A construção historiográfica educacional

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A CONSTRUÇÃO HISTORIOGRÁFICA EDUCACIONAL DO GRUPO ESCOLAR NO INTERIOR DE SERGIPE Cristiane Tavares Fonseca de Moraes Nunes (UFS/SE) [email protected] Jorge Luiz Cabral Nunes (FSLF/SE) [email protected] Resumo O trabalho de pesquisa para compreender os processos vividos pode ser realizado por caminhos metodológicos diversos. Podemos considerar a “história de vida” um puzzle que acabou de ser finalizado. Esta modalidade se constitui em importante fonte de informação sobre a prática profissional docente. Desta forma, a trajetória de vida profissional de uma professora primária, no período de 1955 a 1976 serve de subsídio para as reflexões sobre as práticas educacionais escolares da época. Professora do Estado de Sergipe, Eunice Pereira da Fonseca instituiu, por iniciativa própria, a merenda escolar e a educação de adultos no município de Santa Luzia do Itanhy, onde foi além de professora, diretora do Grupo Escolar Comendador Calazans. Estabeleceu, também, a prática do uso do uniforme escolar completo através de campanhas de doação. Foi líder e ativista política numa época em que a maior parte das mulheres ainda vivia a plenitude do ambiente doméstico, cuidando do marido e dos filhos. Neste estudo, o passado foi evocado pela memória e pelas lembranças da própria professora Eunice que, através de relatos, nos permite compreender as práticas do cotidiano escolar e verificar elementos da História da Educação no grupo escolar em que atuava. Sob a luz de candeeiros e velas, a professora Eunice promoveu a educação de adultos, contribuindo na região com o Movimento Paulo Freire e as aulas radiofônicas transmitidas pela Rádio Cultura de Sergipe, em parceria com a igreja católica, sob a coordenação de Dom José Vicente Távora, que indicou a professora Eunice para coordenar o movimento no Sul do Estado de Sergipe. Militante do Partido Social Democrático – PSD, num período, e em outro da União Democrática Nacional – UDN, tentava equilibrar-se no poder considerando a alternância dos partidos. Buscando referencial na contribuição de Roger Chartier para a História Cultural, o texto opera com categorias como “práticas” e “representações”. A investigação utilizou as entrevistas concedidas à autora pela professora Eunice e por outros atores que conviveram com ela. Também foram analisados documentos, atas, registros de aulas e relatórios. As suas relações políticas permitiam que a professora Eunice fosse vista pela sua comunidade como alguém capaz de resolver problemas em face das suas relações com políticos e usineiros, principais expressões da vida local. As atas analisadas revelam as visitas que a

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A CONSTRUÇÃO HISTORIOGRÁFICA EDUCACIONALDO GRUPO ESCOLAR NO INTERIOR DE SERGIPE

Cristiane Tavares Fonseca de Moraes Nunes (UFS/SE) [email protected] Luiz Cabral Nunes (FSLF/SE) [email protected]

