A CONSTRUÇÃO DO LUGAR DO ANALISTA NA...

152
1 Universidade Federal do Rio de Janeiro A CONSTRUÇÃO DO LUGAR DO ANALISTA NA DIREÇÃO DO TRATAMENTO COM AUTISTAS NA PSICANÁLISE FLÁVIA CHIAPETTA DE AZEVEDO 2006

Transcript of A CONSTRUÇÃO DO LUGAR DO ANALISTA NA...

1

Universidade Federal do Rio de Janeiro

A CONSTRUÇÃO DO LUGAR DO ANALISTA

NA DIREÇÃO DO TRATAMENTO COM

AUTISTAS NA PSICANÁLISE

FLÁVIA CHIAPETTA DE AZEVEDO

2006

2

UFRJ

A construção do lugar do analista na direção do tratamento com autistas na psicanálise

Flávia Chiapetta de Azevedo

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutorado em Teoria Psicanalítica. Orientador: Ana Beatriz Freire

Rio de Janeiro Dezembro de 2006

3

A construção do lugar do analista na direção do tratamento com

autistas na psicanálise

Flávia Chiapetta de Azevedo

Ana Beatriz Freire

Tese de doutoramento submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica,

Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.

Aprovada por:

Presidente, Prof. Ana Beatriz Freire Prof. Sonia Alberti Prof. Maria Anita Carneiro Ribeiro Prof. Fernanda Theophilo da Costa Moura Prof. Giselle Falbo Kosovski

Rio de Janeiro Dezembro de 2006

4

Azevedo, Flávia Chiapetta de O lugar do analista na direção do tratamento com autistas/

Flávia Chiapetta de Azevedo. – Rio de Janeiro:UFRJ/ IP, 2006. xi, 11f.: il.; 29,7cm. Orientador: Ana Beatriz Freire Tese (doutorado) – UFRJ/ Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-

graduação em Teoria Psicanalítica, 2006. Referências Bibliográficas: f. 144-150. 1. Autismo. 2. Histórico (autismo). 3. Alteridade. 4. Tratamento.5.

Psicanálise. I Freire, Ana Beatriz. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica. III. Título.

5

Para Aécio, meu pai.

6

Agradecimentos

Agradeço e presto, de público, a devida homenagem àqueles cuja colaboração,

ajuda, carinho e amizade tornaram possível a elaboração deste trabalho e menos solitário o

tempo de vida a ele dedicado.

À Dra. Ana Beatriz Freire, pela indispensável orientação, pelas indicações

bibliográficas e pelas preciosas observações. Sou grata também pela leitura atenta dos

originais e pela confiança depositada em meu trabalho.

À Dra Sonia Alberti, pelos comentários preciosos, pelas sugestões e discordâncias

de quem se sente um pouco autor do trabalho que incentiva. Seu rigor teórico, articulado

com sua experiência clínica, foi fundamental para a realização desta tese.

A todos os participantes do grupo de pesquisa, coordenado pela Dra. Ana Beatriz

Freire e pela Dra. Angélica Bastos, pelos estudos conjuntos e discussões clínicas, tão

importantes na elaboração desta tese.

À Dra. Ana Carolina Lobianco e à Dra. Angélica Bastos, pelas valiosas indicações

no exame de qualificação.

À Dra. Maria Anita Carneiro Ribeiro, à Dra. Sonia Alberti, à Dra. Fernanda

Theophilo da Costa Moura e à Dra. Giselle Falbo Kosovski, por aceitarem o convite de

compor a banca de defesa da tese.

À Dra. Teresa Palazzo Nazar, pela escuta apurada. Agradeço muitíssimo.

À Ana Benjó, pelas indicações bibliográficas.

7

Ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, pela qualidade do ambiente

acadêmico.

A CAPES, pelo apoio financeiro que me foi concedido durante os quatro anos do

curso de doutoramento.

À Dra. Tais Leal de Oliveira, pela dedicação e cuidado dispensados na revisão de

português.

À minha família. Minha mãe, Edwiges, pelo incentivo, pelo amor, obrigada. Ao

meu pai, Aécio, pela coragem e determinação que tento seguir. Ao Fábio, à Gabriela e ao

sobrinho que está por vir, agradeço o carinho e a amizade.

Aos amigos Alexandre, Ana Raquel, Carla, Ana Paula, Ana Claudia, Rita, por

tornar esta trajetória mais divertida.

8

RESUMO

Nosso objetivo nesta tese é refletir sobre o lugar do analista na direção do tratamento com

autistas. Para isto, empreendemos um estudo que consistiu em abordarmos o autismo desde

seu surgimento no campo da psiquiatria até as diferentes vertentes psicanalíticas, quais

sejam: a desenvolvimentista e a lacaniana. Seguindo a orientação lacaniana, abordamos a

constituição do sujeito a partir dos três “A”: o pequeno a, o outro; o grande A, o Outro; e o

objeto a. Refletimos o estatuto de cada uma dessas modalidades no autismo. Por fim, a

partir do tripé estabelecido por Lacan (1958) no texto “A direção do tratamento e os

princípios de seu poder” – tática, estratégia e política –, refletimos sobre o lugar possível do

analista na direção do tratamento com autistas.

Palavras-chave:

Autismo; psicanálise; tratamento

9

Abstract

Our purpose in this dissertation is to ponder upon the place of the analyst in the direction of

treatment with autists. In order to accomplish that, we undertook an investigation which

consisted of studying autism from its beginning in psychiatry to different approaches in

psychoanalysis, namely, developmental, and lacanian. Following a lacanian direction, we

approached the subject constitution from the three “A” perspective: the little a, the other;

the big A, the Other; and the object a. We reflected on the statute of each of this features in

autism. Finally, based on the triad proposed by Lacan (1958) – tactics, strategy, and politics

–, we discuss the place the analyst could occupy in the direction of treatment with autists.

Keywords:

Autism; psychoanlysis; treatment

10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 12

CAPÍTULO 1 – BREVE HISTÓRICO SOBRE O AUTISMO NO CAMPO DA

PSIQUIATRIA E DA PSICANÁLISE ............................................................................... 17

1.1 O autismo no campo da psiquiatria ................................................................... 17

1.2 O ponto de vista desenvolvimentista sobre o autismo ...................................... 23

1.2.1 Margaret Mahler (1897-1985) ..................................................................... 23

1.2.2 Bruno Bettelheim (1903-1990) ................................................................... 28

1.2.3 Frances Tustin (1913-1994) ........................................................................ 35

1.2.4 Algumas reflexões críticas sobre a vertente desenvolvimentista ............. 41

1.2.4.1 Das Ding e a impossibilidade de uma relação recíproca entre mãe e

bebê ................................................................................................ 42

1.2.4.2 “Eu”, sujeito e consciência .................................................................. 44

CAPÍTULO 2 – REFLEXÕES SOBRE A ALTERIDADE E O AUTISMO ..................... 48

2.1 Imaginário: o outro e a formação do eu ............................................................ 51

2.1.1 O pequeno outro e a alteridade .................................................................... 52

2.1.2 Reflexões sobre o autismo ........................................................................... 55

2.1.3 O Ideal do eu e a constituição do eu ............................................................ 58

2.2 Simbólico: o grande Outro e a alteridade .......................................................... 61

2.2.1 O inconsciente é o discurso do Outro .......................................................... 64

2.2.2 A Bejahung em Freud e Lacan .................................................................... 68

2.2.3 O Fort Da e a primeira simbolização .......................................................... 72

2.2.4 Traço unário e primeira simbolização ......................................................... 74

2.2.5 A metáfora paterna ...................................................................................... 78

2.2.6 Reflexões sobre o Outro e o estatuto do sujeito no autismo ....................... 83

2.3 Alteridade e o objeto a ...................................................................................... 97

2.3.1 A imagem especular e o duplo .................................................................. 100

11

2.3.2 O estatuto do objeto a na psicose .............................................................. 104

CAPÍTULO 3 – O LUGAR DO ANALISTA NA DIREÇÃO DO TRATAMENTO COM

AUTISTAS ....................................................................................................................... 111

3.1 Tática: como é a interpretação no autismo? .................................................... 112

3.1.1 O caso Roberto, de Rosine Lefort ............................................................. 115

3.1.2 O caso Dick, de Melanie Klein ................................................................. 118

3.1.3 L’Antenne 110: Tano e Yves .................................................................... 120

3.2 Estratégia: em que ponto estamos com a transferência? ................................. 123

3.3 Política: como agir com seu ser? ..................................................................... 129

3.3.1 L’Antenne 110 ........................................................................................... 134

3.3.2 Le Courtil .................................................................................................. 135

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 138

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 144

Introdução

Desde que Leo Kanner (1943) descreveu o “autismo infantil precoce”, seus enigmas

vêm intrigando os profissionais que dele se aproximam. São crianças que não falam, não

olham, não reconhecem suas imagens diante do espelho, são indiferentes à presença do

outro. O que pode um analista diante do autismo?

Com a histeria, Freud desbravou os caminhos do inconsciente, o que o permitiu

fundar a psicanálise. Lacan, por sua vez, fez da paranóia, tema de sua tese de doutorado, o

caminho inicial de suas contribuições a psicanálise. Fica a questão: o que a clínica com

autistas pode ensinar aos analistas?

Nosso primeiro encontro com uma criança autista ocorreu durante um estágio em

um hospital psiquiátrico, e, desde então, nos propomos a refletir sobre os enigmas desta

clínica. Por isso o autismo foi tema de monografia de graduação, de dissertação de

mestrado e agora de nossa tese de doutorado.

O que fazer, então, ao se deparar com os enigmas que a clínica com autistas

provoca? Sabemos que, enquanto analistas, não devemos recuar diante da psicose. Eis o

legado deixado por Freud e Lacan: posição ética que aponta para o desejo do analista.

Aliás, único recurso que o analista dispõe frente a uma clínica do inesperado, do real.

Suportar o isolamento, a ausência de demanda e, às vezes, até cuspes e mordidas são

exemplos com os quais nos deparamos na clínica com crianças autistas. Ainda assim, o

analista, em seu desejo, deve colocar o sujeito ao trabalho. É nesta posição que vemos

emergir do lado do sujeito um olhar, um sorriso e até uma fala. Acossada pelos enigmas

que a clínica com autistas provoca, nos propomos, nesta tese, trabalhar sobre o lugar

possível do analista na direção do tratamento com essas crianças.

No que diz respeito ao lugar do analista no tratamento com psicóticos, Lacan (1955-

56) formula o lugar de “secretário do alienado” (Lacan, [1955-56] 1985:235). Seria este

também o lugar do analista na direção do tratamento com autistas? A relevância de

estudarmos esta questão está no fato de não haver um consenso entre os psicanalistas sobre

a posição estrutural do autismo. Há analistas, como Rosine e Robert Lefort (2003), que

13

consideram o autismo uma quarta estrutura, ao lado das estruturas já existentes: neurose,

psicose e perversão. Outros, como Pierre Bruno (1991), consideram o autismo dentro da

estrutura psicótica.

Assim, antes de nos aventurarmos acerca do lugar do analista no tratamento com

autistas, faz-se necessária uma reflexão detalhada sobre o estatuto do sujeito no autismo.

Seguindo a direção dada por Lacan (1958), iremos de uma questão preliminar a todo

tratamento possível do autismo.

A fim de contribuir para esclarecer as questões sobre o autismo, empreendemos um

trabalho que consiste em seguir o desenrolar do ensino de Lacan entre os anos de 1932 e

1963, com o intuito de mostrar de que maneira ele responde aos problemas colocados pela

clínica da psicose. Abordamos os casos clínicos desde Aimée, a partir do qual Lacan (1932)

elabora sua tese de doutorado, passando pelos comentários que ele faz dos casos Dick e

Roberto, no Seminário, livro 1 (1953-54), e o caso Schreber, no Seminário, livro 3 (1955-

56) até as experiências psicóticas extraídas dos contos “Homem de areia” e “O Horla”, do

Seminário, livro 10 (1962-63). Este percurso nos permitiu descobrir sérias asseverações de

Lacan sobre a psicose que culminam no Seminário, livro 10, onde formulará que, na

psicose, o sujeito é objeto de gozo do Outro. Além disso, o autor abordará a angústia como

afeto diante do Real, o que tal posição de objeto diante do Outro pode provocar. Isso lhe

permitirá aprofundar a relação da psicose com o Real, a relação do Outro com o gozo e a

identificação que o sujeito pode ter com o objeto do Outro. Assim, podemos dizer que, com

o Seminário, livro 10, Lacan (1962-63) está lançando as bases para construir o lugar do

gozo em sua obra. Dessa abordagem, tiramos conseqüências importantes para refletirmos

sobre as questões do autismo.

Como citado acima, nos manteremos nos limites entre os anos de 1932 e 1963, ou

seja, até o Seminário, livro 10. A angústia. Justificamos nosso escopo, em primeiro lugar,

pela necessidade de fazer um recorte, posto que seria impossível abordarmos a obra de

Lacan em sua totalidade. Em segundo lugar, porque, neste período de sua obra, há

importantes contribuições sobre a clínica e a teoria diferencial entre psicose e neurose, sem

as quais não poderíamos avançar em suas elaborações posteriores. O terceiro motivo deve-

se ao fato de que, neste período, poderemos estudar não só a teoria da clínica diferencial,

14

como também a teoria da relação de objeto, incluindo aquilo que o autor afirma ter sido sua

contribuição à psicanálise – o objeto a. Finalmente, porque, como aponta Ana Beatriz

Freire (2002) no texto “A constituição do sujeito e a alteridade: considerações sobre a

psicose e o autismo”, um dos diferenciais da clínica entre psicose e neurose refere-se à

extração de objeto a, razão pela qual resolvemos ir até o Seminário, livro 10 e nos

aprofundarmos sobre a questão do objeto a.

No primeiro capítulo, faremos um breve histórico sobre o autismo no campo da

psiquiatria e da psicanálise. Este percurso nos permitirá levantar algumas questões.

Sabemos, por exemplo, que o autismo surgiu no campo da psiquiatria, a partir da descrição

de Leo Kanner (1943), que atribui a ele especificidade clínica. O que nossa tese nos

permitirá refletir é sobre o porquê de este termo ter sido adotado pelos psicanalistas, não só

como entidade clínica, mas também como um primeiro estágio do desenvolvimento, a fase

autística normal, como denomina Margaret Mahler (1952).

Ainda no primeiro capítulo, abordaremos, de forma sucinta, a teoria de Margaret

Mahler (1952, 1955, 1958, 1959, 1960), Bruno Bettelheim (1967) e Frances Tustin (1972,

1986, 1995), com seus respectivos casos clínicos, quais sejam: Stanley (Mahler, 1959),

Joey (Bettelheim, 1967) e John (Tustin, 1993). O estudo nos permitiu extrair conseqüências

importantes para a clínica com autistas. O caso de Joey, nesse sentido, é muito interessante,

pois refere-se a uma criança que a partir de construções de máquinas, durante o tratamento,

consegue uma estabilização. Apesar da grande contribuição desses autores, observamos, ao

longo de nossa investigação, equívocos teóricos que não pudemos deixar de assinalar.

Apontaremos os impasses que as teorizações conduzem na experiência clínica e tentaremos

justificar porque a teoria lacaniana permite uma compreensão maior e mais rigorosa acerca

do autismo.

Iniciaremos o segundo capítulo mostrando a divergência existente entre os

psicanalistas lacanianos sobre o autismo. Como dito nesta introdução, há autores que

consideram o autismo como uma modalidade clínica dentro da estrutura psicótica, enquanto

outros autores o consideram como uma quarta estrutura ao lado das já existentes – neurose,

psicose e perversão.

15

O autismo ser ou não ser uma psicose nos leva a uma outra questão: no autismo,

tratar-se-ia de um sujeito inconstituído pela ausência de elementos essenciais na

constituição do sujeito ou seria uma resposta às vicissitudes ocorridas por estes elementos?

Para avançarmos em nosso trabalho, retomaremos a constituição do sujeito a partir

da perspectiva dos três “A”: o pequeno a, o outro; o grande A, o Outro; e o objeto a. Dessa

forma, veremos que o pequeno a é o outro a partir do qual o eu poderá se constituir. Com

Lacan (1953-54), a partir dos comentários que faz do caso Dick de Melanie Klein (1930),

concluiremos que no autismo há um dano imaginário, na medida em que não há egoização.

O grande A, o Outro, é o lugar do significante, onde o sujeito poderá advir, uma vez

que o significante é o que representa o sujeito para outro significante. A partir da afirmação

de Lacan (1953-54) de que Dick “não fez a Bejahung dos vocábulos – não os assume”

(Lacan, [1953-54]1979:86), levantamos a questão se isto estaria indicando que todos os

significantes estariam no real para o autismo. Questão crucial para pensarmos sobre a

existência ou não do Outro. Isso nos remete a outro ponto, tão crucial quanto o primeiro: a

do estatuto do sujeito no autismo. Embora não tenhamos a pretensão de responder tais

indagações em definitivo, promoveremos uma discussão e proporemos hipóteses a partir de

um exame detalhado sobre a Bejahung, traço unário e metáfora paterna. É importante

mencionar que essa reflexão inclui casos clínicos, de nossa experiência e de outros

analistas.

No que tange o objeto a, podemos dizer, com Lacan (1962-63), que ele é o objeto

que ao mesmo tempo causa o desejo e a angústia no sujeito, na medida em que não é

significantizável nem especularizável, tornando-se assim a garantia de alteridade do Outro.

Veremos que o objeto a é o resto que cai da operação de barra no Outro. No entanto, na

psicose, a falta vem a faltar, o objeto não cai. Abordaremos, então, a partir do Seminário,

livro 10 (1962-63), o estatuto do objeto na psicose.

Essas investigações preliminares nos permitirão, no terceiro capítulo, refletir sobre o

lugar do analista na direção do tratamento. Seguiremos com Lacan (1958), no texto “A

direção do tratamento e os princípios de seu poder”, o tripé por ele estabelecido a partir da

teoria de guerra do general Carl von Clausewitz (1780-1831): tática, estratégia e política.

Nesse sentido, a tática implica nos interrogarmos sobre o lugar da interpretação no

16

tratamento com autistas. A estratégia trata sobre o ponto em que estamos com a

transferência no autismo. Por fim, a política permite uma reflexão sobre o desejo do

analista.

Os enigmas permanecem, mas, mesmo sem respondê-los, foi possível, a partir da

leitura que fizemos da obra de Freud e Lacan, desdobrar algumas questões polêmicas que

giram em torno do autismo.

17

1. Breve histórico sobre o autismo no campo da

psiquiatria e da psicanálise

No mestrado, realizamos uma revisão bibliográfica, tanto no campo da psiquiatria

quanto no campo da psicanálise, sobre o diagnóstico de autismo e a direção do tratamento

feito a partir deste diagnóstico. Essas questões são bastante controvertidas e recebem

encaminhamentos distintos dependendo do campo teórico em que são abordados. É, de

certo modo, um tema camaleão que assume a cor do terreno em que vem a ser formulado.

Destacamos, aqui, alguns pontos que consideramos importantes para encaminharmos nossa

investigação na tese de doutorado.

Abordaremos o autismo primeiramente sob o ponto de vista da psiquiatria. É

importante lembrar que o termo autismo vem do campo da psiquiatria, por isso

consideramos pertinente um percurso neste campo teórico.

Na psicanálise, encontramos duas vertentes. A primeira vertente denominamos

desenvolvimentista, pela forma como concebe a constituição do sujeito. Nela, encontramos

psicanalistas pós-freudianos que se ocuparam com as questões do autismo. Abordaremos as

teorias de três psicanalistas: Margeret Malher (1897-1985), Bruno Bettelheim (1903-1990)

e Frances Tustin (1913-1994). Após uma leitura crítica de suas teorias, apontamos os

impasses que elas podem criar para a clínica do autismo.

Na segunda vertente, a lacaniana, encontramos um rigor teórico que nos permite

uma maior compreensão sobre o autismo. Objetivamos, ao longo deste capítulo, justificar o

porquê de a termos escolhido para tratarmos a questão sobre o autismo.

1.1 O autismo no campo da psiquiatria

O termo autismo surgiu pela primeira vez em 1911, introduzido por Bleuler, com o

objetivo de designar uma característica da esquizofrenia: perda de contato com a realidade.

18

É a partir da descrição de Leo Kanner, em 1943, que se depreende a noção de um

“autismo infantil precoce”, com particularidades próprias. O autismo deixa de ser um

aspecto da esquizofrenia para adquirir especificidade clínica.

Foi no artigo intitulado “Distúrbios autísticos do contato afetivo” que Leo Kanner

apresenta pela primeira vez a síndrome que nomeia Autismo Infantil Precoce (Kanner,

1943). No artigo, discorre sobre 11 casos por ele estudados, que apresentavam uma

síndrome única, não relacionada até então. É importante ressaltar que o autor escutou os

pais, abordou a história de cada caso, respeitando suas particularidades.

A partir da observação desses casos, Leo Kanner (1943) destaca, como principal

característica da síndrome, a incapacidade de crianças em se relacionarem com pessoas e

situações desde o início da vida. Além disso, são crianças que apresentam olhar ausente,

ausência de movimento de antecipação, indiferença à imagem no espelho, estereotipias,

ecolalia (ausência de formação espontânea de frases, uso de pronomes pessoais

inadequados – repetem os pronomes tal como os ouve, sem mudar para adaptá-los à

situação atual) e desejo ansiosamente obsessivo de manter a igualdade.

O autor, ainda, distingue o autismo da esquizofrenia, na medida em que esta tem

como característica um retraimento da participação no mundo a partir de uma relação

inicial presente, enquanto que naquela o retraimento é observado desde o início.

Temos, então, que a ênfase dada por Kanner (1943) na nomeação da síndrome está

sobre a palavra precoce. Trata-se, portanto, de uma síndrome que descreve os distúrbios

decorrentes da entrada do bebê no mundo.

Em definições mais recentes,1 o autismo infantil é considerado um transtorno

invasivo do desenvolvimento, que se manifesta antes de três anos. O diagnóstico é atribuído

a crianças que apresentam comprometimento qualitativo na integração social recíproca e na

comunicação, além de comportamento restrito, estereotipado e repetitivo.

Diferentemente de Leo Kanner (1943), que tira conclusões sobre o autismo a partir

de observações clínicas e da escuta dos pais, a psiquiatria atualmente se fundamenta em

descrições classificadoras. Em função disso, verificamos a cada ano uma nosografia cada

1 Coord. Organiz. Mund. Da Saúde (1992). Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10: descrições clínicas e diretrizes diagnósticas, Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

19

vez maior e mais fragmentada na tentativa de dar conta das variações fenomênicas. A busca

incessante por uma etiologia orgânica é uma outra característica do campo. Neste caso, o

objetivo do tratamento é fazer desaparecer tais fenômenos com o uso de medicamentos.

Vimos que o termo autismo, assim como suas características clínicas, surgiram do

campo da psiquiatria. A questão que se impõe é saber o porquê de a psicanálise ter adotado

o termo. Haveria algum motivo particular para o termo autismo ter sido adotado?

É importante lembrar que Leo Kanner (1894-1981), de origem austríaca, radicou-se

nos Estados Unidos da América. Em 1924, era médico assistente no State Hospital em

Yankton, Dakota. Em 1930, foi convidado pelos professores da Johns Hopkins University

School of Medicine, Adolf Meyer (1866-1950), diretor de psiquiatria, e Edward A Park

(falecido em 1969), diretor de pediatria, para desenvolver o serviço de psiquiatria infantil

no setor de pediatria. Por esse motivo, consideramos pertinente contextualizar a situação da

psicanálise nos E.U.A. para tentarmos entender o que levou os analistas a adotarem o termo

autista do campo da psiquiatria.

Em 1909, Freud realizou cinco conferências na Clark University de Worcester, que

foram publicadas, um ano depois, com o nome de “As cincos lições de psicanálise”

([1909]1910). Este foi o passo inicial para divulgar a psicanálise nos Estados Unidos, como

podemos depreender a partir da afirmação de Freud ([1924]1925):

“Ela [a psicanálise] não perdeu terreno nos Estados Unidos desde a nossa visita; é extremamente popular entre o público leigo e reconhecida por grande número de psiquiatras oficiais como importante elemento nos estudos médicos” (Freud, [1924][1925]1979:67)

Dois anos depois das conferências foi possível fundar dois grupos locais ligados à

International Psychoanalytical Association (IPA): The New York Psychoanalytic Society e

The American Psychoanalytic Association.

Como vimos na citação acima, a psicanálise foi absorvida por grande número de

psiquiatras americanos. É interessante observar que Adolf Meyer, o psiquiatra que

convidou Kanner para desenvolver o serviço de psiquiatria infantil, também fazia parte do

grupo de psiquiatras adeptos à psicanálise. Segundo Elizabeth Roudinesco (1998), Meyer

“foi um dos pioneiros da introdução da psicanálise nos Estados Unidos” (Roudinesco,

20

1998:513), tendo assistido aos cursos de Charcot e às conferências de Freud na Clark

University de Worcester, onde era professor. Este fato nos leva a pensar, que,

possivelmente, Kanner também teve acesso à teoria psicanalítica por intermédio de Meyer.

O movimento psicanalítico na América do Norte foi intensificado pela emigração de

grande número de analistas europeus devido à ascensão de Adolf Hitler, entre 1933 e 1938.

Esse exílio maciço reforçou o poder dos americanos frente às decisões da IPA, onde

tentaram impor suas estruturas burocráticas à psicanálise (Roudinesco, 1998).

Constatamos, assim, que se, por um lado, a psicanálise ganhou terreno nos Estados

Unidos, sendo absorvida pela maioria dos psiquiatras americanos, por outro, pagou um

preço por estas adesões, tendo sofrido modificações segundo um ideal de adaptação próprio

ao pragmatismo americano. De acordo com Elisabeth Roudinesco (1998), naquela época, a

psicanálise encontrava-se atrelada à psiquiatria, e iniciava-se um processo de

“medicalização do pensamento freudiano” (Roudinesco, 1998:198).

É neste contexto histórico que surgem os primeiros psicanalistas que irão trabalhar

com autismo. Margaret Mahler (1897-1985) vai para os Estados Unidos em 1940, em

função do nazismo, seguindo, assim, a trajetória clássica dos freudianos de sua geração.

Tendo o interesse pela psicanálise despertado aos 16 anos por influência de Ferenczi (1873-

1933), Mahler se formou em medicina e se especializou em pediatria. Em 1922, começa a

se voltar para a psiquiatria. Em New York seu trabalho é direcionado para os atendimentos

com crianças, principalmente os casos de psicose, até que, em 1957, cria um centro

terapêutico para o tratamento das psicoses da criança, o Masters Therapeutic Nursery .

Também Bruno Bettelheim (1903-1990) segue este caminho. Preso pela Gestapo em

1938, foi encaminhado para o campo de concentração de Buchenwald, e, em 1939, emigrou

para os Estados Unidos. Foi a partir da experiência no campo de concentração que

Bettelheim elaborou o conceito de “situação extrema”, pela qual ele designava as condições

de vida das quais o homem pode tanto abdicar – identificando-se com a força destruidora,

constituída seja pelo carrasco, seja pelo ambiente, seja pela conjuntura –, quanto resistir,

praticando a estratégia da sobrevivência, que consiste em construir para si um mundo

interior cujas fortificações o protegeriam das agressões externas. Esta última posição, como

veremos mais adiante, seria o que Bettelheim (1967) supõe estar na origem do autismo.

21

Frances Tustin (1913-1994), que havia feito formação em psicanálise na Inglaterra,

tendo seguido orientação kleiniana, foi para os Estados Unidos em 1950, acompanhando o

marido. Sua estadia no país durou um ano, durante o qual trabalhou no James Jackson

Putnam Center, onde teve o primeiro contato com crianças autistas. Mesmo pertencendo à

escola inglesa, no que tange sua teoria sobre o autismo, foi bastante influenciada por

Margaret Malher, como podemos verificar pela afirmação que se segue: “No meu artigo ‘A

perpetuação de um erro’ me refiro à teoria de Margaret Mahler, que segui de perto” (Tustin,

1995:85).

Constatamos, então, que no momento histórico em que o autismo surge na

psiquiatria como entidade clínica, com particularidades próprias, a psicanálise, sobretudo

nos Estados Unidos, encontra-se sob forte influência da psiquiatria e vice-versa. Pensamos

que isso possa ter determinado a incorporação do autismo no campo da psicanálise, posto

que os primeiros analistas a se ocuparem com o autismo residiam, na época, naquele país.

Um outro ponto que chamou nossa atenção na concepção do autismo abordada pela

vertente desenvolvimentista é o fato de esta vertente adotar o autismo não apenas como

entidade clínica, mas também como uma fase do desenvolvimento. Dessa forma, o autismo

é considerado como uma fixação ou uma regressão ao estágio inicial, denominado, segundo

a teoria de Margaret Malher (1952), por exemplo, como fase autística normal.

Em nossa pesquisa sobre o autismo na vertente desenvolvimentista encontramos

dificuldade em entender a elaboração de determinados conceitos, porque não havia

referência à escrita freudiana. A fase autística normal, por exemplo, seria alguma referência

ao auto-erotismo ou ao narcisismo? Isto não fica claro.

No texto “A coisa freudiana ou Sentido do retorno a Freud em psicanálise”, Lacan

(1955) denuncia o esquecimento dos analistas da teoria freudiana, esquecimento este que

qualificou de “escândalo simbólico” (Lacan, [1955]1998: 403):

“(...) esse escândalo se consumou na inauguração da placa comemorativa que designa a casa onde Freud elaborou sua obra heróica, e que não está no fato de esse monumento não ter sido dedicado a Freud por seus concidadãos, mas no de não ser tributado à associação internacional daqueles que vivem de seu apadrinhamento” (Lacan, [1955]1998:403)

22

Ainda no mesmo texto, Lacan (1955) revela que este esquecimento da IPA, a qual

Freud confiou a guarda de sua obra, é apenas o signo de um outro: trata-se dos emigrantes

que deixaram a Europa, na época da Segunda Guerra Mundial, para fixarem-se nos Estados

Unidos.

O esquecimento dos analistas emigrantes se justificaria pela “assimilação necessária

para que seja reconhecido na sociedade constituída por sua [E.U.A.] cultura” (Lacan,

[1955]1998:403).

Podemos concluir que, com o intuito de serem reconhecidos pela sociedade

americana, os psicanalistas esqueceram a teoria freudiana, bem como seu passado, que

veiculava esta teoria, assimilando, assim, os valores daquela cultura. Talvez este seja o

motivo de os primeiros psicanalistas terem adotado o autismo, como entidade clínica, do

campo da psiquiatria e tenham elaborado suas próprias teorias. As palavras de Mahler,

citadas por Roudinesco (1998), parecem confirmar esta idéia:

“Creio que, nos casos positivos, a emigração é seguida de uma segunda individuação, de um novo nascimento psicológico e talvez de uma nova visão do mundo [...]. Eis o que foi para mim a emigração: ela me arrancou, eu e minhas idéias sonolentas, dessa cápsula psicológica que era então Viena; ela me expôs a um ambiente estranho, cuja novidade agravava as vulnerabilidades da transição. Mas uma vez dominadas a angústia e a insegurança iniciais, ela me levou a tornar-me produtiva e a fazer emergir minha teoria do desenvolvimento” (Mahler, apud Roudinesco, 1998:484)

Esta posição difere em muito da de Lacan (1955), que propõe um retorno a Freud,

como podemos depreender da argumentação abaixo:

“Não lamentaremos com vocês esse esquecimento, se ele nos deixa mais à vontade para lhes apresentar o projeto de um retorno a Freud, tal como alguns o propõem no ensino da Sociedade Francesa de Psicanálise. Não é de um retorno do recalcado que se trata para nós, mas de nos apoiarmos na antítese constituída pela fase percorrida desde a morte de Freud no movimento psicanalítico, para demonstrar o que a psicanálise não é e, junto com vocês, buscar o meio de recolocar em vigor aquilo que não cessou de sustentá-la em seu próprio desvio, ou seja, o sentido primeiro que Freud preservava nela por sua simples presença, e que se trata aqui de explicitar” (Lacan, [1955]1998:404)

Vimos que o autismo, como entidade clínica com particularidades próprias, surge a

partir dos estudos clínicos de Leo Kanner (1943), nos Estados Unidos. Os psicanalistas, que

imigraram para este país incorporaram essa entidade clínica e elaboraram suas próprias

23

teorias. Faremos uma apresentação da teoria de cada um deles – Margaret Mahler, Bruno

Bettelheim e Frances Tustin – para melhor entendermos como abordam a questão do

autismo.

1.2 O ponto de vista desenvolvimentista sobre o autismo

Margaret Mahler (1897-1985), Bruno Bettelheim (1903-1990) e Frances Tustin

(1913-1994) definem a constituição do sujeito segundo uma ótica desenvolvimentista. Ou

seja, como um acesso progressivo a estágios do desenvolvimento. Nessa perspectiva, o

desenvolvimento normal depende das relações positivas do bebê com o objeto (a mãe) e das

identificações que se estabelecem na relação. De um modo geral, os autores consideram o

autismo como um desvio do curso habitual do desenvolvimento, devido a um fracasso na

relação do bebê com o objeto (a mãe).

Veremos, inicialmente, de forma sucinta, a teoria de Margaret Mahler.

1.2.1 Margaret Mahler (1897-1985)

Segundo Mahler (1952), o desenvolvimento infantil normal, do nascimento até os

três anos de idade, estaria determinado por três estágios: fase autística normal; fase

simbiótica normal; processo de separação-individuação. Seguindo a ótica

desenvolvimentista, Mahler supõe que “a criança passa gradualmente de um estado quase

que completamente vegetativo e simbioticamente dependente da mãe para o de uma

separação individual” (Mahler, [1955]1983:7).

A fase autística normal corresponderia à fase que vai do nascimento até o segundo

mês de vida. Partindo da idéia de que o homem é imaturo organicamente para sua

sobrevivência, Mahler (1952) afirma que neste momento “a mãe executa provisões de vital

importância, sem as quais o bebê humano seria incapaz de sobreviver” (Mahler,

[1952]1983:23). O relacionamento da mãe com o bebê, nesta fase, seria caracterizado por

uma “simbiose social” (Mahler, [1952]1983:24):

24

“O relacionamento intra-uterino de hospedeiro-parasita deve ser substituído no período pós-natal através do envolvimento da criança, por assim dizer, pela matriz extra-uterina dos cuidados maternos, uma espécie de simbiose social” (Mahler, [1952]1983:23-24)

Esta simbiose seria necessária porque a criança nasceria com um “ego rudimentar”

(Mahler, [1952]1983:23), incapaz de distinguir realidade interna e externa e de se

diferenciar dos objetos inanimados ao redor. Além disso, o ego rudimentar não teria

capacidade de se defender dos excessos de estímulos internos e externos. Assim, a simbiose

com a mãe seria necessária, posto que funcionaria como um “pára-choque” (Mahler,

[1952]1983:25) contra os estímulos internos e externos, organizando-os para o bebê e

orientando-o tanto para a formação de limites, quanto para a percepção sensorial. Com os

cuidados maternos, o bebê iria tornando-se vagamente capaz de distinguir o mundo interno

do mundo externo, bem como iniciar uma pequena diferenciação do ego rudimentar,

progredindo para a fase simbiótica.

A fase simbiótica, portanto, seria marcada por uma vaga discriminação entre self e

não self. Esta discriminação ocorreria a partir de experiências repetidas de alívio de tensão

no interior do corpo. Através das experiências, o bebê se tornaria vagamente consciente de

que não poderia providenciar por si mesmo, de forma alucinatória, o alívio, atribuindo a

uma fonte externa tal responsabilidade. Dessa forma, “o bebê reconhece uma órbita além

dos domínios do self, ou seja, uma realidade externa representada pela mãe” (Mahler,

[1952]1983:24). Entretanto, a diferenciação entre self e não-self ainda não é completa e o

bebê trata partes da mãe como se fossem suas próprias. Esse fato também seria

compartilhado pela mãe, que considera o bebê um prolongamento seu.

A fase de separação-individuação, que vai de um ano e meio a três anos de idade,

seria crucial no que diz respeito ao desenvolvimento do ego e às relações de objeto. Esta

fase está “próxima da experiência de um segundo nascimento” (Mahler, [1955]1983:8).

Trata-se do “rompimento da membrana simbiótica que envolve o relacionamento mãe-

bebê” (Mahler, [1955]1983:8). Nesta fase, portanto, a criança se diferenciaria da unidade

dual mãe-bebê, desembaraçando da mãe seu próprio self. O processo de separação-

individuação supõe, então, a diferenciação, a formação de limites e o afastamento da mãe.

O desenvolvimento da relação objetal ocorreria paralelamente à diferenciação do self. Para

25

Mahler (1960), a relação de objeto significa “o investimento de libido objetal de uma

pessoa sobre outro ser humano” (Mahler, [1960]1983:62). Papel importante no processo

seria desempenhado pelo desenvolvimento maturativo da locomoção, pois a criança

descobriria e controlaria cada vez mais o meio ambiente e aumentaria o investimento no

mundo exterior para além da mãe.

Vimos até aqui os estágios de desenvolvimento que vão da fase autística normal até

o processo de separação-individuação, segundo a teoria de Margaret Mahler. Como já

mencionamos anteriormente, o autismo, de acordo com esta teoria, seria considerado como

uma fixação ou uma regressão à primeira fase – a fase autística normal. Haveria, ainda, um

outro tipo de psicose: a psicose simbiótica infantil, que se caracteriza por uma fixação ou

regressão à fase simbiótica normal. Tanto na psicose autística quanto na simbiótica, o

problema estaria em uma “deficiência básica do ego” (Malher, [1958]1989:61), cuja causa

Mahler parece atribuir ao orgânico, pois afirma ser “hereditária ou constitucional” (Mahler,

[1952]1983:26).

Na psicose autística infantil, a deficiência do ego impediria o bebê de perceber a

mãe como figura representativa do mundo externo. A mãe não seria catexizada,

permanecendo como um objeto parcial não diferençado dos objetos inanimados. A

inaptidão para utilizar o “parceiro simbiótico torna necessário o emprego de mecanismos de

substituição, constituindo a sintomatologia do autismo infantil precoce” (Mahler,

[1958]1983:54). Ainda segundo a autora, essas crianças são “completamente impenetráveis

à voz e à orientação da mãe; parecem não ver as pessoas, mas olhar através delas” (Mahler,

[1958]1983:54).

Enquanto que a mãe, no autismo, em função de uma deficiência do ego, não é

percebida de modo algum, na psicose simbiótica infantil o que ocorre é que a mãe

permanece indiferenciada do self (Mahler, 1958). Como conseqüência, “fundem-se as

realidades internas e externas” (Mahler, [1958]1983:55), persistindo, além da idade

simbiótica, o primitivo limite comum de self e mundo objetal, de criança e mãe. Por este

motivo, qualquer possibilidade de separação ameaçaria a ilusão de simbiose entre a mãe e a

criança, o que provocaria sérias reações de pânico. A essas reações seguem-se ações de

“restituição do delírio parasito-simbiótico de unidade com a mãe” (Mahler, [1952]1983:34).

26

Quanto à direção do tratamento, em ambos os casos, a “terapia é de substituição”

(Mahler, [1952]1989:40), ou seja, o terapeuta funciona como uma mãe substituta. Isso

significa dizer que o analista precisa ser cauteloso e compreensivo. No caso específico do

autismo, a criança

“precisa ser atraída de sua concha autística por qualquer tipo de estratagema, como música, atividades rítmicas e estimulação prazerosa dos órgãos dos sentidos. Tais crianças devem ser gradualmente abordadas com o auxílio de objetos inanimados, tendo-se sempre em mente que o contato corporal, o toque, o abraço carinhoso – dos quais espera-se tranqüilizem uma criança perturbada – não ajudam e muitas vezes constituem um estorvo no tratamento dessas crianças” (Mahler, [1952]1983:39)

Em relação ao prognóstico, Mahler ([1952]1989:39) revela que “a perspectiva de

uma cura real é desoladora”. No caso da psicose simbiótica, “o ego permanece

irreparavelmente deformado, narcisicamente vulnerável, desestruturado ou fragmentado”

(Mahler, [1952]1989:39). No autismo, a “deficiência é ainda mais grave, visto não existir

nem mesmo a matriz da unidade primitiva mãe-bebê, e não acontecer, portanto, o

desenvolvimento que a mesma promove” (Mahler, [1952]1983:40).

