo da toxicodependncia, destacando-se o caso portugus.

    Segue-se um captulo que clarifica alguns conceitos que so frequentemente utilizados para

    abordar o tema. Depois, efetuada uma contextualizao histrica do uso de drogas para se

    compreender como que este fenmeno evoluiu at atualidade. De seguida, realizada uma

    fundamentao terica, que resulta de pesquisa bibliogrfica de autores que deram contributo

    importante para a anlise deste tema.

    Na fase metodolgica so abordados os passos seguidos ao longo da pesquisa,

    pretende-se mostrar como se efetuou o trabalho.

    Finalmente, na fase de apresentao e discusso de resultados, so referenciados os

    resultados obtidos, na forma de uma minietnografia e, posteriormente, so discutidos os

    resultados com base na fundamentao terica, pretendendo-se responder questo de

    investigao proposta.

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    11/100

    3

    PRIMEIRA PARTE FASE CONCETUAL

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    12/100

    4

    1 PRIMEIRO CAPTULO: O ESTADO DA ARTE

    Os trabalhos efetuados na rea das cincias sociais em torno da temtica da conceo

    da toxicodependncia, com especial destaque para o caso portugus, so unnimes no facto de

    que este tema tem sido abordado diferentemente consoante a disciplina que sobre ele se

    debrua. Por outro lado, existem pontos consensuais entre as diversas disciplinas,

    nomeadamente o reconhecimento de que a toxicodependncia requer uma abordagem

    multidisciplinar dada a sua complexidade.

    Neste captulo, ser apresentada a conceo da toxicodependncia sob o olhar das

    diversas disciplinas que a tm estudado, assim como a representao social deste fenmeno

    em trs grupos distintos: a sociedade portuguesa em geral, os tcnicos que trabalham

    diretamente nesta rea e, por ltimo, o grupo das prprias pessoas com toxicodependncia.

    As diversas abordagens da toxicodependncia tm sido efetuadas tendo em conta os

    seguintes sistemas: abordagens clnicas, teorias comportamentais, teorias cognitivas,

    abordagens centradas nas dimenses culturais e eco-sociais e a teoria do sujeito autopoitico

    (Fonte, 2007).

    As abordagens clnicas incluem o modelo psiquitrico e o modelo psicodinmico

    (Fonte, 2007).

    No modelo psiquitrico, a toxicodependncia surge como perturbao mental,

    recorrendo-se aos conceitos de dependncia fsica e de dependncia psicolgica (para avaliar

    o grau de envolvimento do sujeito com as substncias psicoativas) e ao conceito de escalada

    como indicador do comportamento (escalada entre vrios produtos, como passar de drogas

    leves a drogas duras, ou aumento da dose do mesmo produto), que nem sempre se verifica

    (Fonte, 2007). de salientar que a medicina tem progressivamente reivindicado a

    obrigatoriedade do acompanhamento mdico e farmacolgico dos indivduos

    toxicodependentes (Marques, 2008).O modelo psicodinmico aborda o conceito de personalidade toxicoflica, que traduz

    um modo de organizao instintivo-afetivo muito elementar caracterstico dos toxicmanos.

    Esta personalidade prvia seria responsvel pelo abuso de substncias. No entanto, outros

    estudos sugeriram personalidades diferentes e alguns sugeriram que no se pode definir uma

    personalidade-tipo do toxicodependente, indicando que qualquer estrutura mental pode

    conduzir a comportamentos de adio (Fonte, 2007). Neste modelo, so ainda considerados

    aspetos como o percurso biogrfico do consumidor, a histria das suas relaes sociais efamiliares ou o seu quotidiano (Karon e Widener, 1995 inFonte, 2007).

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    13/100

    5

    Transita-se da classificao da perturbao (no modelo psiquitrico) para a

    compreenso do indivduo que a carrega (no modelo psicodinmico), da causa do sintoma

    para o seu significado (Fonte, 2007).

    As teorias comportamentais entendem a toxicodependncia como um comportamento

    aprendido por reforo positivo ou por reforo negativo (Gonalves, 1990 inFonte, 2007). De

    uma explicao centrada no indivduo passa-se para uma explicao centrada no

    comportamento-substncia. A iniciao dos consumos constitui o processo de reforo

    positivo, o prazer decorrente do consumo leva repetio. A manuteno do consumo faz-se

    por reforo negativo, isto , para aliviar o mal-estar fsico e psicolgico decorrente da

    abstinncia (Fonte, 2007).

    As teorias cognitivas apresentam essencialmente dois modelos, o modelo da

    restruturao cognitiva de Ellis e Beck e a teoria dos constructos pessoais de Kelly. No

    modelo da restruturao cognitiva existe o pressuposto de que o indivduo responde

    primariamente sua representao cognitiva do meio, constituda por crenas atuais que

    explicariam o incio e a manuteno dos comportamentos aditivos, e no diretamente ao meio

    em si. Na teoria dos constructos pessoais, os processos psicolgicos so construdos pela

    forma como as pessoas antecipam os acontecimentos. A realidade s se pode conhecer atravs

    de interpretaes. A pessoa motivada pela predio de eventos futuros atravs dos seus

    constructos, o que determina o comportamento (Fonte, 2007).

    Nas abordagens centradas nas dimenses culturais e eco-sociais, destaca-se o

    contributo da antropologia cultural e da etnologia, que salientam que o consumo de drogas

    tem sido uma constante cultural e que nem sempre foi problemtico (Fonte, 2007). De facto,

    ao longo da histria, o consumo de drogas progrediu, assumindo diferentes caractersticas:

    fonte de prazer, inspirao, comunicao entre o homem e a divindade, cura e, atualmente, um

    grave problema que agita e alarma as sociedades (Nunes e Jlluskin, 2007). A

    toxicodependncia deixou de ser uma extravagncia de um pequeno grupo da classe mais altae chegou a todas as famlias, mesmo s mais carenciadas (Marques, 2008).

    Atualmente, considera-se que as sociedades esto mais propensas ao problema devido

    proibio do uso de determinadas drogas, que provoca o entendimento da substncia como

    bens econmicos e sujeitos a esquemas comerciais (Escohotado, 2004 inNunes e Jlluskin,

    2007: 236), aos espaos saturados em grandes cidades, em que vigoram satisfaes

    progressivamente mais estereotipadas, para compensar a voraz desumanizao (Escohotado,

    2004 inNunes e Jlluskin, 2007: 236), ou ao consumismo, pois vive-se uma poca com vriasadies, no s s drogas mas s compras, jogos, apelos da Internet, ao prprio trabalho, num

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    14/100

    6

    registo de comportamentos extremos, problemticos, acompanhados de perda de autocontrolo

    (Nunes e Jlluskin, 2007).

    Estas abordagens, centradas nas dimenses culturais e eco-sociais, consideram que

    existe um padro supra-individual no recurso s drogas, um padro de consumo cultural que

    resulta da aprendizagem, que indica os limites, razoabilidade e perigosidade de cada droga,

    mantendo o uso como no disruptivo (Fernandes, 1990 inFonte, 2007). Salientam que no

    a droga em si, entidade dotada de propriedades farmacolgicas, que produz o fenmeno da

    toxicodependncia, mas antes as expetativas dos consumidores em relao aos seus efeitos

    possveis, expetativas que esto culturalmente codificadas (Comas, 1985 inFonte 2007: 244-

    245).

    Por ltimo, a teoria do sujeito autopoitico encara o sujeito emprico como um sistema

    complexo, dotado de propriedades de auto-organizao e de autopoise (poder de inveno e

    de criao de si) (Agra, 1991 inFonte, 2007). Da relao entre o sistema de personalidade e

    de ao emerge o sistema da significao, o modo como o sujeito constri a realidade e

    apreende o mundo, mediante a utilizao dos componentes que fazem parte de si, os sistemas

    de personalidade e de ao (Fonte, 2007).

    Como consequncia das diferentes reas de saber cientfico que se debruam sobre o

    fenmeno do uso de drogas e das toxicodependncias, a definio e clarificao deste

    domnio torna-se uma tarefa complexa, nem sempre consensual, uma vez que tm por base a

    rea de saber do profissional (Fonte, 2006).

    Relativamente s representaes sociais da toxicodependncia, consensual que a

    toxicodependncia no decorre apenas da relao estrita indivduo/substncia, mas emerge

    numa construo social. Pois, em determinadas situaes, as representaes sociais orientam

    as prticas (Abric, 1994 inMarques, 2008).

    A populao portuguesa em geral perceciona as drogas consoante trs tipos de fatores:

    estruturais, que incluem caractersticas sociodemogrficas (idade, sexo, escolaridade,profisso, regio); interacionais, como contactos e sociabilidades que se estabelecem com

    consumidores de drogas e a proximidade a contextos de consumo; e simblico-culturais, isto

    valores sociais e modelos de orientao de vida (Gomes, 2006).