ResumoO trabalho de pesquisa para compreender os processos vividos pode ser realizado por caminhos metodológicos diversos. Podemos considerar a “história de vida” um puzzle que acabou de ser finalizado. Esta modalidade se constitui em importante fonte de informação sobre a prática profissional docente. Desta forma, a trajetória de vida profissional de uma professora primária, no período de 1955 a 1976 serve de subsídio para as reflexões sobre as práticas educacionais escolares da época. Professora do Estado de Sergipe, Eunice Pereira da Fonseca instituiu, por iniciativa própria, a merenda escolar e a educação de adultos no município de Santa Luzia do Itanhy, onde foi além de professora, diretora do Grupo Escolar Comendador Calazans. Estabeleceu, também, a prática do uso do uniforme escolar completo através de campanhas de doação. Foi líder e ativista política numa época em que a maior parte das mulheres ainda vivia a plenitude do ambiente doméstico, cuidando do marido e dos filhos. Neste estudo, o passado foi evocado pela memória e pelas lembranças da própria professora Eunice que, através de relatos, nos permite compreender as práticas do cotidiano escolar e verificar elementos da História da Educação no grupo escolar em que atuava. Sob a luz de candeeiros e velas, a professora Eunice promoveu a educação de adultos, contribuindo na região com o Movimento Paulo Freire e as aulas radiofônicas transmitidas pela Rádio Cultura de Sergipe, em parceria com a igreja católica, sob a coordenação de Dom José Vicente Távora, que indicou a professora Eunice para coordenar o movimento no Sul do Estado de Sergipe. Militante do Partido Social Democrático – PSD, num período, e em outro da União Democrática Nacional – UDN, tentava equilibrar-se no poder considerando a alternância dos partidos. Buscando referencial na contribuição de Roger Chartier para a História Cultural, o texto opera com categorias como “práticas” e “representações”. A investigação utilizou as entrevistas concedidas à autora pela professora Eunice e por outros atores que conviveram com ela. Também foram analisados documentos, atas, registros de aulas e relatórios. As suas relações políticas permitiam que a professora Eunice fosse vista pela sua comunidade como alguém capaz de resolver problemas em face das suas relações com políticos e usineiros, principais expressões da vida local. As atas analisadas revelam as visitas que a professora fazia às famílias dos alunos e daqueles que não freqüentavam a escola, com o intuito de recrutá-los para o ambiente escolar. Os registros dão conta do recrutamento de 209 crianças através dessas visitas, reafirmando a concepção educacional salvacionista assumida pela professora. Os registros da sua personalidade forte foram também anotados em depoimentos que deram conta do ambiente doméstico. Educou seus dois filhos com muito rigor, como lembra o seu depoimento, por acreditar no crescimento profissional somente por intermédio dos estudos. Por isto, fazia o possível na tentativa de garantir aos próprios filhos uma formação de boa qualidade.

 Palavras-chave: Estudo biográfico; História de Vida; História da Educação.

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INTRODUÇÃO

O objeto de estudo é uma leitura da trajetória de Eunice Pereira da Fonseca, uma professora primária do Estado de Sergipe, que dirigiu durante trinta anos um grupo escolar no interior do Estado. Adentrar no seu universo é imaginar um tempo que ficou muito distante, lá atrás, silenciado, e que ecoa agora pelas vozes do passado. Na série de entrevistas concedidas pela professora estudada, uma frase em particular chama muito a atenção: “disse ao meu marido: não podemos ter muitos filhos, pois resolvi ser professora e minha missão é cuidar dos filhos dos outros”. Há várias observações nesta frase. Simboliza um tempo em que a educação era sim papel da escola, sem muito debate sobre a participação da família. Até porque, cabe lembrar, que a população era constituída pela maioria de analfabetos. Assim, a família transferia mesmo para a escola a função de educar os filhos. Em muitos momentos, no próprio relato da professora, é possível identificar que as mães entregavam a educação a ela, para que agisse como mãe também na formação daquelas crianças, podendo inclusive atribuir-lhes castigos físicos, como era comum à época.

Portanto, ouvir essas vozes do silêncio ou retirar a mordaça que o tempo sobrepõe às vidas modificadas pela atividade profissional ou pela sua ausência é buscar nestes antepassados os vestígios de uma prática e de uma cultura escolar como um desafio posto.

Por isso, ninguém melhor do que a própria protagonista para falar do que viveu e experienciou. O passado é evocado pela memória e pela história de sua vida. Contudo, apesar da matéria-prima comum, é a compreensão oposta a mais difundida entre muitos estudiosos, na perspectiva de que memória e história não se confundem, pois a História tem na memória seu mais importante suporte. Assim, a memória é sempre vivida, física ou afetivamente. No instante em que o grupo desaparece, a única forma de salvar as lembranças, é fazer o seu registro.

A memória é história viva e vivida e permanece no tempo, renovando-se. A história viva é, portanto, o lugar da permanência e nela o desaparecimento das criações grupais é somente uma aparência. A memória, na perspectiva de Halbwachs, é a possibilidade de recolocação das situações escondidas que habitam na sociedade profunda, na sensibilidade (HALBWACHS, 1990).

