A construção secular de uma identidade étnica ... versão... · From here we find the conceptual...

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Pedro Manuel Rodrigues da Silva Madeira e Góis A construção secular de uma identidade étnica transnacional: a cabo-verdianidade Dissertação de Doutoramento em Sociologia apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, na especialidade de Sociologia da Cultura, do Conhecimento e da Comunicação, sob a orientação do Prof. Doutor Carlos José Cândido Guerreiro Fortuna Maio de 2011

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  • Pedro Manuel Rodrigues da Silva Madeira e Gis

    A construo secular de uma identidade tnica transnacional: a cabo-verdianidade

    Dissertao de Doutoramento em Sociologia apresentada Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, na especialidade de Sociologia da Cultura, do Conhecimento e da Comunicao, sob a orientao do Prof. Doutor Carlos Jos Cndido Guerreiro Fortuna

    Maio de 2011

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    Palavras-chave: Sociologia das Migraes; Sociologia da Cultura; Migraes cabo-verdianas; Identidade tnica; Etnicidade; Cabo-verdianidade

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    Esta Dissertao de Doutoramento em Sociologia foi apoiada com uma Bolsa de Investigao com a ref. SFRH / BD / 18797 / 2004 pela Fundao para a Cincia e a Tecnologia do Ministrio da Cincia, Tecnologia e Ensino Superior da Repblica Portuguesa

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    Esta Dissertao de Doutoramento em Sociologia foi apoiada com uma Bolsa de Investigao para trabalho de campo em pases Africanos pelo Instituto de Cooperao Cientfica e Tecnolgica Internacional (ICCTI) da Fundao para a Cincia e a Tecnologia do Ministrio da Cincia, Tecnologia e Ensino Superior da Repblica Portuguesa (Proc. 4.1.6/PFA Estudos Africanos e Timorenses)

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    Resumo Cabo Verde um dos poucos pases do mundo que tem tido uma emigrao ininterrupta ao longo de mais de dois sculos. um pas marcado pela existncia de algumas dezenas de milhares de emigrantes e de centenas de milhares dos seus descendentes no exterior de Cabo Verde a par de outros tantos no interior do arquiplago. Como podemos pensar a existncia de uma identidade colectiva nestas condies? Como se formam e mantm os vnculos de ligao a Cabo Verde nos ncleos de emigrantes e seus descendentes? Como ser cabo-verdiano em diferentes destinos migratrios ao longo do tempo? As observaes efectuadas em alguns dos destinos migratrios onde se estabeleceram Cabo-verdianos em confronto com os dados recolhidos no arquiplago de Cabo Verde, levaram-nos a estruturar a hiptese de uma co-influncia recproca no que respeita s dimenses que constituem a identidade social e cultural cabo-verdiana contempornea. No nosso caso, invertemos o tradicional olhar e analisamos a identidade cabo-verdiana a partir no do arquiplago de Cabo Verde mas do arquiplago migratrio e do confronto com os vrios outros com que se tem defrontado ao longo dos ltimos sculos. A anlise efectuada permite questionar o modo como se estruturam as ligaes simblicas entre os cabo-verdianos que se movem no seio de um mundo social transnacional e descobrir a construo de uma identidade social transnacional baseada numa identificao tnica. A partir daqui encontramos o campo conceptual que nos permite discutir sociologicamente a etnicidade cabo-verdiana enquanto dimenso que enforma uma identidade tnica transnacional. O nosso percurso leva-nos de volta aos clssicos da sociologia para, atravs da anlise circunstanciada das suas contribuies analticas, compreendermos como a etnicidade ou identidade tnica se tornou uma caracterstica socialmente marcante e sociologicamente consequente ao longo dos tempos. A etnicidade ou a identidade tnica emergem na actualidade das cincias sociais, como algo mais do que construes sociais ou polticas. A vida social est, embora de forma desigual, profundamente estruturada em linhas tnicas, e a etnicidade acontece numa variedade de cenrios quotidianos. A etnicidade est incorporada e visvel no apenas nos projectos polticos e na retrica nacionalista mas tambm em encontros do dia-a-dia, em categorias prticas, no conhecimento de senso comum, em idiomas culturais, em esquemas cognitivos, em construes discursivas, em rotinas organizacionais, em redes sociais e/ou em formas institucionais. H, portanto, uma centralidade que deve ser analisada. Procuramos demonstrar que a identidade tnica transnacional cabo-verdiana vem sendo construda continuamente ao longo dos ltimos sculos enquanto fenmeno social e sociolgico. Existe no porque exista (apenas) uma crena que supe a sua existncia mas por que h aces, interaces e relaes sociais que, analisadas longitudinalmente, comprovam a sua existncia. Referimos exemplos diversos desta actividade nos EUA, em Portugal, em Cabo Verde ou na Argentina. Defendemos que no existe [no poderia nunca existir] uma (nica) identidade tnica cabo-verdiana geral, mas ao contrrio, estaremos em presena de uma (re)construo tnica mltipla e, portanto diferente em cada um dos pases onde existem comunidades imigradas (e no arquiplago de Cabo Verde), resultante, por um lado, do confronto com os outros diferenciadores e, numa outra vertente, dos contextos e conjunturas em que ocorreu e ocorre essa interaco.