    Verifica-se assim que no existe na sociedade portuguesa uma posio unnime sobre

    os consumidores de drogas ilcitas, porm, esboam-se trs tendncias de perceo sobre os

    mesmos: uma mais normativa e conservadora, que os encara como indivduos transgressores e

    desviantes da norma social (opinio de um grupo minoritrio de portugueses); uma maisliberal e permissiva, que os v como indivduos iguais a todos os outros, mas com um modo

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    15/100

    7

    distinto de estar e viver em sociedade (opinio tambm de um grupo minoritrio); e, por

    ltimo, os que os veem essencialmente como pessoas com um problema de sade relacionado

    com a dependncia qumica deste tipo de substncias (constituem o grupo de maior proporo

    na sociedade portuguesa) (Gomes, 2006).

    Relativamente s representaes sociais dos tcnicos que atuam na rea da

    toxicodependncia, deve salientar-se mais uma vez que a investigao na rea se apresenta

    estritamente segmentada. Uma possvel vantagem da especializao o aprofundamento

    progressivo do conhecimento e da interveno. Assim, as representaes sociais dos tcnicos

    variam de acordo com a sua formao de base e com o nvel de interveno no fenmeno. As

    representaes sociais tambm influenciam os discursos e, de acordo com os tcnicos,

    condicionam a sua interveno. Alm disso, na opinio dos diferentes profissionais, as

    mudanas que ocorreram em torno da droga e do toxicodependente, quer pela forma como a

    sociedade em geral foi lidando e gerindo este fenmeno, quer como o prprio governo foi

    agindo, esto fortemente condicionadas pelas suas representaes sociais. E, muitas vezes,

    so as prprias modalidades de tratamento que influenciam a forma como a droga e o

    toxicodependente so encarados (Marques, 2008).

    Do ponto de vista dos tcnicos, as modalidades de interveno evoluram de um

    modelo jurdico para um modelo mdico, sendo que o consumo de substncias passou a ser

    considerado uma desordem mental (doena), abandonando a ideia de crime e/ou ato ilcito.

    Atualmente a toxicodependncia essencialmente uma doena. Desta forma, o discurso dos

    tcnicos adaptou-se tambm s polticas sociais vigentes, de uma perspetiva criminalizadora

    transitou-se para uma perspetiva clnica e ressocializadora. Consideram, contudo, que existe

    uma sobrevalorizao do tratamento do toxicodependente numa perspetiva mdica. O sucesso

    da interveno destes tcnicos sobre as drogas parece recair, em grande parte, na abstinncia

    de consumos de drogas ilcitas (Marques, 2008).

    Entretanto, identificou-se tambm uma outra ideia, que apresenta a droga de formamais ambivalente, estando sujeita escolha do homem e reconhecendo no regime de

    proibio a origem de uma boa parte da delinquncia (Marques, 2008).

    As perspetivas dos tcnicos apresentam variaes, consoante o pedido do utente e a

    sua trajetria de consumo, com a dimenso da experincia que o prprio tcnico foi

    adquirindo e sofrem influncia das orientaes polticas seguidas pelos prprios servios

    (Marques, 2008).

    Por fim, existe um consenso entre os tcnicos, com vrias reas de formao, nosseguintes aspetos: a defesa do modelo da abstinncia, como preveno primria; a inscrio

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    16/100

    8

    da toxicodependncia na rea da sade; o mrito da medicalizao da toxicodependncia; a

    assuno de uma responsabilidade coletiva na recuperao da toxicodependncia; a rejeio

    da entrega da gesto da toxicodependncia a uma estrita responsabilidade individual

    (Marques, 2008).

    Consequentemente, os mdicos aderem predominantemente medicalizao dos

    cuidados da toxicodependncia, o que no evidenciado nos outros tcnicos das diferentes

    categorias profissionais. Todos os tcnicos aceitam, contudo, a adeso a uma poltica de

    tratamentos diversificados, aos Tratamentos de Substituio e aos programas de Reduo de

    Riscos e Minimizao de Danos (Marques, 2008).

    Porm, mais uma vez, de salientar que os profissionais que atuam na rea da

    toxicodependncia consideram como mais importante examinar a situao histrica do

    fenmeno e as necessidades dos indivduos que pedem ajuda, do que estabelecer o mbito

    especfico de cada rea disciplinar (Marques, 2008).

    A perspetiva do sujeito consumidor de drogas salientada no trabalho de Vasconcelos

    (2003), que parte da anlise de pessoas que utilizam herona e dos prprios itinerrios que

    essa utilizao constitui. O interesse orientado para as pessoas que parecem ter feito do uso

    de droga o centro de uma forma de vida, os chamados toxicodependentes, que neste caso so

    todos os consumidores regulares de herona que continuam o seu uso apesar dos problemas

    que tal consumo lhes coloca e que chegam a sentir-se dependentes de tal produto, atuando em

    conformidade, ou seja, consumindo-o para evitar os sintomas associados abstinncia.

    As caractersticas atribudas herona so, em simultneo, resultado e indutor da

    qualidade das relaes e da agncia nas quais a droga vai sendo carregada de sentido

    (Vasconcelos, 2003).

    De uma forma geral, o toxicodependente refere-se ao incio do consumo de herona,

    comparando-o ao contexto de ingesto da primeira bebida alcolica, no seria necessria a

    existncia de uma relao de proximidade com os acompanhantes para saber o que fazer comuma garrafa e um copo. Mas, ao contrrio das bebidas alcolicas, o ocultamento dos atos de

    consumo de herona quase total para aqueles que no a usam. Relativamente a esse primeiro

    ato de consumo, os informantes referiram ter sido preparado e levado a cabo na companhia de

    pelo menos um utilizador experimentado (Vasconcelos, 2003).

    A ressaca ou abstinncia, considerada pelas pessoas com toxicodependncia como

    os sintomas cujo evitamento apresentado como causa imediata do consumo, deve ser

    inserida no conjunto das relaes sociais, espao e objetos que a constituem. A ressaca

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    17/100

    9

    mais do que uma falta, atravs dela o utilizador perceciona e exprime a realidade

    (Vasconcelos, 2003).

    Nenhum dos informantes consegue explicar a forma como passou a estar agarrado.

    Na perspetiva de uma das informantes consumidoras de herona, o facto de ter tido cuidados

    na primeira gravidez e a ausncia destes na segunda gravidez demonstram que, nesta altura, j

    estaria agarrada. A agncia no foi remetida para a pessoa, mas para a substncia, a herona

    que a agarrou e, portanto, a dominava (Vasconcelos, 2003).

    Surge tambm o conceito de ressaca geogrfica, termo utilizado por uma das

    informantes, na medida em que, no retorno cidade onde teve a sua experincia de consumos,

    sentiu a necessidade e o subsequente prazer do consumo, apesar de estar limpa h uma data

    de tempo. Verifica-se que o surgimento desse estado corresponde a um espao bem definido

    (Vasconcelos, 2003).

    A ressaca tambm surge para dar significado s relaes interpessoais, na medida

    em que uma das informantes refere que o uso de herona, a certa altura, passou a ocorrer num

    quadro que definiu como de grande cumplicidade com a sua irm. Existia um esforo de

    evitamento ou da experincia conjunta da ressaca, a partir do qual se desenvolveu a

    lealdade. Mesmo quando os informantes remetem a sua experincia, enquanto utilizadores,

    para uma situao do que consideram uma cooperao leal com outro consumidor, fazem-no

    considerando esse quadro uma exceo, reafirmando o esteretipo do toxicodependente cujas

    aes so orientadas para um nico objetivo: o consumo de droga. Ou seja, o uso conjunto de

    herona no s no aparece como elemento exterior relao como constitui o principal

    indicador da sua qualidade (Vasconcelos, 2003).

    No mtodo como a herona tomada, a injeo pode significar uma rotura

    simblica, na medida em que est associada a determinado padro de consumo

    (Vasconcelos, 2003). Quando a agulha hipodrmica foi pela primeira vez usada para injetar

    herona, muitas mulheres sentiram ter as suas vidas atingido um momento decisivo; sentiram-se vulnerveis e expostas dependncia fsica. As suas vidas passaram a estar sujeitas a uma

    ntida falta de controlo (Rosenbaum, 1985: 37-38 inVasconcelos, 2003: 387).

    Existe diferena, contextual e relacional, entre as condies de acesso s primeiras

    experincias com a herona e ao processo em que esta se transforma em droga. Este

    processo social centra-se na atribuio de significado e no principalmente nas propriedades

    farmacolgicas da substncia. No existe uma continuidade emprica entre os primeiros

    consumos e a experincia de prazer (Vasconcelos, 2003).