Tal subjetividade enfatiza que:

A nova história da educação promove uma ampliação sem precedentes da noção de fonte e de objeto trazendo à pesquisa educacional aspectos antes descurados pela historiografia como arquitetura da escola, regras e normas de conduta, rituais escolares, tipos e modos de dar aula, postura e comportamento docente, mobiliário e materiais didáticos, distribuição das atividades, relacionamento entre alunos e professores, festas e lazeres escolares, atitudes de conformação e rebeldia discente, enfim, a história dos lugares, das pessoas, dos saberes e dos fazeres que envolvem o ato de ensinar e aprender (GRAÇA, 2002)

Todos estes aspectos devem ser considerados não apenas nas instâncias oficiais de produção cultural, mas também em relação aos usos e costumes que caracterizam a sociedade examinada pelo historiador. São práticas culturais não apenas a escrita de um livro, uma determina técnica artística ou uma modalidade de ensino, mas também os

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modos como, em uma dada sociedade, os homens convivem e brigam, se alimentam ou se relacionam, ouvem e se calam, enfim, o modo de vida dessas pessoas.

Ao tentar compreender a cultura de uma dada época, é importante considerar as influências do tempo presente.

No entanto, se os Grupos Escolares tiveram uma importância singular na construção simbólica da escola primária brasileira e na produção da história da infância no Brasil, não é certo dizer que sua influência foi única no período que se estendeu até os anos 1970. (VIDAL, 2006).

Compreende-se, assim a cultura escolar, como tudo que envolve os saberes, as condutas e as práticas usadas para transmissão desses saberes dentro da escola. Este universo revela traços importantes da vida escolar e todo o seu “em torno”, numa contextualização que vai além dos portões das instituições e atinge a sociedade em seus múltiplos aspectos.

Souza (2000, p.11) nos coloca que, além das fontes documentais tradicionalmente utilizadas para a História da Educação, um conjunto diversificado e significativo de fontes pode ser empregado no estudo da cultura escolar, isto é, documentos produzidos pelos órgãos da administração do ensino para serem utilizados pelas escolas (relatórios, anuários, periódicos educacionais, orientações didáticas, manuais escolares, programas de ensino, despachos, entre outros) e documentos produzidos pelos agentes educacionais como diários, semanários, cadernos e trabalhos de alunos, provas, livros didáticos, fotografias, depoimentos orais, entre outros.

Essas considerações revelam que, para se aproximar ao máximo do cotidiano escolar, os pesquisadores precisam realizar um levantamento minucioso e organizado das fontes, que podem ser encontradas nos arquivos tradicionais, mas principalmente, em arquivos pessoais, nos guardados de ex-alunos e profissionais da instituição. Não é demais falar em seriedade, comprometimento e persistência para conseguir se estabelecer uma relação de confiança entre o pesquisador e o “guardião” de tão preciosas fontes.

As inter-relações formadas em seu em torno podem demonstrar que as instituições escolares tanto se apresentam em seu aspecto formal, de disciplinas, normas e currículos, como também em suas características informais, mas de grande importância na definição de sua própria cultura. Demonstram, também, as relações de poder estabelecidas em seu interior. Nesse espaço,

Os grupos escolares deram à formação cívica importância fundamental. A partir da implantação do Grupo Escolar Modelo e ao longo de toda a primeira metade do século XX foram muitas as iniciativas dos governos que objetivaram criar condições para que os grupos escolares priorizassem a formação cívica dos seus alunos. Livros de leituras morais, sempre com a preocupação de fixar valores relativos ao cumprimento do dever, ao culto da responsabilidade, do amor, do bem, da solidariedade, do respeito às leis, dos valores morais. (NASCIMENTO, p. 162, 2006)

No estudo iniciado, percebemos, de fato, que as comemorações cívicas eram muito prestigiadas na cidade, contando sempre na escola com a presença das autoridades do Município, a exemplo do próprio prefeito e também de representantes da instrução pública do Estado. Isso está presente em todo o material pesquisado, principalmente nos

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boletins de ocorrência, nos quais eram descritas as práticas na escola, bem como as atividades, reuniões pedagógicas e festividades.

A atuação da professora Eunice é presente em iniciativas de pedir auxílio aos feirantes e nas casas da comunidade, angariando alimentos para que pudesse servir a merenda escolar. Também está presente na fabricação dos uniformes escolares, solicitando aos usineiros da região o tecido para que pudessem, ela e as mães, produzir o uniforme das crianças. Outra prática foi a educação de adultos viabilizada pelas aulas radiofônicas do Movimento Paulo Freire através de uma ação da igreja católica via Rádio Cultura de Sergipe.