A experiência clínica da autora lhe permite fazer sugestões em relação à direção do

tratamento com autistas, como, por exemplo, o uso de música. Pensamos ser este um

recurso interessante posto que, para essas crianças, a presença do Outro é insuportável (no

capítulo II desenvolveremos essa idéia). No entanto, sua teoria, fortemente influenciada

pela teoria de Anna Freud, pela Psicologia do Ego e pela pediatria, cria impasses na direção

do tratamento. O tratamento é dirigido em busca de uma adaptação à realidade empírica e

para isso privilegia-se a dimensão psicológica, tal como a percepção. Apresentaremos

fragmentos de um caso de sua clínica, o caso Stanley, para tornar mais claro a direção que

dá ao tratamento.

Stanley é um caso de psicose infantil e tem 6 anos quando é atendido por Malher.

Aos 6 meses sofreu de hérnia inguinal, cuja dor surgia bruscamente enquanto o menino

brincava, o que o fazia chorar violentamente. Como o choro poderia causar um

encarceramento da hérnia, Stanley era impedido de chorar pelos pais. Para impedi-lo, eles o

alimentavam. Ou seja, no auge da dor, Stanley era alimentado à força.

27

Como assinalamos anteriormente, a questão orgânica exerce grande influência na

teoria de Mahler, logo, ela supõe que foram essas “sensações viscerais traumáticas

precoces” (Malher, [1959]1983:83) que interromperam o desenvolvimento do ego:

“(...) no caso Stanley, os ataques de dor no auge da fase simbiótica interromperam a formação de uma imagem corporal normal (...). As sensações viscerais traumáticas precoces interromperam a série contínua do processo de libidinização; a criança regrediu à identificação primária” (Malher, [1959]1983:82-83)2

Como podemos constatar, a partir do exemplo clínico, para a autora, a psicose está

atrelada a uma deficiência orgânica – os ataques de dor, as sensações viscerais. A questão

que se coloca é a de saber se a psicose de Stanley estaria realmente atrelada às dores

causadas pela hérnia ou à intrusão do Outro, que o alimentava à força, “de modo que suas

manifestações de dor e cólera eram emudecidas” (Mahler, [1959]1983:82).

Quanto ao tratamento, Mahler (1959) relata que durante um bom tempo Stanley se

interessava por brincadeiras que apresentavam uma alternância: desenhava rodas que

giravam ou paravam de girar, desenhava vários interruptores que fingia ligar e desligar, e

também demonstrava grande interesse com as luzes, que acendia e apagava.

O que faz Mahler diante deste brincar de Stanley? Tenta ensinar a Stanley o

verdadeiro funcionamento das máquinas, enfatizando a conexão causa e efeito, ou seja,

influenciada pelos ensinamentos de Anna Freud, segue a via pedagógica:

“Como Stanley continuasse muito assustado, perplexo e confuso acerca do interfone, foi levado até embaixo, com todas as portas abertas, para que pudesse apertar o botão e ouvir o zumbido simultaneamente lá em cima. Também foi pedido a alguém que apertasse o botão enquanto Stanley e sua analista ‘esperavam’, lá em cima, pelo zumbido” (Malher, [1959]1983:84)

Malher (1959) chega a construir um aparelho na esperança de que, tendo a criança

diante de seus olhos o mecanismo completo, pudesse estabelecer a necessária relação

causal. Seu esforço, porém, foi em vão: “Para Stanley, no entanto, este engenho não tinha

qualquer significativo explicativo” (Malher, [1959]1983:85).

2 Grifo nosso

28

É interessante observar que Mahler (1989[1983]), em toda extensão de seu livro As

psicoses infantis e outros estudos, não faz nenhuma menção ao conceito de inconsciente.

Pensamos que ela tenha tentado cingir algumas elaborações com a clínica com autistas, mas

sua formação, influenciada por Anna Freud, pela Psicologia do ego e pela pediatria, levou-a

a dirigir o tratamento de uma forma pedagógica, o que ela mesma percebe que não tem

efeito, como pudemos constatar na citação acima. O desconhecimento da noção de

inconsciente faz Malher (1959) conduzir o tratamento a partir de um confronto com a

realidade empírica. De qualquer forma, a experiência nos permite afirmar que não é o

recurso à realidade, nem a tentativa de aprendizagem da relação causa e efeito que poderão

servir como balizamento para a clínica com autistas.

Vejamos, a seguir, a teoria de Bruno Bettelheim.

2.2.2 Bruno Bettelheim (1903-1990)

Bruno Bettelheim (1903-1990) tem uma teoria muito particular sobre o autismo.

Isso porque sua teoria não faz referência à obra de Freud, nem a outras. Trata-se de uma

teoria baseada em experiência própria. A experiência, como afirmamos anteriormente, está

relacionada ao tempo que Bettelheim passou no campo de concentração, na época do

nazismo. Baseado nesta experiência, Bettelheim (1967) supõe ser o autismo uma patologia

que protegeria o sujeito das agressões externas.

Tal como Mahler (1952), que, como vimos, supõe, na primeira fase de

desenvolvimento, uma “simbiose social” entre mãe e bebê, Bettelheim (1967) supõe uma

relação dual que denomina “idade dourada” ou “paraíso perdido” (Bettelheim,

[1967]1987:16) Trata-se de uma relação de plenitude, onde a alteridade não comparece,

como podemos depreender da citação que se segue: “uma época em que nada nos é pedido

e em que nos é dado tudo o que queremos” (Bettelheim, [1967]1987:16).

A idéia de plenitude primordial na relação entre mãe e bebê faz Bettelheim (1967)

elaborar o conceito de mutualidade. Trata-se de uma ação combinada, entre a mãe e o bebê,

baseada no interesse comum de ambos. No caso, por exemplo, da amamentação, a criança

deve sentir fome e a mãe desejar aliviar o intumescimento do seio, provocado pelo acúmulo

29

de leite. Sendo assim, tanto a sucção do bebê quanto a amamentação da mãe agiriam no

sentido de aliviar uma tensão física, bem como satisfazer uma necessidade emocional. Esse

processo, segundo Bettelheim (1967), é fundamental para o desenvolvimento de um “eu”.

Graças a ele, o “eu” passaria não só a atuar, como também a interatuar, a responder aos

outros lentamente e a tomar consciência de que pode modificar as respostas deles.

Importante papel desempenharia a mãe nesse processo, devendo estar atenta às ações do

bebê, buscando adaptar-se a elas:

“(...) a mãe deverá ter desejado, em todo o processo, relacionar-se com o filho em mutualidade. Mas, durante algum tempo, não deve esperar que o filho contribua, e mais tarde deverá esperar que o faça apenas de forma muito gradual. Se a criança, durante todo o processo, conhecer a experiência da mutualidade, como no aleitamento, tal fato a ajudará então a desenvolvê-la em suas relações pessoais” (Bettelheim, [1967]1987:29)

Vimos, então, que, para o autor, a relação mãe e bebê, inicialmente, se estabelece a

partir de uma reciprocidade mútua: mãe e filho devem se adaptar um ao outro. Nesse

sentido, a expectativa da mãe em relação ao desenvolvimento do seu filho deve ser justa, de

boa medida, nem mais, nem menos.

Ainda segundo Bettelheim (1967), a atividade do bebê desempenha papel

fundamental no desenvolvimento normal:

“O que humaniza o lactente não é o fato de ser alimentado, de ter as fraldas trocadas ou de ser pego ao colo quando sente necessidade, embora essas ações aumentem substancialmente seu conforto e seu sentimento de bem-estar (...) é sobretudo a experiência do seu choro pedindo comida provocar sua saciedade por parte dos outros, de acordo com seu horário, que torna a experiência socializadora e humanizadora” (Bettelheim, [1967]1987:28)

Assim, o que propiciaria um desenvolvimento normal seria a experiência interior da

criança de que suas ações exercem influência no mundo externo. Em contrapartida,

“(...) é a experiência de suas próprias ações (choro ou sorriso) passarem despercebidas que o impede de tornar-se um ser humano, porque isso o desencoraja a uma atuação recíproca com outros e, a partir daí, a formar uma personalidade através da qual possa lidar com o meio ambiente” (Bettelheim, [1967]1987:28)

30

Uma das conseqüências da experiência da criança de ações não percebidas pelo

mundo externo – seus pais - é o próprio autismo. Neste caso, o lactente, em virtude de dor

ou mal-estar e da ansiedade que estas sensações provocariam, ou de interpretar mal ações

ou sentimentos da mãe, ou por avaliar corretamente os sentimentos negativos dela, poderá

afastar-se dela e do mundo. Dentro desse quadro geral, Bettelheim (1967) classifica três

modalidades de autismo, de acordo com o período de desencadeamento.

Para entendermos as modalidades, será preciso abordarmos o conceito que

Bettelheim (1967) elabora de “fase crítica”. Segundo ele, o desenvolvimento humano é

marcado por duas “fases críticas”:

“(...) embora a personalidade se desenvolva num processo contínuo, estudiosos do desenvolvimento na primeira infância são unânimes em afirmar que até em condições normais há períodos de especial sensibilidade. Dois, em particular, são freqüentemente citados: a idade que vai dos seis aos nove meses e de novo a que vai dos dezoito meses aos dois anos” (Bettelheim, [1967]1987:43)

Na primeira fase, o bebê já poderia fazer uma discriminação entre pessoas

familiares e estranhos. Assim como as outras pessoas começariam a tornar-se mais

definidas para o bebê, Bettelheim (1967) supõe que o eu do bebê também se tornaria mais

definido. Como conseqüência, começariam as relações “reais com os objetos” (Bettelheim,

[1967]1987:46). A segunda fase crítica do desenvolvimento caracteriza-se pela presença da

linguagem e da locomoção. Neste momento, a criança poderia ter maior domínio do

mundo, tanto física quanto intelectualmente, como, por exemplo, a criança decidir se

aproximar ou se afastar de outro indivíduo.

O grau de autismo varia dependendo da “fase crítica” em que é desencadeado. O

caso de autismo mais grave refere-se ao marasmo infantil, que corresponderia aos casos de

hospitalismo de Spitz (1945): crianças cujas experiências as conduziriam a convicções de

que nada podem fazer em relação ao mundo e de que o mundo de modo algum satisfaz suas

necessidades, sendo apenas frustrador, destruidor. Essas convicções ocorreriam antes do

primeiro “período crítico”. Ou seja, antes do reconhecimento de pessoas familiares, que

levariam a experiência de um mundo externo bom. Em função disso, essas crianças

desistiriam de agir, podendo chegar até mesmo à morte.

31

Quando o autismo surge durante o primeiro “período crítico”, a criança teria a

experiência da imagem de um mundo que oferece algumas satisfações, embora estas não

tenham sido desejadas, ou seja, ela não teria qualquer influência sobre a obtenção das

satisfações. Na experiência dessas crianças, o que ocorreria é que, ao tentarem se relacionar

com os outros, os achariam insensíveis às suas ações. Por isso desistiriam de agir.

Diferentemente do marasmo infantil, essas crianças manteriam algum investimento no

mundo interno, apesar de desistirem de investir no mundo externo.

Um terceiro grau de autismo ocorreria no período dos dezoitos meses aos dois anos

de idade, durante a segunda “fase crítica”. De acordo com Bettelheim (1967), é

normalmente nesse período que o autismo é detectado: “É a idade em que a criança poderá

aproximar-se do mundo ou evitá-lo, não apenas do ponto de vista emocional, como também

alheando-se completamente dele” (Bettelheim, [1967]1987:52). Essas crianças, embora

continuem a agir, agem de acordo com seus processos psíquicos interiores. Suas ações não

seriam eficazes para alterar a realidade, pois estariam baseadas apenas, ou

fundamentalmente, em seus “desorganizados processos psíquicos internos” (Bettelheim,

[1967]1987:52).

Vimos até aqui que Bettelheim (1967) pensa a relação mãe e bebê como uma

relação dual onde a alteridade não comparece. Trata-se de uma relação recíproca, baseada

na satisfação das necessidades, onde a mãe deve se adaptar às “ações” do bebê. A teoria de

Bettelheim (1967), tal como a de Mahler (1952), parece privilegiar noções psicológicas do

desenvolvimento. Assim, a relação entre a mãe e o bebê, na primeira fase do

desenvolvimento, é dominada pela sensação, pela percepção e pela experimentação. Nesse

sentido, o desenvolvimento da criança ocorre a partir de sua experiência, ou da tomada de

consciência, de que seus esforços foram percebidos ou valorizados pelo meio. Em

contrapartida, quando isso não ocorre, ou seja, quando a criança tem “a convicção de que

nossos esforços não têm poder para influenciar o mundo, em virtude da convicção anterior

de que o mundo é insensível às nossas reações” (Bettelheim, [1967]1987:50), o autismo é

desencadeado.

Quanto ao tratamento, como Bettelheim (1967) acredita ser o autismo um bloqueio

no desenvolvimento pela convicção da criança de que suas ações não podem influenciar o

32

mundo com o qual convive, ou seja, seus pais, propõe, então, como objetivo do tratamento,

uma separação entre a criança e os pais, com a internação dela na Orthogenic School da

Universidade de Chicago. A escola é concebida como um meio artificial que estimula e

encoraja a criança a agir por sua própria iniciativa, possibilitando assim um

desenvolvimento normal. Dessa forma, o tratamento segue a idéia de uma terapia de

substituição: o mundo insensível é então substituído por outro estimulante, proporcionando

à criança autista uma segunda oportunidade para se desenvolver.

Se percebemos na teoria de Bettelheim uma certa fragilidade, patenteada em

impressões psicológicas, decorrentes da ausência de referência à psicanálise freudiana, por

outro lado, é impossível negar as contribuições ao trabalho clínico com crianças autistas.

Dentre os casos clínicos que apresenta em seu livro – A fortaleza vazia –, o caso Joey se

destaca, por tratar-se de um caso de autismo que obteve estabilização com o tratamento.

Abordaremos fragmentos do caso clínico apresentado por Bettelheim (1967).

Começaremos com alguns dados da história dos pais. Durante a adolescência, a mãe

de Joey recusou-se a freqüentar a escola, não tinha amigos e vivia atormentada por acessos

de desmaio. Antes de se conhecerem, os pais de Joey haviam sofrido decepções amorosas,

sobretudo a mãe, que perdera seu companheiro em combate na Segunda Guerra Mundial.

Ambos se casaram a fim de consolarem-se mutuamente pelas perdas sofridas.

Quanto aos acontecimentos que cercaram o nascimento de Joey, Bettelheim (1967)

assinala que:

“As condições que levaram Joey à decisão de ser um dispositivo mecânico, em vez de uma pessoa, tiveram início antes de ele nascer. No nascimento, a mãe ‘considerou-o mais uma coisa do que uma pessoa’. Mas até antes, pouca importância tivera: ‘Nunca me dei conta de que estava grávida’, disse ela, significando com isso que, conscientemente, a gravidez não lhe alterava a vida. Também o nascimento dele ‘não fez qualquer diferença” (Bettelheim, [1967]1987:259)3

E ainda:

“No hospital, após o nascimento de Joey, [a mãe] não quis vê-lo. ‘Não quis amamentá-lo. Não se tratava realmente de aversão – somente não quis cuidar dele’, não por

3 Grifo nosso

33

negligência, mas porque sentia que ele estava além de suas possibilidades. Assim, o acolhimento que ele teve neste mundo nem foi amor, nem rejeição, nem ambivalência. Devido a uma ansiedade absoluta, foi pura e simplesmente ignorado” (Bettelheim, [1967]1987:260)

É interessante observar que, mesmo na ausência de uma conceituação teórica mais

precisa, Bettelheim (1967) pôde auferir da clínica questões fundamentais da problemática

do autismo. Estamos nos referindo ao Desejo da Mãe (iremos desenvolver esta idéia no

capítulo II), que, no caso do autismo, parece estar ausente, como podemos depreender do

discurso da mãe de Joey destacado acima.

Ainda sobre o caso, vale ressaltar que, com poucos meses de vida, Joey começa a

bater violentamente com a cabeça, balançando-a ritmicamente para trás, para frente e para

os lados. Quanto à fala, esta foi “tornando-se gradualmente abstrata, despersonalizada,

desligada. Perdeu a capacidade de empregar corretamente os pronomes pessoais e mais

tarde deixou completamente de utilizá-los” (Bettelheim, [1967]1987:261). Há ainda um

fato interessante na forma como Joey faz uso da linguagem, porque ele nomeia os

alimentos de acordo com a qualidade física dos mesmos: chama o açúcar de “areia”, a

manteiga de “gordura”, a água de “líquido” e assim por diante.

Joey chega na Orthogenic School aos 9 anos e meio, e chama a atenção pelas suas

máquinas. Ele constrói muitas máquinas, constituídas de engrenagens e transmissores.

Chamam-no de menino-máquina. As máquinas que constrói estão presentes em todos os

seus atos, como podemos inferir da descrição de Bettelheim (1967):

“Estendendo um fio imaginário, ligava a si próprio à sua fonte de energia elétrica (...) tinha de estender fios similares antes de poder dormir, brincar, ler e assim por diante” (Bettelheim, [1967]1987:256)

Além disso, nas extremidades de sua cama, Joey construiu um aparelho complexo

fabricado com fita adesiva, pedaços de arame e outros objetos: tratava-se da “máquina

carro”. Aos pés da cama ficava o “carburador” e o “motor”, na cabeceira ficava o

“volante”, a “bateria” e o “autofalante”. De acordo com o relato de Bettelheim (1967) sobre

o caso, cada máquina tinha sua função: o “carburador” permitia a Joey respirar; o “motor”

controlava seu corpo; a “bateria” e o “volante” ofereciam energia ao “autofalante”, que, por

34

sua vez, possibilitava Joey não só falar como também ouvir. Segundo Bettelheim (1967),

Joey só existia quando a máquina funcionava, senão permanecia parado sem se mover.

Após três anos afastado da Orthogenic School, Joey retorna para uma visita. No

decorrer desses três anos havia concluído o ensino secundário em escola regular, ou seja,

“fizera contínuos progressos no aprender a viver em sociedade” (Bettelheim,

[1967]1987:357). Já tinha também estabelecido alguns planos para o seu futuro:

“prosseguir seus estudos em eletrônica, enquanto trabalhava meio período” (Bettelheim,

[1967]1987:357).

No entanto, é importante assinalar que a máquina é um recurso que Joey não abre

mão, mesmo depois de sair da Orthogenic School. Assim, quando Joey retorna à Escola

para a visita, faz questão de mostrar sua última criação: uma máquina elétrica.

“Era uma coisa muito pesada e ele a fazia vergar precisamente como as lâmpadas e motores o haviam dominado no passado. Mas na forma como ele transportava essa máquina havia triunfo e satisfação. Era um retificador, e sua função consistia em transformar a corrente alternada em corrente contínua. E mostrou-nos várias vezes como esse aparelho que construíra mudava o eterno movimento oscilatório da corrente alternada para um fluxo direto e contínuo.” (Bettelheim, [1967]1987: p.367)

No comentário acima citado, o autor parece indicar que houve uma mudança na

relação de Joey com as máquinas: antes dominado pela máquina passa a dominá-las,

carregando-as com triunfo e satisfação. A questão que fica é a de saber o que realmente

Joey teria “dominado” a partir da construção de suas máquinas. Qual a função da máquina

na direção do tratamento de Joey? Teriam sido essas produções que permitiram a

estabilização da psicose?

De acordo com Bettelheim (1967), as máquinas para Joey substituíam a ausência

dos pais, posto que estes não eram sensíveis às suas ações:

“Só por comparação com a “irrealidade” dos pais é que as máquinas podiam tornar-se mais importantes dos que as pessoas. Joey ligou-se às máquinas porque estas lhe proporcionaram uma experiência mais significativa (...). Pelo menos eram tangíveis, comparadas com a natureza ‘irreal’ da mãe e com a distância que mantinha de Joey” (Bettelheim, [1967]1987:269-270)

35

Como já afirmamos, Bettelheim (1967) pode cingir coisas interessantes da clínica

independentemente de sua teoria. Em relação às máquinas de Joey, parece indicar que elas

vêm metaforizar o fato de que o Nome-do-Pai não se inscreve, tampouco o Desejo da Mãe,

o que o leva a identificar a “irrealidade” dos pais.

Vimos que Bettelheim (1967) fundamenta a questão do autismo a partir de

considerações psicológicas. Como Mahler (1952), não menciona o conceito de

inconsciente, e o autismo fica reduzido à “insensibilidade” dos pais. Ambos – Mahler

(1952) e Bettelheim (1967) – se equivocam, mas de lugares diferentes, logo, o que se pode

aproveitar em termos de contribuição é também diferente.

Embora a teoria de Bettelheim (1967) tenha enveredado para uma via psicológica,

isso não o impediu de trazer uma contribuição à clínica com autistas. Diferentemente de

Mahler (1952) que dirigi o tratamento por uma via pedagógica, impondo a Stanley um

aparelho complexo para lhe ensinar o mecanismo do mesmo, Bettelheim (1967), pode

compreender a importância das máquinas no tratamento de Joey, acolhendo essas

produções, o que parece ter permitido a estabilização de Joey.

Nossa próxima apresentação refere-se à teoria de Frances Tustin.

1.2.3 Frances Tustin (1913-1994)

Como vimos no início do capítulo, Tustin (1913-1994) pertenceu à Escola Inglesa e

segue, a princípio, a teoria kleiniana. Sua formação sempre esteve atrelada a atendimentos

com crianças. Mas foi nos Estados Unidos, em 1950, que teve seu primeiro contato com

crianças autistas no James Jackson Putman Center. Desta data em diante, dedicou-se ao

trabalho com essas crianças e elaborou alguns livros sobre o assunto.

O trabalho teórico de Tustin referente ao autismo parece ser marcado por dois

momentos distintos. Apresentaremos, de forma sucinta, esses dois momentos, ressaltando

as alterações ocorridas na teoria e as conseqüências disto para a clínica com autistas.

Em um primeiro momento, o termo autismo “é usado para designar um estado de

sensação dominada e centrada no corpo que constitui a essência do eu (self)” (Tustin,

[1972]1984:13). Neste caso, haveria estados autísticos: normal ou patológico.

36

Aqui, Tustin (1972) segue os ensinamentos de Margaret Mahler (1952),

estabelecendo uma fase inicial do desenvolvimento denominada autismo primário normal.

O autismo patológico seria, então, uma fixação ou uma regressão a este primeiro estágio, o

qual caracteriza-se, segundo a autora, por uma indiferenciação entre eu e não eu:

“Objetos no mundo exterior (...) são experimentados como sendo partes do corpo ou muito assemelhados a ele. Pessoas e coisas exteriores raramente são usadas ou vistas como possuidoras de existência separada. São experimentadas como uma extensão das atividades corporais. (...) Em resumo, autismo é o estado em que a experiência não é diferenciada ou objetivada em qualquer extensão apreciável” (Tustin, [1972]1984:14)

Na primeira fase do desenvolvimento, a experiência de indiferenciação do bebê

combinado com a preocupação da mãe constituiria uma relação que Tustin (1972)

denomina de “útero pós-natal” (Tustin, [1972]1984:18):

“A sensualidade do bebê no estado de autismo primário normal e sua consciência global relativamente indiferenciada combinadas com a adaptabilidade da mãe, originada da ‘preocupação’ dela, protege o bebê recém-nascido de experiências do ‘não-eu’ (no-self). Elas provêm um estágio protetor intermediário entre ser dentro do útero e ser fora dele. Assim, elas constituem uma espécie de útero pós-natal” (Tustin, [1972]1984:18)

Como vimos na citação acima, esse útero pós-natal protegeria o bebê de realizações

que seu “mecanismo neuromental” (Tustin, [1972]1984:18)4 não poderia suportar, como,

por exemplo, a experiência “não-eu”. É a partir desta experiência inicial de útero pós-natal

que, gradualmente, a criança iria tomando consciência de que a mãe é um objeto separado e

diferente de seu corpo. Neste caso, a criança estaria preparada “para ‘nascer’ como um ser

psicológico com um senso de sua própria identidade” (Tustin, [1972]1984:19-20).

A idéia de útero pós-natal parece ser uma expressão metafórica para falar que

mesmo depois do parto haveria uma relação entre mãe e bebê semelhante à vida intra-

uterina. Dessa forma, pensamos que Tustin (1972) tenta negar a castração ao propor uma

continuidade entre vida intra-uterina e pós-uterina. O que fica é a ilusão de uma castração

em doses homeopáticas, ou seja, mãe e bebê iriam se preparando paulatinamente para o

momento da separação.

4 Mecanismo neuromental, segundo Tustin (1972), refere-se ao ego incipiente.

37

Nesse sentido, o autismo patológico é concebido como uma reação à experiência

prematura da separação. Em outros termos, no caso do autismo, o sujeito não teria tido a

oportunidade de se preparar gradualmente para a separação, como podemos verificar pela

argumentação abaixo:

“Minha tese é que a criança psicótica teve que encarar esses conflitos muito cedo, para ela. Metaforicamente falando, ela ‘nasceu’ prematuramente, ou de uma maneira muito confusa, do útero pós-natal, tendo assim a desilusão de ter perdido uma parte de seu corpo. Reações autísticas patológicas entram em operação para lidar com o desastre do fato de seu corpo parecer ter sido danificado; ‘quebrado’ é a palavra geralmente usada pela criança que denota essa condição” (Tustin, [1972]1984:21)

A idéia de “trauma do nascimento” de Otto Rank (1924) parece ter sido resgatada

por Tustin (1972), embora ela não mencione isso claramente. A tese daquele autor parece

estar implícita na forma como ela concebe o autismo patológico, posto que alega ser o

autismo conseqüência de uma “ruptura traumática” (Tustin, 1995[1993]:72), em função de

um nascimento prematuro do útero pós-natal. Vale lembrar que a tese de Otto Rank (1924),

segundo Elizabeth Roudinesco (1998), “seria adotada, com algumas variações, por todos os

representantes da escola inglesa” (Roudinesco, 1998:642). Por isso acreditamos que a idéia

de “ruptura traumática” em Tustin (1993) tenha sofrido influência do “trauma do

nascimento” de Otto Rank (1924). O “trauma do nascimento” (Otto Rank, 1924) refere-se à

idéia de que o nascimento seria o trauma original que serviria de protótipo para situações

posteriores, sendo a própria castração, por exemplo, uma atualização desta experiência.

Segundo o autor, a etiologia da neurose estaria articulada a este trauma. Freud (1909), no

entanto, critica esta idéia, indicando justo o contrário, ou seja, que as perdas passadas só

serão efetivadas a partir do complexo de castração, que, por sua vez, está articulado não ao

nascimento, mas ao falo:

“Já foi sugerido com insistência que o bebê, toda vez que o seio materno é afastado dele, sente essa privação como uma castração (...); ademais, sugeriu-se que ele não pode deixar de ser identicamente afetado pela perda regular de suas fezes; e que, afinal, o ato do próprio nascimento (...) constitui o protótipo da castração. Mesmo reconhecendo todas essas raízes do complexo, expus o ponto de vista de que a expressão ‘complexo de castração’ deve restringir-se àquelas excitações e conseqüências decorrentes da perda do pênis” (Freud, [1909]1979:18)

38

Vimos que, inicialmente, Tustin (1972) considera o autismo tanto como uma fase

inicial do desenvolvimento como uma patologia. Enquanto fase do desenvolvimento, o

autismo normal se caracteriza por uma relação dual onde a mãe se adapta às necessidades

do filho, estabelecendo com ele o “útero pós-natal”. O autismo patológico seria, então,

concebido como uma saída prematura deste útero pós-natal, designando assim que a criança

não estaria preparada para se separar da mãe.

Quanto à questão da etiologia, a autora alega que o autismo seria determinado por

razões “diferentes em cada criança e intrínsecas à natureza constitucional delas” (Tustin,

[1972]1984:24), e não pela qualidade do tratamento que os pais poderiam oferecer.

Em 1986, no livro Autistic Barriers in Neurotic Patients, Tustin (1986) começa a

alterar sua teoria. As correções teóricas realizadas a partir de 1986 encontram seu ápice no

artigo “Perpetuação de um erro” (1993). O interessante é que essas reformulações

ocorreram a partir de sua experiência clínica, sobretudo a partir do caso John. Para melhor

entendermos as reformulações teóricas de Tustin (1986), apresentaremos fragmentos do

caso.

Tustin (1986) atende John quando este tinha cinco anos. Considera-o um caso de

autismo porque ele apresenta todas as características do “autismo infantil precoce” de Leo

Kanner (1943), dentre elas o mutismo. No entanto, durante os atendimentos, John começa a

falar e Tustin (1993) destaca algumas frases por considerá-las significativas para ele:

“Papai foi embora”, “Botão quebrado”, “Seio quebrado” (Tustin, [1993]1995:66-67). A

autora prossegue em seu relato, citando um evento ocorrido, onde o menino falou: “ ‘Furo

na minha boca! Cai! Botão quebrado! Buraco preto mau na minha boca!’ Depois, de uma

forma alarmada, segurou seu pênis e disse ‘pipi ainda lá?’ (...) como se ele pensasse que

pudesse não estar” (Tustin, [1993]1995:68).

Para Tustin (1993), John estava verbalizando “a crise traumática de conscientização

da separação corporal, que lhe deixou a ilusão do ‘buraco negro’ de seu ser de que algo

estava sendo perdido. Ele estava a mercê do desespero negro” (Tustin, [1993]1995:74).

Conclui, então, que a reação de John estaria associada a um stress relacionado à ruptura

traumática de um estado anormal perpetuado de uma situação de fusão, de não

diferenciação com a mãe. Dessa forma, o autismo seria “uma doença de dois estágios.

39

Primeiro, há uma perpetuação da unidade dual e depois a ruptura traumática disso e o stress

que ela desperta” (Tustin, [1993]1995:72).

A questão que se impõe, a partir do relato do caso John, é o porquê de Tustin supor

uma “ruptura traumática” (Tustin, [1993]1995:72). Por que não pensar que John estaria

simbolizando, justamente, a castração? A dimensão do “buraco negro” não estaria

apontando para o furo no campo do Outro, ponto de partida necessário à constituição do

sujeito? Supomos que, por considerar que a castração se dê por “doses homeopáticas”,

gradualmente, Tustin (1993) não pôde escutar que John estaria simbolizando a castração.

Não podemos deixar de notar, no entanto, que a autora opera na clínica a partir dos

significantes da criança.

Seguindo sua teoria, podemos constatar que ela não abandona a idéia de uma

relação dual inicial entre bebê e mãe, mesmo no desenvolvimento normal. O que ocorre no

autismo é que esta relação é “perpetuada” (Tustin, [1993]1995:72):

“Na infância normal há oscilações de um fluir à unicidade (flowing-over-at-oneness) a um tornar-se consciente da separação da mãe e do mundo exterior. Nessa ‘trilha dual’, como Grotstein (1980) a denomina, há oscilações alternadas de consciência de espaço e ‘não-espaço’ entre o bebê e a mãe. Na infância da criança autista, essas oscilações normais não aconteceram. Algo que normalmente é fluído, torna-se congelado. Tal criança tornou-se traumatizada e congelada num estado de pânico e aflição ao estar aderida à mãe (...)” (Tustin, [1993]1995:73)

Quanto à relação entre mãe e bebê no autismo, Tustin (1993) argumenta que a

criança seria “como um objeto inanimado” (Tustin, [1993]1995:73). Ela exemplifica esta

situação “anormal” de fusão da criança com a mãe a partir da escultura “Madonna e criança”,

de Henry Moore (1993). A peça retrata uma mãe com um buraco negro abdominal, no qual

uma criança em forma de pênis está inserida. Segundo a autora, tanto no caso da escultura

como no caso da psicose, a criança seria usada para preencher o buraco, o vazio e a solidão da

mãe.

Diante dessas constatações clínicas, Tustin (1993) reformula sua teoria. A princípio

ressalta a importância de se distinguir as manifestações normais e as manifestações

patológicas. Por esse motivo, renuncia ao conceito de “autismo primário normal” (Tustin,

1972), aderindo ao termo “auto-sensitivo” (Tustin, 1993) para o primeiro estágio de

40

desenvolvimento. O termo autismo fica reservado apenas para o desenvolvimento

patológico:

“Comecei a perceber que, ao considerar esse estado perpetuado de unicidade com a mãe como uma situação normal na primeira infância, havíamos estado extrapolando a situação patológica e vendo-a erradamente como normal” (Tustin, [1993]1995:72)

Além disso, a idéia de regressão a um estágio infantil anterior é definitivamente

abandonada por Tustin (1993), como podemos depreender de seu artigo “A perpetuação de

um erro” (1993): “Não há um estágio infantil normal de autismo primitivo para o qual o

autismo infantil poderia ser uma regressão” (Tustin, [1993]1995:63).

Tustin (1993) ressalta que a noção de regressão deu uma direção equivocada ao

tratamento, onde era permitido à criança comportar-se como bebê. A partir de sua experiência

com John, afirma:

“Na situação clínica John mostrou claramente que momentos de sua infância haviam sido evocados (...). No entanto, ele não estava se comportando como um bebê ou regredindo para a primeira infância. Ele era um menino de cinco anos, representando o trauma que havia experimentado quando bebê” (Tustin, [1993]1995:74)

O que mudou na teoria? Inicialmente, o autismo era considerado uma reação a uma

separação prematura, pois o sujeito não estaria preparado para tal processo. Em um segundo

momento, o autismo passa a ser considerado como uma aberração do desenvolvimento, que

tomou o caminho errado desde muito cedo. Nas crianças, o desenvolvimento anormal teria

início com uma perpetuação da unidade dual entre mãe e bebê. Para Tustin (1993), nesse

segundo momento teórico, o autismo seria uma reação protetora para lidar com o stress

associado à ruptura do estado anormal de fusão com a mãe. Tratar-se-ia de uma reação à

conscientização da criança da separação de seu corpo, do corpo da mãe, com quem ela

previamente se sentiu anormalmente fundida, não-diferenciada.

Aliada a esse aspecto, a idéia de regressão a um estágio de autismo normal é também

abandonada. Essas modificações irão refletir na proposta de tratamento, como afirma Tustin

(1993):

41

“Isso afetará a maneira que respondemos e falamos com tais pacientes. Significa que falaremos com eles como se pensássemos que eles podem entender o que estamos dizendo. Já não lhes falaremos com arrogância” (Tustin, [1993]1995:75)

Vimos que Tustin compreende muitas coisas a partir de sua experiência clínica. No

entanto, ela permanece no ponto de vista desenvolvimentista. Até que ponto a vertente

desenvolvimentista condiz com a clínica e as indicações que esta oferece? É interessante

observar que os próprios analistas dessa vertente reconhecem a fragilidade de suas teorias

diante da clínica com autistas, como fez Mahler (1959), por exemplo, com o caso Stanley, ao

perceber que suas tentativas pedagógicas não tinham efeitos na direção do tratamento.

Também com Tustin (1993) podemos observar um questionamento das teorias que

segue em função das indicações que a clínica lhe trás:

“(...) me desviei do meu esquema de entendimento kleiniano, porque este esquema não levava em conta esse fenômeno do buraco negro com o qual havia me deparado. Mas Winnicott o levava e Margaret Mahler também. Tendi, então, a segui-los, pois os dois viam o autismo como uma regressão. Mas era um erro!” (Tustin, [1993] 1995:89)

Podemos perceber que a vertente desenvolvimentista assume a constituição do sujeito

como um acesso progressivo a estágios do desenvolvimento, cujo primeiro estágio é marcado

por uma relação dual, onde se supõe uma reciprocidade entre a criança e o bebê – simbiose

social para Mahler; paraíso perdido ou idade dourada para Bettelheim; útero pós-natal para

Tustin.

1.2.4 Algumas reflexões críticas sobre a vertente desenvolvimentista

Nesta seção faremos uma reflexão crítica sobre a vertente desenvolvimentista a partir

dos textos de Freud. O primeiro ponto a ser questionado refere-se à relação recíproca entre

mãe e bebê no primeiro estágio do desenvolvimento. O segundo refere-se à equivalência que a

vertente desenvolvimentista faz entre eu, sujeito e consciência.

42

1.4.1 Das Ding e a impossibilidade de uma relação recíproca entre mãe e bebê

Se é verdade que no primeiro estágio haveria uma relação dual, a partir da qual o

sujeito seria plenamente satisfeito, como afirmam os autores da vertente desenvolvimentista,

então, o que faria o sujeito sair deste estágio? Se há de fato um objeto que possa satisfazer o

sujeito, porque ele abriria mão deste objeto?

A idéia de relação dual, recíproca entre mãe e bebê é inconcebível na teoria freudiana,

como veremos através da descrição feita por Freud ([1895]1950) sobre o “Complexo do

próximo” (Nebenmensch).

No texto “Projeto para uma psicologia científica”, Freud ([1895]1950) afirma que é a

partir do semelhante que o sujeito aprende a conhecer, sendo que este objeto semelhante “foi,

ao mesmo tempo, o primeiro objeto satisfatório [do sujeito], seu primeiro objeto hostil e

também sua única força auxiliar” (Freud, [1895] [1950]1972:438).

Freud ([1895]1950) revela, ainda, que esta experiência com o semelhante, que nomeia

complexo do próximo, é marcada por um núcleo inapreensível:

“Desse modo, o complexo do ser humano semelhante se divide em duas partes, das quais uma dá impressão de ser uma estrutura que persiste coerente como uma coisa, enquanto que a outra pode ser compreendida por meio da atividade da memória - isto é, pode ser reduzida a uma informação sobre o próprio corpo [do sujeito]” (Freud, [1895][1950]1979:438)

Como podemos constatar, o complexo do próximo é divido em duas partes. Uma

corresponde a tudo aquilo que é qualidade do objeto, que pode ser formulado como atributo,

ou seja, pode ser representado, inscrito no sistema de memória. A outra parte é inassimilável e

fica fora de todas as associações da rede de representação - esta parte corresponde àquilo que

Freud ([1895]19501979:438) denominou como a Coisa, Das Ding.

Justamente pela presença da parte inassimilável – Das Ding –, o Outro se apresenta

para o sujeito como algo ao mesmo tempo íntimo, familiar, mas também estranho,

inapreensível, podendo mesmo ser hostil em um dado momento. Ou seja, o Outro se constitui

não só como semelhante, mas também como pura alteridade.

43

A presença desta parte inassimilável, deste núcleo de obscuridade, impõe um

verdadeiro limite à relação do sujeito com o Outro, impedindo, justamente a reciprocidade.