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    18/100

    10

    Podendo corresponder a um mecanismo de adaptao, as utilizaes de uma

    droga no podem ser separadas dos quadros simblicos, relacionais e situacionais nos

    quais ela vai sendo utilizada, sendo que a perceo e avaliao dos seus efeitos se

    constituem assim num processo a que no so alheias as circunstncias de esses usos

    se reportarem a consumos iniciais ou experimentados. As caractersticas atribudas

    droga simultaneamente resultam das, e induzem as, relaes nas quais ela vai sendo

    carregada de sentido (Vasconcelos, 2003: 397).

    O uso de herona, que inicialmente era apenas mais um elemento da realidade, vai-se

    convertendo numa nova realidade, torna-se o quotidiano dos utilizadores, que inclui um

    complexo de relaes sociais e de trajetrias que tornam possvel a utilizao, estrutura-se

    num territrio de significao (Vasconcelos, 2003).

    O consumo de drogas no equivale a ser toxicodependente, pois alm de existirem

    diferentes tipos de drogas e de consumos de drogas, o uso no se restringe aos efeitos

    qumicos que a droga tem no organismo (Fonte, 2006), mas compreende todo o processo da

    decorrente (Vasconcelos, 2003). Para explicar o consumo e o uso da droga tambm

    necessrio fazer referncia ao modo de vida do sujeito e sua relao com a droga (Fonte,

    2006).

    necessrio ultrapassar o reducionismo que tem cercado a toxicodependncia,

    atendendo s representaes sociais deste fenmeno por parte dos prprios utilizadores de

    substncias psicoativas, que, segundo Coelho (2004), podem ainda ser alvo de discriminao

    e opresso, como o sugerem as campanhas pblicas de preveno do uso de drogas.

    Atualmente, mantm-se a condenao de atitudes dos consumidores de drogas, a

    desconfiana, a dificuldade em escrever ou falar sobre drogas. As campanhas de preveno

    tm sido realizadas sob o argumento de reduzir os consumidores de drogas, que, no entanto,

    no esto na posio quer de recetor, quer de locutor das mesmas. No s pela crena no

    risco de estes se poderem tornar de alguma forma heris (Coelho, 2004: 6), como tambmpelo descrdito da sua experincia e conhecimento. Este julgamento resulta precisamente do

    desconhecimento da populao consumidora de drogas e no acreditar no conhecimento

    tcnico-cientfico como o nico vlido. Assim, os grupos de consumidores de drogas perdem

    espao para definir os problemas nos seus prprios termos. No discurso destas campanhas,

    destaca-se ainda a existncia da negao polmica, que indica que se est contra uma

    determinada afirmao, facto este que constitui tambm uma importante forma de controlo

    sociopoltico (Coelho, 2004).

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    19/100

    11

    Em termos conclusivos, o problema da toxicodependncia um dos mais complexos

    para os vrios profissionais (mdicos, psiclogos, socilogos, polticos e economistas), dado o

    seu impacto, no s sobre cada indivduo, mas tambm sobre a sociedade e o equilbrio do

    pas. Alm disso, tem repercusses sobre todos os aspetos da vida, tem incidncias jurdicas,

    mdicas, psiquitricas, religiosas, pedaggicas, econmicas, culturais e polticas (Marques,

    2008).

    O fenmeno em estudo deve, portanto, ser primeiramente analisado mais como um

    significado construdo socialmente do que, propriamente, como um olhar sobre o crime, a

    vtima ou o doente (Marques, 2008). Exige-se uma compreenso interdisciplinar e holstica,

    exige-se uma partilha de saberes e vises (Fernandes e Pinto, 2002).

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    20/100

    12

    2 SEGUNDO CAPTULO: CLARIFICAO DE CONCEITOS

    Antes de prosseguir, saliento que no decorrer da dissertao sero abordados

    frequentemente determinados conceitos, que passo a clarificar. Sendo que ser efetuado um

    estudo em torno da temtica da construo da toxicodependncia como uma entidade

    biomdica atravs das prticas, comeo por fazer referncia ao significado de

    toxicodependncia ou dependncia de substncias.

    De acordo com a Organizao Mundial de Sade (World Health Organization, WHO,

    1994), o termo adio, substitudo em 1964 pelo termo dependncia, refere-se ao uso

    repetido de uma ou mais substncias psicoativas, sendo que o consumidor se encontra

    intoxicado de forma peridica ou crnica, mostra compulso para o consumo das substncias,

    tem dificuldade em modificar ou cessar o uso de substncias voluntariamente e est

    determinado a obter a substncia por quase todos os meios. Verifica-se tipicamente a

    tolerncia e a sndrome de abstinncia quando o uso da substncia interrompido. A vida do

    consumidor dominada pelo uso da substncia, existindo prejuzo de outras atividades e

    responsabilidades. Ultimamente, tem sido discutido o retorno ao uso do termo adio em

    vez de dependncia (Kalant, 2009).

    A dcima reviso da Classificao Estatstica Internacional de Doenas e Problemas

    Relacionados com a Sade (International Statistical Classification of Diseases and Related

    Health Problems, Tenth Revision, ICD-10) refere as perturbaes relacionadas com cada

    substncia psicoativa em particular (WHO, 1994), no diferindo muito neste aspeto da quarta

    edio, com reviso de texto, do Manual de Diagnstico e Estatstica das Perturbaes

    Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth Edition, Text

    Revision, DSM-IV-TR).

    A Associao Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association, APA,

    2000) diferencia a dependncia de substncias do abuso de substncias, sendo que ambasse incluem nas perturbaes do uso de substncias.

    No DSM-IV-TR a dependncia de substncias caracterizada por um conjunto de

    sintomas cognitivos, comportamentais e fisiolgicos relativos auto-administrao repetida

    de uma substncia, apesar dos problemas decorrentes desse uso (APA, 2000).

    O diagnstico da dependncia de substncias baseia-se na existncia de trs ou mais

    dos seguintes sintomas, que ocorram em qualquer altura no perodo de um ano: tolerncia;

    sndrome de abstinncia com esforos no sentido de a aliviar ou evitar; consumo dasubstncia em quantidades superiores ou durante um perodo de tempo superior ao que se

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    21/100

    13

    pretendia; insucesso na tentativa de diminuir ou terminar a utilizao da substncia quando se

    deseja; dispndio de grande quantidade de tempo para obter a substncia, a utiliz-la ou a

    recuperar dos seus efeitos; diminuio ou desistncia de atividades importantes a nvel social,

    ocupacional ou recreativo, devido ao uso da substncia; continuao do uso da substncia

    apesar do reconhecimento de problemas psicolgicos e fsicos significativos consequentes do

    consumo (APA, 2000).

    Neste contexto, pode ser diferenciada a dependncia fsica da dependncia psquica. A

    dependncia fsica engloba o aumento da tolerncia droga, as experincias da sndrome de

    abstinncia e o uso da droga para prevenir ou aliviar essa sndrome. Por sua vez, a

    dependncia psquica engloba comportamentos que indicam a perda de controlo sobre o uso

    da droga, como o aumento da procura da droga com prejuzo para atividades importantes da

    vida diria, o uso de quantidades superiores s pretendidas, a incapacidade de reduzir a

    quantidade utilizada, apesar do desejo persistente de o fazer, e o craving(Kalant, 2009).

    A tolerncia relaciona-se com o grau de sensibilidade ou suscetibilidade de um

    indivduo aos efeitos de uma droga. No entanto, o termo tolerncia refere-se

    frequentemente tolerncia adquirida, isto , ao aumento da resistncia ou diminuio da

    sensibilidade droga como resultado da adaptao do corpo pela exposio droga (Kalant,

    2009). Sendo assim, a tolerncia consiste na necessidade de aumentar a quantidade da

    substncia para alcanar a intoxicao ou o efeito desejado ou pode compreender um efeito

    marcadamente diminudo com o uso continuado da mesma quantidade de substncia (APA,

    2000).

    Quando se diminui ou interrompe o uso da substncia, aps esta ter sido utilizada de

    forma prolongada e mantida, ocorre a sndrome de abstinncia. As concentraes da

    substncia no sangue ou tecidos diminuem, provocando sintomas desagradveis que,

    geralmente, so sintomas opostos aos efeitos agudos da substncia, levando ao consumo da

    mesma substncia ou de outra relacionada para aliviar ou evitar a sndrome de abstinncia(APA, 2000).

    O craving comum e caracteriza-se por uma forte vontade de consumir a substncia

    (APA, 2000), na medida em que consiste no intenso desejo pela droga, expresso por um

    pensamento obsessivo sobre drogas e seus efeitos desejados, por uma sensao de privao

    aguda que apenas pode ser aliviada pelo consumo da droga e uma necessidade urgente de

    obt-la (Kalant, 2009).

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    22/100

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    23/100

    15

    estupefacientes. Ao incorporar um sentido moral (de substncia imbecilizadora, que produz

    sono e insensibilidade), os narcticos perderam nitidez farmacolgica e passaram a incluir

    drogas que no eram nem indutoras de sono nem sedativas, excluindo uma ampla gama de

    narcticos em sentido estrito (Escohotado, 1998).