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    Abstract Cape Verde is one of the few countries of the world whose immigration has been continuous for over two centuries. One of the characteristics of this country is the existence of some dozens of thousands of Cape Verdean immigrants, and hundreds of thousands of their descendants outside the country and the same number within the archipelago. In what way can we think of the existence of a collective identity under these conditions? How are the bonds to Cape Verde created and maintained within immigrants and their descendents groups? What is it like to be Cape Verdean in different migration destinations throughout time? Observation made in some of the migration destinations of Cape Verdeans, when compared with data gathered in the Cape Verde archipelago, led us to the hypothesis of the existence of a reciprocal co-influence regarding the dimensions of the contemporaneous social and cultural Cape Verdean identity. In our case, we inverted the traditional way of looking at it, and analysed the Cape Verdean identity not from the Cape Verde archipelago but from the migratory archipelago, and from the confrontation with the several others it has been facing throughout the last centuries. The analysis done allows us to question the way in which symbolic bonds among Cape Verdeans who operate within a transnational social world are structured, as well as learning about the construction of a transnational social identity based on an ethnic identification. From here we find the conceptual field that allows us to sociologically discuss the Cape-Verdean ethnicity as a dimension that shapes up a transnational ethnic identity. Our path led us back to the classics of sociology to, through the circumstantiated analysis of its analytical contributions, understand how ethnicity or ethnic identity became a socially important characteristic and sociologically consequent throughout time. Ethnicity or ethnic identity emerges in the current social sciences as something further than a social or political construction. Social life is, although not uniformly, deeply structured around ethnic lines, and ethnicity happens in a variety of different daily scenarios. Ethnicity is incorporated and visible not only in political projects and nationalist rhetoric, but also in daily meetings, practical categories, commonsense knowledge, cultural idioms, cognitive schemas, discursive constructions, social networks and/or institutional forms. We aim to demonstrate that the Cape Verdean transnational ethnic identity is being continuously built for the last centuries, as a social and sociological phenomenon. It exists not only because there was (only) a belief that presupposes its existence, but also because there are actions, interactions and social relationships that, when longitudinally analysed, prove their existence. We mentioned several examples of this activity in the USA, Portugal, Cape Verde or Argentina. We believe that is does not exist [it could never exist] a (unique) general Cape Verdean ethnic identity; on the contrary, we would be in the presence of a multiple ethnic (re)construction, therefore different in each of the countries with immigrant communities (and in the Cape Verde archipelago), resulting, on one hand, of the confrontation with the differentiating others and, on the other, of the contexts and conjunctures in which that interaction occurs.

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    NDICE Resumo ............................................................................................................................................... 7 Abstract .............................................................................................................................................. 9 Agradecimentos ............................................................................................................................ 15 Introduo: Do achamento de uma nao descoberta de um transnacionalismo identitrio ...................................................................................................................................... 19 Etimologia do conceito de identidade .................................................................................................... 22 Identidade como conceito mltiplo e identidade como conceito complexo ........................... 24 Uma sociologia da identidade ou vrias? ............................................................................................. 26 Da integrao diversidade. Da diversidade integrao .......................................................... 36 Identidades tipo: a investigao em torno da etnicidade de base identitria .................. 43 T na Lua Ten Kabverdinu? ................................................................................................................... 46 Descrio capitular ......................................................................................................................................... 61