As condições sob as quais trabalhou a professora Eunice foram determinantes da opção de periodizar que se fez no presente estudo. O ponto de partida é o ano de 1955, encerrando-se o período analisado em 1976, considerando-se os registros existentes acerca da atuação da docente estudada. Não obstante haver a professora estabelecido residência no município de Santa Luzia do Itanhy por mais de 30 anos, o período de 21 anos aqui estabelecido é verificado em face da existência de atas e outros documentos. Após o ano de 1976, quando se aposentou encerrando a sua carreira docente, a professora Eunice foi colaborar com o marido tabelião no trabalho que este desempenhava no cartório da cidade, o que não é objeto de análise por parte deste estudo. Na década de 80 do século XX, o casal mudou-se da cidade de Santa Luzia para Aracaju.

I – ATUAÇÃO DA PROFESSORA PRIMÁRIA

Eunice demonstrou desde muito cedo, uma liderança entre os irmãos, sendo respeitada por todos e tratada por eles como “tia”. Durante a infância assumiu responsabilidades de mãe, nos afazeres domésticos, na agricultura de subsistência e no cuidado com os irmãos. O cotidiano familiar que percorreu sua juventude foi de dedicação às tarefas domésticas.

Entretanto, nunca descuidou dos estudos. Apesar de economicamente modestos, seus pais não dispensavam a formação escolar dos filhos. Eunice começou, ainda cedo, a ensinar as crianças, suas vizinhas, a ler e a escrever.

Sua mãe, Bertulina, tinha uma irmã, que teve influência muito grande nas idéias que mais tarde a professora assumiria. A Tia, Pureza, comerciante no mercado municipal Tales Ferraz, em Aracaju, interessada pela militância política, abriu as portas da sua barraca de feirante para abrigar e esconder militantes perseguidos pela ditadura militar na década de 60. Assim, o contato com ela era uma espécie de processo de formação política socialista, preparando sua personalidade e fortalecendo seu discurso acerca da liberdade.

Por influência da Tia Pureza, professora Eunice mudou para a cidade de Aracaju, a fim de prosseguir com os estudos. A Tia Pureza era militante do Partido Comunista e convivia com diversas lideranças de esquerda em Aracaju. Entendia que justiça social e distribuição de riqueza só poderiam acontecer quando implementadas as propostas do “partidão”1. Foi responsável, na década de 60 por algumas invasões de terrenos em Aracaju, como por exemplo, a área da Rua São Francisco, atualmente Rua Rafael de Aguiar. Como não se casara, procurava educar os sobrinhos e Eunice não foi a única a 1 O Partido Comunista Brasileiro.

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receber a sua influência ideológica, incentivo à formação como professora e desenvolvimento da auto-estima.

Eunice concluiu seu curso primário no Colégio Tobias Barreto (1936), sob a direção do professor José de Alencar Cardoso, o “Professor Zezinho2”, profissional influente nas práticas educacionais em Sergipe durante a primeira metade do século XX. O professor havia fundado um colégio na cidade de Estância em 1909, transferindo-o depois para Aracaju. Oferecendo ensino para ambos os sexos, o seu colégio valorizava a formação militar para os alunos do sexo masculino.

O ginásio, Eunice cursou no Colégio Atheneu Sergipense, concluindo o curso em 1942. Nas suas memórias ficou o registro da importância do trabalho dos professores Abdias Bezerra, Felte Bezerra e José Barreto Fontes, entre outros, que contribuíram e influenciaram sua formação: “tempos em que o professor era respeitado e a sociedade entendia a importância social, cultural, econômica de um professor e o via como co-responsável na formação integral do aluno”.

Já casada com Otacílio da Fonseca, aos 20 anos, e de volta ao município de Pedra Mole, teve seu primeiro filho Jeferson e logo depois sua filha Gicelma que faleceu acometida de difteria aos dois anos de idade. Ingressou no serviço público estadual, em 03 de março de 19473, como professora, em sua cidade natal, Pedra Mole, interior do Estado de Sergipe, na escola pública4 daquela cidade, sendo transferida aproximadamente dois anos depois para o povoado de Areias, no município de Divina Pastora. Mas, logo depois, uma nova remoção. Desta vez para a Escola Rural da Fazenda Angicos, no município de Poço Redondo, Vila de Santa Luzia, atualmente a cidade de Barra dos Coqueiros. Mais uma transferência, agora para o município de Ribeirópolis onde trabalhou durante oito anos. Lá nasceu outra filha, Sônia, em 1954. Em Ribeirópolis estabeleceu laços de amizade com a influente família Ceará, o que lhe possibilitou acesso à direção do Grupo Escolar Abdias Bezerra, naquele município: “ou o professor era do lado do prefeito ou era perseguida por ele e aí era transferida, o que era chamado de remoção”.