    Contudo, como j tem sido dito por outros autores, Escohotado (1998) refere que,

    depois de dcadas de esforos para alcanar uma definio tcnica da droga, a autoridade

    sanitria internacional props classificar as drogas em lcitas e ilcitas, legais ou ilegais.

    Porm, o que se encontra na categoria de legal ou ilegal diferente em alguns pases e

    consoante a poca da histria (Seddon, 2010).

    Atualmente, na sociedade ocidental, as substncias psicoativas de uso no mdico so

    distinguidas entre drogas leves e drogas duras, conforme os seus efeitos fisiolgicos,

    lcitas ou ilcitas. O caf, o ch, o lcool ou a nicotina so considerados substncias lcitas,

    aprovadas culturalmente, j a herona, a cocana ou os alucinognios so consideradas

    substncias ilcitas, prejudiciais. Outras substncias so alvo de polmica, causando discusso

    quanto sua incluso numa ou noutra categoria, como a marijuana, uma vez que vrios

    estudos tm demonstrado que esta substncia apresenta benefcios mdicos perante

    determinadas doenas (Goodman e Lovejoy, 1995).

    Outros conceitos relativos ao despontar da toxicodependncia como uma entidade

    biomdica sero abordados no decorrer dos dois captulos seguintes.

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    24/100

    16

    3 TERCEIRO CAPTULO: CONTEXTUALIZAO HISTRICA DO USO DE

    DROGAS

    O uso de drogas existe desde tempos imemoriais, contudo no necessariamente com o

    mesmo significado que hoje lhe atribumos. Atualmente, o termo droga pode referir-se tanto

    a preparaes medicinais como a substncias utilizadas com o propsito inicial de obter

    prazer. Este ltimo tipo de utilizao est na base do que hoje considerado o problema da

    droga e a sua origem recente (Seddon, 2010), remontando ao contexto do Capitalismo e da

    Revoluo Industrial (Sherrat, 1995). Desta forma, para melhor entendimento desta

    problemtica atual, ser efetuada a sua contextualizao histrica.

    Vrios autores tm abordado a histria das drogas criticamente, o livro Consuming

    Habits: Drugs in History and Anthropology, de Jordan Goodman, Paul Lovejoy e Andrew

    Sherratt, uma boa referncia para esta contextualizao, salientando as relaes existentes

    entre a cultura, o consumo e a sociedade.

    Antonio Escohotado apresenta igualmente uma extensa anlise crtica da histria das

    drogas, desde a Antiguidade, no seu livro Historia General de las Drogas. Segundo o autor,

    aps milnios de uso festivo, teraputico e sacramental, os veculos de embriaguez

    converteram-se numa destacada empresa cientfica, que comeou por incomodar a religio e

    acabou por irritar o direito, enquanto comprometia a economia e tentava a arte (Escohotado,

    1998: 13).

    De facto, o consumo de substncias psicoativas existe desde a pr-histria e na maioria

    das culturas (Goodman et al., 1995) com finalidades mtico-religiosas, mdicas ou recreativas.

    No existia referncia aos efeitos aditivos das substncias psicoativas e, exceo do lcool,

    estas eram consideradas neutras, no existindo drogas melhores ou piores, mas sim maneiras

    sensatas ou insensatas de as consumir (Escohotado, 1998).

    Assim, as substncias psicoativas foram utilizadas livremente durante milnios, a suaposse, aquisio, venda, produo e trfico, no aparecia em cdigos punitivos (Escohotado,

    1998).

    O consumo destas substncias sofreu uma queda com o Cristianismo, exceo do

    lcool, na medida em que o acesso a estados alterados da conscincia foi considerado paraso

    artificial e, desta forma, condenvel. At meados do sculo XVII, o Cristianismo perseguiu a

    cultura farmacolgica e a bruxaria, a quem associou o uso de drogas. Pesa, contudo, o facto

    das perseguies estarem mais associadas s drogas do que propriamente s pessoas(Escohotado, 1998).

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    25/100

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    26/100

    18

    culta (baseada na escrita), centrando-se no ato de escrever a receita. A sua posio saiu

    reforada com as descobertas em microbiologia, com a capacidade da indstria qumico-

    farmacutica em isolar princpios ativos, e portanto fabricar comprimidos, e com os avanos

    na rea da cirurgia e noutras tecnologias, como a seringa (Roman, 1999), o que de certa

    forma concedeu biomedicina o poder de regulao sobre as drogas.

    A morfina, a cocana e a herona foram alguns dos poderosos alcalides isolados para

    obteno de frmacos (Escohotado, 1998), sendo largamente vendidos nos pases

    desenvolvidos nos finais do sculo XIX, tanto em preparaes comerciais (medicamentos)

    como na forma pura (Sherratt, 1995).

    O interesse por drogas psicoativas visvel, no s por qumicos, farmacuticos e

    mdicos, mas tambm por literrios, filsofos e artistas. Juntamente com a esperana de

    drogas cada vez mais eficazes, delineia-se o projeto de submeter o nimo vontade, o qual

    acompanha, direta ou indiretamente, o desenvolvimento da neurofarmacologia (Escohotado,

    1998).

    Ora, a existncia destes poderosos alcalides, associados a habituao, contribuiu para

    uma utilizao potencialmente perigosa sem os constrangimentos das prticas sociais

    tradicionais ou dos contextos de consumo (Sherratt, 1995), o que no se mostrou compatvel

    com o modo de vida exigvel na sociedade. Na medida em que o consumo de substncias

    passa a ser encarado como desvio da normalidade, torna-se doena e alvo de tratamento

    clnico, no entanto no deixa de estar isento de formulaes morais (Seddon, 2010).

    O conceito de adio, inicialmente aplicado ao lcool, torna-se extensvel ao pio, aos

    opiceos e cocana. Posteriormente, o termo comeou a dar lugar a novos conceitos, como

    dependncia, problema da droga e dependncia qumica (Seddon, 2010).

    Para os utilizadores de drogas, estava prevista a sua deteno nas novas instituies

    com a finalidade de tratamento e reabilitao (Seddon, 2010), uma vez que existe um

    desenvolvimento institucional que responde a reivindicaes sociais das classes proletrias e auma reorganizao de diversas instituies sociais e estatais, entre elas penais e psiquitricas.

    Esta interveno, com base na institucionalizao, tem o objetivo de estender mecanismos de

    segurana social e ao mesmo tempo aumentar o controlo sobre as populaes, sobretudo

    atravs da sua classificao. Nesta altura, o mdico j no tem que negociar com setores

    populares (Roman, 1999).

    Verifica-se, portanto, que ao longo da histria vrios aspetos contriburam para uma

    cultura proibicionista do uso de drogas.

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    27/100

    19

    Sintetizando, o proibicionismo teve origem atravs do elemento religioso tradicional

    (que considera que as substncias psicoativas proporcionam um paraso artificial e, por isso

    mesmo, condenvel), das tenses sociais decorrentes do rpido processo de proletarizao e

    industrializao com apario de grandes concentraes urbanas (sendo que o uso de drogas

    comea a simbolizar a medida de desvio de determinados grupos sobre os quais existe um

    esforo de controlo), atravs da profissionalizao da medicina e da farmacologia (que conduz

    ao aumento do controlo das aes individuais sobre o uso de substncias psicoativas), da

    transio para o governo liberal (que implementou estratgias de normalizao dos cidados,

    cujo carcter defeituoso os impedia de cumprir as suas obrigaes sociais) e do conflito

    entre a China e a Inglaterra a propsito do pio (que culminou com uma aliana anglo-

    francesa, conseguida atravs das guerras do pio em meados do sculo XVIII, o que fez com

    que a China aceitasse o livre comrcio do pio, convertendo-a num imenso mercado de pio

    com milhes de consumidores, influenciando um sistema internacional de controlo de drogas)

    (Sherratt, 1995; Escohotado, 1998; Roman, 1999; Seddon, 2010).

    A origem do regime de proibio das drogas pode remontar a uma conferncia

    internacional sobre o comrcio de pio, realizada em Xangai em 1909 (Seddon, 2010). De

    facto, a luta contra as drogas inicia-se na luta contra o pio (Romani, 1999).

    No entanto, a guerra s drogas teve menos impacto sobre aqueles que j eram

    consumidores regulares (Courtwright, 1995). Cerca das dcadas de 1910 a 1920, na medida

    em que aumentavam as proibies de consumo a nvel internacional, surge um sistema

    mundial secreto de comrcio de narcticos. O movimento anti-pio tinha criado uma nova

    demanda por herona, morfina e codena, qualquer derivado do pio de melhor transporte e

    com uma forma de consumo menos bvia do que o ato de fumar. Face a esta situao, a Liga

    das Naes iniciou mecanismos para eliminao do trfico de drogas ilcitas e foi estabelecido

    um programa internacional para registar as vendas legtimas de narcticos (Meyer, 1995).