    Captulo 1: Da etnicidade como obstculo epistemolgico etnicidade como tipo-ideal ? .................................................................................................................................. 69 Um jardim herderiano: a cada um a sua etnicidade e uma etnicidade a cada um ..... 75 Semntica e razes da etnicidade: uma arqueologia terminolgico-conceptual ................ 79 Substituio ou (re)conceptualizao? ................................................................................................. 86 A etnicidade como herana herderiana ............................................................................................. 87

    Captulo 2: A etnicidade nos autores clssicos da Sociologia .................................... 97 Ferdinand Tnnies ....................................................................................................................................... 100 Vilfredo Pareto ............................................................................................................................................... 104 Karl Marx ......................................................................................................................................................... 115 mile Durkheim ............................................................................................................................................. 126 Max Weber ....................................................................................................................................................... 139 Georg Simmel ................................................................................................................................................. 159

    Captulo 3: Diferentes abordagens da etnicidade na sociologia contempornea .......................................................................................................................................................... 169 Robert E. Park (1864-1944) ..................................................................................................................... 173 Talcott Parsons (1902-1979) .................................................................................................................. 193 Frederik Barth (1928- ) ............................................................................................................................. 207 Pierre Bourdieu (1930-2002) .................................................................................................................. 223

    Captulo 4: Modos de Olhar/Modos de ver: observar a identidade tnica transnacional cabo-verdiana ................................................................................................. 249 A etnicidade como conceito problema ............................................................................................. 252 Como medir a etnicidade. Ser possvel? ........................................................................................ 255 As etapas de investigao: construindo um roteiro metodolgico ......................................... 258 A pergunta de partida ................................................................................................................................ 264 As hipteses de partida, de trnsito e de destino ............................................................................ 265 Obteno e anlise de dados: a variedade de fontes e a construo de tese(s) ................. 268 Construindo etapas: o Estado da Arte ................................................................................................. 273 O inqurito on line (web based) ............................................................................................................. 285

    Captulo 5: A emigrao cabo-verdiana para os EUA e os desafios para a construo de uma identidade tnica transnacional ..................................................... 291 O incio da construo do mundo cabo-verdiano ........................................................................... 296 Uma anlise da construo sociolgica da identidade tnica cabo-verdiana nos EUA: recuperar a actualidade, resgatar a histria ................................................................................... 346

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    Cabo-verdianos versus afro-americanos: a segmentao do grupo na construo da identidade ........................................................................................................................................................ 350 (1) Ser ou no ser etnicamente portugus: a evoluo e as razes de uma escolha ... 356 (2) Ser ou no ser Negro: as polticas da etnicidade ................................................................. 362 (3) Os Cabo-verdianos-africanos ........................................................................................................... 370 (3.5) Os Cabo-verdianos como Afro-Americanos ............................................................................ 376 (4) A identidade hifenizada composta: ser Cabo-verdiano-americano ................................ 384

    Captulo 6: A emigrao cabo-verdiana para a Argentina. O tempo longo da assimilao reversvel .............................................................................................................. 389 Cabo-verdianos na Argentina: comunidade (s) invisveis? Ou uma etnicidade adormecida? ................................................................................................................................................... 390 Trs fases migratrias distintas para a Argentina ........................................................................ 393 Invisibilidade versus Visibilidade social: etapas num percurso longo de assimilao ... 403 Uma tipologia de integrao a partir dos actores ......................................................................... 409 A etnicidade resistente: cabo-verdianidade argentino-cabo-verdiana ............................. 425 Ser a globalizao geradora de visibilizao social para os Cabo-verdiano-descendentes na Argentina? .................................................................................................................... 430 De Argentinos a Cabo-verdianos: as polticas da etnicidade ................................................. 432

    Captulo 7 Os diferentes tipos de cabo-verdianos em Portugal : um balano aps 50 anos de migrao (ou o caminho para a construo de identidades adaptativas) .......................................................................................................................................................... 437 As migraes cabo-verdianas para Portugal ................................................................................... 441 O incio da teia migratria: a abertura de mais uma linha para a rede migratria cabo-verdiana ............................................................................................................................................................ 448 Concentrao espacial e fechamento social ..................................................................................... 461 Entre trs grupos e cinco tipos: Cabo-verdianos em Portugal .................................................. 465 As prticas transnacionais dos imigrantes cabo-verdianos em Portugal e a sua ligao construo da identidade tnica transnacional .......................................................................... 477 A segunda gerao: entre o ser, o sentir e o assumir .................................................................... 504