Vale lembrar que não se trata de um objeto presente que se perdeu, mas da presença de

um vazio, porque o objeto por sua natureza é perdido, como podemos depreender da

afirmação de Lacan (1959-60):

“(...) evidentemente, é claro que o que se trata de encontrar não pode ser reencontrado. É por sua natureza que o objeto é perdido como tal. Jamais ele será reencontrado (...). Reencontramo-lo no máximo como saudade” (Lacan, [1959-60]1988:69)

Vimos que os pós-freudianos – Mahler (1952), Bettelheim (1967), Tustin (1986) –

consideram a constituição do sujeito a partir de uma ótica desenvolvimentista, ou seja, como

um acesso progressivo a estágios do desenvolvimento. Eles trabalham com a suposição da

existência do objeto que, em um primeiro estágio do desenvolvimento, satisfaria o bebê. Neste

caso, a perda do objeto seria concebida gradualmente, em “doses homeopáticas”:

“Na infância normal há oscilações de um fluir à unicidade (flowing-over-at-oneness) a um tornar-se consciente da separação da mãe e do mundo exterior” (Tustin, [1993]1995:72)

E ainda:

“Durante o segundo ano de vida a criança passa gradualmente de um estado quase que completamente vegetativo e simbioticamente dependente da mãe para o de uma separação individual” (Mahler, [1955]1983:7)

No entanto, como vimos em Freud, ao contrário do que defendem esses autores, a

constituição do sujeito ocorre por intermédio da ausência do objeto - Das Ding. Das Ding não

designa a presença de um elemento primeiro que se perdeu; designa o vazio desta presença, a

partir da qual a existência humana se desenrola. Nesse contexto, o objeto perdido (Das Ding)

estabelecerá uma falta. Falta esta que jamais poderá ser suturada, uma vez que o objeto, por

sua natureza, é perdido. Em vista dessa articulação, podemos afirmar que a falta designa a

impossibilidade de haver uma relação recíproca entre o bebê e a mãe.

44

1.2.4.2 “Eu”, sujeito e consciência

Um outro ponto importante que chamou nossa atenção é a forma como a vertente

desenvolvimentista concebe o estatuto do eu. Na verdade, na leitura que fizemos dos autores

desta vertente, nos deparamos com a dificuldade de encontrar uma teoria do eu clara e

definida. Esses autores parecem ter escrito aportes teóricos da psicanálise sem referência a

Freud ou, quando há alguma referência, esta é decorrente de uma leitura incipiente e

equivocada. O eu ora é reduzido ao self, ora ao ego. Nos parece ainda mais grave a

equivalência existente entre “eu” (com suas variações: self e ego), sujeito e consciência. Nessa

direção, a constituição do sujeito é concomitante a um processo de conscientização. Veremos,

então, afirmações dos autores desta vertente que podem confirmar esta idéia.

Bettelheim (1967) coloca que:

“Talvez aqui eu devesse dizer pelo menos o que entendo por identidade, embora não ouse defini-la. Tampouco a teoria psicanalítica ajuda. Quando Freud disse que onde havia id deveria haver ego, sugeriu uma distinção entre ego e eu [self], visto o eu [self] incluir não só o ego como também o id e o superego. Só o ego pode perceber o eu [self] – mas apenas na medida em que id e o superego forem acessíveis ao ego. E isso, mesmo em altos níveis de consciência, não é muito. Sendo assim, também a psicanálise sugere que o homem não pode conhecer a si mesmo, posto que vastas áreas do id e do superego permanecem escondidas do ego. (...) Então, talvez seja suficiente dizer que o eu [self] consiste naquilo que conhecemos ou que podemos fazer. Decerto que a identidade não é um estado, mas um processo de tornar-se. (...) quanto mais conhecermos e contemplarmos, quanto mais agirmos e atuarmos reciprocamente, mais eu [self] seremos” (Bettelheim, [1967]1987:41)5

Seguindo a mesma direção, Malher (1959) alega:

“O ego tem que assumir o papel de adaptação à realidade(...). O recém nascido e o bebê necessitam ultrapassar gradualmente sua tendência a uma regressão vegetativa esplâncnica, (...) para atingir crescente consciência e crescente contato com o ambiente que os cerca. (...) A mudança de uma consciência predominantemente proprioceptiva para uma consciência crescentemente sensorial do mundo externo ocorre através da relação afetiva com a mãe” (Mahler, 1989[1959]:23-24).

No subtítulo ‘Consciência do ‘não-eu’ (not-self)’, do livro Estados autísticos em

crianças, Tustin (1972) argumenta:

5 Colocamos entre colchetes a palavra self porque é assim que está no original em inglês. Bettelheim, B. The Empty Fortress. Canada: Ed Collier-Macmillan, 1972.

45

“gradualmente, a construção auto-sensual da mãe se modifica e o comportamento do bebê se torna mais regulado através das atividades cooperativas constantes com a mãe real, que começa a ser tolerada como sendo separada e diferente de seu corpo. Ele tem que tolerar o fato de que essa mãe ‘não-eu’ (not-self) nem sempre o satisfaz completa e imediatamente” (Tustin, [1972]1984:19)

Como mencionamos no início do capítulo, os pós-freudianos, principalmente aqueles

que imigraram para os Estados Unidos, esqueceram a teoria freudiana e elaboraram outras

mais adequadas à cultura deste país. Eles esqueceram, justamente, uma das principais

descobertas de Freud – o inconsciente. Isso porque, como vimos nas citações acima, fazem

uma equivalência entre eu e consciência, onde a constituição do eu é concomitante a um

processo de conscientização. No entanto, no texto “O Eu e o Isso”, Freud (1923) demonstra a

complexidade do eu, indicando, inclusive, que este não se reduz à consciência:

“Temos encontrado no eu algo que também é inconsciente, que se comporta exatamente como o reprimido, vale dizer, exterioriza efeitos intensos sem tornar-se consciente (...) Discernimos que o Icc não coincide com o reprimido; segue sendo correto que todo reprimido é Icc, mas nem todo Icc é reprimido. Também uma parte do eu, Deus sabe o tão importante essa parte, pode ser Icc, é seguramente Icc” (Freud, [1923]1979:19)

E ainda:

“O eu não está separado tangivelmente do isso: conflui para baixo com o isso” (Freud, [1923]1979:26)

Constatamos, assim, que o que os autores da vertente desenvolvimentista entendem

como ego ou self é diferente da teoria de Freud sobre o eu, cuja complexidade nos impede

abordarmos profundamente nesta tese. Esclarece-se, no entanto, que há, nesta vertente, uma

desconsideração em relação à descoberta freudiana do inconsciente. Vale lembrar que Freud

denominou o lugar do inconsciente como a outra cena, indicando uma exterioridade em

relação ao eu. Em função disso, torna-se difícil manter a equivalência ego/self = consciência,

uma vez que o inconsciente indica justo o que escapa ao saber do ego/self, não sendo por ele

reconhecido.

46

Verificamos que os pós-freudianos defendem a idéia de uma relação dual, recíproca

entre mãe e bebê no primeiro estágio do desenvolvimento. No entanto, vimos a partir de Freud

que esta idéia é inconcebível, posto que esta relação – mãe e bebê – se engendra em um

processo de hiância, de falta. Falta esta que jamais poderá ser suturada, pois o objeto é

perdido. Não se trata, portanto, da presença de um objeto que vai se perdendo gradualmente,

mas de uma presença vazia desde sempre, de uma presença marcada pela ausência do objeto,

impedindo qualquer reciprocidade.

Vimos também que os pós-freudianos reduzem o estatuto do eu ao ego ou self, e, além

disso, fazem uma equivalência entre ego/self e consciência, desconsiderando a descoberta

freudiana do inconsciente.

Nesse sentido, Lacan irá introduzir um corte da leitura que estava sendo feita da obra

de Freud. Lacan (1955) propõe um retorno a Freud, do qual resgata o estatuto do inconsciente,

elaborando a categoria do grande Outro, o lugar do inconsciente. Lacan, a partir da retomada

que fez, considera que a constituição do sujeito ocorre não por uma reciprocidade inicial, a

partir da qual o sujeito tem acesso progressivo a estágios de desenvolvimento, mas por

intermédio de uma falta, o que irá marcar uma verdadeira alteridade na relação do sujeito com

o Outro. O que se encontra na base desta formulação é a função do objeto perdido, que será

elaborado por Lacan (1959-1960) a partir do conceito freudiano de Das Ding.

Quanto ao eu, Lacan (1954-55) promove uma distinção entre o eu (moi) e o eu (je),

distinção fundamental para a direção do tratamento, pois indica onde deve incidir a ação do

analista:

“O sintoma, seja qual for, não se acha propriamente resolvido quando a análise é praticada sem que seja colocado no primeiro plano a questão de saber onde deve incidir a ação do analista, qual é o ponto do sujeito, se posso expressar-me assim, a que ele deve visar” (Lacan, [1954-55]1985:60)

Dessa forma, no Seminário O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, Lacan

(1954-55) indica que o eu, na medida em que está centrado em uma experiência de

consciência, guarda um caráter cativante, que é preciso se desprender para ter acesso à

concepção de sujeito.

47

Neste mesmo Seminário, ele se interroga: “A questão foi colocada, que permanece

aberta, de saber se [eu] é imediatamente apreendido no campo da consciência” (Lacan, [1954-

55]1985:64). A resposta vem em seguida: “Explico-lhes que é na medida em que ele está

enfiado num jogo de símbolos, num mundo simbólico, que o homem é um sujeito

descentrado” (Lacan, [1954-55]1985:66).

Como veremos no próximo capítulo, a constituição do eu (moi) é debitária da gestalt

corporal. E é a partir da visão do outro que a criança antecipa uma representação de seu corpo,

prematura em relação às sensações físicas. Mas, nesta relação, entre o eu e o outro “não há

conhecimento em estado puro” (Lacan, [1954-55]1985:71), o que pode ser comprovado pelo

ciúme e pela rivalidade presentes nesta dialética. Quanto ao eu (je), este é determinado pela

linguagem, mais especificamente, é o que um significante representa para outro significante.

A teoria psicanalítica está estreitamente articulada com a clínica. Esta articulação se

fundamenta em um questionamento permanente da teoria a partir da experiência clínica. Se a

teoria pré-existe à experiência clínica ela é posta à prova a cada caso. Foi assim com Freud

(1893-1895), que a partir do caso Ana O. abandona a hipnose em prol do talking cure, dando

origem à regra fundamental da psicanálise: a associação livre.

Também a clínica com autistas interroga as teorias existentes, como pudemos constatar

através dos casos Stanley, de Mahler (1959), e John, de Tustin (1993). Essas experiências

fizeram as analistas interrogarem suas teorias, tentarem cingir elaborações com a clínica,

contudo, ainda assim, ficou faltando uma conceituação teórica mais precisa.

Como tentamos demonstrar, a abordagem lacaniana trouxe uma nova direção à

psicanálise, possibilitando uma maior compreensão sobre o autismo. Por este motivo, nossas

questões, referentes ao autismo, serão encaminhadas a partir desta teoria.

Como veremos no próximo capítulo, a questão do autismo nos faz refletir sobre a

própria constituição do sujeito. Seguindo as orientações freudianas, refletiremos a constituição

do sujeito a partir da alteridade.

48

2. Reflexões sobre a alteridade e o autismo

Ao abordarmos o autismo pelo viés do fenômeno, o que constatamos é uma série de

características marcadas pela ausência: não falam; não demandam; parecem não possuir

imagem especular, uma vez que não se reconhecem diante do espelho. Diante desta

“presença ausência” de fenômenos, nos interrogamos se no autismo se trata de um sujeito

inconstituído, pela ausência de elementos essenciais na constituição do sujeito, ou se trata-

se de uma resposta às vicissitudes ocorridas por estes elementos.

O termo sujeito inconstituído surge a partir do comentário de Lacan (1953-54) sobre

Dick, caso relatado por Melanie Klein (1930) no artigo “A importância da formação de

símbolos no desenvolvimento do ego”. Destacamos algumas características assinaladas pela

autora sobre o caso:

“um menino de quatro anos de idade que, levando em conta a pobreza de seu vocabulário e de suas realizações intelectuais, estava no mesmo nível de uma criança de 15 ou 18 meses (...) não demonstrava muitos afetos e era indiferente à presença ou ausência da mãe ou da babá. Desde o início, ele raramente exibia algum tipo de ansiedade e quando isso ocorria, era numa quantidade excepcionalmente baixa. Não possuía quase nenhum interesse (...) não brincava e não tinha nenhum contato com seu ambiente (...) limitava-se a juntar alguns sons de forma desconcatenada e repetia constantemente determinados ruídos. Quando falava, geralmente empregava seu paupérrimo vocabulário de forma incorreta. Não se tratava apenas de uma incapacidade de se fazer entender: na verdade, não tinha a menor vontade de fazer isso” (Klein, [1930]1996:253)

Quanto ao diagnóstico de Dick, Lacan (1953-54) não faz nenhuma afirmação e

Melanie Klein (1930) apresenta algumas ressalvas. A princípio, atribui à criança o

diagnóstico de esquizofrenia, mas ressalta que a doença do menino:

“difere da esquizofrenia típica da infância, uma vez que nesse caso o problema era uma inibição do desenvolvimento, enquanto na maioria das vezes [na esquizofrenia] há uma regressão depois de determinado estágio do desenvolvimento ter sido atingido com sucesso” (Klein, [1930]1996:263)

Poderíamos pensar que Melanie Klein (1930) atribui a Dick o diagnóstico de

esquizofrenia porque, naquela época, o autismo, enquanto entidade clínica, ainda não

49

existia. A noção de um “autismo infantil precoce”, com particularidades próprias, surge em

1943 com a descrição de Leo Kanner, portanto, 13 anos depois do artigo de Melanie Klein

(1930).

No entanto, constatamos que o autismo sempre esteve atrelado à esquizofrenia, seja

em uma tentativa de aproximá-los, seja de distingui-los. O termo autismo é introduzido por

Bleuler, em 1911, justamente para designar uma característica da esquizofrenia: perda de

contato com a realidade (Bleuler, 1911). Leo Kanner (1943) distingue o autismo da

esquizofrenia, na medida em que esta tem como característica um retraimento da

participação no mundo a partir de uma relação inicial presente, enquanto que naquele o

retraimento é observado desde o início. Temos, então, que a ênfase dada por Leo Kanner

(1943) na nomeação da síndrome está sobre a palavra precoce.

Do ponto de vista da psicanálise lacaniana, a relação entre autismo e esquizofrenia

apresenta divergência entre os analistas. Rosine e Robert Lefort (1980), no livro

Nascimento do Outro, fazem o relato de um caso - Marie Françoise - a partir do qual revelam

que, no autismo, trata-se da falência da estrutura. Ou seja, não haveria uma estrutura. Trata-se

de uma “anti-estrutura” (Lefort e Lefort, [1980]1990:286). Os autores deixam de empregar o

termo “anti-estrutura” por considerá-lo “absoluto demais” (Lefort e Lefort, [1994]1995:146),

mas continuam diferenciando autismo de psicose. Em um livro mais recente, La Distinction de

L’Autisme, o casal Lefort (2003) defende a idéia de uma “estrutura autística” (Lefort e Lefort,

2003:8), uma quarta estrutura entre as já conhecidas: neurose, psicose, perversão.

Pierre Bruno (1991) considera o autismo dentro da estrutura psicótica,

aproximando-o da esquizofrenia. O que diferenciaria ambos seria o momento de

desencadeamento da psicose: “o autismo, particularmente aquilo que se chama autismo

infantil precoce, poder-se-ia traduzir por esquizofrenia precocemente desencadeada”

(Bruno, 1991:26).

Podemos observar, pelas argumentações acima, a polêmica que gira em torno do

autismo. Como vimos, há autores que o consideram uma quarta estrutura, como Rosine e

Robert Lefort (2003), e há aqueles, como Pierre Bruno (1991), que o consideram uma variação

no campo da psicose.

50

Em relação à paranóia e à esquizofrenia, Lacan (1954-55) não deixa dúvidas quanto

à distinção entre esses tipos clínicos: “o que quer dizer paranóia? O que quer dizer

esquizofrenia? A paranóia, no que difere da esquizofrenia, está sempre em relação com a

alienação imaginária do eu” (Lacan, [1954-55]1985:311). Contudo, no que tange o autismo

e a esquizofrenia, as coisas não são tão claras.

Há uma importante indicação de Lacan (1975) sobre o tema na “Conferência em

Genebra sobre o sintoma”, onde afirma que: “Se trata de saber porque há algo no autista ou

no chamado esquizofrênico, que se congela” (Lacan, [1975]1993:134). Nesta afirmação, o

autor parece aproximar autismo e esquizofrenia.

Parece que a proposta de Rosine e Robert Lefort, sobre uma quarta estrutura para o

autismo, é uma resposta ao comentário de Lacan (1953-54) sobre Dick como sujeito

inconstituído. E, talvez, a hipótese de Pierre Bruno sobre ser o autismo uma esquizofrenia

precocemente desencadeada seja uma resposta à afirmação de Lacan na Conferência em

Genebra, onde aproxima autismo e esquizofrenia, como demonstramos anteriormente.

Como poderíamos hoje desdobrar a questão do autismo?

Diante dessas interrogações concluímos ser necessário refletir sobre como o sujeito

se constitui.

Minha hipótese é: para identificar o lugar do sujeito, este necessita passar pela

alteridade de si mesmo. Para trabalharmos com esta hipótese, abordaremos a questão da

alteridade a partir dos três “a” – o pequeno autre; o grande Autre; e o objeto a –

articulando, assim, os três registros: Real, Simbólico e Imaginário. Em um segundo

momento, refletiremos a relação do autismo com a alteridade.

O pequeno a é o outro a partir do qual o eu poderá se constituir. O grande A é a

referência significante, é o S2 para o qual o S1 representa o sujeito. O objeto a é uma

alteridade referida a um estranho mais íntimo de Freud.

Vamos começar abordando o pequeno a.

51

2.1 Imaginário: o outro e a formação do eu.

Em “Introdução ao narcisismo”, Freud (1914) conclui que o narcisismo secundário

surge na medida em que a libido é desinvestida do objeto e se reporta ao ego. Ainda no

mesmo texto, o autor afirma que o ego “não pode existir no indivíduo desde o começo; o

ego tem de ser desenvolvido” (Freud, [1914]1974:93).

Percebe-se, então, que o eu não é um ser originalmente fechado sobre si mesmo,

devendo abrir-se, pouco a pouco, ao mundo exterior. Em outras palavras, o eu não se

constitui através de sua exteriorização, de um movimento do interior para o exterior.

Seguindo Freud, Lacan (1953-54) elabora o estádio do espelho para abordar a

constituição do eu:

“Os que estão um pouco habituados ao que eu trouxe verão que essa idéia confirma a utilidade da minha concepção do estádio do espelho. A Urbild, que é uma unidade comparável ao eu, constitui-se num momento determinado da história do sujeito, a partir do qual o eu começa a assumir suas funções” (Lacan, [1953-54]1979:136-137)

O estádio do espelho vem marcar o momento em que a criança ainda prematura

motoramente acede a uma sensação unificada do próprio corpo. Trata-se de um domínio

imaginário de seu corpo, prematuro em relação ao domínio motor, o que nos explica a

defasagem temporal entre o visual e as sensações físicas da criança.

A imagem especular que antecipa a maturação física da criança é dada como uma

Gestalt, e se apresenta em uma certa “exterioridade em que decerto essa forma é mais

constituinte do que constituída” (Lacan, [1949]1998:98). Por isso mesmo esta imagem é

também um outro, ou melhor, um outro-ideal. O que Freud descreve como eu-ideal é

encarnado pelo outro.

A constituição do eu é debitária da gestalt corporal. É através da visão da imagem

do outro que a criança antecipa uma representação de seu corpo, distinta das sensações

internas de sua motricidade. Dessa forma, o corpo do outro, enquanto visto em sua gestalt,

está na origem da sensação unificada dela. Então, podemos dizer que o eu se constitui em

relação ao outro. Ele é seu correlato.

52

É importante lembrar que o eu (moi) se desdobra na dimensão imaginária, enquanto

o sujeito (Je) é o que um “significante representa para outro significante”, portanto, ele é

determinado pela linguagem e, nesse sentido, refere-se à dimensão simbólica. Em outros

termos, podemos dizer que enquanto o eu é correlato do pequeno outro, o sujeito é o

correlato do grande Outro.

A relação entre o eu e o outro é patente em um comportamento particular da criança,

que Lacan (1948) denominou “transitivismo” (Lacan, [1948]1998:116): a criança que bate

diz ter sido batida. Reconhece-se aqui a instância do imaginário, “plano do espelho, o

mundo simétrico do ego-ais e dos outros homogêneos” (Lacan, [1954-55]1985:307).

2.1.1 O pequeno outro e a alteridade

Mas não só de semelhança se caracteriza a relação entre o eu e o outro. Há, de

acordo com Lacan, uma “alteridade primitiva” (Lacan, [1955-56]1985:50) nesta relação,

porque o eu não pode igualar-se ao outro, algo lhe escapa. Exatamente por esse motivo, este

outro é também objeto de rivalidade e concorrência, a partir do qual se instaura o

conhecimento paranóico. Esse outro é experimentado e percebido como um intruso que

invade e rivaliza com o eu pelo mesmo lugar.

Essa é a fonte em que se alimentará a agressividade constitutiva da formação, ao

mesmo tempo, do eu e do laço social. Mais especificamente, a agressividade surge da

revelação que o eu é o outro. A experiência inicial da semelhança entre eu e o outro implica

também a descoberta da alteridade. O sujeito busca igualar-se à sua imagem especular,

apagando as diferenças. Mas isso é impossível. E é a impossibilidade de coincidir com a

imagem especular que desencadeia contra essa mesma imagem a agressividade do sujeito,

decepcionado por não poder alienar-se nela para valer. Essa idéia nos leva ao mito de

Narciso, que vem a submergir em sua imagem refletida no lago, na expectativa de destrui-

la, penetrando-a, ou deixando que só ela subsista, fazendo desaparecer aquele que deveria

igualá-la. Disto surge a idéia de exclusão recíproca: ou um ou o outro, o que é dado a um é

retirado do outro, e vice-versa.

53

Este ponto é importante porque nos leva à psicose: “A tendência agressiva se revela

fundamental numa certa série de estados significativos da personalidade, que são as

psicoses paranóides e paranóicas” (Lacan, [1948]1998:113). O exemplo paradigmático é

relatado por Lacan (1932) em sua tese de medicina, Da psicose paranóica em suas relações

com a personalidade, onde aborda o caso Aimée (Marguerite Anzieu). O caso ilustra

esplendidamente a relação do sujeito com o outro, indicando o quanto esta relação é

mortífera.

Ao escutar a história da paciente, Lacan (1932) fica surpreso com o fato de Aimée

não reagir diante da intrusão de sua irmã, que, no caso, está no lugar do outro.

A irmã mais velha vai morar com Aimée oito meses após seu casamento e domina a

direção prática da vida doméstica, assumindo inclusive o papel de mãe para o filho dela.

Lacan (1932) reconhece nesse acontecimento singular da história do sujeito o tema que

sistematizou o delírio.

“Devemos reconhecer aí a confissão do que é tão rigorosamente negado, a saber, no caso presente, da queixa que Aimée imputa à sua irmã por ter raptado seu filho, queixa em que é surpreendente reconhecer o tema que sistematizou o delírio” (Lacan, [1932]1987:232)

Não podendo dirigir sua agressividade à irmã que lhe rouba o filho e o marido,

Aimée direciona suas queixas para outras mulheres. Ela substitui a irmã por outros objetos,

mais difíceis de atingir:

“Não há dúvida de que a estrutura psicastênica da personalidade de Aimée desempenha seu papel nessa escolha desviada de seu ódio. Quando, pela primeira vez, Aimée passa a uma reação de combate (a uma reação conforme com a descrição aceita da constituição paranóica), ela só alcança, com efeito, por um viés; substitui o objeto que se oferece diretamente a seu ódio por um outro objeto, que provocou nela reações análogas pela humilhação sofrida e pelo caráter secreto do conflito, mas que tem a vantagem de escapar ao alcance de seus golpes.” (Lacan, [1932]1987:233)

Em seu delírio, Aimée se convence de estar sendo vítima de uma tentativa de

perseguição por parte de Hughette Duflos (a senhora Z), uma célebre atriz do teatro

parisiense dos anos 30. O caso ficou conhecido porque Aimée, a partir de seu delírio, tenta

54

assassinar com uma facada a atriz. O delírio, então, se esvanece com a realização do ato

(tentativa de assassinato).

Vimos que o eu se constitui a partir do outro, que é, ao mesmo tempo, semelhante e

estranho. A alteridade do outro se impõe ao sujeito e essa é a fonte de toda a agressividade

que se revela fundamental na paranóia, como demonstrou Lacan (1932) no caso acima

relatado.

É interessante observar que Lacan, em textos da década de 40, utiliza o termo

Kakon para expressar justamente a alteridade do outro. Kakon é uma palavra grega que

significa: mal, maligno6.

Como mencionamos anteriormente a agressividade surge pela falta de adequação do

outro, “ela [a agressividade] determina com isso um tipo de objeto que se torna

criminogênico na suspensão da dialética do eu” (Lacan, [1950]1998:143). No texto

“Funções da psicanálise em criminologia”, Lacan (1950) faz uma articulação da estrutura

desse objeto com o delírio e sua forma extrema de homicídio paranóico no caso Aimée,

como podemos depreender da citação que se segue:

“Foi da estrutura desse objeto que um de nós tentou mostrar o papel funcional e a correlação com o delírio em duas formas extremas de homicídio paranóico, o caso ‘Aimée’ e o das irmãs Papin” (Lacan, [1950]1998:143)

Em “A agressividade em psicanálise”, Lacan (1948) revela o quanto Kakon, como

aquele que encarna a alteridade, figura como objeto persecutório no caso da paranóia:

“sem falar do Kakon obscuro a que o paranóide refere sua discordância de qualquer contato vital, [esses objetos] vão-se escalonando, desde a motivação do veneno, retirada do registro de um organicismo muito primitivo, até a motivação mágica do malefício, telepática, da influência, lesiva, da intrusão física, abusiva, do desvio da intenção, espoliadora, do roubo do segredo, profanatória, da violação da intimidade, jurídica, do preconceito, persecutória, da espionagem e da intimidação, prestigiosa, da difamação e do ataque à honra, reivindicatória, do prejuízo e da exploração” (Lacan, [1948]1998:113)

6 Diccionario Griego-Espanol. Publicado bajo la dirección de Florencio I. Sebastián Yarza. Editorial Ramón Sopena: Barcelona, 1964.

55

Em outro texto, “Formulações sobre a causalidade psíquica”, Lacan (1946), se

opondo a Henri Ey, posto que este reduz o ato delirante a um efeito de falta de controle,

reconhece no ato criminoso do psicótico – no caso o homicídio – “o kakon de seu próprio

ser que o alienado procura atingir no objeto que ele fere” (Lacan, [1946]1998:176).

Assim, podemos dizer que Kakon encarna a alteridade, na relação do eu e o outro. É

importante assinalar o quanto esse objeto, na psicose, é reconhecido como perseguidor, a

ponto de, em alguns casos, o sujeito chegar ao ato homicida. No caso de Aimée, o objeto

foi personificado pela atriz Hughete Duflos, que ela tenta assassinar.

Em relação ao autismo, há um fenômeno que nos chama a atenção: as crianças, ao

se confrontarem com as imagens refletidas no espelho, parecem não se reconhecerem. Em

nossa experiência clínica, fomos surpreendidas por uma criança que, ao ver sua imagem

refletida, puxou o espelho da parede para verificar se havia alguém atrás dele que

justificasse aquela imagem. Estaria esse fenômeno indicando a ausência da constituição do

eu, uma vez que esta é debitária da gestalt corporal?

A mesma indiferença também pode ser observada em relação ao outro, pois são

crianças que se comportam como se o outro não existisse. Estaria essa indiferença

apontando a ausência da relação com o outro? Ou seria uma forma de se defender da

alteridade? Se considerarmos que, na paranóia, a alteridade do outro é fonte da

agressividade, podendo levar a uma passagem ao ato (tentativa de assassinato), como em

Aimée, no autismo o que se apresenta é uma certa indiferença em relação a essa alteridade.

Vamos refletir sobre essas questões a partir dos comentários de Melanie Klein (1930) e

Lacan (1953-54) sobre o caso Dick.

2.1.2 Reflexões sobre o autismo

Melanie Klein (1930) argumenta que a problemática de Dick gira em torno de uma

inibição no desenvolvimento do ego: “o ego parou de desenvolver a vida de fantasia e de

estabelecer uma relação com a realidade” (Klein, [1930]1996:255).

Para a autora, haveria um estágio inicial do desenvolvimento, o estágio oral de

sugar, que é substituído pelo estágio sádico-oral. Nesse sentido, o prazer do bebê em sugar

56

é substituído pelo prazer em morder. Melanie Klein (1933) refere-se a este último estágio

também como fase canibalesca, associada a uma grande quantidade de fantasias canibais.

Estas fantasias não dizem respeito apenas “à gratificação do desejo primitivo de se

alimentar. Elas também servem para satisfazer os impulsos destrutivos da criança” (Klein,

[1933]1996:291).

As teorias sexuais da criança, segundo Melanie Klein (1933), se “desenvolvem

muito mais cedo, numa época em que os impulsos pré-genitais ainda determinam o quadro

geral” (Klein, [1933]1996:291). Partindo dessas teorias, a criança imagina que a mãe

incorpora o pênis do pai pela boca durante a cópula, de modo que seu corpo ficaria repleto

de pênis e bebês. A criança, devido às suas fantasias canibais, deseja comer e destruir todos

esses objetos (pênis e bebê).

A partir de mecanismos de projeção, o objeto do ataque se tornaria uma fonte de

perigo porque o sujeito teme sofrer dele ataques semelhantes como retaliação. A ansiedade

teria origem no momento em que a criança teme um castigo correspondente à sua ofensa. É

nesse momento também que se constituiria o superego, “pela introjeção do objeto, que se

transforma então em alguém de quem se deve esperar um castigo (...) o superego se

transforma em algo que morde, corta e devora” (Klein, [1928]1976:254).

A ansiedade, desencadeada pela relação da criança com seu primeiro objeto

libidinal, promoveria o “mecanismo da identificação” (Klein, [1930]1996:252), como

podemos depreender da citação que se segue:

“Essa ansiedade contribui para que a criança iguale os órgãos em questão (pênis, vagina, seio) com outras coisas; como resultado, estes também se tornam objetos de ansiedades e ela se vê obrigada a estabelecer constantemente novas equiparações, que formam a base do simbolismo e de seu interesse nos novos objetos” (Klein, [1930]1996:252)

Melanie Klein (1930) alega que o ego precisa possuir capacidade para suportar uma

certa quantidade de ansiedade, haja vista que esta permitiria o sujeito a se dirigir a outros

objetos, experiência necessária para a formação de símbolos.

No caso de Dick, “haveria uma total incapacidade do ego para suportar ansiedade,

de ordem aparentemente constitucional” (Klein, [1930]1996:255); as defesas prematuras e

57

excessivas do ego contra a ansiedade dificultariam o desenvolvimento de fantasias e a

relação com a realidade.

No Seminário, livro 1. Os escritos técnicos de Freud, Lacan (1953-54), ao comentar

o texto de Melanie Klein (1930) – “A importância da formação de símbolos no

desenvolvimento do ego” –, nos adverte que:

Esse texto é precioso porque é de uma terapeuta, de uma mulher de experiência. Ela sente as coisas, ela as exprime mal, não se pode culpá-la por isso. A teoria do ego é aqui incompleta, talvez porque ela não esteja decidida a dá-la...” (Lacan, [1953-54]1979:84)

Assim, podemos pensar que, embora a autora se expresse mal, é possível que haja

em seu texto uma indicação sobre o que Freud trabalha em “Psicologia das Massas e

análise do eu”. Neste texto, quando Freud (1921) aborda a primeira identificação, ele a

articula com o pai. Trata-se de uma identificação simbólica com traços do pai.

O que Melanie Klein (1928) aborda sobre a fase canibalesca – onde a criança morde

e devora partes do objeto presentes no interior do corpo da mãe, e, muito precisamente, o

pai está representado sob a forma de seu pênis – pode ser encontrada em Freud (1921),

quando este fala sobre o canibal que devora traços do inimigo que admira. Ainda no texto

acima citado, mais adiante, ao explicar o luto e a melancolia, o autor substitui a noção de

canibalismo pela introjeção, por identificação: o objeto perdido ou renunciado é então

introjetado no eu, moldando-o. Assim, Freud (1921) afirma:

“Uma coisa notável sobre essa identificação é sua ampla escala; ela remolda o eu em um de seus mais importantes aspectos, em seu caráter sexual, segundo o modelo do que até então constituíra o objeto” (Freud, [1921]1976:137)

Com isto poderíamos dizer que os leitores de Melanie Klein não puderam teorizar o

que ela não quis dar, ou não disse claramente.

A partir da leitura que Lacan faz da obra de Freud esclarece-se que, na constituição

do eu há simbólico e imaginário.

Vimos que o eu se constitui a partir da relação imaginária com o outro. Entretanto,

Lacan (1949) ressalta que esta relação se constitui a partir de “uma matriz simbólica em

que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da

58

identificação com o outro” (Lacan, [1949]1998:97). Essa matriz simbólica provoca no

sujeito uma experiência de inadaptação em relação à sua imagem, diferentemente do animal

cuja experiência se esgota no controle da inanidade da imagem.

Em 1953, no Seminário, livro I. Os escritos técnicos de Freud, Lacan (1953-54)

segue a direção daquilo que já havia anunciado, em 1949, sobre a “matriz simbólica” na

formação do eu. O autor estabelece:

“(...) a regulação do imaginário depende de algo que está situado de modo transcendente, (...) o transcendente no caso não sendo aqui nada mais que a ligação simbólica entre os seres humanos” (Lacan, [1953-54]1979:164)

Prosseguindo com essa idéia, Lacan (1953-54) vai mostrar que a prevalência do

simbólico sobre o imaginário é a mesma do Ideal do eu sobre o eu-ideal:

“É a regulação simbólica que define a posição do sujeito como aquele que vê. É a palavra, a função simbólica que define o maior ou menor grau de perfeição, de completude, de aproximação, do imaginário. A distinção é feita nessa representação entre o Ideal-Ich e o Ich-Ideal, entre o eu-ideal e o ideal do eu. O ideal do eu comanda o jogo de relações de que depende toda a relação a outrem. E dessa relação a outrem depende o caráter mais ou menos satisfatório da estruturação imaginária” (Lacan, [1953-54]1979:165)

2.1.3 O Ideal do eu e a constituição do eu

Como pudemos constatar, o Ideal do eu corresponde à dimensão simbólica. Essa

dimensão simbólica Lacan (1957-58) irá revelar em seminários posteriores, como no

Seminário, livro 5. As formações do inconsciente, que o Ideal do eu se refere a uma

identificação com o pai, como podemos depreender da afirmação que se segue: “É por

intervir como aquele que tem o falo que o pai é internalizado no sujeito como Ideal do eu”

(Lacan, [1957-58]1999:201).

Um exemplo apresentado por Lacan (1960-61) no Seminário, livro 8. A

transferência mostra a importância do Ideal do eu e sua articulação com o eu- ideal. No

exemplo, Lacan (1960-61) alega que “O eu ideal é o filho de boa família ao volante de seu

carrinho esporte” (Lacan, [1960-61]1992:329). Com este carrinho ele está pronto para

59

correr riscos, mostrando que é o mais forte, impressionando os outros e conquistando as

meninas. Mas se ele se vê assim, em seu carrinho esporte, é a partir de um ponto situado na

ordem simbólica, enquanto filhinho de papai. Isso significa dizer que o filhinho de papai ao

volante de seu carrinho estaria englobado no mundo organizado pelo pai. Dessa forma,

podemos dizer que enquanto o Ideal do eu é uma introjeção simbólica, o eu-ideal é a fonte

de uma projeção imaginária.

É importante lembrar que, em “Psicologia das massas e análise do eu”, Freud (1921)

indica que a identificação não se faz propriamente com uma “pessoa” e sim com um único

aspecto desta. A expressão usada por Freud, é que a identificação se faz com um “traço

isolado da pessoa” (Freud, [1921]1976:135) – no original alemão Ein Einziger Zug (um

único traço), serve de base para Lacan elaborar o conceito de traço unário.

Então, o Ideal do eu não é a introjeção da pessoa do pai, mas sim um traço do pai:

“este ponto, grande I, do traço único, este signo do assentimento do Outro” (Lacan, [1960-

61]1992:344).

Vale mencionar, ainda, que o Ideal do eu está articulado à saída do Édipo: “É a

saída do complexo de Édipo. Essa saída é favorável na medida em que a identificação com

o pai é feita nesse terceiro tempo, no qual ele intervém como aquele que tem o falo. Essa

identificação chama-se Ideal do eu” (Lacan, [1957-58]1999:200).

Isso é relevante porque é a partir deste ponto, de identificação com as insígnias do

pai, que o Ideal do eu irá se constituir, que o sujeito poderá sentir-se como desejável e

incluído no mundo simbólico: “É desse lugar [do mundo simbólico] que depende o fato de

que tenha direito ou defesa de se chamar Pedro” (Lacan, [1953-54]1979:95). Retomando a

metáfora do espelho, podemos dizer que o momento mais importante da experiência não é

o júbilo da criança diante de sua imagem refletida no espelho, mas o fato de a criança se

virar para aquele que a segura e que está atrás dela para invocar seu assentimento, ou seja,

ela parece pedir a quem a carrega, e que representa o grande Outro, que ratifique o valor

dessa imagem. O sujeito, nesse caso, é reconhecido pelo Outro a partir da nomeação. É

como se o Outro lhe dissesse: “Tu és Pedro”.

Pensando na articulação entre o Ideal do eu e o eu-ideal, podemos constatar que a

dimensão simbólica tem função mediadora, portanto, é capaz de introduzir identificações

60

pacificantes na violência imaginária. Sem as identificações simbólicas, que constituem o

Ideal do eu, “toda função humana só poderia esgotar-se na aspiração indefinida da

destruição do outro como tal” (Lacan, [1953-54]1979:198).

Vamos retomar a questão do autismo. Vimos que, para Melanie Klein (1930), a

problemática de Dick gira em torno de uma inibição no desenvolvimento do ego. Contudo,

Lacan (1953-54) questiona essa posição:

“Por que falar nesse caso de desenvolvimento do ego? O desenvolvimento só ocorre na medida em que o sujeito se integra ao sistema simbólico, aí se exercita, aí se afirma pelo exercício de uma palavra verdadeira” (Lacan, [1953-54]1979:104)

Para Lacan (1953-54), não há, em Dick, constituição do eu, “o ego não aparece”

(Lacan, [1953-54]1979:106) porque a “palavra não chegou a ele. A linguagem não

envolveu o seu sistema imaginário” (Lacan, [1953-54]1979:102).

Parece que, no Seminário livro 1. Os escritos técnicos de Freud, Lacan (1953-54), a

partir do caso Dick, compreende algo na clínica que irá formalizar teoricamente quase dez

anos depois no Seminári, livro 10. A angústia, de 1962-63. Neste, introduz a questão do

fenômeno da despersonalização. Segundo ele, o fenômeno está articulado ao “não-

reconhecimento da imagem especular”, como podemos inferir da argumentação:

“Todos sabem como esse fenômeno é sensível na clínica, e com que freqüência é ao não se encontrar no espelho, ou em qualquer coisa análoga, que o sujeito começa a ser tomado pela vacilação despersonalizante” (Lacan, [1962-63]2005:134)

Lacan (1962-63) afirma também que “se o que é visto no espelho é angustiante, é

por não ser passível de ser proposto ao reconhecimento do Outro” (Lacan, [1962-

63]2005:134). Dessa forma, podemos concluir que o fenômeno da despersonalização, ou

seja, o não-reconhecimento da imagem especular é determinado pela ausência do

reconhecimento do Outro. O Outro, no caso, está ausente como testemunho, como o

terceiro que vem com um sorriso, por exemplo, ratificar a imagem especular da criança.

A partir das indicações de Lacan, nossa hipótese é que no autismo o Ideal do eu não

se constitui. A palavra de nomeação, advinda do Outro, que poderia oferecer um

reconhecimento, ratificando a imagem do sujeito, falta no autismo, ou seja, a “palavra não

61

chega a ele” (Lacan, [1953-54]1979:102). Não há dimensão simbólica que venha regular e

estruturar o imaginário. Em outros termos, podemos dizer que a função de reconhecimento

pela instauração do Ideal do eu falta.