    Quanto questo da categorizao das substncias em drogas lcitas ou ilcitas, leves ouduras, de salientar que esta no esttica, pois tem variado, consoante o tempo e o lugar,

    como o demonstram as referncias histricas (Goodman et al., 1995).

    Os argumentos proibicionistas vo-se transformando at se tornarem argumentos de

    aspeto sanitrio, de base cientfica (Roman, 1999). Em 1920, os usurios de drogas comeam

    a ser tratados clinicamente, apesar de se operar dentro de um quadro regulamentar

    proibicionista baseado no direito penal (Seddon, 2010).

    Entretanto, o acesso a opiceos e estimulantes sintticos foi relativamente fcil at slimitaes que se iniciaram na Conveno sobre Estupefacientes de 1961, em Nova Iorque,

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    28/100

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    29/100

    21

    4 QUARTO CAPTULO: FUNDAMENTAO TERICA

    A diferena entre o que considerado normal e o que se entende como patolgico tem

    sido alvo de estudo e discusso. Em princpio, a doena seria o oposto da normalidade/sade

    (Canguilhem, 1978). Assim, surge a necessidade de normalizao, que se traduziu numa

    forma de controlo sobre o corpo humano (Foucault, 1999). Salienta-se que a normalizao

    constitui uma das caractersticas da biomedicina (Lock e Nguyen, 2010).

    Com o aparecimento de tecnologias mais avanadas, possvel um conhecimento

    aprofundado do organismo humano e, desta forma, a especializao de saberes.

    Consequentemente, permitida a criao de outros dispositivos biomdicos, como os

    psicofrmacos. No entanto, este aspeto traz algumas desvantagens, como o reconhecimento de

    um self neuroqumico, que se torna o principal alvo de tratamento. Assim, o indivduo

    reduzido quilo que o seu crebro , sendo negligenciados outros aspetos que permitiriam que

    este fosse reconhecido na sua totalidade e no por partes (Rose, 2003; Lock e Nguyen, 2010).

    So diversas as prticas que atuam sobre um objeto, o que faz com que este no seja

    sempre o mesmo, mas um objeto mltiplo. Por exemplo, a aterosclerose algo diferente

    dentro de um laboratrio e dentro de um consultrio, no laboratrio tem a ver com artrias

    danificadas, no consultrio pode ser uma dor na perna que limita o dia-a-dia da pessoa. Ento,

    atualmente considera-se que uma doena no uma realidade nica, mas mltipla, tendo em

    conta a diversidade de prticas que a constituem (Mol, 2002).

    A forma de pensar acerca de determinado objeto, o estilo de pensamento, condiciona a

    forma de falar e de agir sobre esse objeto, produzindo-se assim o real (Fleck, 1986b). Ento,

    tambm o discurso e as prticas biomdicas sobre um objeto permitem cri-lo como uma

    entidade biomdica (Lock e Nguyen, 2010). Este pensamento ser desenvolvido nos

    subcaptulos seguintes.

    4.1 O NORMAL E O PATOLGICO

    Atualmente, a toxicodependncia essencialmente abordada como uma doena,

    tratada clinicamente, em internamento ou em ambulatrio, com medicamentos e psicoterapias.

    Esta concetualizao da toxicodependncia como uma doena foi construda ao longo da

    histria e, at aos dias de hoje, este tema tem sido alvo de estudo e discusso dada a sua

    complexidade.

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    30/100

    22

    Mas o que a doena? No existe um conceito geral para definir doena no contexto

    mdico. Contudo, verificam-se trs construes discursivas sobre a mesma em torno de trs

    dimenses: explicativa, morfolgica e semiolgica. A dimenso explicativa caracteriza a

    doena como um processo, com uma ou mais causas e uma histria natural. Neste contexto,

    tida em conta a fisiopatologia, a experimentao e a epidemiologia (no sentido de estabelecer

    causas). H um domnio biolgico. Esta a viso mais recente, desenvolvida a partir da

    segunda metade do sculo XIX. A dimenso morfolgica descreve leses caractersticas a

    nvel anatmico e, mais recentemente, a nvel molecular. A dimenso semiolgica a clnica

    propriamente dita, entende a doena como um conjunto de sinais e sintomas (Camargo Jr.,

    2005).

    A doena ope-se logicamente normalidade (Camargo Jr., 2005). A

    toxicodependncia no encarada como uma situao normal e, talvez, este tenha sido o

    primeiro passo no caminho do significado deste fenmeno at aos dias de hoje. Porm, o

    conceito normal, s por si, exige uma longa reflexo. O normal pode ter muitas definies:

    aquilo que deve ser, a maioria dos casos ou a mdia ou o padro de determinada

    caracterstica? Neste trabalho, interessa contrapor o normal, no sentido de sade, com o

    patolgico. Aqui destaco a obra de Georges Canguilhem Le Normal et le Pathologique,

    publicada pela primeira vez em 1943.

    Antes do sculo XIX, a doena foi considerada algo exterior ao homem, que poderia

    entrar ou sair do organismo, no sendo sua condio. No sculo XIX, o termo normal

    comeou a ser utilizado, na medicina, para se referir sade e foi contrastado com o termo

    patolgico, que seria algo anormal. A relao entre o normal e o patolgico foi

    estabelecida como quantitativa, o fenmeno patolgico encontrado nos organismos vivos no

    era mais do que variaes quantitativas, excessos ou dfices, relativamente ao fenmeno

    fisiolgico correspondente (Canguilhem, 1978). Mas Canguilhem (1978) considera este

    princpio inadequado e argumenta que a diferena entre o normal e o patolgico qualitativa.Defende que a doena uma perturbao da harmonia e equilbrio do organismo, que tende

    naturalmente para o reequilbrio, e que no algo exterior ao homem, mas faz parte dele,

    como um todo. Pretende-se manter as condies de funcionamento do meio interno dentro de

    estreitos limites, ou seja, a homeostase (Camargo Jr., 2005).

    Sendo assim, o normal constitui uma referncia. Torna-se a extenso e a exibio da

    norma. A norma apresenta a possibilidade de uniformizar a diversidade, de resolver a

    diferena, de normalizao. Assim, descrimina qualidades positivas ou negativas. Mas oconceito de normal j , em si, normativo (Canguilhem, 1978).

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    31/100

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    32/100

    24

    Um aspeto emergente foi a inovao tecnolgica que permitisse a melhoria do bem-

    estar dos cidados, habilitando-os ao trabalho pesado que era necessrio a par da revoluo

    industrial. Contudo, se por um lado a aceitao da inovao tecnolgica acontece de forma

    irrefletida, por outro coloca-se em questo o facto da tecnologia ditar a forma que a vida

    social adota. Deste modo, as pessoas podem perder para a tecnologia, mas tambm creem na

    criao de novos dispositivos que lhes permitam um maior controlo e autonomia na sua vida

    (Lock e Nguyen, 2010).

    A anlise dos prs e contras talvez deva incidir sobre cada tecnologia individualmente

    e, quando se fala em tecnologias, no significa necessariamente mquinas, mas tambm

    tecnologias to simples como a anlise da histria do doente numa consulta mdica ou a

    prescrio de um medicamento (Lock e Nguyen, 2010).

    O conhecimento cientfico produzido no sculo XIX, tal como todo o tipo de

    conhecimento emergente em qualquer poca, foi moldado pelas circunstncias histricas, foi

    possvel dentro da sociedade em que se inseria e dentro dos discursos que se produziam. O

    discurso cria o objeto do qual fala, produz o real, mas, como o discurso est tambm imerso

    em contextos sociais especficos, determinado por eles. Assim, somos resultado da histria,

    das suas configuraes que influenciam a forma de pensar (Foucault, 2008).

    O advento da modernidade pode ser encarado como o advento da biopoltica. Neste

    processo, as disciplinas desempenham um papel importante. As disciplinas so

    caracterizadas como mtodos que controlam as operaes do corpo e sujeitam constantemente

    as suas foras, impondo uma relao de docilidade-utilidade. O corpo torna-se dcil, porque

    pode ser submetido, utilizado, transformado e aperfeioado e torna-se til porque objeto de

    estudo, a partir do qual se produz saber. Por outro lado, a disciplina aumenta as foras do

    corpo, tornando-o mais capaz, mais til, e diminui essas mesmas foras, em termos polticos,

    atravs da obedincia (Foucault, 1999).

    atravs das disciplinas que surge o poder da norma. O normal estabelece-se comoum princpio de coero no ensino, no hospital, na indstria. Existe um procedimento de

    vigilncia e regulamentao, que constitui um elemento de poder sobre a populao

    (Foucault, 1999).