De Ribeirópolis, professora Eunice foi ainda transferida para o município de Itabi e, em seguida, para o de Campo do Brito. De lá, recebeu a última remoção, desta feita para a cidade de Santa Luzia do Itanhy, em 1955, onde permaneceu morando mesmo após a sua aposentadoria, em 1976. Somente na metade da década de 80, já aposentada, resolveu fixar residência em Aracaju.

Em Santa Luzia do Itanhy, no Grupo Escolar Comendador Calazans5 contribuiu mais para o planejamento escolar, inovando ações e instituindo práticas pedagógicas no ensino primário que moldaram sua identidade na gestão da escola.

Durante todo esse período, o Estado possuía uma política de treinamentos e capacitações permanentes. O Departamento de Educação do Estado, àquela época,

2 Professor Zezinho foi expulso da Escola Militar do Realengo em virtude de ter se envolvido na revolta de novembro de 1904. Faleceu em 1964 aos 86 anos.3 Conforme consta na Declaração datada de 12 de março de 1990, da Diretoria Regional de Educação de Estância/SE.4 Eram consideradas Escolas Públicas Isoladas as escolas implantadas pelo governo estadual em propriedades particulares como fazendas e sítios fora da área da cidade. Posteriormente, passaram a chamar-se escola rural.5 O Grupo Escolar Comendador Calazans foi criado através do Decreto nº 244 de 07/11/1953, assinado por Arnaldo Rollemberg Garcez e Acrízio Cruz.

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correspondia a atual Secretaria da Educação. Certamente, a partir da década de 40 do século XX e até os anos 50 da mesma centúria o seu diretor mais influente foi o professor Acrísio Cruz (1906-1969), tendo orientado e dirigido trabalhos de destaque durante o governo de José Rollemberg Leite (1947-1951). Na verdade ele já atuava no Departamento desde 1944 como técnico em educação. Acrísio foi responsável pela instalação de vários grupos escolares em Sergipe, ampliando as possibilidades de acesso à escola. Os seus ideais pedagógicos escolanovistas foram concretizados nas ações destinadas à instrução pública estadual. Acrísio e a professora Eunice se conheceram no Colégio Tobias Barreto, ele como professor e ela como aluna. Depois, no trabalho, ele como dirigente do Departamento de Educação e ela na condição de professora. Estabeleceram relações profissionais, depois transformadas em amizade que resultou no convite para que o professor fosse padrinho de uma das suas filhas.

II - AS PRÁTICAS ESCOLARES

A sugestão para que a professora Eunice se submetesse aos concursos públicos, partiu do antigo mestre Acrísio Cruz, que foi professor de Eunice no Colégio Tobias Barreto. Essa amizade lhe daria muitas indicações para que pudesse participar das seleções para ocupação da função de diretora de escola, como aconteceu em Santa Luzia do Itanhy.

No Estado de Sergipe, delineava-se nesse período um panorama econômico marcado pelo declínio da economia canavieira e da indústria têxtil e da expansão da atividade agropecuária. Em contrapartida, no final dos anos 50 e início dos 60, sob influência dos debates e iniciativas de caráter nacional, o Estado passou a experimentar um período rico de mudanças, sobretudo a partir da criação da SUDENE, que sinalizou caminhos para sua industrialização e modernização. (SANTOS, 2003)

A posição de diretora de grupo escolar permitiu que a professora Eunice também estabelecesse relações com a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – Sudene e participasse de cursos e outros projetos da autarquia.

O grupo escolar Comendador Calazans tinha, em sua dependência, uma área que servia de moradia da professora e de sua família, composta de dois cômodos e uma área livre.

O prédio contava apenas com quatro salas de aula, uma diretoria que funcionava também como secretaria, quatro sanitários, sendo dois masculinos e dois femininos, um pátio coberto, cozinha, depósito para guardar a merenda, e a casa do professor, casa que D. Eunice residiu por muito tempo. (Iza6)

Aos sábados, Eunice fazia reunião com todas as outras professoras para traçar os planos de aula e o planejamento da vida escolar.