Vimos que o eu se constitui a partir do outro, que é ao mesmo tempo semelhante e

alter-ego, ou seja, alteridade. Justamente por não ser apenas semelhança, a relação entre o

eu e o outro é fonte de agressividade humana. Função essencial exerce o Ideal do eu que

vem regular a estruturação do eu, mediatizando a relação entre o eu e o outro. No entanto,

no autismo, o Ideal do eu não se constitui, porque o reconhecimento do Outro está ausente.

Na falta do Ideal do eu, que regula e estrutura o imaginário, sendo por isso fundamental na

constituição do eu, teríamos um dano imaginário. Poderíamos dizer uma não “egoização”

(Lacan, [1962-63]2005:134).

Nos interrogamos anteriormente a respeito da total indiferença do autismo em

relação à sua imagem especular e ao outro. Fica a questão se esta indiferença não estaria

articulada com o fenômeno da despersonalização, ou seja, o não-reconhecimento da

imagem especular, na medida em que não há egoização, sabendo-se que tal egoização só se

faz via imaginário. Diante desse dano imaginário ficamos nos indagando qual o recurso do

sujeito em relação a alteridade. Seria a indiferença em relação ao outro um recurso do

sujeito para anular a alteridade?

Abordaremos, a seguir, o grande Outro. Vale lembrar, como afirma Lacan (1964),

que “O Outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai

poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer”

(Lacan, [1964]1995:193-4).

2.2 Simbólico: o grande Outro e a alteridade

O termo grande Outro surgiu pela primeira vez no Seminário, livro 2. O eu na teoria

de Freud e na técnica da psicanálise, onde Lacan (1954-55) afirma:

“Há dois outros que se devem distinguir, pelo menos dois – um outro com A maiúsculo e um outro com a minúsculo, que é o eu. O Outro, é dele que se trata na função da fala” (Lacan, [1954-55]1985:297)

62

A elaboração desses dois outros – A e a – corresponde a um esforço de Lacan em

distinguir o que pertence ao domínio imaginário e o que pertence ao domínio simbólico.

Seguindo essa direção, o autor elabora o esquema L:

No esquema, Lacan nomeou S de sujeito. Mas o interessante é que o próprio sujeito

não se vê em S e sim em a, que é o eu: “Ele [o sujeito] se vê em a, e é por isto que ele tem

um eu” (Lacan, [1954-55]1985:307). Por sua vez, o eu, como já mencionamos, se constitui

a partir do outro (a’). Dessa forma, o eixo a’-a corresponde ao plano imaginário.

O plano simbólico corresponde ao eixo entre S e A. Nele, o A refere-se ao grande

Outro. Essa elaboração lacaniana tem referência na denominação de Freud sobre a “Outra

Cena” (ein anderer Schauplatz): “Aliás, se nos restasse alguma dúvida, Freud denominou o

lugar do inconsciente por um termo que impressionara em Fechner (...) uma outra cena”

(Lacan, [1955-56]1998:555). Assim, o Outro é o lugar do inconsciente, “presente para

todos e vedado para cada um” (Lacan, [1955-56]1998:554). O grande Outro, como Outro

para o sujeito, refere-se a um lugar diferente da vida ideacional de vigília. Esse grande

Outro estabelece para o sujeito uma verdadeira alteridade, pois sua presença “já o situa, a

ele mesmo, numa posição de mediação em relação a meu próprio desdobramento de mim

comigo mesmo como também com o semelhante” (Lacan, [1957]1998:529).

Ainda no Seminário, livro 2. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, o

autor argumenta que “A realização simbólica do sujeito, que é sempre criação simbólica, é

a relação que vai de A a S. Ela é subjacente, inconsciente, essencial a qualquer situação

subjetiva” (Lacan, [1954-55]1985:401).

Criticando os analistas que direcionam o tratamento a partir de uma redução a

elementos imaginários, por projetarem no paciente as características do seu eu de analista,

63

como no caso da análise das resistências, Lacan (1954-55) propõe uma direção onde o eixo

A-S, ou seja, o eixo simbólico, deva ser privilegiado:

“(...) o analista pode, por intermédio de determinada interpretação das resistências, através de determinada redução da experiência total da análise aos seus elementos unicamente imaginários, chegar a projetar no paciente as diferentes características do seu eu de analista (...) O que Freud nos ensinou é muito exatamente o oposto. (...) A análise deve visar à passagem de uma fala verdadeira, que junte o sujeito a um outro sujeito (...). É a relação derradeira de um sujeito a um Outro verdadeiro” (Lacan, [1954-55]1985:310)

A análise, então, visa a atingir a fala verdadeira, que é uma fala advinda do Outro

(A). No entanto, a relação entre A e S passará sempre pelo intermédio dos “substratos

imaginários” (Lacan, 1954-55), que são o eu e o outro. A direção do tratamento, nesse caso,

busca um certo apagamento de a, privilegiando a relação A e S: “uma análise só é

concebível na medida em que o a estiver apagado. Uma certa purificação subjetiva deve

efetuar-se na análise” (Lacan, [1954-55]1985:404-405). Nesse sentido, a análise deve visar

a uma “fala verdadeira” (Lacan, 1954-55) entre S e A.

É importante assinalar que, no Seminário,livro 8. A transferência, do ano 1960-61, o

autor marca uma mudança na direção do tratamento. Lacan (1960-61) renuncia à concepção

do Outro como sujeito, aderindo a idéia de lugar, como podemos constatar na citação que

se segue: “(...) esse Outro, tal como lhes ensino aqui a articular, que é simultaneamente

necessidade e necessário como lugar” (Lacan, [1960-61]1992:172). Além disso, a

transferência não será mais o que se instaura cada vez que um sujeito se dirige,

autenticamente, ao Outro, a partir de uma fala verdadeira. A transferência, aqui, será

promovida pelo desejo-do-analista.

Também em relação à “palavra verdadeira” veremos, ao longo da obra lacaniana,

reformulações sobre a idéia. Lacan (1975) dirá, no Seminário R. S. I. que falar de palavra

verdadeira não vale mais do que palavras, ou seja, tratam-se de palavras “com ar de

estouvado” (Lacan, aula de 15 de abril 1975).

Seja como for, a tarefa que ele se atribui, naquele seminário, fica clara: produzir

uma distinção conceitual entre os dois registros, o imaginário e o simbólico, e extrair disso

conseqüências para a técnica.

64

Vimos que, no Seminário, livro 2, Lacan (1954-55) introduz o conceito de grande

Outro, atribuindo a ele o registro simbólico. O Outro é definido como o campo do código,

da palavra, da linguagem. Vale assinalar aqui a relevância do conceito, nesse momento de

sua obra, posto que vem apontar para a verdadeira alteridade, não só na relação do sujeito

com seu semelhante, mas também para o próprio sujeito, na medida em que se trata de um

lugar alhures. Nesse sentido, podemos dizer que o Outro, para o sujeito, subsiste

desconhecido, inconsciente.

Além disso, o registro que vai de S-A é importante porque permite uma mediação,

um ponto de basta entre a oscilação incessante do plano imaginário (a-a’). É esse registro

também que permite identificações mais pacificantes, sem as quais o sujeito ficará

submetido à violência imaginária, podendo, inclusive, como no caso Aimée, passar ao ato.

Seguindo a elaboração de seus dois outros – A e a – no Seminário, livro 3. As

psicoses, Lacan (1955-56) se interroga sobre a fala: “Será que o sujeito fala sim ou não?

(...) O que distingue uma fala de uma gravação de linguagem?” (Lacan, [1955-56]1985:47).

Ele mesmo responde: “Falar é antes de mais nada falar a outros” (Lacan, [1955-

56]1985:47). O interessante é que “falar a outros” implica os dois outros. Um sujeito (S)

que fala a um outro (a) endereça sempre sua mensagem ao Outro (A). Isso equivale a dizer

o quanto este outro a quem ele se endereça é reconhecido como Outro.

2.2.1 O inconsciente é o discurso do Outro

A relação entre os dois outros (a-A) se apresenta nas duas formas de fala – a fala

fundadora e a fala mentirosa:

“O que constitui precisamente o valor fundador dessas falas é que o que é visado na mensagem, como também o que é manifesto no fingimento, é que o outro está aí enquanto Outro absoluto. Absoluto, isto é, que ele é reconhecido, mas que ele não é conhecido. Da mesma forma, o que constitui o fingimento é que vocês não sabem no fim de contas se é um fingimento ou não. É essencialmente essa incógnita na alteridade do Outro que caracteriza a ligação da palavra no nível em que ela é falada ao outro” (Lacan, [1955-56]1985:49)

65

O que é fundamental nas falas – fundadoras e mentirosas – é que elas apontam para

um mais além do outro, mostrando, justamente, a presença do Outro, enquanto verdadeira

alteridade na relação imaginária do sujeito com o outro, seu semelhante. É essa presença

que irá diferenciar o homem do animal, posto que, na ausência do grande Outro, os animais

são incapazes de enganar ou mentir.

Vejamos o caso das abelhas. A abelha transmite às suas companheiras a informação

sobre onde o alimento se situa em relação à colméia através de dois tipos de danças. Estas

danças transmitem, de forma precisa, a distância e a direção do alimento. Isso fica

comprovado pelo fato de que as abelhas que recebem as informações dirigem-se, sem

titubeios, ao lugar indicado.

A questão que Lacan (1953)7 ressalta é que as abelhas são incapazes de transmitir

informações equivocadas, com o intuito de enganar suas companheiras, porque no “código

ou sistema de sinalização” das abelhas há uma correlação fixa entre seus signos e a

realidade que expressam, pois, nelas, não há a dimensão do grande Outro.

Retornando ao esquema L, podemos observar que o plano simbólico atravessa o

plano imaginário. O atravessamento é responsável pela não reciprocidade entre a e a’.

Podemos perceber, então, que, no diálogo entre o sujeito e o outro (a), seu semelhante, há a

interferência do grande Outro, como um terceiro. O Outro, enquanto terceiro, portanto,

impede a reciprocidade entre o sujeito e o outro, causando o mal entendido, os equívocos

que não encontramos nas abelhas. Isso ocorre porque o Outro se constitui como uma

“verdadeira alteridade” (Lacan, 1955-56).

A fala fundadora, como o próprio nome indica, funda as posições dos “dois

sujeitos” (Lacan 1955-56) – o sujeito e o Outro. Vejamos um exemplo: o sujeito que interpela

o Outro dizendo “Você é minha mulher”, na verdade, formula a ele próprio, implicitamente,

“Eu sou seu homem”. Contudo, em primeiro lugar, o sujeito diz “Você é minha mulher”,

instituindo à mulher a posição de ser reconhecida por ele e, só depois, é que o sujeito poderá

ser reconhecido por ela. Assim, é na fala fundadora que se revela que é a partir do Outro que

7 Lacan, J.(1953). “Função e Campo da fala e da linguagem em psicanálise”. In: Lacan. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.298.

66

nos fazemos reconhecer, na estrita medida em que, implicitamente, já o reconhecíamos como

tal:

“O Outro, é aquilo diante do qual vocês se fazem reconhecer. Mas vocês só podem se fazer reconhecer por ele porque ele é em primeiro lugar reconhecido. Ele deve ser reconhecido para que vocês possam fazer-se reconhecer” (Lacan, [1955-56]1985:63)

Esta é uma outra maneira de dizer que o sujeito recebe do Outro sua própria

mensagem de uma forma invertida. É o que ocorre no exemplo “Você é minha mulher”,

que constitui uma mensagem significando, na realidade, o contrário do que articula na fala

presente, “Eu sou seu homem”, revelando assim o reconhecimento implícito do Outro. É

exatamente porque o sujeito considera a mulher a quem ele se dirige alguém que escapa em

parte ao conhecimento que tem dela, é exatamente porque ela é para o sujeito mais que um

semelhante, que o sujeito faz questão de que ela o reconheça precisamente dali onde não a

conhece e, portanto, espera dela uma palavra.

Nesse momento da obra de Lacan (1955-56), o tema do reconhecimento parece ser

privilegiado, a ponto de ser a partir do reconhecimento de um Outro, para além do outro,

nosso semelhante, que o sujeito constitui o Outro e se constitui:

“É no reconhecimento que vocês o [Outro] instituem, e não como um elemento puro e simples da realidade, um pião, um fantoche, mas um absoluto irredutível, da existência do qual como sujeito depende o valor mesmo da palavra na qual vocês se fazem reconhecer” (Lacan, [1955-56]1985:63)

Como vimos até aqui, ao falar, o falante recebe do Outro, em retorno, sua

própria mensagem. Na neurose, esse retorno é encoberto, ou seja, o neurótico, não ouve a

mensagem inconsciente. No Seminário, livro 3. As psicoses, a partir de um caso clínico, Lacan

(1955-56) vai indicar que na psicose o caminho é outro.

Uma paciente lhe relata que um dia cruzou no corredor do prédio com o amante de

sua vizinha, um “homem mal-educado”, que lhe disse um palavrão: porca. No entanto, a

paciente confessa que não era naquele ponto completamente inocente, porque ela mesma

havia dito algumas palavras ao passar por ele: “Eu venho do salsicheiro”.

67

O autor explica que a paciente, apesar de ter se casado, não pode separar-se de sua

mãe e vice-versa. O casamento foi rompido de forma brusca, porque a mãe não o aprovava.

A paciente tinha a convicção de que o ex-marido e a família dele tinham vontade de “picá-

la em pedacinhos”, em função do rompimento brusco.

Se alguém diz que vem do salsicheiro, poderia se concluir que se trata de uma

porca. É nesse ponto que Lacan (1955-56) se interroga: “mas por que ela [a paciente] não

lhe dizia claramente, mas por alusão?” (Lacan, [1955-56]1985:60). Ou seja, por que ela

disse “Eu venho do salsicheiro” e não “Porca”?

Nesse caso, a mensagem lhe vem de um outro que não é o grande Outro. Tudo se

passa como se a mensagem “porca” fosse exatamente a mensagem do sujeito, que lhe

retorna reflexivamente. Trata-se da própria mensagem do sujeito, e não da mensagem

recebida na sua forma invertida:

“Nossa paciente não diz que é um outro qualquer atrás dela que fala, ela recebe dele sua própria fala, mas não invertida, sua própria fala está no outro que é ela mesma, o outro com minúscula, seu reflexo no seu espelho, seu semelhante. Porca é replicado toma lá dá cá e não se sabe mais o que vem primeiro” (Lacan, [1955-56]1985:64)

A paciente se endereça ao outro, de onde recebe sua própria palavra, contudo, sem

se dar conta de que é sua própria palavra que está no outro. Lacan (1955-56) supõe que o

encontro com o vizinho desencadeia uma alucinação auditiva da palavra “porca”, que viria

em resposta ao “venho do salsicheiro”. É a voz do Outro que a paciente escuta de forma

alucinatória, mas ela a projeta no vizinho, que é o outro com minúscula.

Vimos até aqui que Lacan, ao retomar o estatuto do inconsciente, elabora a

categoria de grande Outro, enfatizando o caráter de alteridade em relação ao sujeito. A

alteridade ocorre na medida em que o inconsciente possui lógica própria e pelo fato de

faltar a disposição do sujeito para estabelecer a continuidade de seu discurso consciente. O

sujeito só tem acesso ao inconsciente através de suas formações – ato falho, chiste, sintoma

e sonho – que, quando se manifestam, causam estranheza.

Vimos, ainda, que o sujeito recebe do Outro sua mensagem de forma invertida.

Nesse momento da obra de Lacan (1955-56), o Outro é o lugar da fala, fala fundadora: a

68

fala do Outro funda o inconsciente. Essa idéia o leva a argumentar: “O inconsciente é esse

discurso do Outro em que o sujeito recebe, sob a forma invertida que convém à promessa,

sua própria mensagem esquecida” (Lacan, [1957]1998:440).

Na psicose, no entanto, pela ausência do recalque, o retorno da mensagem do Outro

não é implícito e sim explícito, sem encobrimento, e, por isso, “suscetível de ser

auditivado” (Bastos, 2005:32), como aconteceu no caso da paciente que escuta “Porca”.

E no autismo? O que poderíamos pensar sobre a fala ecolálica, já que se trata de

uma das principais características, na medida em que o fenômeno indica a relação do

sujeito com a estrutura da linguagem? Vale lembrar que a fala ecolálica se fundamenta em

repetições de frases ou palavras tal como são escutadas, sem que haja inversão de

pronomes.

Para pensarmos essa questão, partiremos de um apontamento de Lacan (1953-54)

sobre o caso Dick, onde afirma: “Certo já tem uma certa apreensão dos vocábulos, mas

desses vocábulos não fez a Bejahung – não os assume” (Lacan, [1953-54]1979:86).

Veremos, sucintamente, a função da Bejahung na constituição do sujeito, a fim de

compreendermos as conseqüências da ausência dessa operação no caso do autismo.

2.2.2 A Bejahung, em Freud e Lacan

O termo Bejahung aparece no texto Die Verneinung, de 1925. Freud (1925) inicia

este escrito apontando para o modo como seus pacientes formulavam as idéias durante o

trabalho analítico. Nessa observação, ressalta a particularidade da negação no discurso de

seu paciente:

“O senhor pergunta quem pode ser essa pessoa no sonho. Não é minha mãe. Entendemos isso para: Então, é a mãe dele. Em nossa interpretação, tomamos a liberdade de desprezar a negativa e de escolher apenas o tema geral da associação. É como se o paciente tivesse dito: É verdade que minha mãe me veio à lembrança quando pensei nessa época, porém não estou inclinado a permitir que essa associação entre em consideração” (Freud, [1925]1972:295)

69

Qual é a operação da interpretação freudiana? A princípio, poderíamos pensar que

seria uma estratégia na direção do tratamento, transformando uma frase negativa em

afirmativa. Mas este escrito – Die Verneinung – parece apontar para outra questão além da

supressão da negação na frase: a da constituição do sujeito, posto que aborda a primeira

clivagem do eu, pela distinção de um dentro e um fora.

Seguindo essa direção, Freud (1925) revela o papel fundamental da função do juízo

na constituição do sujeito:

“O estudo do julgamento nos permite, talvez pela primeira vez, uma compreensão interna (insight) da origem de uma função intelectual a partir da ação recíproca dos impulsos instintuais primários. Julgar é uma continuação, por toda a extensão das linhas da conveniência, do processo original através do qual o ego integra coisas a si ou as expele de si, de acordo com o princípio do prazer” (Freud, [1925]1972:299)

A função do juízo seria importante porque desembocaria em um ato conclusivo, que

acarretaria modificações definitivas para o aparelho psíquico. Essa função seria, então, a de

tomar duas decisões: atribuição e existência.

A primeira decisão – a atribuição – designa uma qualidade a uma coisa. Trata-se de

decidir se o objeto é bom ou mau. Esse primeiro momento está articulado a Bejahung.

Nesses termos, a Bejahung é definida como uma primeira afirmação. Esta não é outra coisa

senão afirmar: “gostaria de botar isso para dentro e manter aquilo fora”. A operação é

regulada segundo as leis do Lust e do Unlust, ou seja, do prazer e do desprazer. O que é

bom é introjetado, inscrito no simbólico, porque causa prazer. O que é mau é expulso, posto

para fora, porque causa desprazer. Assim, a operação põe termo à indiferença ao trabalhar o

dentro e o fora. A Bejahung, portanto, marca a possibilidade de uma simbolização.

Entretanto, a Bejahung é uma afirmação que implica uma expulsão. Podemos dizer,

portanto, que é um sim ao simbólico (“gostaria de botar isto para dentro”) que implica um

não (“e manter aquilo para fora”). Logo, trata-se de um processo marcado por uma

negatividade.

Para explicar esse processo, Freud (1925) utiliza o termo Ausstossung. Assim, não

há Bejahung sem Ausstossung. Com a Bejahung há uma marca de inscrição.

Concomitantemente, determina-se uma expulsão radical – Ausstossung – com a produção

70

de algo opaco, a simbolização, que se recorta “para fora”. Nessa experiência, o que é

simbolizado porta a propriedade do bom e o que não o é, torna-se mau.

É importante assinalar que, no texto “Comentário falado sobre a Verneinung de

Freud”, Jean Hyppolite (1954) revela que o termo Ausstossung é melhor traduzido por

expulsão, como podemos depreender da citação abaixo:

“O processo que leva a isso, que se traduziu por rechaço, sem que Freud se sirva aqui do termo Verwerfung, é ainda mais fortemente acentuado, uma vez que ele emprega a Ausstossung, que significa expulsão” (Hippolite, [1954]1998:898).8

Na leitura que Lacan faz da obra de Freud, o que é Ausstossung, expulso para fora

do sujeito, é designado como constituindo o real, ou seja, aquilo que escapa à simbolização:

“(...) é assim que se deve compreender a Einbeziehung ins Ich, a introdução do sujeito, e a Ausstossung aus dem Ich, a expulsão para fora do sujeito. É esta última que constitui o real, na medida em que ele é o domínio do que subsiste fora da simbolização” (Lacan, [1954]1998:390)

Vimos que a primeira decisão da função do juízo – a atribuição – designa uma

qualidade (bom ou mau) ao objeto. A segunda decisão é a da existência e está relacionada à

busca da existência real de uma coisa representada, ou seja, se trata de colocar à prova se

uma coisa existente como representação no inconsciente pode ser, ainda, reencontrada na

percepção. Na segunda decisão, busca-se reencontrar algo que já foi afirmado. É,

justamente, a tendência a reencontrar que funda a orientação do sujeito humano em direção

ao objeto. Mas, nessa busca, o sujeito se depara com a falta, pois não haverá coincidência

entre representação e percepção. A partir desse percurso, está caracterizada a diferença

entre a representação e o objeto apresentado na própria percepção. O objeto é perdido e

jamais será reencontrado, como afirma Lacan (1959-60): “o que se trata de encontrar não

pode ser reencontrado. É por sua natureza que o objeto é perdido como tal jamais ele será

reencontrado” (Lacan, [1959-60]1991:69).

8 Hippolite, J. (1954). “Comentário falado sobre a Verneinung de Freud” in Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

71

Como comentamos, a função do juízo está relacionada com as duas decisões: a da

atribuição e a da existência. Dessa forma, o sujeito “afirma ou desafirma a posse, em uma

coisa, de um atributo particular, e assevera ou discute que uma representação tenha uma

existência na realidade” (Freud, [1925]1972:297). Nesse sentido, a negação é a sucessão do

juízo da atribuição ou da operação Bejahung-Ausstossung. A negação se estabelece sobre a

possibilidade de uma Bejahung, isto é, sobre uma primeira afirmação que, por sua vez,

implica uma Ausstossung, uma expulsão do eu.

Vimos até aqui que a primeira decisão da função do juízo – a atribuição – se

constitui a partir de uma partição – Bejahung/Aussttossung ou dentro/fora. Esta partição se

recobre e se reveste da qualidade. Seguindo as leis do princípio do prazer, torna-se efetiva a

atribuição da qualidade bom/mau, útil/hostil.

Em “Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a ‘Verneinung’ de Freud”,

Lacan (1954) atribui a Bejahung o estatuto de simbolização primordial. A operação

Bejahung/Ausstossung refere-se a um momento mítico:

“de interseção do simbólico e do real, que podemos dizer imediata, na medida em que ela opera sem intermediário imaginário, mas que se mediatiza, ainda que precisamente sob uma forma que se renega, pelo que foi excluído no primeiro tempo da simbolização” (Lacan, [1954]1998:385)

Vimos que a Bejahung, enquanto uma primeira simbolização, implica a

Ausstossung, uma expulsão. Dessa forma, a operação Bejahung/Ausstossung está articulada

à constituição do sujeito. Trata-se de um momento que marca uma primeira diferenciação

entre eu e não-eu por trabalhar o dentro e o fora.

No entanto, uma questão se impõe. Será que, para a constituição do sujeito, basta

que uma coisa seja afirmada para que ela se mantenha dessa forma? O que garante que

aquilo que foi expulso se mantenha fora?

Lacan irá abordar a questão da primeira simbolização em outros momentos de sua

obra. Nos deteremos, nesta tese, em dois pontos: no Seminário, livro 4. A relação de objeto,

onde Lacan (1956-57) aborda a primeira simbolização a partir da noção de frustração;

depois, no Seminário, livro 9. A identificação, onde articula a questão do traço unário como

a primeira marca simbólica.

72

Acreditamos ser pertinente esse percurso teórico para melhor entendermos a

operação referente à primeira simbolização, considerando-se que a problemática do autismo

parece estar circunscrita por essa questão, como pudemos inferir da afirmação de Lacan

(1953-54) sobre o caso Dick: “desses vocábulos não fez a Bejahung (Lacan, [1953-

54]1979:86).

2.2.3 O Fort Da e a primeira simbolização

No Seminário, livro 4. A relação de objeto, Lacan (1956-57) vai abordar a questão

da primeira simbolização, mas, dessa vez, a partir da noção de frustração. A frustração

implica duas vertentes: do agente e do objeto.

O agente, no caso, é a mãe. Lacan (1956-57) afirma que a relação da mãe com seu

filho, a princípio, é uma “relação direta” (Lacan, [1956-57]1995:67), pela via da satisfação

das necessidades. Uma mudança de posição pode ocorrer com o agente através de jogos de

repetição, como, por exemplo, o Fort Da.

Em “Além do Princípio do Prazer”, Freud (1920) relata a observação que fez do

brincar de seu neto: o menininho de um ano e meio se utilizava de um carretel

arremessando-o por sobre a cama, ao mesmo tempo que proferia algo semelhante a um Fort

(ir). Puxava, então, o carretel e saudava o seu aparecimento com um alegre Da (aí).

Desaparecimento e retorno caracterizava a brincadeira. O autor assinala que “se trata de um

jogo e que o único uso que o menino fazia de seus brinquedos era brincar de ir embora”

(Freud, [1920]1979:26).

Freud (1920) interpreta o jogo como uma realização cultural, uma renúncia

pulsional, que faz seu neto ao deixar a mãe ir embora. Compensa-se por essa ausência

encenando ele próprio o desaparecimento e a volta dos objetos que se encontravam a seu

alcance.

Mais que uma atividade lúdica, marcaria um momento lógico na constituição do

sujeito. É um momento onde a relação primordial, fundamentada pelo imediatismo da

satisfação das necessidades, se abre a uma relação mais complexa, mediatizada.

Assujeitado aos horrores de um nascimento e de uma morte incessantemente renovados na

73

alternância materna (presença-ausência), o pequeno jogador se aventuraria no domínio

dessa experiência. A aventura permitiria ao sujeito o acesso ao simbólico, a uma primeira

simbolização.

É nesse momento, segundo Lacan (1956-57), “em função de uma periodicidade em

que podem aparecer furos e carências” (Lacan, [1956-57]1995:67), que faz com que, para a

criança, a mãe, enquanto Outro, vá aparecer pouco a pouco. A criança vai, pois, simbolizar

a mãe, fazer dela uma mãe simbolizada, como podemos depreender na afirmação de Lacan

(1956-57):

“A mãe é outra coisa que não o objeto primitivo. Ela não surge como tal desde o início, mas como frisou Freud, a partir desses primeiros jogos, jogos de domínio sobre um objeto perfeitamente indiferente em si mesmo e sem nenhum valor biológico” (Lacan, [1956-57]1995:67)

A presença-ausência da mãe é, para o sujeito, articulada no registro do apelo. Dessa

forma, “o objeto materno é chamado, propriamente, quando está ausente – e quando está

presente, rejeitado, no mesmo registro do apelo, a saber por uma vocalização” (Lacan,

[1956-57]1995:68).

Todavia, o que pode ocorrer é que a mãe pode não responder ao apelo da criança, ou

melhor, ela só responde de acordo com seu critério. Nesse momento, torna-se potência:

“Correlativamente, produz-se uma inversão da posição do objeto (...) Estes objetos que

eram até então, pura e simplesmente, objetos de satisfação, tornam-se, por parte dessa

potência, objetos de dom” (Lacan, [1956-57]1995:69). Assim, podemos dizer que o sujeito,

que até então constituíra os objetos a partir de apelos, passa a considerá-los objeto de dom

dessa potência, que é a mãe.

É importante assinalar que “o objeto não tem instância, nem entra em função, senão

com relação à falta” (Lacan, [1956-57]1995:67). É a partir do momento em que a mãe não

responde ao apelo da criança, que é possível para o sujeito simbolizar o objeto:

“Ela [a ordem simbólica] nos permite, assim, destacar um elemento distinto da relação de objeto real, que em seguida, vai oferecer precisamente ao sujeito a possibilidade de estabelecer uma relação com o objeto real, com sua escansão, e as marcas, ou traços, que dele restam” (Lacan, [1956-57]1995:68)

74

Constatamos, com base na citação acima, que a simbolização do objeto ocorre pela

inscrição de marcas e traços. A noção do traço será melhor desenvolvida no Seminário,

livro 9. A Identificação. Nesse seminário, Lacan (1961-62) irá articular o traço unário ao

nome próprio e ambos à constituição do sujeito. Parece que o traço unário também está

articulado à primeira simbolização, porque, como veremos adiante, trata-se de uma marca

primeira, a partir da qual o significante poderá se engendrar. Abordaremos, brevemente, a

questão do traço unário a partir do Seminário, livro 9. A identificação.

2.2.4 Traço unário e primeira simbolização

Vimos que Lacan (1955-56), no Seminário, livro 3. As psicoses, ressalta a

importância do reconhecimento do grande Outro para além do pequeno outro na

constituição do sujeito. A ausência do reconhecimento faz o sujeito, como na psicose,

projetar no outro, com minúscula, aquilo que vem do Outro, e isto desemboca na

alucinação auditiva, como no caso da paciente que escuta o vizinho pronunciar “porca”,

sem que o mesmo tenha dito tal palavra. Dessa forma, podemos dizer, que, na psicose, o

retorno da mensagem do Outro não é implícito, mas explícito, sem encobrimento.

Nos interrogamos, então, sobre o autismo, mais precisamente sobre o fenômeno da

ecolalia, que se caracteriza por repetições de palavras ou frases tal como são ouvidas pelo

Outro sem inversão de pronomes. A questão que nos colocamos é de saber se o fenômeno

não estaria apontando para a ausência do Outro.

Seguindo a orientação lacaniana – a saber, que o autismo não faz a Bejahung dos

vocábulos –, abordamos este último conceito. Constatamos que a Bejahung refere-se a uma

primeira simbolização, uma afirmação, que permite uma primeira diferenciação entre o eu e

não-eu, ao trabalhar o dentro e o fora. A partir disso, uma questão se impôs: a de saber o

que manteria o que foi introjetado, dentro, e o que foi expulso, fora.

Vimos, ainda, que Lacan (1956-57) aborda a primeira simbolização a partir da

frustração, pela simbolização do agente, no caso, a mãe, que faz surgir o primeiro par de

oposição – presença e ausência.

75

É importante lembrar, como faz Lacan (1956-57) que esta oposição presença –

ausência, dá o primeiro elemento de uma ordem simbólica. Ele não basta por si só para

constituí-la, “mas já há virtualmente na oposição mais e menos, presença e ausência, a

origem, o nascimento, a possibilidade, a condição fundamental, de uma ordem simbólica”

(Lacan, [1956-57]1995:68).

No Seminário, livro 9. A Identificação, Lacan (1961-62) irá precisar o momento de

constituição da cadeia significante pela inscrição do traço unário, razão pela qual

consideramos pertinente abordá-lo, a fim de melhor compreender a constituição do sujeito

e, conseqüentemente, o autismo.

O traço unário é uma expressão usada por Freud (1921) em “Psicologia das massas

e análise do eu”. Lacan (1961-62), no Seminário, livro 9. A identificação, articulará o

conceito de traço unário ao nome próprio.

No Seminário, livro 9. A Identificação, o autor (1961-62) faz referência a duas

definições de nome próprio: uma sustentada por Bertrand Russell e outra por Allan

Gadiner. Bertrand Russel define o nome próprio como uma “Word for particular”, ou seja,

uma palavra para indicar um objeto em sua particularidade. Lacan (1961-62) descarta esta

definição, alegando que, nesse caso, o nome próprio seria reduzido a um demonstrativo – é

o “this”. Na segunda referência de Gardiner, o nome próprio é definido como som

distintivo.

Gardiner marca uma diferença entre nome comum e nome próprio: no primeiro o

acento é posto sobre o significado, enquanto que, no nome próprio, a ênfase é dada sobre o

som. É importante ressaltar que a ênfase, ora no conteúdo, ora no som, é dada pelo sujeito,

que investe, presta a atenção. Lacan (1961-62) também descarta esta definição, pois ela se

apóia numa dimensão psicológica, já que se trata de prestar atenção. Trata-se, nesse caso,

do sujeito psicológico e não do sujeito do inconsciente.

Mais do que um simples demonstrativo e um som distintivo, Lacan (1961-62)

atribui ao nome próprio função articulada à constituição do sujeito. Mais precisamente, o

nome próprio é o “ponto de amarra para se falar de alguma coisa de onde o sujeito se

constitui” (Lacan, aula de 20/12/61).

76

Seguindo nessa direção, o autor articula nome próprio ao traço unário (Einziger

Zug). Assim, parece que aquele está ligado não ao som, mas ao traço, e é pelo traçado que o

nome próprio não se traduz:

“foi por causa de Cleópatra e Ptolomeu que toda a decifração do hieróglifo egípcio começou porque em todas as línguas Cleópatra é Cleópatra, Ptolomeu é Ptolomeu” (Lacan, aula de 20/12/61)

Nesses termos, o nome próprio, enquanto traço unário, refere-se a uma marca

distintiva, sem significação, sem representação. É pura diferença, tal como os traços em um

certo alinhamento sobre algumas costelas de antílope, encontrados por Lacan no Museu

Saint-Germain, ou, ainda, o rastro de passo de Sexta-feira na ilha de Robinson Crusoé.

Não podemos deixar de notar que nos exemplos tanto das costelas de antílope,

quanto no rastro de passo de Sexta-Feira, Lacan (1961-62) ressalta a perda do objeto pela

inscrição do traço unário. No caso de Sexta-Feira, o sujeito que deixou a marca não está

presente: o que resta é apenas o rastro de passo. Trata-se, portanto, da perda do objeto de

que só o rastro como traço é memória.

O outro exemplo apresentado por ele para ilustrar o surgimento do traço unário é o

ideograma. Os ideogramas eram traços encontrados em um certo alinhamento sobre

costelas de antílope. O que o autor destaca nos ideogramas são os traços enquanto distintos

um dos outros. Mesmo que, a princípio, tenham alguma relação com o objeto, no sentido de

representá-lo, de ser efeito de abstração de uma figura concreta em sua origem, o

importante é o apagamento de seu caráter figurativo. Um exemplo desse apagamento é o

ideograma que tinha as características de uma coruja. Este não era usado para designar a

coruja como animal, mas era utilizado como suporte para a emissão labial “m”.

Logo, podemos afirmar que o ideograma não representa o objeto. Trata-se do

apagamento do objeto, restando, desta operação, apenas uma marca – o traço unário.

Ainda sobre o ideograma, Lacan (1961-62) estabelece:

“Traços que saem de algo que em sua essência é figurativo, e é por isso que se crê que é ideograma. Mas é um figurativo apagado... O que fica é algo da ordem daquele traço unário enquanto funciona como distintivo, enquanto pode, no momento, desempenhar o papel de marca” (Lacan, aula de 20/12/61)

77

Se é do objeto que o traço surge, a única coisa que se retém deste objeto é uma

marca – o traço unário. Vale lembrar que se trata de um traço desprovido de qualquer

significado. Isso é tão importante, que Lacan (1961-62) vai elaborar a noção do Um como

uma característica fundamental do traço:

“Então esse Um seu paradoxo é justamente isso:... quanto mais a diversidade das semelhanças se apaga, quanto mais ele suporta, mais encarna, eu direi se vocês me passam esta palavra, a diferença como tal” (Lacan, aula de 21/02/62).

Lacan (1961-62) retira esse termo de Kant, contudo, promove uma reviravolta da

posição em torno do Um, fazendo com que da einheit kantiana (unidade), passe para a

einzigkeit (unicidade). A noção de unicidade aponta para a pura diferença: se o traço unário

é Um no sentido da unicidade, a isto corresponde dizer que se trata de um traço puramente

distintivo.

Lembramos que o traço unário, de início, não tem valor de significante. Ele terá

após “diversos apagamentos” (Lacan, aula de 6/12/61). Mais especificamente, são

necessários três tempos para o engendramento do significante:

“a marca é apagada, o sujeito envolve esta marca com um círculo designando por aí que algo lhe concerne; a indicação do lugar onde ele encontrou a marca, vocês tem aí o nascimento do significante. Isso implica todo esse processo que comporta o retorno do último tempo sobre o primeiro, que não poderia aí ter articulação de um significante sem esses três tempos” (Lacan, aula de 24/01/1962)

A relevância está nos momentos de apagamentos, marcas que aparecem para depois

desaparecerem: traço, apagamento do traço, e marca do apagamento.

A importância desse momento constituinte se dá não apenas pela queda do

significante primeiro, mas também pelo efeito de retorno. O apagamento do significante

unário constitui um lugar vazio, de não-senso, irredutível que suscita e atrai outros

significantes. Dessa forma, o significante primeiro procede a abertura do registro simbólico,

isto é, inaugura a cadeia significante. Ou seja, o significante primeiro “se torna o portador

da infinitização do valor do sujeito” (Lacan, [1964]1985:237). No entanto, o inconsciente

não está aberto a todos os sentidos. Pelo contrário, Lacan (1964) afirma que o sujeito se

78

constitui a partir do assujeitamento ao significante primeiro, que sobredetermina a cadeia

significante. A história do sujeito, portanto, será marcada por um valor primordial que já se

encontra presente.

Para ilustrar o funcionamento do significante na constituição do sujeito, Lacan

(1964) se utiliza da matemática, designando para o significante unário o valor de zero no

lugar do denominador, porque, ao mesmo tempo em que o S1 comporta um valor infinito

de significações, servindo como ponto de abertura para todos os sentidos, abole esses

sentidos pelo efeito de sobredeterminação.

Vimos que a primeira simbolização faz surgir o traço unário, concomitantemente à

perda do objeto. Essa marca primeira, o traço unário, sofre também apagamento,

inaugurando a cadeia significante.

Entretanto, ainda que a primeira simbolização seja essencial para a constituição da

ordem simbólica, “não basta por si só para constituí-la” (Lacan, [1956-57]1995:68).

Através da inscrição do traço unário, ela instaura uma falta em função da perda do objeto.

Essa falta, do lado do sujeito, irá impulsioná-lo na busca de algo que o complete. Ele

buscará, na cadeia significante, a dimensão que espera seu complemento do Outro. Como

conseqüência, não haverá nenhum estancamento no reenvio de um desses significantes

àquele que o sucede, e o sujeito deslizará infinitamente na cadeia. A operação que permite

o estancamento do deslizamento incessante na cadeia é a metáfora paterna.

Vejamos como esta operação se constitui.

2.2.5 A metáfora paterna

No Seminário, livro 11. Os quatro conceitos fundamentais, Lacan (1964) afirma que

“O traço unário, no que o sujeito a ele se agarra, está no campo do desejo” (Lacan,

[1964]1995:242).

Em “Dos notas sobre el niño”, Lacan (1969) ressalta o irredutível de uma

transmissão, que sustenta e mantém a família. Este irredutível está articulado a um desejo

(que não é anônimo). Mais adiante, no mesmo texto, alega que a função da mãe é “que seus

cuidados estejam marcados por um interesse particularizados, assim seja pela via de suas

79

próprias carências” (Lacan, [1969]1993:57). Entendemos que é a partir do Desejo da Mãe

que uma transmissão é possível. Mas o que uma mãe pode transmitir para seu filho?