    As disciplinas tornam-se reservatrio de conhecimento e organizam-se politicamente

    num sentido de saber-poder. Enquanto o poder produz saber e precisa de um campo de

    saber, o saber permite a constituio das relaes de poder. Ento, as relaes de saber-poder

    determinam o sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimento,sendo normalizadoras ou disciplinares (Foucault, 1999).

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    33/100

    25

    Assim, a prpria sociedade normalizadora e disciplinar. A sistematizao de

    conhecimentos numa equao de saber-poder define e regula a vida. Existe uma anatomia

    poltica do corpo humano, uma forma de biopoder, que define como se pode ter o domnio

    sobre o corpo dos outros, no simplesmente para que faam o que se quer, mas para que

    operem de determinada forma, com as tcnicas, a rapidez e a eficcia estabelecidas. Este

    domnio sobre o corpo exercido atravs da institucionalizao como a escola, a fbrica, a

    penitenciria, o reformatrio, o hospital. Ento, os indivduos so distribudos por espaos e,

    dentro desses espaos, devem ocupar determinados lugares, uma estratgia que permite a

    vigia, evita comunicaes perigosas e cria espaos teis. Este controlo sobre as populaes

    o que caracteriza a biopoltica (Foucault, 1999).

    Esta especializao e institucionalizao dos saberes possibilita a criao de objetos

    sobre os quais a cincia se pode debruar e intervir. Desta forma, os fenmenos cientficos

    so entendidos como o resultado da interveno tcnica por parte dos cientistas (Lock e

    Nguyen, 2010), tal como um fenmeno biomdico pode ser entendido como resultado da

    interveno da biomedicina.

    4.3 A BIOMEDICINA

    A biomedicina pressupe a produo de discursos com validade universal, propondo

    modelos e leis de aplicao geral, no se ocupando de casos individuais (carcter

    generalizante); o Universo passa a ser visto como uma mquina subordinada a princpios de

    causalidade linear traduzveis em mecanismos (carcter mecanicista); a abordagem terica e

    experimental pressupe o isolamento de partes, sendo o funcionamento do todo dado pela

    soma das partes (carcter analtico) (Camargo Jr, 2005).

    No sculo XIX, a biomedicina passa a ser caracterizada no s pela produo de

    conhecimento cientfico, mas tambm pela normalizao do corpo. Consequentemente, osdesvios a essa normalidade so considerados patolgicos. Sendo assim, so criados certos

    processos identitrios, determinando o perfil dos sujeitos. A biomedicina pode ser analisada

    como uma tecnologia que tece julgamentos constantes. As tecnologias, ao serem aplicadas,

    alteram o que ser humano (Lock e Nguyen, 2010).

    Dentro da biomedicina, importante destacar a emergncia das cincias da memria,

    que vm constituir os primrdios da neurocincia, disciplina que atualmente se debrua sobre

    o fenmeno da toxicodependncia e que explica a doena mental, no com base em aspetossociais, mas descobrindo-a num rgo, neste caso no crebro (Lock e Nguyen, 2010).

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    34/100

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    35/100

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    36/100

    28

    das terapias comportamentais e psicossociais. Alguns especulam que o uso de drogas aditivas

    um tipo de auto-medicao para uma desordem psiquitrica, que deve ser primariamente

    tratada. Mais tarde, surge a ideia de que o crebro e os seus mecanismos constituem a

    primeira explicao para a adio e, assim, o alvo primrio de tratamento. Em 1980

    publicada a terceira edio do Manual de Diagnstico e Estatstica das Perturbaes Mentais

    (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Third Edition, DSM-III), que

    demonstra uma reformulao do olhar psiquitrico na dcada de 1970 (Rose, 2003).

    Salienta-se que, a partir da dcada de 1980 at atualidade, surge a estratgia de

    colocar a responsabilidade de governo da vida individual ao prprio indivduo, este deve

    autogovernar-se atravs das suas prprias escolhas (Seddon, 2010). No entanto, a escolha

    individual do utente nem sempre est de acordo com aquilo que se consideram bons cuidados

    mdicos, conforme Mol (2008a) referiu na sua obra The Logic of Care: Health and the

    Problem of Patient Choice. A autora questiona se realmente somos individuais e autnomos.

    E responde que no. A questo da escolha individual tambm uma tcnica disciplinar.

    Apesar dos utentes serem ativos no seu tratamento, esta situao no tem a ver primariamente

    com a questo da escolha, mas da participao. A escolha individual influenciada por

    campanhas de sade pblica que apresentam um ideal, um determinado estilo de vida

    saudvel que as pessoas desejam para si, para serem saudveis. O individual pertence sempre

    a um coletivo.

    A par desta responsabilizao individual, a biomedicina tem aumentado a sua

    capacidade de regulao da conduta humana. E, neste sentido, tambm existe um governo das

    desordens do desejo, nomeadamente do craving e adies ou das chamadas doenas da

    vontade (Valverde, 1999 in Rose, 2003), doenas que se tornaram doenas do crebro

    controladas com uma farmacoterapia do desejo. Esta farmacoterapia remove ou reduz o

    desejo por aquilo que era desejvel, atuando sobre a vontade. Assim, vemos surgir um self

    neuroqumico com a centralidade colocada no crebro (Rose, 2003).

    4.4 O SELFNEUROQUMICO

    O pensamento da psiquiatria contempornea ligou-se ao desenvolvimento da

    neurocincia que coloca uma anomalia especfica no crebro, mais frequentemente nos

    sistemas de neurotransmissores. Alm disso, a nova genmica procura polimorfismos numa

    particular sequncia de bases num locus particular do gene correlacionado com um tipo dedesordem do pensamento, emoo ou comportamento. Existe uma dissecao molecular na

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    37/100

    29

    patologia, que tambm se verifica na psicofarmacologia, atuando a nvel dos

    neurotransmissores. A droga no atua na pessoa como um todo, mas corrige uma anomalia

    especfica subjacente a uma variao indesejvel do humor, emoo, conduta ou vontade

    (Rose, 2003).

    Perante o uso de substncias psicoativas, o foco incide mais sobre as prprias

    substncias, sobre os seus efeitos farmacolgicos, o que origina um certo farmacocentrismo

    (Morgan e Zimmer, 1997 inDecorte, 2011).

    Esta forma de pensar tem consequncias na conceo do risco e estratgias para a sua

    gesto. O risco envolve predisposies, vulnerabilidades ou suscetibilidades e isto envolve

    estratgias de controlo. Surge ento o significado moral associado s patologias mentais, que

    apagou outras categorias doself, j no se trata da pessoa que sofre de esquizofrenia, mas

    do esquizofrnico. Surgem figuras problemticas, o criminoso, o jovem delinquente, o

    alcolico, o homossexual. Isto no s se refere a pessoas ligadas a formas de comportamento

    indesejvel, mas designa um tipo particular de pessoa ou um tipo anormal (Rose, 2003).

    O reconhecimento deste novo selfneuroqumico torna-se redutor, pois a mente torna-

    se simplesmente o que o crebro (Rose, 2003). Os seres humanos so mais complexos e

    mais incompreensveis do que as suas molculas no crebro. Pode-se observar que o uso

    prolongado de uma substncia tem efeito sobre o crebro, mas isso no significa que se

    conhece o que se passa na mente daquela pessoa (Decorte, 2011). Alm disso, a nfase no

    deve ser dada apenas s caractersticas individuais, pois existem fatores socioculturais que

    no devem ser ignorados. O consumo de drogas insere-se dentro de rituais socioculturais, de

    subculturas e foras macroestruturais. Os efeitos farmacolgicos das drogas so apenas um

    dos muitos aspetos essenciais para compreender as determinantes do uso de drogas e os seus

    efeitos (Milhet et al., 2011).

    Porm, apesar do desfasamento entre a biologia e a vertente social que se tem vindo a

    verificar, atualmente existe a tentativa de integrar os aspetos biolgicos e sociais da doenamental, em vez de os separar, na medida em que somos criaturas, no s biolgicas, mas

    tambm sociais (Murphy, 2001). Assim, o homem tido em conta como um todo nas suas

    vertentes biolgica, psicolgica e social, um ser biopsicossocial. Agregue-se a isto o fato

    de que os termos psico e social no passam de referncias genricas, subordinadas ao

    primado do discurso biolgico (Camargo Jr., 1990 inCamargo Jr., 2005: 185).

    Dentro desta questo, tambm se pode chamar a ateno para o confronto entre o

    laboratrio e a clnica. Apesar da possibilidade de se efetuar medidas laboratoriais ou de seusar tecnologias de imagem, que apenas indicam o que incomum ou desviante, estas

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    38/100

    30

    alteraes s podem ser detetadas quando as pessoas aparecem na clnica a relatar a sua

    prpria histria. A normatividade efetuada na clnica, os laboratrios podem estabelecer

    factos, mas no podem estabelecer normas (Mol, 2002). Canguilhem (1978) refere que,

    historicamente, a clnica surgiu primeiro em relao ao laboratrio. Os laboratrios no

    seriam criados se no fossem os consultrios mdicos, aos quais as pessoas recorrem para

    pedir ajuda. A clnica no deve ser anulada pelo laboratrio, mas assumir a liderana sobre

    ele.