6 Maria Luiza Quintela Leite, conhecida na cidade por Iza, era professora e atualmente é secretária na escola, onde ainda permanece em atividade até a data da entrevista (30/03/2009)

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O registro dessas atividades está arquivado em formulários depositados na Secretaria de Estado da Educação de Sergipe7. Nos documentos é possível verificar a autoridade da diretora e a participação das lideranças políticas do município na vida escolar.

Como diretora do grupo escolar no município de Santa Luzia do Itanhy (Grupo Escolar Comendador Calazans), a professora Eunice implementou algumas práticas pedagógicas, como educação de adultos (com “luz de candeeiro e velas”, como ela conta, onde cada aluno levava o seu candeeiro para as aulas).

A professora Eunice participou também ativamente do Movimento Paulo Freire, com o método de alfabetização de adultos, aulas transmitidas pela Rádio Cultura de Sergipe em uma parceria com a igreja católica, sob a coordenação do bispo de Aracaju, Dom José Vicente Távora, que indicou a professora Eunice para coordenar o movimento no sul do Estado de Sergipe. Neste projeto, ela atuou ainda como multiplicadora na alfabetização de centenas de adultos. O aparelho receptor de rádio alimentado por uma bateria de caminhão era instalado na escola.

Educação de adultos eu fiz muito, e era a luz de velas e candeeiro. Os alunos levavam cada qual o seu candeeirinho. Me dava tristeza uma pessoa no meu país não saber escrever o nome dele (professora Eunice)

Além do aparelho de rádio, a escola recebia cartilhas que eram distribuídas às professoras, com a explicitação da metodologia de ensino.

A primeira palavra a ser ensinada era Tijolo e continha todo um simbolismo em toda aquela construção. Ninguém recebia nada para fazer isso. Existiam as cartilhas que eram distribuídas aos outros professores com o método a ser repassado aos alunos. Quando meu irmão Jeferson foi preso, seu Toinho da prefeitura foi em casa avisar para queimar todas as cartilhas pois a polícia do 28 BC estava vindo. (Sônia, filha de Eunice)

É conhecida a posição que os militares dirigentes da ditadura que se implantou em 1964 assumiram em face do método concebido pelo professor Paulo Freire, considerando o projeto subversivo, determinando a prisão do autor da proposta que foi forçado a sair do país e viver no exílio.

Nas diversas atividades constantes no calendário escolar, a participação de alunos, professores e comunidade era bastante expressiva.

Apesar de não ter vínculo partidário formal, a professora Eunice exercia uma influência política na comunidade. Prestava serviços a todos e providenciava auxílio a todos que necessitavam. Quando alguém morria e a família não dispunha de meios, era a professora quem assumia a responsabilidade de buscar ajuda junto ao governo municipal para o velório. Chegou a encomendar a produção de um caixão comunitário, com fundo falso, que era reaproveitado em vários sepultamentos.

7 Nesses formulários, são claramente discorridos alguns temas, como a recuperação daqueles alunos que não foram aprovados por média. Foi verificado o período de 1972 a 1975. Há um enfoque em palestras cívicas, conforme formulário datado de 23/03/1973. Há ainda outra menção a comemoração dos 150 anos da criação do poder legislativo brasileiro em maio de 1823 e outra citação de 26/05/1973 com explicações sobre o Congresso Nacional e os três poderes.

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Essas práticas assistencialistas levaram a professora Eunice a exercer influência eleitoral no município, o que a fazia objeto do assédio dos dirigentes políticos locais.

Minha mãe sabia quantos votos ela tinha em cada urna, os eleitores chegavam, iam lá para casa e minha mãe distribuía, dizendo, é para votar nesse e ela ia esperar na porta de cada urna para poder fazer o controle. (Sônia, filha de Eunice)

Foi este espírito que a levou a instituir um programa de merenda escolar8 na instituição que dirigia. A professora Eunice organizava mutirões e envolvia as lideranças locais para obter verduras e legumes, arroz, carne e os demais insumos necessários à refeição dos estudantes. Os feirantes eram participantes ativos do projeto.