Lembramos que o Desejo da Mãe está intrinsicamente ligado ao Complexo de

Édipo da menina. Sabemos, a partir de Freud, que a menina entra no Édipo pela

comparação de seu sexo com o dos meninos, comparação de que extrai uma conclusão

imediata: de saída, ela julgou e decidiu. Ela viu, sabe que não o tem e quer tê-lo. A

conseqüência dessa constatação é a “inveja do pênis”. A menina se afastará da mãe

responsável por sua “deficiência” e se voltará para o pai esperando que este possa dar

aquilo que a mãe lhe recusou: o falo ou seu equivalente simbólico, o filho.

Para a mulher, a criança aparece como substituto do falo que lhe falta e é deste lugar

que a criança receberá de sua mãe o investimento libidinal, a partir do qual se sentirá

desejada.

É importante ressaltar que o falo, ao mesmo tempo que parece recobrir a falta,

também a revela. Isso ocorre devido ao fato de essa imagem do objeto já comportar, por si

mesma, uma falta anterior. Torna-se necessário, portanto, que a mãe se sinta faltosa, para

poder desejar algo que a complete. A criança revestida de imaginário pode, então, ocultar a

falta sentida pela mãe.

Vimos que a primeira simbolização faz surgir a mãe, enquanto Outro primordial. No

entanto, “a partir dessa primeira simbolização em que se afirma o desejo da criança

esboçam-se todas as complicações posteriores da simbolização, na medida em que seu

desejo é o desejo do desejo da mãe” (Lacan, [1957-58]1999:188). O que a criança busca,

como desejo do desejo, é poder satisfazer o desejo da mãe, ou seja, ser ou não ser o objeto

de desejo da mãe, o falo.

Nesse momento, a criança começa a se interrogar: o que ela quer? Quem sou eu para

ela? Eis o enigma do Desejo da Mãe.

A criança fica completamente “assujeitada” (Lacan, [1957-58]1999:195) à

alternância materna. O significante da alternância de ausência e de presença permanece

enigmático, como submetido à lei do arbitrário, à lei caprichosa. A mãe vai embora e

retorna. Se ela se vai, “não valho nada, sou zero para ela”. Mas, se ela volta, “será que sou

tudo para ela?” Há uma alternância sem fim.

80

A saída dessa situação é possível a partir da metáfora paterna:

“O essencial é que a mãe funde o pai como mediador daquilo que está para além da lei dela e de seu capricho, ou seja, pura e simplesmente, a lei como tal. Trata-se do pai, portanto, como Nome-do-Pai, estreitamente ligado à enunciação da lei, como todo o desenvolvimento da doutrina freudiana no-lo anuncia e promove. E é nisso que ele é ou não é aceito pela criança como aquele que priva ou não priva a mãe do objeto de seu desejo” (Lacan, [1957-58]1999:197)

Nos interrogamos anteriormente sobre o que uma mãe pode transmitir para seu

filho. Podemos dizer agora que se trata de transmitir um nome: o Nome-do-Pai. O pai é

instaurado como Nome pela mãe. Contudo, a transmissão não se realiza de forma coletiva;

a transmissão do Nome-do-Pai é uma transmissão apenas no um a um.

A primeira simbolização institui a mãe como podendo estar presente ou ausente. A

criança fica assujeitada aos caprichos da mãe, porque esta pode ou não responder aos seus

apelos, pode ir e vir de acordo com o próprio critério. Além disso, como já foi assinalado, o

Desejo da Mãe é um enigma, que faz o sujeito deslizar incessantemente na cadeia

significante sem produzir sentido que possa dar conta deste desejo.

A metáfora paterna tem, assim, uma dupla função: instaurar a lei, à qual a própria

mãe deverá estar submetida; e produzir um sentido ao enigma do Desejo da Mãe.

O termo metáfora vem designar uma operação na qual “um significante surge no

lugar de outro significante” (Lacan, [1956-57]1995:180). Mais especificamente, o

significante Nome-do-Pai vem substituir o Desejo da Mãe, produzindo uma significação

fálica.

Lembramos que o sentido produzido pela metáfora paterna conserva um resto de

não-sentido, o que designa uma significação fálica, pois suscita o efeito de um saber, mas

aponta para algo irredutível que não se deixa apreender em uma ilusão totalizante. Por mais

que se revele, há algo que não vem à luz, algo que falta, impedindo que o sujeito o articule

plenamente. Todavia, mesmo não sendo plena, há possibilidade de atribuir ao Desejo da

Mãe uma significação. É devido a isso que argumentamos que a inscrição do Nome-do-Pai

no lugar do Outro irá possibilitar uma resposta à pergunta referente ao desejo do Outro.

81

Nesse caso, podemos dizer também que o Nome-do-Pai funciona como um ponto de

ancoragem para o sujeito, posto que é um significante que vem ordenar toda a cadeia, tendo

a função de ponto de basta no deslizamento incessante.

Não podemos deixar de sublinhar que “o falo, na medida em que é objeto

imaginário do desejo materno, constituía um ponto realmente crucial da relação mãe-filho”

(Lacan, [1956-57]1995:275). Além de ser o lugar a partir do qual a criança poderá receber

da mãe investimento libidinal, o falo possibilita certo distanciamento, uma mediação entre a

criança e a mãe. Dessa forma, o bebê nunca está sozinho com a mãe, porque haverá sempre

um terceiro nessa relação – o falo imaginário. A relação primordial entre a mãe e o filho,

desde o início, é, portanto, uma relação ternária e não dual. Vale lembrar que a relação

imaginária mãe-criança é mediatizada pelo simbólico. Ou seja, a posição do falo, como

objeto imaginário só é pensável a partir do significante paterno, como podemos depreender

da afirmação de Lacan (1957-58):

“o objeto de seu desejo [da mãe], o qual já é um objeto tão específico, tão marcado pela necessidade instaurada pelo sistema simbólico, que é absolutamente impensável de outra maneira quanto à sua prevalência. Esse objeto chama-se falo” (Lacan, [1957-58]1999:189)

Prosseguindo:

“(...) que faz com que a posição do significante paterno no símbolo seja fundadora da posição do falo no plano imaginário” (Lacan, [1957-58]1999:189-190)

Vimos que a primeira simbolização faz surgir a mãe como objeto simbolizado.

Nesse momento lógico, a criança, que deseja o desejo da mãe, fica assujeitada às idas e

vindas da mãe: esta “é chamada quando não está presente e..., quando está presente, é

repelida para que seja possível chamá-la” (Lacan, [1957-58]1999:189). Por sua vez, a mãe

pode ou não responder aos apelos da criança, ela pode ou não dar o dom de seu amor.

A metáfora paterna, que inscreve o Nome-do-Pai no lugar do Outro, submete a mãe

à Lei e produz uma significação em relação ao Desejo da Mãe. Em outras palavras, a mãe

instaura para a criança um lugar fora dela, em uma posição terceira, entre ela-mãe e a

criança. O importante é que a mãe esteja remetida à Lei que não é a dela, mas a de um

82

Outro, e que o objeto de seu desejo seja remetido também a este Outro, cuja Lei ela remete.

Isso permite a criança descobrir que, além de não ser o falo, ela também não o tem, assim

como sua mãe, dando-se conta de que a mãe o deseja lá onde ele é suposto estar e onde

torna-se possível tê-lo. É aí que deve intervir efetivamente o pai:

“Ele pode dar ou recusar, posto que o tem, mas o fato de que ele, o pai, tem o falo, disso ele tem que dar provas. É por intervir no terceiro tempo como aquele que tem o falo, e não que o é, que se pode produzir a báscula que reinstaura a instância do falo como objeto desejado da mãe” (Lacan, [1957-58]1999:200)

A partir da intervenção do pai, criança e mãe se inscrevem na dialética do ter: a mãe

que não tem o falo pode desejá-lo naquele que o detém; a criança, igualmente desprovida,

pode desejá-lo junto aquele que o tem, o pai.

É importante lembrar, como já assinalamos alhures, que é nesse momento lógico da

constituição do sujeito que pode haver a identificação com os traços do pai, constituindo o

Ideal do eu:

“(...) o pai se revela como aquele que tem. É a saída do complexo de Édipo. Essa saída é favorável na medida em que a identificação com o pai é feita nesse terceiro tempo, no qual ele intervém como aquele que tem o falo. Essa identificação chama-se Ideal do eu” (Lacan, [1957-58]1999:200)

Vimos que a primeira simbolização é correlata à inscrição do traço unário,

concomitantemente à perda do objeto, inaugurando, assim, a cadeia significante. É também

a partir da primeira simbolização que a criança pode vir a se alojar no lugar de falo para a

mãe. No entanto, é importante ressaltar que essa operação só se efetiva a partir da metáfora

paterna, ou seja, a partir da inscrição do Nome-do-Pai no lugar do Desejo da Mãe. Nos

interrogamos anteriormente sobre o que manteria aquilo que foi expulso, fora, e o que foi

introjetado, dentro. Essa operação – Bejahung/Ausstossung – é efetivada pelo Nome-do-

Pai. A metáfora paterna ordena a cadeia significante e produz uma significação ao

enigmático Desejo da Mãe.

83

2.2.6 Reflexões sobre o Outro e o estatuto do sujeito no autismo

A questão do Outro na psicose é bastante interessante. O próprio Lacan faz

afirmações que às vezes parecem contraditórias. Se, por um lado, ele afirma, no Seminário,

livro 3. As psicoses, que, na psicose, o “Outro está verdadeiramente excluído” (Lacan,

[1955-56]1985:65), por outro lado, no mesmo seminário, ele faz notar que sem o Outro

“não haveria problema da psicose” (Lacan, [1955-56]1985:52).

Quanto ao autismo, Bernard Nominé (2001), no artigo “O Autista: um escravo da

linguagem”, define bem a complexidade da questão referente ao Outro no autismo:

“Se olharmos um pouco mais de perto a relação desses sujeitos com a fala do Outro, ainda aí a atitude não parece unívoca. O autista não parece se interessar pela presença de um outro, responder aos chamados, ou seja, aceitar o princípio da representação significante, do que se pode concluir: para ele não há Outro. Mas pode-se também observar que de vez em quando o autista é como que teleguiado pelo que ouve, praticamente todos que conseguem falar se queixam de ouvir demais; aqueles que não falam em certos momentos tapam os ouvidos e pode-se concluir legitimamente: o Outro é por demais presente, por demais invasor. Ora, é necessário compreender se o Outro é totalmente ausente ou por demais presente” (Nominé, 2001:11).

Na literatura psicanalítica, encontramos autores que buscam formular hipóteses

sobre o Outro no autismo. Vejamos algumas dessas hipóteses.

No livro O nascimento do Outro, Rosine e Robert Lefort (1980), a partir da análise

de Marie-Françoise, que é um caso de autismo, afirmam:

“Aliás, ela [Marie-Françoise] define esta “toda-ausência” do Outro quando ela lança seu apelo ‘mamãe’ ao objeto, ao prato de arroz, chave de um mundo real” (Lefort e Lefort, [1980]1990:292)

No artigo escrito para a revista “O autismo”, os autores estabelecem:

“O Outro do autismo ‘existe’ enquanto absoluto e sem corte (inentamé); (...) O Outro absoluto, sem objeto separável. Ele é Um e como tal, não tem necessidade de nada. Como Um, ele é algo anterior ao significante, fora significante, antes de todo recalque” (Leforte e Lefort, [1994]1995:146)

84

Em livro mais recente, La distinction de L’Autisme, Rosine e Robert Lefort (2003)

mantém a posição. A partir do livro autobiográfico, intitulado Minha vida de autista, de

Temple Grandin, uma autista de 40 anos, a autora alega que em “Temple é evidente a

ausência do Outro” (Lefort e Lefort, 2003:56).

Colette Soler (1983), no artigo “Autismo e paranóia”, afirma: “Parece que essas

crianças permanecem aquém do limite de toda simbolização. (...) e nesse sentido o Outro

permanece para ele [o pequeno autista] puramente real” (Soler, [1983]1999:225).

Há, ainda, autores que ressaltam o quanto o Outro é invasor, ou seja, presente

demais.

No texto “Traitement de l’Autre”, Alfredo Zenoni (1991), conclui: “Em suma, com

a psicose nós lidamos com um Outro sem lei, um Outro intrusivo, um Outro louco”

(Zenoni, 1991:109).

Seguindo essa direção, Ana Beatriz Freire (2004), no artigo “Aprendendo com o

NAICAP: uma transmissão clínica”, argumenta que “o autista nos testemunha de forma

radical que é do Outro (um Outro excessivamente desregrado, excessivamente pleno de

gozo) que sofrem essas crianças” (Freire, 2004:40).

Percebemos que há diferentes posições sobre a existência ou não do Outro no

autismo. Será que afirmar que o Outro está ausente se opõe à idéia de que o Outro é

invasivo no autismo? Como articular a questão do Outro no autismo?

Como vimos no primeiro capítulo, Lacan introduz um corte da leitura que estava

sendo feita da obra de Freud. Vimos, no mesmo capítulo, que ele propõe um retorno a

Freud, através do qual resgata o estatuto de inconsciente, elaborando a categoria de grande

Outro como o lugar do inconsciente, um lugar alhures, uma Outra cena.

A partir das preeminências das palavras, das falas, das associações livres,

sublinhadas por Freud ao longo de sua obra, Lacan pôde formular a hipótese de “o

inconsciente estruturado como uma linguagem” (Lacan, [1964], 1995:194)). Ele encontrou,

no contexto da lingüística estrutural (Saussure, 1916 e Jakobson, 1957), o aporte favorável

para sustentar sua hipótese. Ao longo de sua obra, Lacan se distancia da lingüística,

afirmando: “meu dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem não é do

campo da lingüística” (Lacan, [1972-73]1985:25). Contudo, um dos fundamentos da

85

analogia inconsciente/linguagem – mais especificamente, inconsciente/significante – pode

ser evidenciado na estrutura do sonho, haja vista que “as imagens do sonho só devem ser

retidas por seu valor significante” (Lacan, [1957]1998:514).

Além disso, os mecanismos do inconsciente, como o deslocamento e a condensação,

parecem obedecer à estrutura dos tropos do discurso, como a metonímia e a metáfora, como

coloca Lacan (1960):

“os mecanismos descritos por Freud como sendo os do processo primário, onde o inconsciente encontra seu regime, abrangem exatamente as funções que essa escola toma por determinantes das vertentes mais radicais dos efeitos da linguagem, quais sejam, a metáfora e a metonímia, ou dito de outra maneira, os efeitos de substituição e combinação do significante nas dimensões respectivamente sincrônica e diacrônica em que elas aparecem no discurso” (Lacan, [1960]1998:813-14)

Podemos entender, assim, que o inconsciente e a linguagem estão solidariamente

articulados, de tal modo que o inconsciente se institui no campo da linguagem, e, por sua

vez, a linguagem não pode deixar de aparecer como a condição mesma do inconsciente.

A linguagem, tal como conceitua Lacan (1957), preexiste ao sujeito, antes mesmo

que nela o sujeito se inscreva: “(...) a linguagem, com sua estrutura, preexiste à entrada de

cada sujeito num momento de seu desenvolvimento mental” (Lacan, [1957]1998:498).

Reconhecida a estrutura da linguagem no inconsciente, é importante nos

interrogarmos, como faz Lacan (1960), “que tipo de sujeito podemos conceber-lhe?”

(Lacan, [1960]1998:814).

No Seminário, livro 11. Os quatro conceitos fundamentais, Lacan (1964) alega que

“se o sujeito é o que lhes ensino, a saber, o sujeito determinado pela linguagem e pela fala,

isto quer dizer que o sujeito, in initio, começa no lugar do Outro, no que é lá que surge o

primeiro significante” (Lacan, [1964]1995:187).

É, portanto, a partir do Outro do significante, que o sujeito do inconsciente pode se

constituir, considerando-se que o sujeito é o que um significante representa para outro

significante.

Diante do que temos estudado até aqui, a reflexão sobre a existência ou não do

Outro no autismo deve passar necessariamente pelos fenômenos de linguagem. Isso porque

estes fenômenos parecem apontar para a relação do autista com o Outro, enquanto o lugar

86

da linguagem, ou melhor, “o lugar em que se situa a cadeia significante que comanda tudo

que vai poder presentificar-se do sujeito” (Lacan, [1964]1995:193-94).

Para iniciarmos essa reflexão, citaremos a descrição e o comentário de Leo Kanner

(1943), no artigo “Os distúrbios autísticos de contato afetivo”, no que diz respeito aos

fenômenos de linguagem de um dos seus casos:

“Ele parecia experimentar muito prazer em lançar palavras ou expressões como ‘crisântemo’, ‘dália, dália, dália’, ‘os negócios’, ‘vinho de trompete’, ‘o direito está a caminho, o esquerdo, parado’, ‘brilhando através das nuvens negras’. Palavras fora de propósito como estas constituíam sua maneira habitual de falar. Parecia repetir constantemente, como um papagaio, o que lhe havia sido dito em um momento ou outro. Ele utilizava os pronomes pessoais no lugar das pessoas a quem citava, imitando inclusive sua entonação. Quando queria que a mãe tirasse seus sapatos, dizia: ‘tire seu sapato’, e quando queria tomar banho: ‘você quer tomar banho?’ As palavras tinham, para ele, um sentido exclusivamente literal, inflexível. Parecia incapaz de generalizar, transferir uma expressão para um objeto ou uma situação semelhante” (Kanner, [1943]1997:116).

Ainda sobre o mesmo caso, Kanner (1943) ressalta que os pronomes pessoais

também são repetidos como são ouvidos, de forma que a criança refere-se a si mesma na

terceira pessoa, sem utilizar o pronome eu: “Quando, por exemplo, em fevereiro de 1939,

ele se desequilibrou e quase caiu, disse, falando para si mesmo: ‘você não caiu’” (Kanner,

[1943]1997:117).

Frente ao relato acima colocado, destacamos alguns pontos importantes. O primeiro

refere-se ao prazer experimentado pela criança na repetição de palavras ou expressões ditas

por alguém. É interessante observar que, diante de tantas palavras ouvidas, a criança repete

algumas e não outras. Podemos pensar que essas crianças não são máquinas falantes, ou

“papagaios”, elas parecem fazer alguma coisa com os significantes advindos do Outro.

Lacan (1953-54), chega a dizer, inclusive, que Dick “brinca” (Lacan, [1953-54]1979:101)

com a linguagem, pois, “Quando sua mãe lhe propõe um nome, que é capaz de reproduzir

de maneira correta, o reproduz de maneira ininteligível, deformada, que não pode servir

para nada” (Lacan, [1953-54]1979:101)9. Sobre o caso, o autor não deixa dúvidas: ele “tem

9 Eis no texto de Melanie Klein (1930) a passagem referente ao comentário de Lacan (1953-54): “Mais ainda, a mãe de Dick as vezes conseguia sentir no menino uma forte atitude negativa que se expressava no fato de freqüentemente fazer o oposto daquilo que se esperava dele. Por exemplo, quando ela conseguia fazer com

87

seu sistema de linguagem, muito suficientemente” (Lacan, [1953-54]1979:101). No

entanto, Lacan (1953-54) afirma também que Dick “não fala” (Lacan, [1953-54]1979:100).

Fica aqui uma questão, a saber, se essas repetições de palavras e expressões não tem valor

de fala, qual o estatuto delas?

Um outro ponto refere-se ao sentido literal e inflexível das palavras que Kanner

(1943) observa em sua clínica com crianças autistas. Não podemos deixar de colocar a

semelhança entre esse fenômeno e o neologismo das psicoses. Lacan (1955-56) ressalta

que, na psicose, “certas palavras ganham um destaque especial, uma densidade que se

manifesta algumas vezes na própria forma do significante, dando-lhe esse caráter

indiscutivelmente neológico tão surpreendente nas produções da paranóia” (Lacan, [1955-

56]1985:42). Ele destaca, ainda, que essas “palavras têm peso em si mesmas” (Lacan,

[1955-56]1985:43). Mais especificamente sobre o autismo, Lacan (1975) alega que “são

simplesmente pessoas para as quais o peso das palavras é muito sério” (Lacan,

[1975]1976:45-46). Dessa forma, podemos pensar que no autismo as palavras são tomadas

como coisa, elas têm peso, têm massa, ou seja, podem ter atributos físicos como as coisas.

Não foi para esse fato que Freud (1915), no texto “O inconsciente”, partindo do exemplo

clínico de Victor Tausk, chama nossa atenção, demonstrando o que está em jogo na

esquizofrenia?

Vale lembrar que se tratava de uma paciente cuja queixa era que seus olhos estavam

virados. Sonia Alberti (1999) estabelece que o termo “virador de olhos” (Augenverdreher),

que, segundo a paciente, caracteriza seu amante, é uma “metáfora da língua alemã, que em

português encontraria uma certa analogia com a expressão ‘estar com a cabeça virada’”

(Alberti, 1999:7). A metáfora, nesse caso, não opera e a paciente experimenta no real o

peso das palavras. Ou seja, ela “experimenta a realidade dos olhos virados, como se alguém

tivesse introduzido a mão em seu globo ocular virando-lhe os olhos” (Alberti, 1999:7).

Podemos observar que Kanner (1943), Freud (1915) e Lacan (1955-56) apontam

para o mesmo processo que envolve a palavra na psicose. O sentido literal assinalado por

Kanner (1943) pode ser entendido agora, à luz dos textos de Freud (1915) e Lacan (1955-

que o menino repetisse depois dela algumas palavras diferentes, ele muitas vezes as alterava completamente, apesar de pronunciá-las perfeitamente em outras ocasiões” (Klein, [1930]1996:253).

88

56), como a ausência de metáfora que faz com que as palavras sejam tratadas como coisa,

tornando-se pesadas.

O último ponto que gostaríamos de comentar sobre a descrição de Kanner (1943)

diz respeito ao fato de essas crianças referirem-se a si mesmas na terceira pessoa, sem

utilizar o pronome eu. Como vimos, “o inconsciente é esse discurso do Outro em que o

sujeito recebe, sob a forma invertida que convém à promessa, sua própria mensagem

esquecida” (Lacan, [1957]1998:440). Assim, quando o sujeito diz “Você é minha mulher”,

recebe do Outro, em retorno, “Eu sou seu homem”. O importante é que ao nível do receptor

a mensagem seja registrada. Trata-se, esclarece Lacan (1955-56), de um registro

significante, como podemos depreender da citação: “É o certificado de recepção que é

essencial da comunicação enquanto tal, não significativa, mas significante” (Lacan, [1955-

56]1985:215). É a partir do registro que o sujeito pode fazer “uso próprio do significante”

(Lacan, [1955-56]1985:215). Nossa hipótese é que o fenômeno observado por Kanner

(1943), segundo o qual as crianças autistas não se referem a si próprias com a primeira

pessoa, é efeito, justamente, do fato de que, no autismo, não há “certificado de recepção” da

mensagem vinda do Outro, conforme conceitua Lacan (1955-56).

Será que pelo fato de o sujeito não dar o “certificado de recepção” da mensagem

vinda do Outro nos permitiria afirmar que o Outro está ausente no autismo? A esse respeito,

acrescentamos a observação de Lacan (1953-54) no Seminário, livro 1. Os escritos técnicos

de Freud, sobre Dick. Sobre ele, o autor comenta que pode haver “uma certa apreensão dos

vocábulos, mas desses vocábulos não fez a Bejahung – não os assume” (Lacan, [1953-

54]1979:86).

Como já foi dito nesta tese, a Bejahung refere-se a uma primeira afirmação. Trata-se

de um sim ao simbólico: “gostaria de botar isso para dentro” (Freud, [1925] 1979:297).

Nesses termos, “a condição para que alguma coisa exista para o sujeito, é que haja

Bejahung” (Lacan, [1953-54]1979:73). Então, podemos pensar que a Bejahung implica a

admissão de alguma coisa no simbólico, na medida em que se trata de uma afirmação que

atribui uma existência. Aquilo que existe está no simbólico. Essa idéia ratifica o que

mencionamos anteriormente sobre o fato de os autistas não receberem sua própria

89

mensagem do Outro sob forma invertida, ou seja, não assumem como sua a mensagem

dele. Tal fato deve ser articulado como a não Bejahung dos vocábulos.

Vimos que no autismo a palavra tem peso em si mesma, tratando-se da concretude

do significante pela ausência de metáfora. Desse modo, o significante torna-se tão potente

“que fala no sujeito, além do sujeito” (Lacan, [1955-56]1985:52). Será que, como uma

conseqüência lógica possível do raciocínio que desenvolvemos até aqui, podemos supor

que, uma vez que o autista não faz a Bejahung dos significantes, eles estariam todos no

real? Essa colocação nos leva à questão do estatuto do sujeito no autismo.

Como exposto no decorrer deste capítulo, a primeira simbolização, pela inscrição do

traço unário, inaugura a cadeia significante, condição para que um sujeito possa advir,

posto que o significante representa o sujeito para outro significante (S1-S2). Se no autismo

a primeira simbolização não se efetiva, como podemos pensar o estatuto desse sujeito? A

fim de nos aprofundarmos nessas questões, sobre a existência ou não do Outro no autismo e

o estatuto do sujeito, apresentaremos fragmentos de um caso de nossa clínica.

A questão da Bejahung, do traço unário, nos interessara em função do caso de uma

criança que chamou nossa atenção pela forma como ela foi “nomeada”. A escolha do nome

foi realizada pelo pai, que toma como referência o nome de uma modelo estrangeira, que

leu em uma revista. É importante marcar o motivo que ele aponta para a escolha: o pai o

escolheu porque era diferente, tratava-se de um nome do qual nunca tinha ouvido falar

antes. Por outro lado, o nome da filha não é o mesmo da modelo, porque o pai acrescentou

uma letra para tornar o nome da filha mais diferente ainda, absolutamente diferente. Tão

diferente, que o nome já não é uma marca que diferenciaria a criança na relação com as

demais e, sim, a faria uma diferença absoluta.

Com efeito, todo significante implica uma marca da diferença. Todo significante

comporta uma diferença, pois, como teoriza Lacan (1961-62), se inscreve como traço

unário no inconsciente, o que faz dele um diferente na relação com os outros significantes

que se associam em cadeia. É o caráter diferencial do significante que fundamenta a lógica

da cadeia, como o autor demonstrou a partir do jogo do fort da, onde o que é relevante é a

oposição entre dois significantes.

90

O nome próprio não deixa de ser um traço diferencial que marca a presença do

nomeado na cadeia associativa do sujeito por ele representado. De tal forma, que um

significante representa o sujeito para o outro significante. Porém, no caso da paciente

acima, não é na relação com os outros significantes que o nome dela tem a função de

representá-la. Como estabelecido, a diferença não é relativa aos outros significantes de uma

cadeia, mas absoluta. No caso que estamos tratando, o nome escolhido parece não remeter à

oposição; há apenas o deslizamento. Escolheu-se um nome porque era diferente; colocou-

se mais uma letra para ficar mais diferente.

É interessante acrescentar que, diante das características que a menina apresentava –

ecolalia, movimentos estereotipados, isolamento, dentre outros –, a principal preocupação

da mãe referia-se à alimentação. A mãe a alimentava freqüentemente, mas, mesmo assim,

dizia que a menina comia muito pouco.

Quando lhe é sugerido para deixar a filha se alimentar por conta própria, a mãe

reage afirmando que por conta própria a filha não se alimentaria e certamente adoeceria.

Com o intuito de não correr o risco de vê-la adoecer, a mãe se antecipa preparando uma

alimentação reforçada. Nessa relação a falta não comparece, porque antes de a filha sentir

fome, a mãe a alimenta. Considerando-se a preocupação da mãe, é importante dizer que a

filha é obesa, mais grave ainda, o diagnóstico médico é de obesidade mórbida.

Um acontecimento importante parece desencadear a preocupação da mãe. No dia do

parto, após a ultra-sonografia, é revelado à família a possibilidade de uma anormalidade

orgânica do bebê em função de uma prematuridade do feto. Essa possibilidade era devido

ao fato de seu desenvolvimento corresponder a 6 meses, embora se tratasse de uma

gravidez de 9 meses. Isso teria ocorrido porque a placenta não desenvolveu-se

suficientemente.

“Fiquei muito nervosa com essa notícia, ficava pensando que poderia perder minha

filha” – diz a mãe. A possibilidade de perder a filha coloca em jogo elementos estruturais

inconscientes da mãe, impedindo-a de simbolizar a separação, que ela sentiu na pele: “a

anestesia não fez efeito, senti cortarem minha barriga, tive uma crise nervosa, me deram

calmante e eu dormi”.

91

Como podemos depreender da fala da mãe, ela foi sedada na hora do parto. A

notícia emitida por um sujeito em quem se supõe um saber – o médico – aprisiona a mãe,

comprometendo sua relação com a filha. A mãe permanece fixada no momento de

iminência de morte da filha, pela sua incapacidade em alimentá-la. Com efeito, ela tampa a

boca da filha com o seio, impondo que o sujeito mame e mame. Dessa maneira, a demanda

oral – demanda de ser alimentado, que o sujeito dirige ao Outro – não se constitui.

A demanda ao Outro se constitui a partir do investimento da primeira experiência de

satisfação, que se inscreve como traço unário.

A experiência de satisfação, tal como Freud (1895) a descreve, supõe um estado de

urgência causado por uma excitação endógena, como, por exemplo, a fome, a partir da qual

a criança reage com uma descarga, como o choro ou o grito. Nesse caso, uma “ação

específica” (Freud, [1895] [1950]1979:422) se faz necessária, posto que a descarga não

produz um resultado aliviante. Esta “ação específica” só pode ser realizada por uma “ajuda

alheia” (Freud, [1895] [1950]1979:422), um Outro, atraído pelo choro da criança.

Essa primeira experiência inscreve marcas, traços do objeto que causou a satisfação.

Quando o estado de urgência reaparece, o sujeito investe no traço na tentativa de

reencontrar o objeto. Esse investimento produz uma alucinação. Contudo, isso não é

suficiente porque o objeto não vem para aliviar o desprazer. Quando o sujeito faz a

distinção entre o objeto alucinado e o objeto da realidade, ele chora não mais para

descarregar, mas para chamar o Outro, dirigindo a este a demanda de ser alimentado.

A questão que fica é a de saber o que permite a inscrição do traço unário. Não seria,

justamente, o investimento nele? Sendo assim, precisamos nos interrogar o que permite o

investimento no traço. Não seria a falta do objeto, pois, como descreve Freud (1895), é o

reaparecimento do estado de urgência que permite o sujeito investir no traço do objeto,

produzindo, assim, a alucinação. Seguindo esse raciocínio, poderíamos formular uma

hipótese para o estatuto do sujeito no autismo: se é a partir da falta de objeto que o sujeito

pode investir no traço, e, se no autismo o objeto está presente o tempo todo, então,

poderíamos pensar que, nesse caso, não há investimento no traço unário.

Nossa hipótese é que a problemática do autismo está articulada à questão do

significante unário, S1. Mais especificamente, parece que no autismo este significante não

92

intervém na cadeia, o que se associa, na teoria, com o fato de observarmos que o sujeito não

faz a Bejahung do significante. Ou seja, não há admissão do traço unário no simbólico.

Vejamos a opinião de alguns autores sobre a questão.

Marc Strauss, no artigo “O autismo”, afirma que:

“(...) essa pulverulência da linguagem que se reduz a uma pululação de significantes isolados uns dos outros, uma seqüência que não faz série, uma seqüência de S1 (...) a fragmentação autista mantém a falta de ligação entre os significantes. Um S1 não reenvia a um S2, nem mesmo a outro S1, mas a ele mesmo, cada um deles permanecendo um S1 isolado” (Strauss, 2001:29)

Rosine e Robert Lefort (2003), no livro La distinction de L’Autisme, também

articulam a problemática do autismo com o S1, alegando se tratar de

“Uma ausência de S2 que faz do S1 o Um sozinho no real. Pode-se dizer que não há S1 que represente o sujeito no autismo. (...) ele [o autista] é tão somente portador de um S1 sozinho que o petrifica num gozo intolerável” (Lefort e Lefort, 2003:71).

Como podemos depreender das argumentações acima, os autores parecem

compartilhar a hipótese de que, no autismo, trata-se de um S1 que não faz cadeia. Não

podemos, nesta tese, fechar a questão sobre a articulação entre autismo e S1, até porque não

acompanhamos Lacan em toda a extensão de sua obra. Na medida em que avançamos na

articulação entre a clínica e a teoria, vamos nos dando conta da importância do significante

no autismo.

O autismo impôs um estudo extremamente complexo entre o sujeito e o significante.

Esse estudo nos permitiu perceber que a relação entre S1-S2 é uma coisa. Quanto ao S1

sozinho, há muitas teses, dentre elas a de Rosine e Robert Lefort (2003), que citamos

anteriormente, os quais articulam S1 e gozo.

A questão do S1 sozinho diz respeito à teoria da linguagem em Lacan, que extrapola

a questão do autismo, merecendo futuros trabalhos, cujos resultados, quem sabe, poderão

contribuir para a investigação sobre o autismo.

93

A contribuição de nossa tese é que esta conclui que não se pode falar de inscrição

do traço unário no simbólico no caso do autismo, haja vista que para essas crianças as

palavras têm um peso muito sério.

Sabemos que a psicose se fundamenta pela não Bejahung do significante Nome-do-

Pai. Ou seja, na psicose não há a admissão deste significante no simbólico. Mas, no

autismo, antes mesmo de nos depararmos com a foraclusão do Nome-do-Pai, a questão que

se coloca é quanto à inscrição, no simbólico, de uma simples cadeia de significantes,

condição sine qua non até mesmo para verificação da foraclusão do Nome-do-Pai.

No livro A angústia e o desejo do Outro, Diana Rabinovich (2005) afirma que, até o

Seminário,livro 11.Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan faz uma

equivalência entre S2 e o Nome-do-Pai:

“O Nome-do-Pai havia sido definido por Lacan, definição que é a que costuma estar presente para a maioria, no Seminário XI – recordem que foi o primeiro a ser publicado e que é um dos mais bem-acabados - , como S2” (Rabinovich, 2005:144)10

Seguindo Diana Rabinovich (2005), podemos deduzir que a equivalência entre o S2

e o Nome-do-Pai está presente na metáfora paterna, considerando-se que

“A função do pai no complexo de Édipo é ser um significante que substitui o primeiro significante introduzido na simbolização, o significante materno” (Lacan, [157-58]1999:180)

Nesse sentido, podemos pensar que o significante introduzido na primeira

simbolização corresponderia ao S1, enquanto o Nome-do-Pai ao S2. Nossa hipótese é que a

questão do autismo refere-se ao S1, mais especificamente poderíamos dizer que não haveria

Bejahung do S1. Pensamos que a não Bejahung do S1 no autismo pode açambarcar também

o S2, para fora do simbólico.

A idéia de que no autismo se trata de uma seqüência de S1 que não faz série parece

aproximar autismo e esquizofrenia. Isso ocorre porque, na esquizofrenia, também se trata

10 Não há no texto de Diana Rabinovich (2005) referências na obra de Lacan que indique esta conclusão.

94

de um S1 que não intervém na cadeia significante, como podemos constatar na afirmação

de Quinet (1999):

“Ora, na esquizofrenia (...) o S1 não equivale à ordem significante estruturada, temos uma multiplicidade de S1 sem hierarquia alguma, o que equivale a dizer que ele se transforma num significante qualquer, (...) o resultado é a dispersão desordenada em contraposição ao enxame ordenado por um S1, que tem função do Um da cadeia significante” (Quinet, 1999:88)

Vale lembrar, ainda, a afirmação de Lacan, já mencionada no início deste capítulo,

sobre o autismo e a esquizofrenia, onde ele parece aproximá-los: “Se trata de saber porque

há algo no autista ou no chamado esquizofrênico, que se congela” (Lacan,

[1975]1993:134). Podemos pensar que o que se congela no autista e no esquizofrênico seja

justamente o S1. Assim, compartilhamos a hipótese de Pierre Bruno, de que o autismo seria

uma “esquizofrenia precocemente desencadeada” (Bruno, 1991:26).

Seguindo esse raciocínio, podemos pensar que, se o significante primeiro não

representa o sujeito para outro significante, então, este significante simplesmente não

representa. O sujeito, nesse caso, não comparece.

Vimos que no autismo, o sujeito não faz a Bejahung do S1. A questão que fica é

saber se a não Bejahung do S1 açambarcaria todos os significantes para fora do simbólico.

Se considerarmos que todos os significantes estão no real, como conceber a existência do

Outro no autismo? Segundo Rosine e Robert Lefort (2003) e Colette Soler (1991), no

autismo, o Outro está ausente, porque essas crianças se situam aquém de toda simbolização,

ou, nos termos de Rosine e Robert Lefort (1980), “o significante, não mais que o Outro, não

é aí promovido” (Lefort, e Lefort [1980]1990:283).

Resta-nos, portanto, refletirmos sobre a posição de Zenoni (1991) e Freire (2004)

sobre o Outro intrusivo. Nossa hipótese é que a não Bejahung dos significantes advindos do

Outro tem como corolário a presença excessiva do Outro. Ou seja, quando o sujeito não faz

a Bejahung dos significantes, estes tornam-se tão potentes que invadem o sujeito, de tal

maneira que as palavras são verdadeiramente “coisas”, como já o observava Freud, em

1915.

95

Vejamos o delírio de Schreber, a partir do qual Lacan (1955-56) pôde indicar a

relação do sujeito com o Outro.

A posição de Schreber diante do Outro parece evidenciar-se com o personagem

constituído no delírio: Deus. Lacan (1955-56) afirma que, com esse personagem, Schreber

estabelece uma dupla relação: “diálogo e relação erótica”. É importante marcar que essa

dupla relação implica disjunção, mas não é disjunta. Vejamos o comentário do autor sobre a

vertente da “relação erótica”:

“O delírio de Schreber vai nos desenvolver com efeito que Deus, por ter querido captar suas forças e fazer dele o resíduo, o lixo, a carcaça, objeto de todos os exercícios de destruição que ele, a seu modo intermediário, permitiu efetuar, está preso em seu próprio jogo. O grande perigo de Deus é, afinal de contas, o de amar demasiado Schreber, esta zona transversalmente transversal” (Lacan, [1955-56]1985:84)

O comentário de Lacan (1955-56) sobre a “relação erótica” de Schreber com Deus

parece indicar o que irá desenvolver no Seminário, livro 10. A angústia, no que diz respeito

à posição do psicótico como objeto de gozo do Outro. Retomaremos a questão, de forma

mais detalhada, na próxima seção.

Vejamos agora a vertente do diálogo, referente às mensagens interrompidas

emitidas por Deus, a partir das quais Schreber deveria retrucar com seu suplemento

significativo:

“Dessa estrutura, o sujeito nos fornece os seguintes exemplos (S.217-XVI[Memórias..., p.176]): (1) Nun will ich mich (agora eu vou me...); (2) Sie sollen nämlich (Você deve de fato...); (3) Das will ich mir (Nisso eu quero...), para nos atermos a estes, aos quais ele tem que retrucar com seu suplemento significativo, que não lhe traz dúvidas, a saber: (1) render-me ao fato que sou idiota; (2) quanto a você ser exposto (palavra da língua fundamental) como renegador de Deus e afeito a uma libertinagem voluptuosa, sem falar do resto; (3) pensar bem” (Lacan, [1953-54]1979:546)

É importante lembrar que essas relações, por mais que sejam dolorosas e importunas

para o sujeito, constituem uma necessidade cuja ruptura seria absolutamente intolerável.

Dessa forma, cada vez que se interrompe a relação em função da retirada da presença

divina, eclodem todas as espécies de fenômenos internos de dilaceramento, de dor,

diversamente intoleráveis.

96

Diante da ameaça de ser abandonado sem mais nem menos por Deus, que, em

conseqüência, o “deixaria jazer” (Lacan, 1955-56), Schreber não pára de pensar e de

completar as frases iniciadas por Ele.

A abordagem do comentário de Lacan (1955-56) do caso Schreber, nos faz notar o

quanto o Outro na psicose é invasor. Assim, trata-se de um Deus que ama demais e

persegue o sujeito, não o deixando parar de pensar. A mensagem é explícita e é tomada

como exigência, da qual o sujeito não pode escapar com o risco de ser deixado jazer.