    Desta forma, para Mol (2002), importante questionar o utente sobre aquilo que

    constitui um problema na sua vida, pois uma doena pode pertencer ao corpo, mas est

    situada algures na vida da pessoa.

    Diante da dicotomia clnica versus laboratrio, Mol (2002) refere a emergncia de

    realidades mltiplas. O objeto diferente consoante a prtica mdica que intervm sobre si.

    4.5 VRIAS REALIDADES

    Diferentes prticas mdicas no representam o mesmo objeto de maneira diferente,

    mas criam objetos diferentes, realidades mltiplas. Porm, conforme Mol (2008b: 73) referiu

    ao analisar a questo da anemia, a realidade da anemia mltipla, mas no plural. As

    vrias anemias estabelecidas na medicina tm relaes entre si, o que extensvel a outros

    problemas biomdicos.

    Sendo assim, o conhecimento deixa de ser uma questo de referncia, mas passa a ser

    uma questo de manipulao. A pergunta j no como encontrar a verdade, mas como

    que os objetos so manuseados na prtica? Mol (2002: 5)

    O mdico utiliza ferramentas tericas para estudar os doentes e as suas palavras, tem

    uma perspetiva, atribui um sentido ao que acontece aos doentes, aos corpos e s vidas dos

    outros, enquanto os doentes falam essencialmente sobre o seu corpo e a sua prpria vida. Noentanto, ambos podem ser transformados em iguais, pois ambos interpretam o mundo em que

    vivem. Ningum est em contacto com a realidade das doenas, esta apenas interpretada

    (Mol, 2002). Os especialistas tambm tm formaes profissionais e sociais diferentes e cada

    um uma pessoa diferente, com competncias, hbitos, histrias e preocupaes particulares.

    Olham para o mundo de diferentes pontos de vista, veem os objetos de forma distinta e

    representam o que veem de maneiras diversas (Mol, 2008b).

    Assim, uma doena torna-se uma parte do que feito na prtica, tal como a identidadeda pessoa no algo dado, mas praticado. Os atos das pessoas fazem delas o que so. Desta

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    39/100

    31

    forma pode-se no s estudar a doena, mas as pessoas doentes a viver com essa doena (Mol,

    2002).

    No entanto, o conhecimento no hospital ainda se refere a um corpo no qual os

    sintomas apontam para uma alterao interna (Sullivan, 1986 inMol, 2002). Para Mol (2002),

    se dois objetos sob o mesmo nome colidem na prtica, um deles ter o privilgio sobre o

    outro, pois tm especificidades diferentes. Mantm-se diferentes formas de criar uma doena

    e, por isso, diferentes doenas criadas. Permanece sempre a multiplicidade, como Mol (2002)

    demonstrou com o caso da aterosclerose. A autora defende tambm que, ao se definir uma

    doena, torna-se necessrio complementar esta informao com o local onde esta estudada,

    onde se intervm sobre a mesma, pois cada local apresenta as suas prticas.

    Assim, ocorre um abandono da ideia de Foucault, no sentido de que a cincia mdica

    no tem o poder de impor a sua ordem na sociedade. Alm disso, a medicina multiplica, em

    vez de apresentar um discurso nico e coerente ou traar uma nica rede de associaes. A

    unificao das cincias no vivel, pois os fenmenos so produzidos por tcnicas

    diferentes, que contribuem para a multiplicao da realidade. Pode-se falar de uma nica

    doena num nico local, mas este objeto no est sozinho, na medida em que interfere com a

    realidade de muitos outros. Uma doena tem sido descrita como parte das prticas na qual

    criada. Isto significa que no se tenta ver objetos, mas antes objetos que esto a ser criados

    com a prtica (Mol, 2002).

    Podemos salientar tambm a necessidade de um campo interdisciplinar para observar

    um objeto. Para considerar o paciente como um todo, o conhecimento biomdico da doena

    no suficiente. A forma como a pessoa vive com a doena deve ser tida em conta. Nesta

    forma de pensar, viver com a doena considerado um fenmeno psicossocial. Introduz-se

    tambm a abordagem da prtica. Esta engloba tudo, molculas, dinheiro, clulas,

    preocupaes, corpos, sorrisos, e intervm em todas estas questes. A consolidao de um

    facto e os significados da sua produo andam juntos (Mol, 2002).A realidade costuma ser um padro para viver, mas dada a proliferao da tecnologia e

    da cincia a questo com que realidade devemos viver? Isto significa que a realidade

    muda. Agora, em vez de se indagar como podemos ter a certeza, confrontamo-nos com a

    questo como viver com a dvida? No podemos encontrar garantia ao perguntar se este

    conhecimento verdadeiro para este objeto, torna-se mais importante perguntar esta prtica

    boa para os assuntos (humanos ou outros) envolvidos? (Mol, 2002: 165).

    Apesar da tendncia de tornar o doente no cidado que merece jurisdio sobre asintervenes no seu corpo e vida, no se defende necessariamente a escolha individual. As

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    40/100

    32

    intervenes so compreendidas como uma forma de organizar no s a vida individual, mas

    toda a poltica do corpo, advindo novamente o carcter normativo da medicina (Mol, 2002).

    Ento, as prticas sobre os objetos tm um papel crucial na sua constituio e,

    diferentes prticas, criam objetos diferentes. Assim, a toxicodependncia pode no ser a

    mesma entidade consoante a prtica ou a disciplina que intervm sobre si. Que mais

    poderemos dizer acerca da criao de um facto biomdico atravs da prtica?

    4.6 A CONSTRUO DE UM FACTO BIOMDICO COM A PRTICA

    De onde vm os factos cientficos? Ludwik Fleck falou sobre a gnese e o

    desenvolvimento de um facto cientfico. Inicialmente, apresentou um facto como algo fixo,

    permanente e independente da opinio subjetiva do investigador. O facto aparece como a

    meta de todas as cincias. Critica, contudo, a possibilidade de se perder um conhecimento

    crtico do mecanismo cognoscente que d o facto como certo, provocando uma passividade

    total ante uma fora denominada de existncia ou realidade. Talvez um facto novo, isto

    , relativamente recente e ainda no estudado sob todas as perspetivas, seja aquele que melhor

    se adapta investigao (Fleck, 1986a).

    Para Fleck (1986b), um facto cientfico resultado da atividade cientfica num quadro

    de estilos de pensamento. As formas de pensar sobre determinado objeto so diferentes, por

    exemplo, no socilogo e no mdico. Existe um processo de formao especfico para cada

    uma das cincias que permite ao indivduo aprender a ver de uma determinada maneira. Ora,

    o investigador de determinada rea cientfica no tem conscincia da escolha da forma como

    interpreta determinado objeto, pelo contrrio, este j se apresenta de determinada forma, a isto

    chamamos os estilos de pensamento, que so resultado da educao terica e prtica

    permeados por um desenvolvimento histrico e por determinadas leis sociais. O observador

    observa de acordo com os seus estilos de pensamento. Um estilo de pensamento comum aosindivduos de determinada comunidade dita o que os seus membros veem, o que um coletivo

    observa, desta forma pode-se falar em coletivos de pensamento.

    Sinteticamente, a partir de uma dada situao, surge um pensamento demonstrvel e

    depois um pensamento bvio atravs do qual se fala e age sobre o objeto que os membros de

    um grupo tratam como um facto exterior a eles e independente deles. Assim evolui aquilo a

    que se chama o real. Esta uma das formas de onde surge conhecimento (Fleck, 1986b).

    Daqui percebemos a importncia dos estilos de pensamento na constituio dos factos.Um facto biomdico resultado de uma forma de pensar precondicionada, das tecnologias e

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    41/100

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    42/100

    34

    SEGUNDA PARTE FASE METODOLGICA

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    43/100

    35

    5 QUINTO CAPTULO: MATERIAIS E MTODOS

    Um trabalho de pesquisa pode no ser algo totalmente original, porm sempre um

    modo diferente de olhar e pensar determinada realidade a partir de uma experincia e de uma

    apropriao do conhecimento que so pessoais (Duarte, 2002: 140).

    Inicialmente, o tema a estudar consistiu na anlise da construo de uma entidade

    biomdica, nomeadamente a toxicodependncia, que ultimamente tem sido considerada uma

    doena do crebro. A escolha de uma pesquisa em torno desta entidade est relacionada ao

    facto da pesquisadora apresentar experincia profissional na rea e, consequentemente, uma

    forte motivao pessoal para aprofundar os estudos sobre o tema. Por outro lado, talvez se

    antevisse uma maior facilidade na aquisio de recursos para efetuar o estudo.