    Captulo 8: Pap, ben fla-m ki rasa ki nos , pai ? ................................................. 515 Um duplo arquiplago: a especificidade de cada uma das ilhas ............................................. 517 A polarizao Europa versus frica como construo scio-poltica ................................... 529 Dimenses culturais da cabo-verdianidade: lngua; literatura e msica ............................ 536 A lngua cabo-verdiana como uma estrutura estruturante (ainda pouco estruturada) .............................................................................................................................................................................. 538 A literatura cabo-verdiana como estrutura estruturante da cabo-verdianidade ........... 552 Msica cabo-verdiana: a internalizao transnacional de uma identidade contra-hegemnica? ................................................................................................................................................... 580 A objectivao da tradio. A construo de indicadores de contacto com a cultura cabo-verdiana ................................................................................................................................................ 589 Identidade tnica transnacional ou cabo-verdianidade? ........................................................... 592

    O ltimo captulo: algumas concluses e um mapa para investigaes futuras ... 595 Bibliografia .................................................................................................................................. 627

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    Sociology is an exporter discipline: key ideas are readily absorbed elsewhere

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    Agradecimentos Este projecto de dissertao de doutoramento no foi, como nunca , um projecto

    percorrido em solitrio. Ao longo do trajecto, que me conduziu a esta etapa de

    apresentao da dissertao, pude contar com a ajuda preciosa de numerosas pessoas

    e de algumas instituies. Na impossibilidade de mencionar todas elas, expresso aqui

    explicitamente o meu agradecimento quelas que mais ou melhor marcaram este

    caminho e fica um agradecimento genrico para todas as outras. Obrigado!

    A realizao deste trabalho foi possvel graas a ajudas institucionais decisivas. A

    Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto concedeu-me quatro semestres de

    dispensa de servio docente e permitiu-me usufruir de uma autonomia pedaggica e

    cientfica que me possibilitou seguir o meu prprio caminho no interior da Sociologia.

    Ao longo deste percurso pude contar tambm com o apoio inestimvel do ncleo de

    estudos de migraes do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra que

    me possibilitou a experincia de ser investigador num centro de investigao de

    excelncia internacional. A Fundao para a Cincia e Tecnologia do Ministrio da

    Cincia, Tecnologia e Ensino Superior de Portugal concedeu-me uma bolsa de

    estudos que permitiu a minha estadia na Universidade de Oxford e apoiou, por

    diversas vezes, a minha participao em congressos internacionais. A Fundao Luso

    Americana para o Desenvolvimento subsidiou, em diversas ocasies, as minhas

    comunicaes em congressos e conferncias internacionais que se revelaram marcos

    de partilha e aprendizagem essenciais. O Instituto de Cooperao Cientfica e

    Tecnolgica Internacional (ICCTI) da Fundao para a Cincia e a Tecnologia do

    Ministrio da Cincia, Tecnologia e Ensino Superior de Portugal concedeu-me uma

    bolsa para a realizao do trabalho de campo. A rede de excelncia IMISCOE

    permitiu-me um continuado contacto internacional de alto nvel como os melhores

    cientistas europeus da minha rea de estudo.

    Prof. Maria Ioannis Baganha, que acompanhou o meu trabalho durante mais de

    uma dcada, devo a minha carreira enquanto investigador. Tendo sido minha

    professora e minha orientadora da dissertao de mestrado, aceitou ser de novo minha

    orientadora no projecto de doutoramento que acompanhou at ao seu falecimento. As

    minhas palavras nunca podero expressar o quanto lhe devo: a amizade, o seu esprito

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    crtico, a sua qualidade cientfica, a sua tica e o seu empenhamento em cada projecto,

    mas tambm o seu incentivo crtico e desafiador ou ainda a coragem com que

    enfrentava as vicissitudes da vida. So atributos de que sinto a falta e que me serviro

    para sempre de referncia.