Portanto, poderíamos conceber, como uma hipótese possível, que o Outro está ao

mesmo tempo presente e ausente na psicose. No caso Schreber, a não Bejahung do Nome-

do-Pai faz com que a mensagem do Outro, no delírio, não seja simbolizada, por isso as

palavras ganham peso, e são tratadas como coisa, invadindo o sujeito.

No autismo, mais especificamente, se seguirmos a hipótese de que nem mesmo há

inscrição do S1, podemos pensar que as palavras são muito mais pesadas e invadem o

sujeito de forma radical. Desse modo, se podemos falar de Outro no autismo, este só se

constitui como invasor.

O percurso que fizemos até o momento nos permite afirmar que a clínica com

crianças autistas exige um questionamento detalhado sobre a constituição do sujeito. Fomos

levadas à questão sobre as primeiras marcas – o traço unário; a partir daí pudemos pensar

os elementos necessários para a constituição de um sujeito.

Como vimos, a linguagem precede o sujeito. Sabemos que antes mesmo que o

sujeito advenha, ele é falado pelos pais. Nesse sentido, o sujeito, por ser filho de falante, já

nasce inserido no campo da linguagem, mesmo os autistas, porém, isso não é suficiente

para a constituição do sujeito. A constituição do sujeito é correlata à constituição do Outro.

A clínica com autistas nos ensinou que, se a linguagem é prévia ao sujeito, o mesmo

não podemos falar em relação ao Outro. Seguindo a afirmação de Lacan, já mencionada

anteriormente, “a mãe é outra coisa que não o objeto primitivo. Ela não surge como tal

desde o início, mas como frisou Freud, a partir desses primeiros jogos” (Lacan, [1956-

57]1995:67), podemos dizer, então, que a mãe, enquanto Outro, enquanto alteridade, se

constitui a partir da primeira simbolização, o que implica a necessidade da presença de S1 e

S2.

97

É também a partir da primeira simbolização - a Bejahung - que um sujeito pode

advir. Isso ocorre porque essa operação permite a inscrição do traço no registro simbólico,

inaugurando a cadeia significante, condição para que um significante represente o sujeito

para outro significante.

Vale lembrar, ainda, que a Bejahung implica a Ausstossung, a expulsão para fora

daquilo que escapa à simbolização. Instaura-se aí uma falta no “só depois” da determinação

simbólica. Esta falta, inaugurada pela inscrição do traço unário, vem marcar uma distância

mediatizadora entre o sujeito e o Outro.

A ausência da Bejahung no autismo parece indicar o quanto o Outro é intrusivo

nesses casos. Como vimos, no autismo, os significantes são tão potentes que invadem o

sujeito, como coisa. A questão que se coloca é saber o que o autista pode fazer frente ao

Outro intrusivo. Que recursos ele tem para manter uma distância, evitando o horror de um

Outro intrusivo?

Veremos, na próxima seção, a alteridade a partir do conceito de objeto a. Pela

impossibilidade de abordarmos este conceito em toda a extensão da obra de Lacan, faremos

esta abordagem no momento de sua emergência, ou seja, no Seminário, livro 10. A

angústia. Nele, Lacan (1962-63) formaliza o conceito de objeto a, embora a idéia já

estivesse sendo desenvolvida em outros seminários e textos anteriores, como, por exemplo,

quando aborda Das Ding em Seminário, livro 7. A ética da psicanálise (Lacan, 1959-60)

2.3 Alteridade e o objeto a

O que é o objeto a? Segundo Lacan (1962-63), o objeto a “é justamente o que

resiste a qualquer assimilação à função do significante, e é por isso mesmo que simboliza o

que, na esfera do significante, sempre se apresenta como perdido, como o que se perde para

a ‘significantização’” (Lacan, [1962-63]2005:193).

É na relação do sujeito com o Outro que o objeto a se constitui como resto.

Sabemos que a constituição do sujeito se inaugura pela referência ao significante e que o

Outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante. Mas nessa operação há algo que

não é representável – o objeto a.

98

No Seminário, livro 10. A angústia, Lacan (1962-63) formula uma operação de

divisão onde parte do Outro sem barra, (A), ou seja, o “Outro originário como lugar do

significante, e o S, o sujeito ainda inexistente, que tem que se situar como determinado pelo

significante” (Lacan, [1962-63]2005:36).

O sujeito se inscreve no Outro do significante, tornando-se um sujeito representável.

Dessa inscrição, algo se perde pelo fato de o sujeito não ser representado em sua totalidade.

Em outros termos, podemos dizer que o objeto a é efeito da linguagem, pelo fato de a

linguagem não cobrir, não representar o sujeito em sua totalidade.

Nesse sentido, o objeto a surge no intervalo onde um significante representa um

sujeito para outro significante, simbolizando aquilo que na esfera do significante se

apresenta como perdido. Ou seja, como aquilo que se perde à significantização.

Contudo, há também o Outro. Quando o objeto a cai como resto, transforma o Outro

sem barra em um Outro barrado. Como resto, resíduo, não representável, o objeto a é

“prova e garantia única, afinal da alteridade do Outro” (Lacan, [1962-63]2005:36).

Dessa forma, podemos dizer que a aparição do objeto a é concomitante à divisão do

sujeito e a barra do Outro, como podemos depreender na citação abaixo:

“(...) o sujeito barrado, o único a que nossa experiência tem acesso, constitui-se no lugar do Outro como marca do significante. Inversamente, toda a existência do Outro fica suspensa numa garantia que falta, donde o Outro barrado. Dessa operação, no entanto, há um resto, que é o a” (Lacan, [1962-63]2005:129)

Entendemos que o objeto a não é apenas um resto do sujeito; é um resto que vem do

Outro também. Afinal de quem é esse objeto? É do sujeito ou do Outro? Como veremos,

este objeto não é nem de um nem de outro. Digamos que ele se constitui entre o sujeito e o

Outro. Isso implica a constituição de um espaço sem interior nem exterior, sem dentro nem

fora, tal como na banda de Moebius:

“Depois do corte, resta algo comparável à banda de Moebius, que não tem imagem especular. (...) A partir deste momento, o vaso inteiro transforma-se numa banda de Moebius, já que uma formiga que passeie em seu exterior passa sem nenhuma dificuldade para o interior” (Lacan, [1962-63]2005:111-112)

99

Não é por acaso que Lacan (1956-57), já no Seminário, livro 4. A relação de objeto,

demonstra interesse no objeto transicional de Winnicott, uma vez que este objeto aponta

para um espaço que não é nem interior nem exterior ao sujeito. Vejamos:

“(...) é um fato de experiência que, mesmo na criança mais nova, vemos aparecer esses objetos que Winnicott chama de objetos transicionais porque não podemos dizer de que lado eles se situam na dialética, da alucinação e do objeto real” (Lacan, [1956-57]1995:34)

No Seminário, livro 10. A angústia, Lacan (1962-63) retoma a idéia, confirmando-a:

“É indicado com precisão que o objeto deve ser situado ausseres, no exterior, e, por outro lado, que a satisfação da tendência só consegue realizar-se na medida em que se liga a alguma coisa que deve ser considerada no inneres, no interior do corpo, onde ela encontra sua Befriedigung, sua satisfação” (Lacan, [1962-63]2005:115)

Como vimos, o objeto a é aquilo que cai na relação do sujeito com o Outro. Há uma

dupla perda, do lado do sujeito e do lado do Outro, o que permite escrever S e A. É na

medida em que se produz o objeto a, que algo falta tanto para o sujeito quanto para o Outro,

e a barra cai sobre eles.

O termo objeto a aparece, pela primeira vez, no texto de Lacan (1960) intitulado

“Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: ‘Psicanálise e estrutura da

personalidade’”. No texto, Lacan (1960) articula o objeto a com o desejo, mais

especificamente “objeto do desejo”, sendo, por isso, “o elemento da estrutura desde a

origem e, por assim dizer, da distribuição das cartas da partida que se joga” (Lacan,

[1960]1998:689). No Seminário, livro 10. A angústia, Lacan (1962-63) propõe uma revisão

do estatuto do objeto a, que passa de objeto do desejo a objeto causa do desejo. A revisão

vem apontar que o objeto está “atrás” e não “à frente” (Lacan, [1962-63]2005:115) do

desejo. Assim, não tem como o sujeito captar o objeto, como se ele estivesse à sua frente e

pudesse ser apreendido. Não se trata de desejar algo, uma pessoa, por exemplo, porque “o

objeto, em sua essência, é algo que se furta ao nível de captação” (Lacan, [1962-

63]2005:115).

É devido ao fato de este objeto a cair, como resto, na relação do sujeito com o

Outro, instaurando a falta em ambas as partes, que ele pode causar o desejo.

100

Para Lacan (1962-63), o desejo é desejo do Outro. Mas o que deseja o Outro?

Aquilo que lhe falta, o objeto a, como podemos depreender na afirmação de Lacan (1962-

63): “(...) o Outro instituirá alguma coisa, designada por a, que é aquilo de que se trata no

nível daquele que deseja” (Lacan, [1962-63]2005:33).

Segundo o autor, o desejo do Outro é enigmático, não só para o sujeito, mas

também para o Outro:

“O Outro concerne a meu desejo na medida do que lhe falta e de ele não saber. É no nível do que lhe falta e do qual ele não sabe que sou implicado da maneira mais pregnante, porque, para mim, não há outro desvio para descobrir o que me falta como objeto de meu desejo” (Lacan, [1962-63]2005:33)

Por isso Lacan propõe a fórmula “eu te desejo, mesmo que não o saiba” (Lacan,

[1962-63]2005:37). Vejamos como ele articula essa idéia, partindo da forma de conquista

do outro:

“Digo ao outro que, desejando-o, sem dúvida sem saber disso, sempre sem saber, eu o tomo como objeto, por mim mesmo desconhecido, de meu desejo. Ou seja, em nossa própria concepção do desejo, eu te identifico, a ti com quem falo, com o objeto que falta a ti mesmo. Ao rumar por esse circuito obrigatório para atingir o objeto de meu desejo, realizo para o outro justamente o que ele procura. Quando, inocentemente ou não, tomo esse desvio, o outro como tal, que aqui é objeto – observem bem – de meu amor, cairá forçosamente em minha rede” (Lacan, [1962-63]2005:37)

Vimos que o objeto a é o resto que se perde à significantização. A aparição do

objeto a é concomitante à barra no sujeito e no Outro, designando, assim, que algo lhes

falta. Exatamente por tratar-se de um objeto que se furta à captação, ele causa o desejo. O

desejo do homem é o desejo do Outro na medida em que o Outro deseja aquilo que lhe

falta, o objeto a.

2.3.1 A imagem especular e o duplo

Lacan (1962-63) elabora a teoria do objeto a a partir da questão da angústia, como

podemos depreender da afirmação “(...) o a pode aparecer na relação com o Outro. Se

101

podemos chegar a ele, é justamente através da função da angústia, uma vez que a angústia,

onde quer que se produza, é o sinal dele” (Lacan, [1962-63]2005:153).

Como podemos inferir da citação acima, a angústia é o sinal que indica a presença

do objeto a. Trata-se, no entanto, da presença de algo “que apenas parece sê-lo, porque o a

não é especularizável e não poderia aparecer aí, digamos, em pessoa” (Lacan, [1962-

63]2005:155).

Lacan (1962-63) situa, no esquema do espelho, a aparição do objeto a no lugar do

- ϕ:

“Essa ausência [na imagem especular] é também a possibilidade de uma aparição, ordenada por uma presença que está em outro lugar. Tal presença comanda isso muito de perto, mas o faz de onde é inapreensível para o sujeito. Como lhes indiquei, a presença em questão é a do a, o objeto na função que ele exerce na fantasia” (Lacan, [1962-63]2005:55)

Vale lembrar que o menos phi (-ϕ) é o suporte imaginário da castração, uma das

formas possíveis de aparecimento da falta. Esta falta comparece como uma fratura

imaginária. Ou seja, na constituição da imagem do corpo há um ponto cego, um branco, um

menos, algo que não se representa no espelho: o -ϕ, o falo imaginário, como argumenta

Lacan (1962-63): “Esse menos-phi não é mais visível, mais sensível nem mais

presentificável (...), porque não entrou no imaginário” (Lacan, [1962-63]2005:50).

A intervenção do objeto a no lugar vazio do -ϕ leva Lacan (1962-63) a alegar que,

neste momento, a “falta vem a faltar” (Lacan, [1962-63]2005:52). No lugar da falta patente

no -ϕ, o objeto a se revela, e é aí que a angústia se manifesta.

O autor retoma o texto de Freud (1919), “Das Unheimliche”, apontando para o

fenômeno do duplo. Neste caso, não se trata do duplo imaginário, do estádio do espelho, o

outro especular ou o outro da rivalidade. O que Freud (1909) aborda como o duplo, e que

provoca a Unheimlichkeit, não é o duplo especular, mas a presença do objeto a.

O Unheimlichkeit é “aquilo que aparece no lugar em que deveria estar o menos-phi”

(Lacan, [1962-63]2005:51). Prosseguindo, Lacan estabelece que “este lugar designado da

última vez como o menos-phi, agora o chamaremos por seu nome – é isso que se chama

Heim” (Lacan, [1962-63]2005:57).

102

Na interpretação do duplo tal como aparece em Das Unheimliche, Lacan (1962-63)

começa a situar como o objeto a pode aparecer de uma forma peculiar como duplo do

sujeito.

O momento de emergência do duplo é um momento de “revelação” (Lacan, [1962-

63]2005:101). A imagem especular, que é para o sujeito Heim, ou seja, familiar, torna-se a

imagem do duplo, causando o Unheimlichkeit, uma inquietante estranheza:

“(...) a imagem especular transforma-se na imagem do duplo, com o que esta traz de estranheza radical. Para empregar termos que adquirem significação por se opor aos termos hegelianos, ele nos faz aparecer como objeto, por nos revelar a não-autonomia do sujeito” (Lacan, [1962-63]2005:58)

O que Lacan (1962-63) parece indicar é que o momento da revelação é o momento

no qual o sujeito se experimenta como objeto, ou seja, a imagem do duplo “apodera-se da

imagem que o sustenta” (Lacan, [1962-63]2005:58).

A aparição do objeto a no lugar vazio do -ϕ revela o lugar que o sujeito ocupa como

objeto. Assim, a imagem especular torna-se a imagem do duplo, isto é, “nos faz aparecer

como objeto, por nos revelar a não-autonomia do sujeito” (Lacan, [1962-63]2005:58).

Como vimos anteriormente, o desejo do Outro refere-se ao objeto a. O sujeito entra

aí como objeto causa de desejo do Outro. Mas, é importante lembrar, como faz Diana

Rabinovich (2005) no livro A angústia e o desejo do Outro, que:

“alguém só pode tornar-se objeto, ocupar o lugar do que causa o desejo do Outro uma vez que o Outro o perdeu” (Rabinovich, 2005:56)

E ainda:

“(...) para o Outro, aquele para quem me constituo como causa, só consegui constituir-me como tal na medida em que esse Outro me perdeu como objeto de gozo (...). Se causo o desejo é porque o Outro já me perdeu como objeto de seu gozo” (Rabinovich, 2005:60)

O objeto causa de desejo é o “pedaço carnal arrancado de nós mesmos” (Lacan,

[1962-63]2005:235). Portanto, o objeto a se encarna sob a forma de corpo:

103

“O objeto perdido nos diferentes níveis da experiência corporal em que se produz seu corte, é ela que constitui o suporte, o substrato autêntico, de toda e qualquer função de causa. Essa parte corporal de nós é, essencialmente e por função, parcial. Convém lembrar que ele é corpo e que somos objetais, o que significa que não somos objetos do desejo senão como corpo”. (Lacan, [1962-63]2005:237)

É como objeto parcial que o sujeito pode ocupar a posição de objeto causa de desejo

diante do Outro.

Vimos que a imagem especular porta uma falta – o falo não é especularizável.

Portanto, na imagem do próprio corpo há um ponto cego, um vazio, o -ϕ. É no lugar desta

falta que uma presença pode se impor para o sujeito e, nesse caso, a falta vem a faltar,

causando uma inquietante estranheza. Trata-se da aparição do objeto a. Esse momento

revela para o sujeito sua posição de objeto a causa de desejo do Outro. Nesse caso, a

imagem especular torna-se a imagem do duplo. Em outros termos, podemos dizer que o

momento de angústia é, então, aquele em que o sujeito se experimenta em sua não

autonomia de sujeito, como assinala Lacan (1962-63), como puro objeto. O objeto como

causa, como presença que advém, é algo muito próximo do sujeito, porque é seu próprio

corpo. O sujeito, enquanto objeto causa de desejo, aparece como objeto parcial.

Entretanto, para que o sujeito ocupe o lugar de objeto causa de desejo é necessário

que o Outro seja barrado. Assim, a possibilidade da ausência é fundamental para que uma

presença se afirme. É na ausência do Outro que a Bejahung, enquanto primeira afirmação,

pode se constituir. Essa operação é correlata à queda do objeto, na medida em que a

Bejahung implica a Ausstossung.

Vimos que no autismo a primeira simbolização não ocorre; os autistas não fazem a

Bejahung. Logo, podemos concluir que não há queda do objeto e o Outro não é barrado.

Dessa forma, devemos nos interrogar que outro estatuto poderíamos identificar na teoria de

Lacan (1962-63), mais especificamente no Seminário, livro 10. A angústia, para

trabalharmos com este conceito no tratamento do autismo. Ou seja, que estatuto podemos

identificar do objeto a se este não é o resto da operação de barra no Outro?

104

2.3.2 O estatuto do objeto a na psicose

Vimos que na neurose a aparição do objeto a no lugar vazio, do menos-phi, a

castração imaginária, leva Lacan (1962-63) a afirmar que, nesse momento, a falta vem a

faltar. A princípio, não poderíamos nos servir desta afirmação para o autismo, posto que

não há falta. No entanto, a argumentação poderia ser interpretada de uma outra forma, com

menos rigor do que mencionamos até o momento. Nesse sentido, a alegação a falta vem a

faltar pode também significar que não tendo falta há presença o tempo todo. O equívoco da

língua e também as indicações de Lacan (1962-63) no Seminário, livro 10. A angústia, nos

permitem interpretar dessa forma. Vejamos, então, uma das afirmações de Lacan (1962-63)

que nos leva a seguir essa direção:

“(...) a angústia não é sinal de uma falta, mas de algo que devemos conceber num nível duplicado, por ser a falta de apoio dada pela falta. (...) Vocês não sabem que não é a nostalgia do seio materno que gera a angústia, mas a iminência dele? O que provoca a angústia é tudo aquilo que nos anuncia, que nos permite entrever que voltaremos ao colo. Não é ao contrário do que se diz, o ritmo nem a alternância da presença-ausência da mãe. A prova disso é que a criança se compraz em renovar esse jogo de presença-ausência. A possibilidade da ausência, eis a segurança da presença. O que há de mais angustiante para a criança é, justamente, quando a relação com base na qual essa possibilidade se institui, pela falta que a transforma em desejo, é perturbada, e ela fica perturbada ao máximo quando não há possibilidade de falta, quando a mãe está o tempo todo nas costas dela, especialmente a lhe limpar a bunda, (...) Não se trata de perda do objeto, mas da presença disto: de que os objetos não faltam” (Lacan, [1962-63]2005:64)

A idéia de que a falta vem a faltar, no sentido de uma presença maciça, de um

Outro, não barrado, que fica nas costas do sujeito, fazendo dele objeto de gozo, é muito

próxima de nossa experiência com autistas. O caso apresentado alhures, no qual a mãe

alimenta a filha o tempo todo, não deixando a mesma sentir fome, ou seja, falta, é um

exemplo.

Além disso, é interessante observar que os exemplos que Lacan (1962-63) utiliza

para elaborar a afirmação de que a falta vem a faltar parecem tratar-se de experiências

psicóticas, como veremos a seguir.

105

Lacan (1962-63) extrai do texto de Freud (1909), “Das Unheimliche”, “O Homem

de Areia”, um conto de Hoffmann, cujo relato gira em torno do personagem de mesmo

nome, que arranca os olhos das crianças.

O conto é iniciado com as recordações de infância de Nataniel, o protagonista. A

história do Homem de Areia é narrada pela mãe e a babá com o intuito de fazê-lo ir cedo

para a cama. Segundo este relato, o Homem de Areia seria um homem perverso que chega

quando as crianças não vão para a cama, e joga punhados de areia nos olhos delas, de modo

que estes saltam sangrando da cabeça.

Em um primeiro momento, Nataniel identifica este Homem de Areia na figura de

um advogado, Coppelius, que vinha visitar seu pai ao anoitecer. Ele relata uma cena (ou um

delírio?) em que Coppelius estava prestes a arrancar seus olhos e jogá-los no braseiro,

quando, então, é salvo pelo pai.

Em um outro momento da vida de Nataniel, dessa vez como estudante, ele

reconhece no oculista italiano, Guiseppe Coppola, a figura do Homem de Areia. Compra do

oculista um binóculo e, ao espiar o apartamento em frente à sua janela, apaixona-se por

Olímpia, que na verdade é uma boneca autômata fabricada pelo professor Spalanzani, cujos

olhos foram fabricados por Coppola. Um dia, o professor e o oculista brigam e este leva a

boneca embora sem os olhos, o que leva o professor a arremessar os olhos sangrentos da

boneca no peito de Nataniel, que, em um “ataque de loucura”, tenta estrangular o professor.

O conto termina com Nataniel se jogando do alto de uma torre, gritando “Sim!

Ótimos olhos – ótimos olhos!”, após avistar o advogado Coppelius no meio da multidão.

A questão do olhar parece nortear o conto do Homem de Areia. O sujeito em

questão parece não conseguir escapar deste olhar, encarnado na figura de Coppelius,

tornando-se ele próprio objeto de gozo, como podemos depreender na afirmação de Quinet

(2004):

“No final ele mesmo torna-se objeto de gozo do Outro, pois, no alto da torre da prefeitura, toda a multidão o olha, e toda ela torna-se o grande olho gozador de Coppelius. Nataniel não vê mais nada, é pura visibilidade e, como alvo do olhar do Outro, faz-se olhar, objeto que cai” (Quinet, 2004:110)

106

Um outro exemplo utilizado no Seminário, livro 10. A angústia refere-se a um caso

de esquizofrenia, do qual Lacan (1962-63) extrai a apresentação de Jean Bobon, uma jovem

mulher que durante o tratamento se entrega a uma atividade plástica. Dentre seus desenhos,

Lacan (1962-63) destaca um, por conter uma frase que é a “formulação de seu segredo”

(Lacan, [1962-63]2005:86). O desenho refere-se a uma árvore que possui olhos e, atrás

dela, há uma frase: Io sono sempre vista. Vejamos o comentário de Lacan (1962-63):

“É o que nunca pudera dizer até então, ‘Sou sempre vista’. Mas ainda preciso deter-me para levá-los a perceber que em italiano, assim como em francês, vista é ambíguo. Não é apenas um particípio, é também a visão, com seus dois sentidos, subjetivo e objetivo – a função da visão e o fato de ser uma vista, como se diz sobre a vista da paisagem, aquela que é tomada como objeto num cartão-postal” (Lacan, [1962-63]2005:86)

Como podemos constatar na citação acima mencionada, a jovem esquizofrênica é

visada por um olhar do qual não consegue escapar. Ela é totalmente vista, o tempo todo,

como uma paisagem para o olhar do Outro, ou nas palavras de Lacan (1962-63), “aquela

que é tomada como um objeto no cartão postal” (Lacan, [1962-63]2005:86).

Por fim, o conto de Guy de Maupassante – “O Horla” ([s/d] 2003). O Horla é o

nome atribuído pelo narrador a um Outro, que, aos poucos, vai invadindo e habitando seu

corpo. No começo, há apenas uma “horrorosa sensação de um perigo iminente”

(Maupassant, [s/d] 2003:168). Gradativamente, a presença cada vez mais forte de um ser

estranho e invisível vai ganhando consistência e até um nome:

“(...) essa dupla vida misteriosa que faz pensar se não haverá dois seres em nós, ou se um ser estranho, irreconhecível e invisível, quando a nossa alma está entorpecida, não animará por momentos o nosso corpo preso, que obedece a esse outro, como a nós mesmos, mais que a nós mesmos. (...) Parece-me que ele me grita o seu nome, e eu o

107

entendo...o...sim...ele grita...Eu escuto...eu não posso...repete, repete...o...Horla...Eu ouvi...o Horla...é ele...o Horla...ele veio!” (Maupassant, [s/d]}2003:173-183).

Lacan (1962-63), no Seminário, livro 10. A angústia, ao comentar o conto de

Maupassant, destaca o momento em que a imagem especular torna-se a imagem estranha e

invasiva do duplo:

“A imagem especular, pouco a pouco, no fim da vida de Maupassant, quando ele começou por não mais se ver no espelho, ou então percebia num cômodo alguma coisa, um fantasma, que lhe virava as costas e que ele sabia imediatamente que não deixava de ter certa relação com ele, e, quando o fantasma se virava, o escritor via que era ele. É disso que se trata na entrada do a no mundo do real, onde ele só faz retornar” (Lacan, [1962-63]2005:112)

Vejamos, no conto de Maupassant, o momento desta passagem:

“(...) atrás de mim, um alto armário de espelho, que me servia todos os dias para barbear-me, vestir-me, e onde eu tinha o costume de olhar-me, da cabeça aos pés, de cada vez que passava pela sua frente. Fingia, então, estar escrevendo, para enganá-lo, pois ele também me vigiava, e subitamente, senti, tive a certeza de que ele estava ali por cima de meu ombro, de que ele estava ali, roçando a minha orelha. Ergui-me, com as mãos estendidas, virando-me tão depressa que quase caí. Mas e então?!... Enxergava-se como em pleno dia, e eu não me vi no espelho. Ele estava vazio, claro, profundo, cheio de luz! A minha imagem não estava lá dentro... e eu me achava ali diante dele! (...) ele [o Horla] cujo corpo imperceptível havia devorado o meu reflexo. (...) Eu o tinha visto! E guardo o horror daquela visão, que me faz ainda estremecer” (Maupassant, [s/d]}2003: 185-186)

Vimos que, na neurose, no momento da emergência do objeto a no lugar vazio do

-ϕ, o falo imaginário, a imagem especular torna-se imagem do duplo. Ou seja, este é o

momento em que o sujeito se experimenta como objeto. Vale lembrar que, nesse caso, o

sujeito ocupa o lugar de objeto causa de desejo do Outro, posto que o objeto, na neurose, é

perdido.

Diferentemente, na psicose, o objeto não é perdido. Como vimos, a questão do olhar

norteia os três casos apresentados – o Homem de Areia, a jovem esquizofrênica e o Horla.

Nesses casos, nos parece que o olhar não tem o status de objeto separado do Outro, e sim de

um atributo do Outro, de um Outro não barrado. Este Outro não barrado torna-se invasor,

tem o poder de vigiar, de penetrar, de aniquilar, como pudemos conferir nos exemplos

apresentados.

108

Portanto, podemos dizer que o olhar do Outro é algo a que o sujeito não pode

escapar, tornando-se ele próprio o objeto de gozo deste olhar. Sendo assim, Nataniel,

“teleguiado” pelo olhar de Coppelius, que surge no meio da multidão, se joga do alto da

torre; a jovem esquizofrênica é tomada como “o objeto no cartão-postal” (Lacan, [1962-

63]2005:86), sempre vista; e o Horla é aquele que vigia, olha e penetra o sujeito.

Abordamos, no início deste capítulo, o termo Kakon, empregado por Lacan em

textos da década de 40 e início de 50. De forma geral, vimos que este termo está articulado

com a alteridade do outro. É interessante observar que Lacan (1950), no texto “Funções da

psicanálise em criminologia”, articula a estrutura do objeto com o delírio, e sua forma de

homicídio paranóico, no caso Aimée. Também no texto “A agressividade em psicanálise”

(1948), ele segue essa direção, afirmando o quanto Kakon figura como objeto persecutório

na psicose, estando na origem da “motivação mágica do maléfico, telepática, da influência,

lesiva, da intrusão física, abusiva, do desvio da intenção, espoliadora, do roubo do segredo

(...)” (Lacan, [1948]1998:113).

Será que poderíamos articular esse objeto, Kakon, com o que Lacan conceitualiza,

mais de dez anos depois, sob o nome de objeto a? Será que não poderíamos pensar em um

tipo de olhar do Outro, particular da paranóia, presentificado pela via de Kakon, este objeto

mau, invasor?

A partir de algumas indicações do Seminário, livro 10. A angústia, de Lacan (1962-

63), tentamos extrair algumas conclusões sobre o estatuto do objeto na psicose, mais

especificamente no autismo. Interpretamos, de forma menos rigorosa, a afirmação de Lacan

de que a falta vem a faltar como a ausência de falta na psicose, ou, em outros termos, uma

presença maciça, sem mediação, um Outro não barrado. Essa interpretação parece mais

próxima de experiências psicóticas como pudemos demonstrar a partir dos exemplos que

apresentamos. Isso significa dizer que, pela não inscrição do Nome-do-Pai no lugar do

Outro, o objeto – que nos casos apresentados refere-se ao olhar – não é extraído e, por isso,

torna-se invasor e perseguidor. Trata-se de um olhar que visa ao sujeito e do qual ele não

consegue escapar, tornando-se ele próprio o objeto de gozo do olhar do Outro (não

barrado), como demonstrou a jovem esquizofrênica: “Io sono sempre vista”.

109

Na paranóia, a partir do delírio, podemos notar a atribuição desse olhar ao Outro,

como fez Nataniel com Coppelius, e também Maupassant com o Horla. Na jovem

esquizofrênica, embora não seja evidente um delírio sistematizado, podemos, no entanto,

perceber a atribuição do olhar a alguma coisa, no caso, à árvore. E no autismo? Será que

podemos pensar que há alguma atribuição do objeto a alguém ou a alguma coisa? O gesto

da criança autista, que leva as mãos aos ouvidos, não estaria denunciando um delírio

rudimentar? Com este gesto ela não poderia estar atribuindo as vozes a alguém ou alguma

coisa? Deixaremos essas questões em aberto para futuro desenvolvimento.

Vimos, ao longo deste capítulo, a constituição do sujeito a partir da alteridade

através da abordagem dos três as: a, o pequeno outro; A, o grande Outro; a, o objeto a.

Constatamos que o eu se constitui a partir do outro, que é ao mesmo tempo

semelhante e dessemelhante. Consideramos que a alteridade do outro é fonte da

agressividade do sujeito, pela tentativa de apagar aquilo que não é igual. Nesse caso, o

outro é tomado como intruso, rival, que disputa com o eu o mesmo lugar. No entanto, no

autismo, o eu não se constitui, por falta do Ideal do eu que regula o imaginário. Dessa

forma, no autismo não há egoização.

Da dimensão egóica da alteridade, Lacan distingue uma outra dimensão que nada

tem de semelhante: a do grande Outro. Este se constitui como uma verdadeira alteridade,

por ser um lugar alhures, uma Outra cena. É a partir deste Outro que o sujeito pode advir,

uma vez que o inconsciente é o discurso do Outro. Todavia, no autismo, pela ausência da

Bejahung, o sujeito do inconsciente, sujeito dividido, não comparece.

Quanto ao objeto a, vimos que este se constitui como resto que cai na relação do

sujeito com o Outro. A queda do objeto barra o sujeito e o Outro. Assim, o objeto a é a

garantia da alteridade do Outro. Na psicose, o que ocorre é que este objeto não se perde e

por isso a falta vem a faltar. A angústia sobrevém diante desta presença maciça do Outro

que não sai das costas do sujeito.

Desse percurso que fizemos, fica a questão de como o sujeito no autismo, com tão

poucos recursos, ou seja, sem egoização, sem acesso ao simbólico, pode manter uma

distância, evitando o horror e a angústia da transferência com um Outro não barrado. Por

110

isso, no próximo capítulo, refletiremos sobre o lugar possível para um analista na direção

do tratamento com autistas.

111

3. O LUGAR DO ANALISTA NA DIREÇÃO DO TRATAMENTO COM

AUTISTAS

No texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, Lacan (1958)

revela a impropriedade conceitual da contratransferência. A impropriedade está no fato de

fazer intervir os sentimentos do analista em sua ação sobre o paciente, isto é, a práxis se

fundamenta na ação de dirigir o paciente. O autor ainda alerta: “A direção do tratamento é

outra coisa” (Lacan, [1958]1998:592). Nesta direção, só há um lugar possível para os

sentimentos do analista: o do morto.

Não se trata, portanto, de dirigir o paciente, mas de dirigir o tratamento e, no caso, o

paciente não é o único a pagar sua quota. Também o analista tem que pagar. Ele paga com

sua palavra, com sua pessoa e com seu ser, situando-se em sua falta-a-ser.

Para abordar a direção do tratamento, Lacan (1958), tomando como referência a

teoria de guerra do general Carl von Clausewitz (1780-1831), estabelece três planos: tática,

estratégia e política.

Na tática, o analista é “livre quanto ao momento, ao número e também à escolha” de

suas interpretações (Lacan, [1958]1998:594). No entanto, a liberdade só pode ser assim na

medida em que está ligada à transferência, pois é “como proveniente do Outro da

transferência que a fala do analista continua a ser ouvida” (Lacan, [1958]1998:597).

Na estratégia, que corresponde à transferência, o analista é menos livre, na medida

em que ele empresta sua pessoa “como suporte aos fenômenos singulares que a análise

descobriu na transferência” (Lacan, [1958]1998:593). Menos livre o analista é em sua

política, na qual vem se situar em sua falta-a-ser.

Nessa perspectiva, para situar o lugar do analista no tratamento com autistas, é

necessário seguir as questões levantadas por Lacan (1958), a partir do tripé – tática,

estratégia e política –, quais sejam: qual o lugar da interpretação? Em que ponto estamos

com a transferência? Como agir com seu ser?

112

Se o tratamento analítico implica nesse tripé, como dirigir um tratamento no

autismo? A interrogação implica abordarmos cada elemento do tripé. Vejamos inicialmente

a tática.

3.1 Tática: como é a interpretação no autismo?

Há no ensino de Lacan uma série de textos sobre interpretação, que variam

conforme o momento em que são elaborados, sendo cada um célebre a seu modo. Pela

impossibilidade, no momento, em percorrermos toda a extensão da obra lacaniana sobre o

conceito de interpretação, posto que nos desviaríamos do tema principal, faremos um

recorte do conceito apresentado em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”,

com o intuito de refletirmos acerca da interpretação no autismo.

Assim, no texto acima citado, Lacan começa constatando que, no momento em que

escreve, 1958, a interpretação não aparece em parte alguma. O que se verifica é todo tipo

de intervenções imaginárias: explicações, gratificações, respostas à demanda.

A interpretação, de acordo com o autor, se fundamenta no fato de o inconsciente ter

a estrutura da linguagem, cujo material funciona segundo leis das línguas faladas. Nesse

sentido, age através do significante, como podemos depreender da citação abaixo:

“Nossa doutrina do significante é, para começar, disciplina na qual aqueles a quem formamos se exercitam nos modos de efeito do significante no advento do significado, única via para conceber que, ao se inscrever aí, a interpretação possa produzir algo novo” (Lacan, [1958]1998:600)

Como vimos, a interpretação age sobre o significante, produzindo algo novo. Mas o

que seria esse algo novo produzido pela interpretação?

“A interpretação, para decifrar a diacronia das repetições inconscientes, deve introduzir na sincronia dos significantes que nela se compõem algo que, de repente, possibilite a tradução – precisamente aquilo que a função do Outro permite no receptáculo do código, sendo a propósito dele que aparece o elemento faltante” (Lacan, [1958]1998:599)

113

O que a citação acima mencionada parece indicar é que o algo novo produzido pela

interpretação tem a ver com o elemento faltante do Outro. Esse elemento faltante, por sua

vez, Lacan (1958) parece articular com o intervalo entre os dois significantes. Por isso

retoma o exemplo do neto de Freud (1920), ressaltando o intervalo na “distinção fonética

no Fort Da” (Lacan, [1958]1998:600). Com Éric Laurent (1995) podemos dizer que, em

“A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, Lacan (1958) sistematizou o

“manejo da interpretação como aquilo que, acrescentando um significante ao que se

constitui como uma bateria, um conjunto, faz surgir a diferença pura, o nada que é o

próprio fundamento do conjunto dos significantes” (Laurent, 1995:21).

A questão que fica é saber se podemos utilizar a tática estabelecida por Lacan

(1958) na direção do tratamento com psicóticos. A interpretação, nesse momento de sua

obra, incide no intervalo entre os significantes. Mas será que poderíamos falar de intervalo

na clínica da psicose?

No Seminário, livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan

(1964) articula o conceito de holofrase à ausência de intervalo:

“Chegaria até a formular que, quando não há intervalo entre S1 e S2, quando a primeira dupla de significantes, se holofraseia, temos o modelo de toda uma série de casos – ainda que, em cada um, o sujeito não ocupe o mesmo lugar” (Lacan, [1964]1985:225)

Portanto, na psicose, em função da holofrase, o intervalo entre um significante e o

outro não comparece. Nesse caso, retomando a leitura que fizemos do Seminário, livro 10.

A angústia, no capítulo anterior, podemos dizer que, na psicose, “a falta vem a faltar”. Em

relação à holofrase, Lacan (1958), ainda, põe em série o efeito psicossomático, a criança

débil e a psicose.

O significante não pode “significar-se a si mesmo sem engendrar alguma falta de

lógica” (Lacan, [1964]1985:236), logo, há falha, há um intervalo entre um significante e o

significante pelo qual se designa este significante. O autor ilustra o fato a partir da palavra

“obsoleta”: “A palavra obsoleta no que pode significar que a palavra obsoleta é ela própria

uma palavra obsoleta, não é a mesma palavra obsoleta de um lado e do outro” (Lacan,

[1964]1985:199).

114

O fato de o significante não poder significar-se a si mesmo, permite a dimensão da

metáfora, ou seja, todo significante pode vir no lugar de um outro e produzir uma

significação.

Tomando emprestado do poema “Booz Dormindo”, de Victor Hugo, o verso “Seu

feixe não era avaro nem odiento...”, Lacan argumenta que um feixe não pode ser nem avaro

nem odiento, “pela simples razão de que não se trata de ele ter mais mérito ou demérito por

esses atributos, posto que ambos, juntamente com ele, são propriedade de Booz” (Lacan,

[1957]1998:511). Feixe é um significante que veio no lugar de outro significante Booz. Eis

a fórmula da metáfora: “uma palavra por outra” (Lacan, [1957]1998:510). “Se o feixe

remete a Booz, como efetivamente faz, no entanto, é por substituí-lo na cadeia significante,

no exato lugar que o esperava...” (Lacan, [1957]1998:511), ou seja, se “seu feixe” substitui

“Booz” é porque ambos estão postos na mesma posição na proposição.

Entretanto, a metáfora não se constitui apenas como substituição de um significante

por outro; há também produção de significação. Nesse sentido, no exemplo apresentado, “é

entre o significante do nome próprio de um homem e aquele que o abole metaforicamente

que se produz a centelha poética, ainda mais eficaz aqui, para realizar a significação da

paternidade” (Lacan, [1957]1998:511).

Podemos argumentar que a condição da metáfora está na relação, mais

especificamente na relação de diferença, do significante com outro significante. Contudo,

se na holofrase um significante não remete a outro, como conceitua Lacan (1964), então,

nesse caso, os significantes não constituem efeito de metáfora. Assim, Lacan (1964) afirma:

“Essa solidez, esse apanhar a cadeia significante primitiva em massa, é o que proíbe a

abertura dialética” (Lacan, [1964]1985:225). Esse aspecto nos remete à questão do

neologismo que estudamos no capítulo anterior. Pelo que vimos, na ausência de metáfora

na psicose as palavras tornam-se pesadas, como no exemplo que abordamos, apresentado

por Freud (1915), sobre a paciente esquizofrênica que experimenta no real o peso da

expressão “olhos virados”.