    O tema inicial foi melhor definido, passando a consistir na anlise da construo da

    toxicodependncia como uma entidade biomdica, atravs das prticas desenvolvidas pelos

    profissionais de sade em torno da mesma. Assim, foi delineado o objetivo de compreender

    de que forma as prticas permitem construir a toxicodependncia como doena. Deste modo,

    procura-se dar resposta questo de investigao: como que a toxicodependncia, enquanto

    facto biomdico, criada na prtica?

    Para isso, foi efetuado um estudo etnogrfico numa unidade de desabituao de

    substncias psicoativas localizada no centro do pas, a unidade T ou T, no espao

    temporal de setembro a dezembro de 2011, portanto, durante um semestre letivo.

    A metodologia utilizada foi baseada na observao participante, com recolha de notas

    de campo, na realizao de entrevistas semidiretivas aos tcnicos e na pesquisa de

    documentos existentes na T. Passo assim a relatar os procedimentos de pesquisa para que seja

    possvel refazer o caminho e avaliar com mais segurana as concluses obtidas (Duarte,

    2002).

    Aps seleo do tema de pesquisa, foi efetuada uma conversa informal com o diretorda unidade T, apresentando e expondo o objetivo do trabalho e a forma como este se

    realizaria. O diretor da T, desde logo, mostrou-se recetivo e interessado relativamente a este

    estudo. Atravs de um documento escrito, foi solicitada autorizao para a realizao da

    pesquisa, obtendo-se parecer positivo, na condio de deixar um exemplar na unidade T.

    Assim, foi iniciada a recolha dos dados.

    A recolha de notas de campo foi efetuada atravs de uma observao participante,

    sendo possvel observar, escutar, perguntar e recolher a maior quantidade de dados possvelacerca do tema, mais tarde complementados com outros aspetos recordados e considerados

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    44/100

    36

    pertinentes. Para a coleta de dados foi necessrio um caderno, onde foram registadas notas de

    campo e, por vezes, o computador, ou ainda folhas de papel onde se registava alguma

    observao pertinente, se o caderno ou o computador no estivessem imediatamente

    disponveis.

    Relativamente recolha de notas de campo, esta considerada vantajosa na medida

    em que possvel captar comportamentos no momento em que se produzem. No entanto, os

    registos so passveis de sofrer influncias relacionadas com o envolvimento emocional e

    valorativo da pesquisadora (Gnther, 2006) e com a seletividade da memria (Quivy e

    Campenhoudt, 1998).

    Antes da realizao das entrevistas, os tcnicos entrevistados assinaram um termo de

    consentimento livre e esclarecido para a entrevista, onde foi apresentado, de forma breve, o

    estudo a efetuar e garantidos a confidencialidade e o anonimato dos dados de identificao,

    bem como a utilizao das informaes obtidas apenas para o presente estudo.

    As entrevistas apresentaram uma primeira parte, que visou recolher alguns dados de

    investigao, e uma segunda parte com seis questes semiabertas relativas ao objeto de

    estudo, que passo a referir:

    - Qual a sua conceo relativamente ao fenmeno da toxicodependncia?

    pretende-se perceber de que forma o profissional de sade compreende a

    toxicodependncia, que significado atribui a esta entidade;

    - Qual o objetivo do internamento na unidade T? com esta questo, possvel

    associar o objetivo do internamento com a conceo de toxicodependncia dos

    profissionais da T;

    - Que estratgias teraputicas so implementadas na unidade T? esta questo

    surge como complemento da anterior, pretende-se saber, de forma especfica, que

    intervenes so realizadas na unidade para atingir o objetivo do tratamento;

    - Que consideraes tece acerca dos contactos efetuados com outros profissionais(pluridisciplinares)? permite avaliar a importncia atribuda abordagem

    multidisciplinar, atualmente inerente ao fenmeno da toxicodependncia, alm

    disso, tambm possvel perceber as relaes interpessoais;

    - Qual o papel dos profissionais de sade na rea da toxicodependncia em

    Portugal? esta questo de mbito mais global e reflete a viso do profissional

    de sade que trabalha na rea da toxicodependncia no contexto portugus e no

    apenas no espao geogrfico da unidade T;

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    45/100

    37

    - Qual o impacto da interveno sobre a toxicodependncia na sociedade?

    permite perceber as repercusses da atuao sobre a toxicodependncia na

    sociedade.

    Para realizao das entrevistas foram selecionados intencionalmente dez profissionais

    da T considerados peritos experenciais, na medida em que trabalham na rea da

    toxicodependncia num perodo igual ou superior a dez anos e, desta forma, possuem

    conhecimentos particulares e aprofundados sobre a toxicodependncia, podendo maximizar a

    informao que se pretende recolher (Morse, 1994 inFonte, 2005). Os tcnicos selecionados

    inserem-se nas categorias profissionais de mdico, enfermeiro, psiclogo, tcnico de servio

    social e tcnico psicossocial.

    As entrevistas foram efetuadas via correio eletrnico, sendo que a pesquisadora se

    manteve disponvel para esclarecer quaisquer dvidas que surgissem. A seleo deste meio

    comunicacional permitiu economizar tempo, uma fraca diretividade da pesquisadora e a

    escolha, por parte do profissional, do momento que melhor lhe aprouvesse para responder

    entrevista. No entanto, verificaram-se algumas desvantagens, como a no obteno de

    resposta por parte de dois profissionais e a impossibilidade de se estar atenta comunicao

    no verbal.

    O objetivo das entrevistas constou em confrontar as opinies dos profissionais e a sua

    atitude relativamente questo da toxicodependncia com os dados observados pela

    pesquisadora (a entrevista surge como um complemento observao participante). Assim,

    possvel analisar o sentido que os tcnicos da T do s suas prticas e aos acontecimentos com

    que se veem confrontados. Esta recolha de dados subjetivos, relacionados com os valores, as

    atitudes e opinies dos sujeitos entrevistados, apenas possvel atravs da entrevista (Boni e

    Quaresma, 2005).

    Outro dos procedimentos adotados para a recolha de dados consistiu na leitura de

    documentao existente na unidade T, esta documentao pode ser externa, sendo referido oseu autor, ou interna, redigida pelos profissionais de sade da T. A leitura de documentao

    permite economizar tempo, evitar o recurso abusivo de sondagens e aproveitar a riqueza do

    material documental disponvel (Quivy e Campenhoudt, 1998). Dentro da documentao

    analisada, incluem-se artigos de revistas e documentos internos, elaborados pelos prprios

    profissionais da T.

    Para a anlise dos dados, procedeu-se da seguinte forma: as notas de campo foram

    colocadas em suporte informtico e organizadas de forma cronolgica e, atravs de umtrabalho de sntese, foi construdo um texto que descrevesse como funciona a unidade T na

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    46/100

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    47/100

  • 7/26/2019 A Construo da Toxicodependncia como Doena Atravs das Prticas.pdf toxicodependencia e doena.pdf

    48/100

    40

    6 SEXTO CAPTULO: A UNIDADE T NA PRTICA

    O atual captulo refere-se aos resultados obtidos atravs do trabalho de campo. Antes

    de se percorrer o caminho pelo interior da unidade T, feita uma breve apresentao a fim

    de melhor situar o leitor. A unidade T funciona num edifcio propositadamente construdo

    para o objetivo a que se destina: o tratamento da sndrome de abstinncia de substncias

    aditivas, ou seja, a desabituao fsica dessas substncias, e a estabilizao da comorbilidade

    psiquitrica, se existente. Segundo documentao interna da T, o objetivo do internamento

    visa permitir ao utente deixar de consumir uma ou mais substncias causadoras de

    dependncia, sem experimentar os sintomas de privao correspondentes. A T uma

    unidade de internamento de curta durao (sete ou catorze dias) em regime fechado, isto , os

    utentes permanecem a maior parte do tempo no interior da unidade sem acesso ao exterior,

    contudo este permitido em determinados horrios e sob superviso dos tcnicos. A

    capacidade da T de doze utentes.

    Na unidade T trabalham, em horrio fixo, o diretor e mdico psiquiatra, a mdica de

    medicina geral e familiar, a psicloga clnica, o tcnico de servio social, a enfermeira

    responsvel de enfermagem, o tcnico de apoio psicossocial e o assistente administrativo.

    Fora deste horrio encontram-se doze mdicos de preveno, so chamados T pelo

    enfermeiro, se necessrio. Trabalham por turnos, durante as vinte e quatro horas, treze

    enfermeiros e sete assistentes operacionais. A equipa multidisciplinar sofreu algumas

    alteraes no decorrer do trabalho de campo.

    O edifcio da unidade T tem trs pisos. O piso -1 contm a arrumao, o arquivo

    e os vestirios dos funcionrios. O rs-do-cho contm a zona de acolhimento, a zona

    de servios e a zona de internamento. A zona de acolhimento a entrada da unidade, com

    a receo, a sala de espera, o gabinete d