Os alunos do Grupo Escolar Comendador Calazans merendavam 10 horas da manhã e 3 horas da tarde (professora Eunice)

No exercício da direção, mantinha uma postura de força e de imposição da sua autoridade pedagógica e administrativa. Os registros da freqüência do pessoal administrativo e docente demonstram que a professora Eunice buscava legitimar a sua autoridade através do exemplo, sendo a primeira a chegar e a ultima a se retirar da escola.

O mesmo tipo de prática que assumia no ambiente familiar. Acreditava firmemente na possibilidade do sucesso profissional e social como conseqüência de uma sólida formação escolar. Seu filho Jeferson, aos onze anos, foi morar em Aracaju, a fim de dar continuidade aos estudos, em face da ausência de oportunidades no interior do Estado. Sônia, dez anos mais nova que o irmão, ficou em Santa Luzia com os pais.

III – CONSIDERAÇÕES FINAIS

As memórias da professora Eunice são reveladoras dos elementos próprios à vida social de meados do século XX, como a presença forte dos partidos políticos no interior de Sergipe, influenciando na escolha dos dirigentes das escolas; as ações e práticas pedagógicas impactando a vida dos estudantes e das comunidades; práticas de assistência social como a organização de projetos de merenda escolar sem o financiamento público.

Práticas como as de organização de programas de merenda escolar sem financiamento público ajudavam na obtenção de prestígio político pessoal, mas também eram mobilizadoras da comunidade e estimulavam o desenvolvimento da consciência de autogoverno e da responsabilidade coletiva em colaborar e contribuir para a manutenção da escola. Esse entendimento leva a professora Eunice a produzir críticas as relações estabelecidas atualmente entre os profissionais da Educação e as instituições escolares, a partir do entendimento do magistério como missão sacralizada:

O magistério hoje está diferente, pois os professores só trabalham pelo dinheiro, diferente daquele tempo, onde havia devoção acima de tudo (professora Eunice).

8 O programa criado pela professora Eunice era mantido com a participação de todos. Ela cotava com a participação das professoras e dos feirantes para a obtenção dos insumos necessários à produção da merenda escolar.

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As memórias da professora Eunice contribuem para a compreensão de categorias próprias ao universo da chamada História Cultural, formuladas por teóricos como Roger Chartier9. O seu fazer e o discurso presente nas suas memórias se articulam como “práticas” e “representações” presentes em formações culturais nas quais a professora Eunice viveu e trabalhou.

Formações sociais nas quais os profissionais do magistério produziam de si representações de pessoas conduzidas por uma vocação com características de sacerdócio, onde a professora era uma espécie de “mãe” substituta dos alunos, posto que a escola era vista como instituição destinada a oferecer práticas educativas que substituíam a responsabilidade familiar. Mesmo porque, os núcleos familiares, em boa parte dos casos não apresentavam as condições necessárias a colaborar com o processo de letramento, posto que a maior parte dos seus membros era composta por analfabetos que não podiam ou não se sentiam em condições de cumprir esse papel.

A diferença daquela época para os dias de hoje é que antes os professores eram mais dedicados, a pesar do salário baixo, eles não deixavam de cumprir o seu dever talvez pelo fato de naquela época não sofrerem influências dos movimentos sindicais. O ano letivo transcorria sem interrupção de greves ou paralisações contava com cento e oitenta dias letivos e quatro disciplinas na grade curricular, o rendimento dos alunos no final de ano era satisfatório. Outro fator importante daquela época era o apoio da família, pois os pais acompanhavam efetivamente na educação dos filhos. Os alunos daquela época eram mais disciplinados, respeitavam os professores como se fossem os próprios pais (Iza)

Naquele tipo de comunidade, o trabalho do professor era visto como portador de luzes que indicariam os caminhos do sucesso profissional e da ascensão social.

Por isto, a função docente impunha renúncias àquele que optava por ela, o que levava profissionais, como a professora Eunice a colocar suas responsabilidades ao marido: “não vamos ter muitos filhos, sou professora, minha missão é cuidar dos filhos dos outros”. A vocação para o magistério era já legitimamente feminina e responsabilidade que se impunha cada vez mais predominantemente como papel profissional da mulher. Papel socialmente muito bem recebido.

9 Ver: Roger Chartier em A História Cultural, publicado em 1990.

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