É importante lembrar que, em relação ao autismo, Lacan (1975) afirma que “são

simplesmente pessoas para as quais o peso das palavras é muito sério e que não estão

facilmente dispostas a estar à vontade com essas palavras” (Lacan, [1975]1976:45-46).

115

Rosine e Robert Lefort (2003), no livro La distinction de L’Autisme, alegam que “a

falta de divisão do sujeito autista não vem de uma holofrase S1-S2 mas de uma ausência de

S2 que faz do S1 o Um sozinho no real” (Lefort e Lefort 2003:71). Essa idéia vem

confirmar nossa hipótese desenvolvida alhures, a saber, que no autismo trata-se de um S1

sozinho, que não reenvia a um S2, nem mesmo a outro S1. De acordo com a hipótese,

podemos supor que no autismo o peso das palavras é muito sério, pois trata-se de um S1

sozinho que não faz cadeia, portanto, proíbe a abertura dialética. Se as palavras são tão

pesadas, talvez não possam ser usadas. Será, então, que podemos pensar em uma tática, na

direção do tratamento com autistas, onde fosse possível tornar as palavras mais “leves”, de

forma que a criança autista possa estar mais à vontade com elas?

Para refletirmos sobre os destinos da interpretação na direção do tratamento com

autistas, abordaremos casos clínicos disponíveis na literatura psicanalítica. Iniciaremos com

o caso Roberto, apresentado por Rosine Lefort (1953-54) e comentado por Lacan (1953-

54), no Seminário, livro 1. Os escritos técnicos de Freud.

Sabemos que a questão do diagnóstico de Roberto não é muito definida, mas as

considerações traçadas por Lacan (1953-54) nos permitirão pensar melhor sobre a direção

do tratamento.

3.1.1 O caso Roberto, de Rosine Lefort

Roberto começa a ser atendido por Rosine Lefort quando tinha três anos e nove

meses. Do ponto de vista da linguagem, o menino apresentava “ausência total de palavras

coordenadas, gritos freqüentes, risos guturais e discordantes. Só sabia dizer duas palavras,

que gritava – Dona! e O lobo!. Esta palavra, O lobo!, ele a repetia o dia todo (...)” (Lefort,

apud Lacan [1953-54]1979:111)11.

Lacan (1953-54), no comentário que faz sobre o caso, chama a atenção para a

palavra “O lobo!”, “palavra reduzida ao seu caroço” (Lacan, [1953-54]1979:125). Além

disso, concorda com a Sra. Lefort no que diz respeito à “criança só viver o real” (Lacan,

[1953-54]1979:124). Considerando-se o que foi colocado anteriormente, podemos pensar

11 Lacan (1953-54) abre um espaço em seu Seminário para Rosine Lefort apresentar o caso de Roberto.

116

que a palavra “O lobo!” não tem função simbólica, o que a torna bem diferente do Fort Da

do neto de Freud (1920). Vale lembrar que é o caráter diferencial do significante que

fundamenta a lógica da cadeia. Assim, no Fort Da, a relevância está justamente na

oposição entre dois significantes. Entre o Fort e o Da há intervalo, no entanto, o mesmo

não ocorre em “O lobo!”. Trata-se, nesse caso, de uma palavra isolada que não remete à

oposição. Dessa forma, “O lobo!” refere-se a um significante que, por não remeter a outro

significante, proíbe a abertura dialética.

A ênfase que estamos dando na palavra “O lobo!” se justifica pela importância que

tem no tratamento, posto que, apesar de ser uma “palavra reduzida ao seu caroço”, “é a

partir de O lobo! que ela [a criança] poderá encontrar o seu lugar e se construir” (Lacan,

[1953-54]1979:125). Mas como?

Segundo o relato de Rosine Lefort (1953-54), Roberto “repetia o dia todo” (Lefort

apud Lacan, [1953-54]1979:111)a palavra “O lobo!”, a fim de designar várias coisas: ele

próprio, a analista, a areia, o xixi, etc. Antonio Quinet (2006), no livro Psicose e laço

social, argumenta que “As palavras [na esquizofrenia] são tentativas de etiquetar os objetos

para lhes dar existência no significante. Trata-se de significantizar o real, reconstituindo o

Outro simbólico” (Quinet, 2006:81). É importante assinalar, como faz o autor, que se trata

de um processo metonímico; são tentativas de etiquetar, que, porém, não funcionam como

etiqueta porque não se trata de metáforas.

Tudo indica que a palavra “O lobo!” não tem a dialética do desaparecer e aparecer

presente no jogo do Fort Da. Como vimos, algo só pode ser afirmado (Bejahung) sob o

fundo de um desaparecimento (Ausstossung); quando algo é afirmado sem o fundo da

Ausstossung, não há Bejahung.

Vejamos abaixo, a partir do relato de Rosine Lefort (1953-54), dois momentos na

direção do tratamento:

“Eu era pois O lobo! Roberto separou-se dele ao longo de uma sessão fechando-me no banheiro, depois voltou só ao quarto das sessões, subiu na cama vazia, e pôs-se a gemer. Não podia me chamar, e era preciso entretanto que eu voltasse, porque eu era a pessoa permanente. Voltei. Roberto estava estendido, patético, o polegar mantido a dois centímetros da sua boca. E, pela primeira vez numa sessão, estendeu-me os braços e se fez consolar. (...) A partir desta sessão, assistimos na instituição a uma mudança total do

117

seu comportamento. (...) tive a impressão de que ele tinha exorcizado O lobo! (...) A partir desse momento, não falou mais dele (...)” (Lefort apud Lacan, [1953-54]1979:117) /.../ “Roberto, inteiramente nu à minha frente, pegou água com as mãos juntas, levou-a à altura dos ombros e fê-la escorrer ao longo do seu corpo. Recomeçou assim várias vezes, e depois disse-me, docemente: - Roberto, Roberto” (Lefort, apud Lacan [1953-54]1979:118)

A esse respeito, Lacan (1953-54) comenta:

“O que há de admirável nessa observação é o momento em que, depois de uma cena que você descreveu, desaparece o uso do termo O lobo! É em volta desse pivô da linguagem, da relação a essa palavra que é para Roberto o resumo de uma lei, que se dá a virada da primeira para a segunda fase. Começa em seguida essa elaboração extraordinária que termina por esse autobatismo pertubador, quando ele pronuncia o seu próprio prenome. Tocamos aí, na sua forma mais reduzida, a relação fundamental do homem à linguagem. É extraordinariamente comovente” (Lacan, [1953-54]1979:124)

É interessante observar, na direção do tratamento do menino, o destino da palavra

“O lobo!”. Uma palavra inicialmente reduzida a seu caroço pode tornar-se metonímica, na

tentativa de “etiquetar” (Quinet, 2006:81) uma série de objetos que se substituem uns aos

outros. Depois desse percurso, a palavra pode ser “exorcizada” (Lefort apud Lacan, [1953-

54]1979:117), “desaparecer” (Lacan, [1953-54]1979:124). Fica a questão de saber o que

Rosine Lefort e Lacan estão indicando com os termos “exorcizada” e “desaparecer” em

relação a “O lobo!”. Será que poderíamos pensar em Bejahung?

Ainda sobre “O lobo!”, Lacan (1953-54) estabelece que é a partir desta palavra que

a analista pode intervir:

“Como você indicou pertinentemente, não é uma criança-lobo que teria vivido na simples selvageria, é uma criança que fala, e é por esse O lobo! que você teve desde o início a possibilidade de instaurar o diálogo” (Lacan, [1953-54]1979:124)

É importante assinalar a posição ética do analista diante da psicose na afirmação de

Lacan (1958) acima citada. Diferentemente da psiquiatria, que trata as manifestações da

psicose como erro, déficit ou patologia que devem ser eliminadas, a psicanálise vem

mostrar que as manifestações na psicose são tentativas de cura, e, ao invés de eliminá-las,

elas devem ser acolhidas.

118

Nesse sentido, podemos dizer que Freud surpreende os psiquiatras de sua época ao

afirmar que o delírio é uma tentativa de cura do sujeito psicótico. Trabalhando o texto

“Memórias de um doente dos nervos” (Schreber, 1903), Freud (1911) percebe a construção

delirante de Schreber, e alega que, a partir dali, o quadro clínico se estabilizará.

Lacan (1953-54), ao afirmar que é a partir da palavra “O lobo!” que Rosine Lefort

pode intervir, não estaria seguindo a mesma direção de Freud? Ou seja, ele não estaria

indicando que a palavra “O lobo!”, ainda que bizarra e neológica, deve ser acolhida pela

analista? Será que em relação aos movimentos estereotipados do autismo poderíamos

seguir a mesma direção? Isto é, ao invés de tentar eliminá-los, como faz hoje a psiquiatria,

não deveríamos acolhê-los? Deixaremos estas questões em aberto para uma reflexão futura.

Podemos, entretanto, inferir do comentário de Lacan (1953-54) a importância da

palavra “O lobo!” na direção do tratamento que, reduzida ao seu caroço, pode tornar-se

metonímica a partir do acolhimento de um analista.

Vejamos, na próxima subseção, os comentários feitos por Lacan (1953-54) no

Seminário, livro 1. Os escritos técnicos de Freud, acerca do clássico caso de Melanie Klein

(1930) – Dick. A intervenção de Melanie Klein, mesmo depois de ser comentada por Lacan

(1953-54), ainda deixa muitos enigmas. O caso é relevante, sobretudo se considerarmos que

é a partir das intervenções que Dick pode progredir.

3.1.2 O caso Dick, de Melanie Klein

Na primeira vez que Dick chega no consultório de Melanie Klein (1930), não

expressa nenhum afeto ao ser deixado pela babá e segue, sem oposição, a analista. Ele

também não demonstra nenhum interesse nos brinquedos que a analista havia lhe

preparado. Mas, apesar da indiferença de Dick, Melanie Klein (1930) seleciona dois trens e

os nomeia: “Trem Papai”, para o trem grande, e “Trem Dick”, para o pequeno. Foi a partir

desta nomeação, que a criança pega o trem chamado Dick, empurra-o até a janela e diz:

“Estação”. Então, Melanie Klein (1930) lhe reenvia: “A estação é a mamãe; o Dick está

entrando na mamãe” (Klein, [1930]1996:257).

119

Lacan (1953-54) faz um longo comentário sobre o caso Dick, de onde destacamos

alguns pontos que consideramos importantes para refletirmos sobre a interpretação no

tratamento com autistas:

“Melanie Klein (...). Parte, diz ela, de idéias que tem, e que são conhecidas, do que se passa nesse estado. Eu vou sem mais e digo a ele: - Dick pequeno trem, grande trem Papai trem. Nisso, a criança se põe a brincar com seu trenzinho, e diz a palavra station, isto é, estação. Momento crucial, em que se esboça a junção da linguagem e do imaginário do sujeito.(...) E muito depressa a criança progride. É um fato” (Lacan, [1953-54]1979:102)

Vale lembrar que, quando encontra Melanie Klein, o menino possui “alguma coisa

da linguagem” (Lacan, [1953-54]1979:98), mas desta linguagem ele “não fez a Bejahung”

(p.86). Por isso Lacan (1953-54) afirma que, para o menino, “tudo lhe é igualmente real,

igualmente indiferente” (p.98) – Dick “está inteirinho no indiferenciado” (p.84). O autor se

interroga, então, sobre a função própria da interpretação kleiniana: “(...) não será na medida

em que, digamos, Melanie Klein fala, que algo se passa?” (p.90). Mais adiante, neste

Seminário, responde:

“A criança simboliza a realidade em volta dela a partir desse núcleo, dessa pequena célula palpitante de simbolismo que lhe deu Melanie Klein. (...). Não há nenhuma espécie de inconsciente no sujeito. É o discurso de Melanie Klein que enxerta brutalmente (...) as primeiras simbolizações” (Lacan, [1953-54]1979:103)

Como podemos constatar na intervenção de Melanie Klein (1930) e, depois, no

comentário de Lacan (1953-54), foram as palavras introduzidas por ela que permitiram

Dick progredir. Assim, aquele para quem tudo era indiferente pôs-se a pronunciar um

primeiro apelo: ele pergunta pela babá. O que Lacan (1953-54) parece insistir no

comentário que faz do caso clínico é que o progresso do menino só ocorre a partir do

simbólico, ou seja, da “célula palpitante” introduzida pela analista. A questão que fica é a

de saber qual o estatuto desta “célula palpitante”. E como, a partir da “célula”, Dick se

“integra ao sistema simbólico” (Lacan, [1953-54]1979:104).

Melanie Klein (1930) dá à criança dois significantes: “trem papai e trem Dick”.

Seriam significantes unários? Se assim pudéssemos conceber, diríamos que esses

120

significantes se inscreveram no simbólico do sujeito, como traço unário, como marca. Ao

lado do significante “trem papai” se inscreve outro significante “trem Dick”. Não se trata

de cadeia, são traços tais como aqueles encontrados sobre costelas de antílope, como

assinala Lacan (1961-62) no Seminário, livro 9. A identificação.

Como vimos, após a analista nomear os trens de Papai e Dick, o menino pronuncia a

palavra “estação”. Será que podemos pensar que “estação” é uma resposta do sujeito em

relação aos trens nomeados por ela? Ao dizer “estação”, Dick poderia estar fazendo uma

cadeia? Não temos ainda uma resposta para as questões levantadas, mas, diante dos casos

que analisamos – Roberto e Dick –, parece que uma direção possível começa a se delimitar.

Para Lacan (1958), no momento em que escreve “A direção do tratamento e os

princípios de seu poder”, a interpretação incide sobre o intervalo entre os significantes, ou

seja, sobre o nada, o vazio. Entendemos que a interpretação, na direção do tratamento da

neurose, confronta o sujeito com o real. Poderíamos pensar, então, que se trata de uma

direção que vai do simbólico ao real. A clínica com psicóticos parece tomar uma direção

oposta. Será que poderíamos contrapor a interpretação na clínica da neurose, que vai do

simbólico ao real, com a interpretação na clínica da psicose que iria do real ao simbólico?

Pensamos nesta hipótese a partir das reflexões que fizemos até aqui acerca dos casos

Roberto e Dick. Vimos que em ambos os casos há uma tentativa de significantizar o real:

no caso Roberto, a tentativa é patente nos deslocamentos realizados a partir da palavra “O

lobo!”; no caso Dick, a partir da “célula palpitante” introduzida por Melanie Klein (1930).

Até o momento, pudemos extrair algumas conseqüências clínicas do comentário de

Lacan sobre os casos de Roberto e Dick. Veremos agora dois casos clínicos de uma

instituição belga, chamada Antenne110, fundada em 1974.

3.1.3 L’Antenne 110: Tano e Yves

Virginio Baio (2005), membro de Antenne, traça considerações importantes sobre a

interpretação e o lugar do analista no tratamento com autistas. No texto “Nome-do-Pai e

autismo”, o autor apresenta fragmentos de um caso clínico. Trata-se de Tano, um menino

de 5 anos, que repete incessantemente a seguinte “pantomima” (Baio, 2005:21): bate com

121

um objeto na parede, ao mesmo tempo, produz ruído com a boca. Os pedacinhos de

madeira e de argamassa que caem no chão, em função das batidas na parede, são ingeridos

por ele. É importante ressaltar, como faz Baio (2005), que a madeira, os pedacinhos de

argamassa, que a criança ingere, são elementos presentes na profissão do pai que é

construtor. Em relação à pantomima de Tano, comenta:

“Se, por um lado, a ‘necessária’ e incessante pantomima dá a Tano um lugar, se é sua enunciação mínima com a qual se defende do Outro, por outro lado, todavia, ele permanece segregado e se vê absorvido em dever renová-la, sem cessar, em um dizer que não se enoda no Outro” (Baio, 2005:22)

Para Baio, a pantomima refere-se a uma “invenção” (Baio 2005:21), mas que não

encontra um ponto de basta. A questão que surge é saber como um analista pode intervir

diante desta “invenção” do sujeito. Para responder a esta questão, o autor apresenta uma

intervenção realizada com o menino, no “ateliê da fala”.

No “ateliê da fala”, ao batuque de Tano na parede, o educador, após um intervalo de

tempo, produz um acorde com a guitarra. Depois de algum tempo, a criança pára de

batucar, se volta e olha para ele. Quando seu olhar encontra o do educador, este começa a

cantar: “Aqui está o Tano! Oi, Tano!”. Isso se repete durante alguns ateliês. Finalmente, um

dia, Tano levanta, se aproxima do educador, sorri, e lhe abraça.

O que faz o educador? Segundo Baio (2005), ele tenta acrescentar ao batuque na

parede, que teria valor de S1, um S2, o acorde de guitarra, que poderia instalar o S1. Nesse

sentido, o S2 teria por função introduzir na série incessante do S1, uma parada, uma

suspensão:

“A articulação mínima entre o batuque, (S1), e o acorde de guitarra, (S2), propicia, como efeito de apré-coup, o surgimento de um sujeito que se volta e olha, (S), balizável no intervalo da série significante, na suspensão do batuque” (Baio, 2005:22)

No texto “Quem interpreta no autismo?”, Baio (1996) oferece maiores

esclarecimentos quanto ao lugar possível da função da interpretação com crianças autistas,

a partir de um exemplo clínico.

122

Yves, uma criança de cinco anos, passa todo seu tempo batendo nas embalagens de

plástico de biscoito. Esta construção vai se tornando cada vez mais complexa: Yves corta

pedaços da embalagem e os alinha, depois passa da embalagem de plástico para a revista.

Corta um pedaço desta, de forma a funcionar como uma porta que se abre e fecha sobre a

própria folha. Em seguida, cola a porta em uma caixa e, a partir dela, começa a construir

uma casa, introduzindo personagens, nomeando suas diferentes partes (jardim, garagem,

etc). Ou seja, realiza circuitos cada vez mais complexos. Yves era um menino que não

falava, cuja linguagem, após essas construções, “se enriquece e torna-se cada vez mais

coerente, mesmo se os transtornos da linguagem sinalizem sua posição psicótica. Ele diz,

por exemplo (...) ‘O tubo do exaustor respira’” (Baio, 1996:21).

A partir do exemplo clínico, Baio (1996) formula o lugar do analista como o de

notário:

“Nós descobrimos que Yves chega na instituição já estando em trabalho: já há uma primeira interpretação delirante, que se torna metonímica graças a oferta de parceiros (a logopède ou outros educadores) que se oferecem docilmente, segundo a expressão de uma paciente, ‘se faz notário’, isto quer dizer que faz ato notariado do saber interpretativo de Yves. Eles se oferecem (...) em posição de um ‘S2 singular’, eles lhe reenviam que seu saber foi bem “recebido”, que é bem anotado, e que, para eles [os educadores], isto faz ato. Em posição de S2 singular, desde que este S2 seja esvaziado de saber, um S2 que se regula sobre o saber interpretativo do sujeito. Um S2 que só tem função de anotar este saber interpretativo de Yves” (Baio, 1996:21-22)

Com os escritos e a experiência clínica do autor acima citado, esclarece-se, então,

que a tática na direção do tratamento com autistas, consiste, em vez de interpretar, notificar

a mensagem do sujeito.

Essa tática, aliás, parece se aproximar daquilo que Lacan (1955-56) formula no

Seminário, livro 3. As psicoses como secretário do alienado:

“Pois bem, não só nos passaremos por seus secretários, mas tomaremos ao pé da letra o que ele nos conta – o que até aqui foi considerado como coisa a ser evitada” (Lacan, [1955-56]1985:237)

Se a interpretação no tratamento com neuróticos incide no intervalo entre os

significantes, como pudemos inferir do escrito de Lacan (1958), “A direção do tratamento e

123

os princípios de seu poder”, no tratamento com autistas devemos pensar uma outra tática,

considerando-se que, nesse caso, a falta vem a faltar. Devido à ausência de intervalo no

autismo, posto se tratar de um S1 sozinho, as palavras são muito pesadas, a ponto de o

sujeito não poder estar a vontade com elas. Por esse motivo, consideramos fundamental nos

interrogarmos sobre o destino da interpretação no tratamento com essas crianças.

Destacamos, do comentário de Lacan (1958) sobre o caso Roberto, a importância da

palavra O lobo! na direção do tratamento, como uma tentativa do sujeito de significantizar

o real. Também no caso Dick, Lacan (1958) parece indicar que a interpretação de Melanie

Klein (1930) permite introduzir um simbolismo onde até então tudo era indiferenciado.

A partir desses comentários, extraímos uma possível hipótese: diferentemente da

neurose, na qual o analista confronta o sujeito com o real, no autismo a posição do analista

seria a de acolher as tentativas do sujeito de significantizar o real.

Segundo Baio (1996), a posição é a do notário, ou seja, o analista ao invés de

interpretar, notifica, testemunha a tentativa da criança em significantizar o real.

3.2 Estratégia: em que ponto estamos com a transferência?

De acordo com nossa proposta inicial, seguiremos o trajeto percorrido por Lacan

(1958) no texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, para refletirmos

sobre a transferência no autismo. Neste texto, ao se interrogar sobre em que ponto está a

transferência na psicanálise, Lacan (1958) questiona três posições que representavam,

naquele momento, em 1958, as principais teorias sobre a transferência. Acompanhando o

autor em sua trajetória, apresentaremos, de forma sucinta, os comentários que tece sobre as

teorias.

A primeira posição refere-se à teoria de Anna Freud, que, segundo Lacan (1958),

articula o geneticismo, nutrido pela observação direta da criança, à análise das defesas. Em

“A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, o autor denuncia as intenções

reducionistas da teoria: reduz a emergência pulsional à fisiologia e “as estruturas

manifestamente mais complexas que Freud introduziu na psicologia” (Lacan,

124

[1958]1998:610) às etapas observáveis do desenvolvimento, tal como foram formuladas

por Piaget.

A teoria de Anna Freud influenciou vários analistas que tratavam crianças autistas,

como Margaret Mahler, cuja teoria já foi por nós abordada no primeiro capítulo. È

importante lembrar os impasses que esta teoria provoca na clínica, devido ao fato de dirigir

o tratamento por uma via pedagógica. Com efeito, tal como Anna Freud, Mahler também

toma como referência a teoria piagetiana. Ela reduz estruturas complexas à fase de

desenvolvimento de Piaget. O caso Stanley é um exemplo: Mahler (1953) justifica a

angústia do menino diante da campainha do interfone pela falta de percepção da criança da

relação entre causa e efeito. Assim, argumenta:

“Este comportamento é reminiscente daquele estágio do desenvolvimento inicial do ego, descrito por Piaget (1923) quando afirmou que a criança pequena não pode conceber as relações causais a menos que causa e efeito estejam em seu ‘campo perceptivo’” (Mahler, [1953]1983:85)

Mahler (1953), então, constrói um aparelho para explicar a Stanley a relação de

causa e efeito entre o interfone e a campainha. A explicação fracassa, o que ela mesma

reconhece, pois afirma que ele “permanece tão ansioso, confuso e espantado como antes”

(Mahler, [1953]1983:85). A única coisa que a autora não consegue entender na direção do

tratamento é o porquê de a criança não associar a campainha ao interfone. Ela poderia

interpretar que a campainha é tão invasora que o deixa horrorizado, sem poder pensar em

nada. Poderia até mesmo interpretar que o horror de Stanley diante da campainha estivesse

associado a alguma situação da história de vida dele. Mas Mahler (1953) está tão

impregnada com a teoria de Anna Freud que preenche a angústia do menino com uma

interpretação pedagógica, reduzindo, como denunciou Lacan (1958), estruturas

manifestamente mais complexas a etapas de desenvolvimento observáveis.

Retomando a trajetória de Lacan no texto “A direção do tratamento e os princípios

de seu poder”, passaremos para a segunda posição. Esta, “menos degradada em seu relevo

analítico” (Lacan, [1958]1998:611) do que a primeira, refere-se à teoria da relação de

objeto. Inaugurada por Abraham, nessa teoria, a transferência fundamenta-se no princípio

do amor objetal. De forma resumida, a teoria faria uma “dicotomia grosseira” (Lacan,

125

[1958]1998:611) entre o amor pré-genital e o amor genital. Atribui ao amor pré-genital “um

amálgama de todos os defeitos da relação de objeto” (p. 611), enquanto ao amor genital

seria atribuído a felicidade de viver. Lacan (1958) aponta para o absurdo de se supor uma

“harmonia do genital” (p. 613), colocando a questão: “Caberá a nós camuflar Eros, o Deus

negro, de carneirinho do bom Pastor?” (p. 613).

Quanto à direção do tratamento, enfatiza a capacidade de amar (de forma genital) do

sujeito. Esta capacidade seria a medida para ter acesso à cura, o que coloca um problema

para a psicose, pois, segundo esta teoria, o sujeito seria incapaz de amar, portanto,

fracassaria no tratamento.

Melanie Klein é fortemente influenciada pela teoria, até porque Karl Abraham foi

seu analista. Vale lembrar a interpretação que faz para Dick: “a estação é a mamãe; o Dick

está entrando na mamãe” (Klein, [1930]1996:257). Não estaria apontando para uma relação

de amor genital? Resta-nos saber o que levou a autora a fazer essa interpretação. Nossa

hipótese é que a interpretação diz respeito à transferência. Mais especificamente à

transferência de Melanie Klein com a causa psicanalítica. É a partir de sua análise que um

analista pode autorizar-se a si mesmo, e é em conseqüência disso que um ato analítico pode

causar efeito na direção do tratamento, como ocorreu na análise de Dick.

Melanie Klein, se autorizando de sua análise – com Abraham –, introduz toda a

psicanálise, na medida em que introduz o Édipo. Coloca, assim, a transferência que ela

tinha com a psicanálise, resultando disso um efeito analítico.

Vejamos agora a última posição que Lacan (1958) questiona em seu texto. Esta

refere-se à teoria da transferência como introjeção do analista. Lacan (1958) nos faz notar

que, sem o conhecimento da incorporação simbólica, restaria a esta teoria a dimensão

imaginária e, no caso, a condução da análise se instalaria em uma relação dual. Ele revela,

ainda, que essa direção acaba desencadeando, em determinado momento, um apelo a um

terceiro, exterior à situação analítica, como podemos depreender do comentário que faz

sobre um caso clínico:

“(...) num caso clínico de pura obsessão num homem, a irrupção de um enamoramento não menos desmedido por ser platônico, e que não se revelou menos irredutível por ter-se exercido, depois do primeiro, sobre os objetos do mesmo sexo a seu alcance. Falar de

126

perversão transitória pode satisfazer aqui um otimismo ativo, mas ao preço de se reconhecer, nessa restauração atípica do terceiro da relação, excessivamente negligenciado, que convém não puxar demais para o recurso da proximidade na relação com o objeto” (Lacan, [1958]1998:615)

É interessante observar que, em nossa investigação sobre o autismo, não

encontramos analistas que dirigissem o tratamento pela via da introjeção do analista, tal

como propõe essa posição. Pensarmos um tratamento com crianças autistas via

identificação com o analista introduz um paradoxo enorme, posto que, pelo que estudamos

até aqui, fica difícil falar de identificação no autismo.

Após percorrer as três principais teorias da transferência daquele momento, Lacan

(1958) termina essa parte do texto advertindo os analistas sobre “o deslizamento sofrido por

sua técnica, quando se desconhece o verdadeiro lugar em que se produzem seus efeitos”

(Lacan, [1958]1998:618). A advertência já havia sido pronunciada no início, quando revela

que o analista é menos livre na estratégia do que na tática, pois vem ocupar o lugar de

Outro da transferência, emprestando sua pessoa como suporte das fantasias do analisando.

Podemos pensar, consonantes com Bastos e Freire (2004), que “a experiência do

inconsciente implica sempre alteridade, razão pela qual a transferência deve ser manobrada

na referência a um terceiro que quebra a simetria” (Bastos e Freire, 2004:87), sendo o

terceiro elemento “a linguagem ou o Outro” (Bastos e Freire, 2004:87).

Seguindo as orientações de Lacan (1958), no que tange o lugar que o analista vem

ocupar enquanto Outro para o sujeito na transferência, faz-se necessário retomarmos nossa

reflexão sobre o Outro no autismo, desenvolvida nos capítulos precedentes.

Argumentamos que a não Bejahung dos significantes os tornam potentes e invadem

o sujeito de forma radical; o Outro, nesse caso, é invasor, presente demais. Vimos com

Schreber, que a mensagem do Outro é explícita e tomada como exigência, da qual o sujeito

não pode escapar, com o risco de ser deixado jazer. Quanto ao autismo, uma hipótese que

nos parece possível, é a de que o movimento de algumas crianças em tampar os ouvidos

esteja, justamente, apontando para a invasão da fala do Outro.

Além disso, a queda do objeto barra o sujeito e o Outro. Na psicose, o que ocorre é

que esse objeto não se perde e por isso a falta vem a faltar. Não tendo falta, há presença o

tempo todo. Assim, a relação da criança com o Outro “fica perturbada ao máximo quando

127

não há possibilidade de falta, quando a mãe está o tempo todo nas costas dela [criança],

especialmente a lhe limpar a bunda” (Lacan, [1962-63]2005:64).

Também no autismo a falta vem a faltar, como tentamos demonstrar com o

fragmento clínico que apresentamos, no qual a mãe está presente o tempo todo,

alimentando a filha, impedindo assim que uma demanda se constitua.

Se o Outro não é barrado, a angústia sobrevém diante da presença maciça do Outro

que não sai das costas do sujeito. A criança fica exposta ao horror de uma relação com o

Outro sem distância, sem mediação. Dessa forma, se podemos falar de Outro no autismo,

este só seria constituído como invasor. Com efeito, esse fato parece colocar impasses na

direção do tratamento com essas crianças, pois o analista, com sua pessoa, vem ocupar o

lugar de Outro da transferência, como conceitua Lacan (1958). A questão que fica é saber

se, na posição de Outro da transferência, o analista não estaria correndo o risco de sua

presença também ser tomada como invasora para o sujeito. O relato de Sonia Albert (1999)

esclarece, de forma singular, a questão:

“(...), a criança autista não suporta a voz, o olhar do analista. Tais objetos – o objeto voz e o objeto olhar – furam o corpo próprio ali onde não há demanda por falta de mediação. A pulsão sem objeto faz do próprio corpo seu lugar de retorno, a ponto de ser mais doloroso – muito mais – a penetração do olhar do que o bater com a cabeça na quina da janela entreaberta. Eis a única realidade: o real do gozo do Outro em substituição à realidade que o analista angustiado, enxerga” (Albert, 1999:7)

Também Jeanne Marie Ribeiro (2005), a partir de sua experiência clínica, nos faz

notar a posição dessas crianças diante da presença do Outro:

“- João tapa os ouvidos sempre que um outro lhe dirige a palavra. Perambula errante pelos corredores sem fixar-se em nada, fazendo um gesto ritmado com as mãos enquanto emite sons como um assobio. - André pica papéis e revistas sempre de costas para o outro, virado para a parede. Se alguém se aproxima, interrompendo seu trabalho, entra em agitação, podendo tornar-se muito agressivo. - Francisco, ao perceber o olhar do outro sobre ele, interrompe imediatamente sua atividade, indo isolar-se num canto. - Tomás é assaltado pelo pânico e horror sempre que um outro se interpõe, impedindo-o de ter acesso ao que quer. Grita intensamente, cerra os punhos, socando suas próprias costas” (Ribeiro, 2005:31)

128

Como podemos constatar, a partir das citações acima mencionadas, a voz e o olhar

do analista são insuportáveis para as crianças. Por isso, à simples presença do analista, a

criança pode reagir de forma paroxística, berrando, arrancando os cabelos, mordendo-se,

batendo com a cabeça.

Se a presença do Outro é intrusiva para o autista, que lugar possível para o analista,

a fim de evitar o horror de uma transferência com um Outro não barrado?

Lacan (1975), na Conferência de Genebra sobre o sintoma, se opondo à afirmação

do Dr.Cramer de que os autistas não nos escutam, estabelece que: “Eles não chegam a

escutar o que você tem para dizer-lhes enquanto você se ocupa deles” (Lacan

[1975]1993:134).

Isso posto, como pode o analista intervir, mas não se ocupar da criança autista? Que

posição possível para o analista de forma que sua presença não seja tomada como intrusiva,

a fim de viabilizar um tratamento?

Alguns autores, apesar de suas teorias, extraem das experiências clínicas

formulações importantes que podem contribuir para nossa pesquisa. Assim, Margaret

Mahler (1952), pela experiência, compreende que é melhor abordar a criança autista com

estratagemas de forma que a presença do Outro não fique tão invasiva, como podemos

verificar abaixo:

(...), a criança autista é mais intolerante ao contato humano direto. Conseqüentemente, precisa ser atraída de sua concha autística por qualquer tipo de estratagema, como música, atividades rítmicas e estimulação prazerosa dos órgãos dos sentidos. Tais crianças devem ser gradualmente abordadas com o auxílio de objetos inanimados, tendo-se sempre em mente que o contato corporal, o toque, o abraço carinhoso (...) não ajudam e muitas vezes constituem um estorvo no tratamento dessas crianças. Repetidas vezes observamos que os casos de tipo autístico, se forçados a um contato social prematuro e a enfrentar, também prematuramente, as demandas do ambiente social, são lançados num estado catatônico (...) (Mahler, [1952]1983:39)

Portanto, a autora está sugerindo que o analista não aborde a criança de forma

direta, ou seja, que aborde de costas, cantarolando, de maneira que sua presença seja quase

“invisível”. Essa parece uma indicação preciosa na direção do tratamento com autistas,

pois, freqüentemente, quando o analista está com a demanda desviada da criança, algo pode

acontecer do lado do sujeito - um olhar, uma fala –, visto que a presença do Outro, neste

129

momento, não é tão invasora. Vários analistas dão testemunho deste momento em suas

clínicas. Vejamos o fragmento clínico apresentado por Sonia Alberti (1999):

“É no momento em que a analista tem de interromper uma sessão por ter recebido a notícia de que seu filho estaria machucado, ou seja, no momento em que a analista aparece na sua mais imediata aflição, abalada, que o sujeito pode retornar na sessão seguinte e falar, como se jamais tivesse tido qualquer mutismo: ‘Seu filho está bem?’” (Alberti, 1999:8).

Vimos que no autismo a criança é objeto de gozo de um Outro invasor, que fica nas

costas do sujeito, vigiando, alimentando, limpando a bunda, o tempo todo. A criança não

suporta a presença do Outro, de tal forma que bater a cabeça na quina da janela torna-se

menos doloroso que o olhar do Outro, como ressaltou Sonia Alberti (1999).

Conseqüentemente, por mais que não tenhamos uma resposta para a questão sobre o que

pode um analista diante do autismo, o lugar de Outro na direção do tratamento não parece

uma via possível.

Se para o sujeito o analista vem ocupar o lugar de Outro na reatualização da

transferência, o que as experiências clínicas parecem apontar é que não é deste lugar que o

analista deve operar, porque isso colocaria o sujeito no lugar de objeto de gozo,

inviabilizando o tratamento.

Uma hipótese, que nos parece possível de ser considerada, é pensar o lugar do

analista na direção do tratamento com autistas a partir do desejo do analista, o que nos leva

ao terceiro segmento do texto de Lacan (1958), no qual será tratada a questão da política.

3.3 Política: como agir com seu ser?

Nesse segmento do texto, Lacan (1958) vem afirmar que “é realmente na relação

com o ser que o analista tem de assumir seu nível operatório” (Lacan, [1958]1998:621). A

questão do ser do analista estaria presente no movimento psicanalítico desde muito cedo.

Ela pode ser encontrada na teoria de Ferenczi, mas foi “pelos ingleses que o fim da análise

foi mais categoricamente definido através da identificação do sujeito com o analista”

(Lacan, [1958]1998:619).

130

Lacan (1958) comenta, ainda, que, para Ferenczi, o ser do analista estaria articulado

à pessoa do analista. Não se trataria da pessoa do analista como “suporte de uma compulsão

repetitiva, de uma conduta inadaptada, ou como figura de uma fantasia. Ele remete com

isso a absorção, na economia do sujeito, de tudo o que o psicanalista presentifica” (Lacan,

[1958]1998:619).

Quanto aos ingleses, a questão do ser se articula com a identificação do sujeito com

o analista, no entanto, “varia a opinião quanto a de ser Eu ou de seu Supereu que se trata”

(Lacan, [1958]1998:620).

Diferentemente das teorias existentes sobre o ser do analista acima referidas, Lacan

(1955) vai articular esta questão com o desejo do analista:

“É realmente na relação com o ser que o analista tem de assumir seu nível operatório (...). Cabe formular uma ética que integre as conquistas freudianas sobre o desejo: para colocar em seu vértice a questão do desejo do analista” (Lacan, [1958]1998:621)

Lacan (1958) prossegue – como agir com seu ser – indicando alguns pontos que nos

levam a pensar sobre o que seria o analista operar com seu desejo. Ele afirma que o

caminho que toma é o de ouvir e não de auscultar: “Sim, isso mesmo, não de auscultar a

resistência, a tensão, o opistótono, a palidez, a descarga de adrenalina (sic) em que se

reconstituiria um Eu mais forte (sic): o que escuto é por ouvir” (Lacan, [1958]1998:622).

Ressalta, ainda, que ouvir não é compreender: “Naquilo que ouço, sem dúvida, nada tenho

a replicar, se nada compreendo disso ou se, ao compreender algo, tenho certeza de estar

enganado” (Lacan, [1958]1998:623).

Já no Seminário, livro 3. As psicoses, Lacan (1955-56) nos advertia sobre o perigo

da noção de compreensão na direção do tratamento. Neste seminário, então, ele afirma que

essa noção nos faz pensar que há coisas que são evidentes, por exemplo, “quando alguém

está triste é porque não tem o que seu coração deseja” (Lacan [1955-56]1985:14). A

compreensão pode ser, portanto, um engodo, pois “há pessoas que têm tudo o que os seus

corações desejam e que ainda assim são tristes” (Lacan, [1955-56]1985:15).

A tentativa em compreender esbarra em dificuldades ainda maiores quando nos

encontramos diante dos fenômenos elementares da psicose. Para o psicótico, onde tudo o

131

invade, um carro vermelho que encontra na rua tem uma significação, “não é por acaso,

dirá ele, que esse [carro] passou naquele exato momento” (Lacan, [1955-56]1985:18).

Diante desse fenômeno, Lacan (1955-56) distingue três concepções completamente

diferentes.

A primeira concepção é a de “encarar as coisas sob o ângulo de uma aberração

perceptiva” (Lacan, [1955-56]1985:18). A segunda seria pela noção das relações de

compreensão12, que se “traduz pelo fato de que esse vermelho para o sujeito tê-lo-á feito

ver vermelho, parecer-lhe-á trazer em si mesmo o caráter expressivo e imediato da

hostilidade ou da cólera” (Lacan, [1955-56]1985:18). A terceira, de Lacan (1955-56),

considera o vermelho “como num jogo de cartas, isto é, enquanto oposta ao preto, como

fazendo parte de uma linguagem já organizada” (Lacan, [1955-56]1985:18). Sua concepção

vem apontar que a experiência psicótica faz intervir móbeis que estão além da experiência

imediata e, por isso, “não podem de forma alguma ser apreendidos de maneira sensível”

(Lacan, [1955-56]1985:17). Não se trata, portanto, de compreender. Mas, então, o que pode

o analista diante da psicose, e mais especificamente diante do autismo?

Vimos até aqui que a questão da política coloca a pergunta ao analista de como agir

com seu ser. Vimos, também, que à questão do ser, Lacan (1958) articula o desejo do

analista. A isto acrescenta que o desejo do analista é antinômico à noção de compreensão.

Não podemos deixar de ressaltar que a questão do desejo do analista está articulada

à sua formação, isto é, aquilo que é um analista a partir de sua análise, como afirma Serge

Cottet (1982) no livro Freud e o Desejo do Psicanalista: “a questão de seu desejo [do

analista] passa a ser solidária à passagem de analisante a analista” (Cottet,

[1982]1989:183).

Em “Variante do tratamento-padrão”, Lacan (1955) irá articular a formação do

analista com a douta ignorância, o que é importante para pensarmos sobre o desejo do

analista.

No texto, Lacan (1955) distingue duas formas de ignorância. A primeira refere-se à

ignorância como um sintoma, “isso no sentido propriamente analítico de que o sintoma é o

retorno do recalcado, e de que o recalcado, aqui como alhures, é a censura da verdade”

12 Lacan (1955-56) refere-se aqui a noção de compreensão introduzida por Karl Jaspers.

132

(Lacan, [1955]1998:360). Nesse caso, a ignorância deve ser entendida como o amor e o

ódio como uma paixão do ser. A outra forma de ignorância Lacan (1955) denomina douta

ignorância. Esta articula-se a um não-saber, mas não se trata de “uma negação do saber e

sim sua forma mais elaborada” (Lacan, [1955]1998:360). Tal como Lacan (1955) a

formula, está articulada à formação do analista. Assim, afirma:

“A formação do candidato não pode concluir-se sem a ação do mestre ou dos mestres que o formam nesse não-saber, sem o que ele nunca será nada além de um robô de analista” (Lacan, [1955]1998:360)

Sem esta forma mais elaborada de ignorância, necessária à formação do analista – a

douta ignorância –, não só o analista se torna um robô, como também promove o

fechamento do inconsciente, como adverte o autor:

“O inconsciente se fecha, com efeito, na medida em que o analista ‘deixa de ser o portador da fala’, por já saber ou acreditar saber o que ela tem a dizer” (Lacan, [1955]1998:361)

A douta ignorância implica uma elaboração por parte daquele que pretende se tornar

analista. É só a partir desta elaboração, que acontece no percurso da formação do analista,

que se pode ter acesso ao “fruto positivo da revelação da ignorância” (Lacan,

[1955]1998:360), que é o de ignorar o que ele sabe.

Pelo o que temos visto até aqui, a ignorância, tal como o amor e o ódio, está

associada a paixões do ser. Trata-se de um não querer saber sobre a castração, a falta. Por

outro lado, a douta ignorância traz à luz a falta-a-ser.

Se, no início de sua obra, Lacan (1954-55) indica que a análise visa “à passagem de

uma fala verdadeira, que junte o sujeito a um outro sujeito” (Lacan, [1954-55]1985:310),

com o texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, Lacan (1958) pode

indicar o “fim do analista ‘sujeito’” (Cottet [1982]1989:184), posto que ele situa o analista

em sua falta-a-ser.

Nos interrogamos, com Lacan (1958), como o analista deve operar com seu ser, o

que nos levou a perceber que ele opera antes em sua falta-a-ser que em seu ser, ali onde é

menos livre. O analista, nesse caso, não pode sair querendo ensinar, compreender ou querer

133

que a criança fale. Não tem que querer ou demandar, pois está submetido à causa freudiana.

Por isso não é livre. Ou seja, o lugar de onde o analista é menos livre é aquele onde fica

totalmente compromissado com a transmissão da psicanálise.

Ouvir sem compreender, ignorar aquilo que sabe, não teria sido esta a posição de

Freud diante dos enigmas da clínica com as histéricas? Aliás, uma das recomendações que

o autor faz aos analistas que exercem a psicanálise, é, justamente, a de não seguir suas

expectativas, porque, dessa forma, estaria arriscado “a nunca descobrir nada além do que já

sabe” (Freud, [1912]1979:149). Além disso, Freud ([1914]1918) enfatiza, em “História de

uma neurose infantil”, que a teoria psicanalítica é recolocada e questionada em cada caso.

É interessante observar que Melanie Klein inaugura, de certa maneira, a psicanálise

com crianças, sobretudo no que tange a psicanálise com crianças psicóticas.

Especificamente no caso Dick, ela coloca que se viu “obrigada a modificar sua técnica

usual” (Klein, [1930] 1996:260). Portanto, a autora, seguindo a orientação freudiana,

recoloca e questiona a teoria e a técnica em cada caso. Então, a experiência psicanalítica

não é de forma alguma pré-conceitual. Assim, por estar submetida à psicanálise, por

autorizar-se de sua análise, as intervenções de Melanie Klein (1930), por mais brutais que

tenham sido, produziram efeito no tratamento de Dick.

Diferentemente da autora acima citada, a posição de Mahler é a de compreender, de

ensinar, de tal forma que ela enxerta em Stanley a teoria de Piaget.

Diante destas experiências clínicas, podemos concluir que a posição do analista não

é a de compreender, de demandar, de querer que a criança faça isso ou aquilo. Trata-se, ao

contrário, de uma posição esvaziada de saber, que implica ignorar aquilo que sabe.

A formalização de Lacan (1958) sobre a posição do analista na direção do

tratamento, a partir da teoria de guerra de Carl von Clausewitz, coloca a questão sobre o

que pode um analista diante do autismo. A esse respeito, algumas considerações puderam

ser traçadas nesta tese. Sobre a tática, vimos que o analista vem secretariar o alienado. Na

estratégia, mesmo que o sujeito venha colocar o analista no lugar do Outro não barrado, não

é desta posição que ele opera. Logo, não se trata de compreender, de ensinar, de alimentar,

nem de limpar a bunda da criança. A política, tal como Lacan (1958) a formula, promove

um corte com a via pedagogizante na direção do tratamento com autistas. Ali onde ele é

134

menos livre, é absolutamente debitário de sua formação, de sua análise, a partir da qual

poderá se autorizar. É somente nessa posição, a partir do percurso de uma análise, que o

analista pode operar e escapar da ardente tentação de demandar, de compreender.

Vimos com Lacan (1958) que o analista opera na análise situando-se em sua falta a

ser, isto é, “o analista já não está em posição de sujeito, mas de objeto” (Cottet, [1982]

1989:190). A questão que fica é saber se seria esta também a posição do analista na direção

do tratamento com autistas, posto que o objeto que causa o desejo, o objeto a, não se

constitui como tal na psicose, como pudemos demonstrar no capítulo anterior.

A fim de refletirmos sobre essa questão, apresentaremos fragmentos sobre a direção

do tratamento realizado em duas instituições: L’Antenne 110 e Le Courtil.

3.3.1 L’Antenne 110

O primeiro caso refere-se a uma criança que ficava em L’Antenne 110 durante a

semana e nos finais de semana retornava à casa do pai, até o dia em que este decide voltar

ao seu país e deixar o filho. Na semana seguinte à partida do pai, o menino não passa bem:

“Durante as refeições controla os alimentos escrupulosamente. Só come – e muito pouco – após selecionar e separar os alimentos, o que leva muito tempo. Colocar suas roupas tornou-se um motivo de angústia, e as canções infantis que cantarola ajundam-no bem pouco. A todo momento desmancha-se em lágrimas e desaba debatendo-se contra um inimigo invisível” (Vroede,1998:191)

Durante um passeio na floresta, onde estavam presentes a criança e dois educadores,

se estabelece o seguinte diálogo:

“Você sabe, Jean [educador], que há pais que abandonam seu menininho e que se vão de repente deixando-o lá? Não, assim não dá. Não não dá. Em Antenne nós discordamos disso. Eu vou falar com o Virgílio sobre os meninos que choram por causa de seus pais e Virgílio se zangará com esses pais que abandonam seus filhos”. (Vroede, 1998:191)

135

É interessante observar que a intervenção foi realizada primeiro sob a forma de

diálogo entre os dois educadores, sem endereçá-la diretamente à criança. Além disso, ela

foi apresentada sob a forma de uma ficção, onde se fala de maneira indefinida sobre um

menino e um pai. Esta nos parece uma estratégia para que os educadores não ocupem o

lugar do Outro onipotente. Acrescenta-se a isso a discordância em relação à atitude do pai.

Verificamos, ainda, que os educadores tentam introduzir um terceiro –Virgílio - para barrar,

ou melhor, relativizar, o gozo mortífero do Outro onipotente.

3.3.2 Le Courtil

O segundo caso, apresentado por Alexandre Stevens (1987), fundador de Le Courtil,

no artigo “Trois places du savoir en institution”, trata de uma criança que tinha o hábito de

bater com a cabeça na porta. Diante disso, a equipe de Le Courtil traça uma linha entre a

porta e a criança, propondo-lhe que não a ultrapasse. A intervenção surtiu efeito: “A criança

toma a linha como um limite a transpor ou não, endereçando, sem dúvida nenhuma, sua

questão ao Outro” (Stevens, 1987:117). Nos dias subseqüentes “ela mesma organiza linhas,

limites, brinca com as bordas” (Stevens, 1987:117). Ao mesmo tempo, começa a dizer

algumas palavras. Stevens (1987) ressalta que são “ainda caroços da palavra – trata-se

exclusivamente de imperativos” (Stevens, 1987:117). Segundo o autor, o “traço que

inaugura esta série não é outro senão o intervalo colocado entre a porta em que ela [a

criança] vinha bater a cabeça e a questão do limite, do corte” (Steven, 1987:117).

No caso apresentado por Stevens, chamou nossa atenção o fato de que a criança

“brinca com bordas” (Stevens, 1987:117). Vale lembrar que Winnicott (1957) sempre deu

muita importância ao brincar no desenvolvimento da criança, como podemos depreender da

afirmação abaixo:

“Tal como as personalidades dos adultos se desenvolvem através de suas experiências da vida, assim as das crianças evoluem por intermédio de suas próprias brincadeiras” (Winnicott, [1957] 1966:163).

136

A Freud (1920) também não escapou a importância do brincar. Ao abordar o jogo

do Fort Da, a partir da observação que faz do brincar de seu neto, aponta que, mais do que

uma atividade lúdica, o jogo marca um momento lógico na constituição do sujeito. Como

dito em diversos pontos nesta tese, o brincar, nesse caso, refere-se à primeira simbolização.

Colocamos a questão do brincar para nos interrogarmos acerca do comentário de

Stevens (1987) sobre o caso clínico. Se Stevens (1987) nos fala que a criança “brinca com

bordas” (p.117), não estaria ele atribuindo a seu paciente o estatuto de sujeito? A isto não

estaria associado o discurso do analista, na medida em que há uma tentativa de fazer

emergir o sujeito? Nossa hipótese é que essa posição viabilizaria para a criança um lugar

dentro do discurso como sujeito. A criança decide se aceita ou não o lugar, mas é

importante oferecê-lo.

Vimos, nos casos acima mencionados, que as intervenções são realizadas de forma a

manejar a particular transferência do autista ao Outro não barrado. Para este fim, são

utilizados “estratagemas” para não abordar a criança diretamente, como já havíamos

estabelecido a partir da teoria de Mahler (1952), de tal maneira que a presença do analista

seja quase invisível. Mas não é apenas isso. A estratégia implica não só no analista não se

colocar no lugar do Outro, como também viabilizar ao sujeito esvaziar o Outro não barrado,

seja através da tentativa de introduzir um terceiro para barrar o gozo do Outro onipotente,

como vimos na encenação criada pelos educadores de Antenne, durante o passeio na

floresta, em que se referiram ao diretor da instituição – “eu vou falar com o Virgílio”–, seja

traçando uma linha no chão, na tentativa de criar um intervalo, como vimos no caso clínico

de Courtil.

Quanto à política, nos interrogamos se o analista, na direção do tratamento com

autistas, viria ocupar o lugar de objeto, considerando-se que este não se constitui como tal

na psicose. Retomando o que foi colocado alhures, os autistas não fazem a Bejahung dos

significantes. Os significantes, não sendo afirmados no simbólico, estariam no real. A isto

se associa o comentário de Lacan (1953-54) sobre Dick, onde afirma que se trata de um

sujeito que “está inteirinho no indiferenciado” (Lacan, [1953-54] 1979:84), tendo como

resultado a dificuldade de se pensar a alteridade na clínica com autismo. Por essa razão,

137

Maria Anita Ribeiro (2001) argumenta que uma das direções iniciais para o tratamento é a

possibilidade de surgimento de alguma alteridade:

Se aquilo que nós analistas, de Francês Tustin a Rosine Lefort, conseguimos obter na clínica do autismo é o estabelecimento, em graus variáveis, de alguma alteridade para o sujeito, não foi isso que Lacan propôs como a própria definição do desejo do analista, ou seja, o desejo de obter a diferença pura? (Ribeiro, 2001:9)

A questão colocada pela autora parece consonante com o caminho que percorremos

até aqui. Entendemos que à diferença pura a qual visa o desejo do analista está articulada a

singularidade. Isso porque o analista não está preocupado em normatizar, pedagogizar, pelo

contrário, quer fazer surgir a singularidade. O analista, em seu desejo, coloca a criança

autista ao trabalho, apostando na possibilidade de que uma alteridade possa aí se constituir,

ali onde até então tudo era indiferenciado. Não seria isto conseqüência de que para este

analista, mesmo na clínica com autistas, opere o discurso do analista? Ou seja, um discurso

que, em função de um agente no lugar de objeto a, faz emergir no lugar do outro o sujeito?

138

4.Considerações finais

Nosso interesse sobre autismo surgiu de nossa experiência clínica. Nesta

experiência, uma questão se impôs: o que pode um analista diante do autismo? Esta

pergunta inicial se desdobrou dando origem ao título de nossa tese: O lugar do analista no

tratamento com autistas.

Para refletirmos sobre a questão, empreendemos um estudo que consistiu em

abordar o autismo desde seu surgimento no campo da psiquiatria até as diferentes vertentes

psicanalíticas – a desenvolvimentista e a lacaniana.

Vimos que o autismo surgiu no campo da psiquiatria. Primeiro por Bleuler (1911),

como uma das características da esquizofrenia, depois por Leo Kanner (1943), que

descreveu o autismo como entidade clínica, com particularidades próprias – o “autismo

infantil precoce”. Nos interrogamos, então, o porquê de o autismo, tendo surgido no campo

da psiquiatria, ter sido adotado pela psicanálise.

Constatamos que, no momento em que surge o autismo como entidade clínica, na

década de 40, a psiquiatria e a psicanálise sofriam influências mútuas, em função da

expansão da psicanálise nos Estados Unidos da América. Expansão esta que foi

intensificada pela imigração de grande número de analistas europeus para o país, devido à

Segunda Guerra Mundial. Com efeito, muitos psiquiatras americanos absorveram a

psicanálise em suas clínicas. Mas também a psicanálise sofreu modificações pela influência

da psiquiatria americana, o que nos levou à hipótese de que a influência mútua entre

psiquiatria e psicanálise, nos E.U.A., possa ter determinado a incorporação do autismo no

campo da psicanálise, posto que os primeiros analistas que se ocuparam com o autismo

residiam, na época, naquele país.

Ao longo de nossa investigação sobre o autismo na vertente desenvolvimentista,

fomos surpreendidas pelo fato de os autores desta vertente adotarem o autismo não só como

entidade clínica, mas também como um estágio de desenvolvimento, denominado de fase

autística normal. Surgiu, então, a questão: esta fase seria alguma referência ao auto-

erotismo ou ao narcisismo? Verificamos que, na teoria elaborada pelos autores desta

vertente, as referências aos textos de Freud eram poucas ou nenhuma. Diante dessa

139

constatação, levantamos a hipótese de que os psicanalistas que imigraram para os E.U.A.,

com o intuito de serem reconhecidos por este novo país, elaboraram teorias mais de acordo

com os valores e a cultura americanas. Assim, incorporaram o autismo da psiquiatria e

elaboraram suas próprias teorias.

Empreendemos um estudo da teoria e da clínica, enfocando três desses analistas,

Margaret Mahler (1960), Bruno Bettelheim (1967) e Frances Tunstin (1993), por suas

contribuições importantes acerca do autismo. Constatamos que estes autores concebem a

constituição do sujeito sob uma ótica desenvolvimentista. Ou seja, como um acesso

progressivo a estágios do desenvolvimento. De fato, o autismo é considerado, por eles,

como uma fixação ou regressão ao primeiro estágio.

Verificamos, ainda, que, para essa vertente, o primeiro estágio do desenvolvimento

é marcado por uma relação dual, onde se supõe uma reciprocidade entre a criança e a mãe,

identificados em cada teoria como: simbiose social, para Mahler; paraíso perdido ou idade

dourada, para Bettelheim; útero pós-natal, para Tustin.

No entanto, a relação dual, recíproca entre mãe e bebê, é inconcebível, o que

demonstramos a partir da elaboração freudiana sobre Das Ding. Freud (1950[1895]) refere-

se a Das Ding ao descrever o complexo do próximo (Nebenmensch). Como vimos, este é

dividido em duas partes. Uma parte é inscrita no sistema de memória, a outra é

inassimilável, fica fora de todas as associações da rede de representação, esta última

correspondente a Das Ding. Com efeito, isso impõe um verdadeiro limite à relação do

sujeito com seu próximo, impedindo a reciprocidade.

Um outro ponto que chamou nossa atenção quanto aos autores dessa vertente foi a

equivalência que fazem entre eu e consciência. Primeiro, reduzem o estatuto do eu ao ego

ou self, fazendo, além disso, uma equivalência entre eu (ego/self) e consciência, onde a

constituição do eu é correlata a um processo de conscientização. Contudo, nos textos

freudianos fica claro que o eu não se reduz à consciência, razão pela qual Freud (1923)

afirma ter “encontrado no eu algo que também é inconsciente” (Freud, [1923]1979:19).

A posição de Lacan (1955) é diferente dos analistas da vertente desenvolvimentista.

Ele propõe um retorno a Freud e, neste retorno, promove um verdadeiro corte na leitura que

140

estava sendo feita de seus textos. Estabelece-se aí uma nova direção para a psicanálise,

possibilitando uma maior compreensão sobre o autismo.

As referências de Lacan sobre o autismo são poucas, porém preciosas, e foram elas

que nortearam nossos estudos nesta tese. Dentre os comentários que Lacan (1953-54) tece

sobre o caso Dick de Melanie Klein (1930), consta o de que trata-se de “um sujeito

inconstituído” (p.84). Sobre isto, temos, após o término de nossa investigação, um novo

entendimento.

Em nosso trabalho, estudamos a constituição do sujeito a partir dos três “A”: o

pequeno a, o outro; o grande A, o Outro; e o objeto a. Nesses termos, o pequeno a é o outro

a partir do qual o eu poderá se constituir. A constituição do eu é debitária da gestalt

corporal do outro. É a partir da imagem do outro que a criança antecipa uma representação

de seu corpo, distinta das sensações internas de sua motricidade. Papel fundamental na

constituição do eu é o Ideal do eu, instância simbólica, que regula e estrutura o imaginário.

Entretanto, no autismo, pela ausência do reconhecimento do Outro, o Ideal do eu não se

constitui. Disto resulta um dano imaginário: uma não “egoização” (Lacan, [1962-

63]2005:134).

Quanto ao grande A, este é a referência significante, é o lugar do significante, é o S2

para o qual o S1 representa o sujeito. Com efeito, o sujeito no autismo não faz a Bejahung

dos significantes, de forma que as palavras têm um peso muito sério, e, por isso, o sujeito

não está disposto a estar a vontade com elas (Lacan, 1975). Sem a Bejahung, os

significantes tornam-se tão potentes, que ganham peso, massa, tal como coisas, de maneira

que o sujeito não pode se instrumentalizar com eles, não pode usá-los como quiser.

O autismo exige um estudo detalhado entre o significante e o sujeito. Fomos levadas

à questão das primeiras marcas do sujeito – o traço unário. Disto resultou uma hipótese: a

de que a problemática do autismo gira em torno do S1. Mais especificamente, concluímos

que este significante não intervém na cadeia, o que se associa, na teoria, com o fato de

observarmos que o sujeito não faz a Bejahung desse significante. Ou seja, não há inscrição

do traço unário no simbólico. Assim, esse significante não representa o sujeito,

considerando-se que, para que o sujeito possa ser representável, é necessário pelo menos

141

dois significantes – S1-S2. No caso do autismo, trata-se de um S1 sozinho, que não faz

cadeia.

Argumentamos anteriormente que o Outro é o lugar do significante e que os autistas

não fazem a Bejahung dos significantes, nem mesmo o significante unário é inscrito no

simbólico. Se o sujeito não faz a Bejahung dos significantes, então, eles estariam no real.

Diante desse fato, como poderíamos falar da existência do Outro no autismo? Esta questão

tem desdobramentos. É complicado afirmarmos uma incorporação do Outro no autismo,

particularmente, a partir da constatação de que não há Bejahung do S1, condição sine qua

non para a constituição de uma simples cadeia significante. Com isso, poderíamos dizer que

no autismo não há “Outrificação”. Exatamente por este motivo é que o peso das palavras é

tão grande e avassala o sujeito de forma a impedi-lo de falar, o que não quer dizer que não

haja o Outro como lugar do significante. O Outro como invasor, pois, não havendo

Bejahung, os significantes invadem o sujeito. A criança autista não sabe tomar distância do

Outro, que passa a ser fundamentalmente o Outro invasor.

Finalmente, o objeto a pode ser definido como o resto da operação de barra do

Outro. Resto inassimilável, que escapa à significantização. Na neurose, a aparição do objeto

a, no lugar vazio do -ϕ, revela para o sujeito sua posição de objeto causa de desejo do

Outro. Assim, a imagem especular torna-se a imagem do duplo, causando, para o sujeito,

uma inquietante estranheza.

No autismo, no entanto, o Outro não é barrado e, nesse caso, a falta vem a faltar. O

objeto não é perdido. Portanto, não se trata de ser objeto causa de desejo, como na neurose,

mas objeto de gozo do Outro. O Outro não é barrado, tornando-se invasor, presença maciça

que não sai das costas do sujeito, vigiando, penetrando e aniquilando.

Como foi dito, no autismo não há egoização. Vimos também que os autistas não

fazem a Bejahung dos significantes, o que nos permitiu concluir que não há “Outrificação”.

Por fim, verificamos que o objeto a não é perdido, ou, em outros termos, não se constitui, o

que nos permite alegar que não há “coisificação”13. A isto se associa a afirmação de Lacan

sobre Dick, quando comenta que se trata de um “sujeito inconstituído” (Lacan, [1953-

54]1979:84). Nossa hipótese é a de que a afirmação de Lacan (1953-54) está articulada ao 13 A referência, neste caso, é Das Ding, a coisa, antecessora teórica do objeto a.

142

fato de que em Dick, bem como no autismo, não há egoização, Outrificação e coisificação.

Trata-se de um sujeito que “está inteirinho no indiferenciado” (Lacan, [1953-54]1979:84).

A questão que fica, e que justifica nosso esforço em teorizar sobre o autismo, é: o

que pode um analista diante de um sujeito inconstituído, que está inteirinho no

indiferenciado? Em outras palavras, que lugar possível para o analista no tratamento com

autistas?

Nossa hipótese é que o analista, com seu desejo, coloca o sujeito ao trabalho,

apostando na possibilidade de que alguma alteridade possa se estabelecer ali onde até então

tudo era indiferenciado. Chegamos a esta hipótese após percorrermos o texto de Lacan

(1958), “A direção do tratamento”, onde ele introduz o tripé: tática, estratégia e política.

Na tática, vimos, considerando-se os casos apresentados, que o analista notifica a

tentativa da criança em significantizar o real, a partir de um processo metonímico, via pela

qual uma alteridade poderá se estabelecer. No caso Roberto de Rosine Lefort, a tentativa se

realiza com a palavra O lobo!, que a criança usa para designar várias coisas. No caso de

Tano, de Antenne 110, as construções que consistiam em cortar pedaços de revistas, alinhá-

los, colá-los, etc, parecem indicar uma tentativa de significantizar o real.

Na estratégia, se, para o sujeito, o analista vem ocupar o lugar de Outro na

reatualização da transferência, o que as experiências clínicas parecem apontar é que não é

deste lugar que o analista deva operar. Pelo que verificamos, é, justamente, no momento em

que a demanda está desviada do sujeito que algo pode ocorrer: um olhar, até mesmo uma

fala. Além disso, cabe ao analista, na transferência, viabilizar para o sujeito esvaziar o

Outro. A isto se associa a política, onde o analista, em seu desejo, nada compreende, nem

demanda. Ali, onde o analista opera com seu desejo, ele o faz situando-se em sua falta a

ser. Esclarece-se, então, que o desejo do analista não se refere a um desejo do ser do

analista, logo, não se trata do desejo de alguém específico, de um desejo “pessoal”. Não se

trata, também, de um desejo dirigido ao paciente, no sentido de querer sua felicidade ou

infelicidade.

Neste momento de concluir, lançaremos uma questão. Ao longo de nossa tese,

abordamos o caso Dick de Melanie Klein (1930) e os comentários de Lacan (1953-54)

sobre ele. Dentre os pontos que levantamos, a intervenção de Melanie Klein (1930)

143

permanece enigmática, pois “enfia o simbolismo, com a maior brutalidade, no pequeno

Dick” (Lacan, [1953-54]1979:83). O interessante é que esta brutalidade, que, a princípio,

poderia ser tomada como invasora, ao contrário, permite à criança sair do indiferenciado e

“muito depressa a criança progride. É um fato” (Lacan, [1953-54]1979:102).

A questão que fica é a de saber o que operou na intervenção: o desejo de Melanie

Klein (1930), ou o desejo do analista? Não temos resposta para a indagação. Contudo, o

fato de a autora ter registrado o caso Dick teve como conseqüência permitir sustentar o

desejo do analista, daqueles analistas que se confrontaram com o autismo. Ou seja, o

registro do caso de Melanie Klein deu subsídios para os analistas sustentarem suas clínicas.

144

5. Bibliografia

ALBERTI, S. Apresentação. In: Sonia Alberti (Org) Autismo e esquizofrenia na clínica da

esquize. Rio de Janeiro: Marca d’Água Livraria e Editora, p.7-13, 1999.

----------------. O surto esquizofrênico na adolescência. In: Sonia Alberti (Org.) Autismo e

esquizofrenia na clínica da esquize, Rio de Janeiro: Marca d’Água Livraria e Editora,

p.119-130, 1999.

----------------. Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 1999.

ALVARES, K.(Org.). Autismo e psicose na criança: trajetórias clínicas. Rio de

Janeiro: 7 Letras, 2004.

AZEVEDO, F. O diagnóstico e a clínica do autismo sob uma ótica psicanalítica.

Dissertação de Mestrado. Departamento de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica

do Rio de Janeiro, 1996.

------------------.Autismo: interrogações sobre a constituição de um sujeito. In O adolescente e

a modernidade. Congresso internacional de Psicanálise e suas conexões. Rio de

Janeiro: Companhia de Freud, p.87-92, 1999.

------------------. Autismo...ser ou não ser...uma psicose? Eis a questão. In Cadernos

Pestalozzi, publicação científica da Sociedade Pestalozzi do Estado do Rio de

Janeiro. Vol. II, n. 1. Niterói, RJ: Nota Bene, p25-34, 2000. Quadrimestral.

------------------. O brincar na direção da cura com crianças. In Cadernos Pestalozzi,

publicação científica da Sociedade Pestalozzi do Estado do Rio de Janeiro. Vol III,

n. 1. Niterói, RJ.: Nota Bene, p.52-55, 2001.

BAIO, V. Qui interprète dans l’autisme? In: La lettre mensuelle n. 148. Paris: École de la

Cause Freudienne, abril 1996b.

-----------. Nome-do-Pai e autismo. In: Scilicet dos Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: EBP, p.21-

23, 2005.

BASTOS, A. A fala e suas condições. In: Fernandes, A.F. e Santos, A. S. C. (Org.). Questões

cruciais para a psicanálise. Série Teoria da Clínica Psicanalítica – 1. Salvador:

EDUFBA, p.29-37, 2005.

145

BETTELHEIM, B. (1967) A Fortaleza Vazia. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

BLEULER, E. (1911) Tratado de Psiquiatria. Madrid: Editora Espasa-calpo, 1967.

BRUNO, P. Autismo e Psicose Infantil. Conferência proferida em 28/10/91. Corte

Freudiano, 1991, mimeografia.

COORDENAÇÃO DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (1992) Classificação de

Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10: descrições clínicas e

diretrizes diagnósticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

DIZER. Revista da Escola Lacaniana de Psicanálise, n. 11. Rio de Janeiro: companhia

de Freud, 2003.

FREIRE, A B. Por que os planetas não falam? Rio de Janeiro: Revinter, 1997.

----------------. A constituição do sujeito e alteridade: algumas considerações sobre o autismo.

In: Estilos da clínica. Revista sobre a Infância com Problemas, v. ano VII, n. 13. São

Paulo: USP, Instituto de Psicologia, p.78-91, 2002.

FREIRE, A. B.; BASTOS, A. Paradoxos em torno da clínica com crianças autistas e

psicóticas: uma experiência com a prática entre vários. In: Estilos da clínica. Revista

sobre a Infância com Problemas, v. ano IX, n. 17. São Paulo: USP, Instituto de

Psicologia, p.84-93, 2004.

-------------. Aprendendo com o NAICAP: uma transmissão clínica. In: Ribeiro, J. M. e

FREUD, S. ([1892-99]1950). Extratos dos documentos dirigidos a Fliess. Edição

Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol.I.

Rio de Janeiro: Imago, 1979.

-------------. ([1895]1950). Projeto para uma psicologia científica. Edição Standard

Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol.I. Rio de

Janeiro: Imago, 1979.

--------------. (1896). Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa. Edição

Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. III.

Rio de Janeiro: Imago, 1979.

---------------. (1900). A Interpretação dos sonhos. Edição Standard Brasileira das Obras

Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. V. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

-------------. (1909) Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. Edição Standard

146

Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. X. Rio de

Janeiro: Imago, 1979.

-------------. ([1909]1910) Cinco lições de psicanálise. Edição Standard Brasileira das

Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XI. Rio de Janeiro: Imago,

1979.

-------------. (1911) Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental.

Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.

Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

-------------. (1911) Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de

paranóia (Dementia paranoides). Edição Standard Brasileira das Obras

Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

-------------. (1912) Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. Edição

Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XII.

Rio de Janeiro: Imago, 1979.

-------------. (1913) O início do tratamento. Edição Standard Brasileira das Obras

Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

-------------. (1913) Além do princípio de prazer. Edição Standard Brasileira das Obras

Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

-------------. (1913 [1912-13]) Totem e tabu. Edição Standard Brasileira das Obras

Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

-------------. (1914) A história do movimento psicanalítico. Edição Standard Brasileira das

Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago,

1979.

-------------. (1914) Sobre o narcisismo: uma introdução. Edição Standard Brasileira das

Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago,

1979.

-------------. (1915) O inconsciente. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas

Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

-------------. (1917[1915]) Luto e melancolia Edição Standard Brasileira das Obras

Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

147

-------------. (!918[1914]) História de uma neurose infantil. Edição Standard

Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XVII. Rio de

Janeiro: Imago, 1979.

-------------. (1919) O “estranho”. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas

Completas de Sigmund Freud. Vol.XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

-------------. (1921) Psicologia de grupo e a análise do ego. Edição Standard Brasileira das

Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago,

1979.

-------------. (1923) O ego e o id. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas

Completas de Sigmund Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

-------------. (1924[1923]) Neurose e psicose. Edição Standard Brasileira das Obras

Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

-------------. (1925) A negativa. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas

Completas de Sigmund Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

-------------. (1925[1924]) Uma nota sobre o ‘Bloco mágico’. Edição Standard Brasileira

das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro:

Imago, 1979.

-------------. (1925[1927]) Um estudo autobiográfico. Edição Standard Brasileira das

Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XX. Rio de Janeiro: Imago,

1979.

JULIEN, P. As psicoses: um estudo sobre a paranóia comum. Rio de Janeiro: Companhia

de Freud, 1999.

---------------. O Retorno a Freud de Jacques Lacan: a aplicação ao espelho. Porto Alegre:

Artes Médicas, 1993.

KANNER, L.(1943). Os distúrbios autísticos de contato afetivo. In: Rocha, P. S. (Org)

Autismos. São Paulo: Escuta, 1997.

KLEIN, M. (1930) A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego. In:

Amor, culpa e reparação e outros trabalhos (1921-1945). Rio de Janeiro: Imago,

1996.

-------------. (1933) O desenvolvimento inicial da consciência na criança. In: Amor, culpa e

148

reparação e outros trabalhos (1921-1945). Rio de Janeiro: Imago, 1996.

-------------. (1975) A psicanálise de crianças. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

LACAN, J. (1932) Da Psicose Paranóica em suas relações com a personalidade. Rio de

Janeiro: Forense-Universitária, 1987.

-------------. (1946) Formulações sobre a causalidade psíquica. In: Escritos. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 1998.

-------------. (1948) A agressividade em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1998.

-------------. (1949) O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio

de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

-------------. (1950) Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia. In:

Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.

-------------. (1953) Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio

de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

-------------. (1953-54) O Seminário, livro1. Os escritos técnicos de Freud. Rio de

Janeiro, Jorge Zahar,1979.

--------------. (1954) Comentário falado sobre a “Verneinung” de Freud, por Jean Hyppolite. In:

Escritos. Rio de Janeiro, 1998.

--------------. (1954) Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinung” de

Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro, 1998.

-------------. (1954-55) O Seminário, livro 2. O eu na teoria de Freud e na técnica da

psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

------------. A coisa freudiana ou Sentido do retorno a Freud em psicanálise. In: Escritos.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

-------------. (1955-56) O Seminário, livro 3. As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Editor, 1985.

-------------. (1955-56) De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In:

Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

--------------. ([1955] 1956). O seminário sobre ‘A carta roubada’. In: Escritos. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 1998.

149

--------------. (1956) Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956. In: Escritos.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

-------------. (1956-57) O Seminário, livro 4. A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1995.

-------------. (1957) A psicanálise e seu ensino. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

------------. (1957) A instância da letra no inconsciente ou a razão desde de Freud. In: Escritos.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

------------. (1957-58) O Seminário, livro 5. As formações do inconsciente. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

------------. (1958) A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio

de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

------------. (1960) Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: ‘Psicanálise e estrutura

da personalidade’. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

-------------. (1959-60) O Seminário, livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1991

--------------. (1960) Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In:

Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

--------------. (1960) Posição do inconsciente no Congresso de Bonneval. In: Escritos. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

--------------. (1960-61) O seminário, livro8. A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

1992.

-------------. (1961-62) O Seminário, livro 9. A Identificação. Inédito.

-------------. (1962-63) O seminário, livro 10. A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

2005.

-------------. (1964) O Seminário livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da

psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988.

-------------. (1969) Dos Notas Sobre El Niño. In: Intervenciones y Textos 2. Argentina:

Manantial, 1993.

-------------. (1974-75) O Seminário, livro 22. R.S.I.. Inédito.

-------------. (1975) Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines. In:

150

Scilicet 6/7. Paris: Seuil, 1976.

-------------.(1975) Conferencia em Ginebra sobre el sintoma. In: Intervenciones y Textos

2. Argentina: Manantial,1993.

LAURENT, E. Versões da clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

LEFORT, R. (1980) O nascimento do Outro. Salvador: Fator, 1990.

---------------. Resposta de Rosine e Robert Lefort. In: Letra Freudiana. O autismo,

Han$, n° 2, 14, 145-147. Rio de Janeiro: Revinter, 1995.

Letra Freudiana, Hans n 2. O Autismo. Rio de Janeiro: Revinter, 1995.

---------------. La Distinction de L’Autisme. Paris: Editions Seuil, 2003.

MAHLER, M. (1952) Sobre a psicose infantil e esquizofrenia: psicoses autística e simbiótica

da infância. In: As Psicoses Infantis e outros estudos. Porto Alegre: Artes Médicas,

1983.

-----------------. (1955) Sobre a psicose infantil simbiótica: aspecto genético, dinâmico e de

restituição. In: As psicoses infantis e outros estudos. Porto Alegre: Artes Médicas,

1983.

-----------------. (1958) Autismo e Simbiose: duas graves perturbações de identidade. In: As

psicoses infantis e outros estudos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.

-----------------. (1959) Sobre os precursores infantis do aparelho de influência. In: As psicoses

infantis e outros estudos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.

-----------------. (1960) Observações a respeito da pesquisa sobre a ‘síndrome simbiótica’ da

psicose infantil. In: As psicoses infantis e outros estudos. Porto alegre: Artes Médicas,

1983.

Marraio Formações Clínicas do Campo Lacaniano, n. 2. Autismo, o último véu. Rio de

Janeiro: Marca d’Água, 2001.

MAUPASSANT, G. O Horla. In: Bola de sebo e outros contos. São Paulo: Editora Martin

Claret, 2003.

MELMAN, C. O significante, a letra e o objeto. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.

MELTZER, D.(1967) O processo psicanalítico: da criança ao adulto. Rio de Janeiro:

Imago, 1971.

MILLER, J. (org). A criança no discurso analítico. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.

151

QUINET, A. A psicopatologia da esquizofrenia: Bleuler com Freud e Lacan. In: Sonia Alberti

(Org.) Autismo e esquizofrenia na clínica da esquize. Rio de Janeiro: Marca d’Água

Livraria e Editora, 1999.

---------------. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

2004.

---------------. Psicose e laço social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

SOLER, C. (1983) Autismo e Paranóia. In: Sonia Alberti (Org) Autismo e esquizofrenia na

clínica da esquize. Rio de Janeiro: Marca d’Água Livraria e Editora, 1999.

-------------. A psicanálise na civilização. Rio de Janeiro: Contra capa. 1998.

-------------. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

RABINOVICH, D. O desejo do psicanalista: liberdade e determinação em psicanálise.

Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000.

-----------------------. A angústia e o desejo do Outro. Rio de Janeiro: Companhia de Freud,

2005.

-----------------------. Clínica da pulsão – as impulsões. Rio de Janeiro: Companhia de Freud,

2004.

RIBEIRO, M. A. C. Editorial. In: Revista Marraio. Formações clínicas do campo

lacaniano, n. 2. Rio de Janeiro: {editora}, 2001.

-----------------------. Capitalismo e esquizofrenia. In: Sonia Alberti (Org.) Autismo e

esquizofrenia na clínica da esquize. Rio de Janeiro: Marca d’Água Livraria e Editora,

1999.

RIBEIRO, J. M. de L.C. A criança autista em trabalho. Rio de Janeiro: 7 letras, 2005.

ROUDINESCO, E.; PLON M. (1997) Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1998.

SAFOUAN, M Lacaniana I: os seminários de Jacques Lacan: 1953-63. Rio de Janeiro:

companhia de Freud, 2006.

STEVENS, A. A holofrase, entre psicose e psicossomática. In: Onicar?, n. 42, outono 87-88.

Paris: Navarin Editeur, p.45-79, 1987.

----------------. Trois places du savoir en institution. In: Analytica, n.51. Paris: Navarin Éditeur,

p.111-24, 1987.

152

STRAUSS, M. O autismo. In: Marraio - autismo, o último véu. Formações clínicas do

campo lacaniano, n. 2. Rio de Janeiro: {editora}, 2001.

TENDLAZ, S. De que sofrem as crianças? A psicose na infância. Rio de Janeiro: Sette Letras,

1997.

TUSTIN, F. (1972) Estados autísticos em crianças. Rio de Janeiro: Imago, 1984.

--------------. Autistc Barries in Neurotic Patients. London: Karnac Books, 1986.

--------------. (1993) A perpetuação de um erro. In: Letra Freudiana. O Autismo, Han$, n° 2,

14, 63-79. Rio de Janeiro: Revinter, 1995.

WINNICOTT, D. W. (1957) Por que as crianças brincam. In: A criança e seu mundo. Rio de

Janeiro: Zahar, 1966.

VROEDE, D. Pas d’accord! Ça ne va pas. In: Preliminaire, n.10. Bruxelas: Antenne110,

1998.

ZENONI, A. Traitement de l’Autre. In: Preliminaire, n.3. Bruxelas: Antenne 110, p. 101-

112, 1991.