    Ao Prof. Carlos Fortuna, meu professor e orientador, ficarei eternamente agradecido.

    A tarefa que empreendeu enquanto supervisor de uma dissertao de doutoramento,

    nas circunstncias difceis em que o fez, a leitura critica, o comentrio perspicaz, a

    sugesto pertinente, o empenho desinteressado, so a prova de que os bons mestres

    persistem na Academia e que so eles (e no a Histria) que tornam Coimbra uma

    Universidade nica, singular e incomparvel. Devo ao Prof. Carlos Fortuna o ter

    chegado aqui, quando, noutras circunstncias, teria desistido ou mudado de caminho.

    Ao Jos Carlos Marques, colega e amigo, sempre presente ao longo dos ltimos anos,

    devo o debate, a sugesto de leituras, o incentivo e algumas dores de cabea geradas,

    entre outras coisas, por puzzles e labirintos tericos de difcil soluo. Devo-lhe ainda

    a ajuda na leitura e compreenso de Luhmann o que, s por si, mereceria um

    agradecimento destacado.

    Carla Ins agradeo a ajuda nas tradues, a leitura atenta e as correces de erros e

    gralhas. Joana Gis agradeo, sobretudo, a ajuda na insero de dados na base de

    SPSS. Ao Carlos Elias Barbosa agradeo a ajuda na compreenso do crioulo, na

    aplicao de inquritos e nos debates sobre Cabo Verde. A todos eles, e a vrios

    outros companheiros de percurso, agradeo tambm a amizade que tornam possvel

    que a sociedade acontea.

    A minha famlia, que cresceu durante este percurso, foi o pilar mais importante que

    sustentou estes trabalhos de Hrcules. por eles e para eles que tudo vale a pena.

    Para a Carla a minha gratido permanente e perptua. Para os meus filhos Manuel

    Pedro e Joo Nuno o meu agradecimento eterno e definitivo. Aos meus pais e

    irmos tempo de dizer: obrigado por tudo. Sem todos vocs o futuro que

    imaginvamos ontem no teria sido possvel.

    Porque haver sempre amanhs que cantam (e talvez seja em crioulo!).

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    Introduo: Do achamento de uma nao descoberta de um transnacionalismo identitrio

    Este trabalho surge de uma paixo, de uma descoberta que pode ser definida como um

    achamento. Tal como os achamentos ibricos do sculo XV, descobrir Cabo

    Verde e os cabo-verdianos revelou-se como uma descoberta de um novo mundo, neste

    caso de um novo mundo social. Cabo Verde surge, cada vez mais, para os estudiosos

    das migraes internacionais contemporneas, como um laboratrio social muito

    interessante para usar uma expresso do pioneiro Robert E. Park e tambm ns no

    escapmos a este apelo (Park et al., 1967: 93-94). Este trabalho decorre, igualmente,

    da inabilidade total de responder ao que parecia ser uma simples questo com que nos

    deparmos no final dos anos 90, no incio do nosso percurso como investigador: o

    que ser cabo-verdiano?.

    As razes para colocarmos essa questo e, sobretudo, para a impossibilidade de uma

    resposta simples so diversas. Em primeiro lugar, esta questo deriva do facto de

    termos tido ao longo dos ltimos dez anos um contacto pessoal prolongado com uma

    cultura que viemos a descobrir ser slida, durvel e fortemente implementada em

    contextos e localizaes distintas em diferentes partes do globo como a cultura

    cabo-verdiana. Uma cultura que se revelou aberta, dinmica e que, por ser como ,

    impede uma qualquer cristalizao conceptual e uma anlise definitiva por parte do

    observador. Uma cultura que , por definio, crioula ou hbrida (Anthias, 2001) e

    que se autodefine e se apresenta enquanto tal.

    Ser ou no ser [cabo-verdiano] saber o que ser cabo-verdiano foi, de facto, a

    questo que pairou, como um fantasma, ao longo de todo este trabalho. Tal como em

    Shakespeare a dvida deu origem a um dilogo, neste caso no entre personagens mas

    entre teorias, conceitos e dados, que, no final, inapelavelmente, deixar no ar ainda e

    sempre perguntas, novas questes, como o verdadeiro moral da histria1.

    1 Neste trabalho sentimos a necessidade de trabalhar com conceitos compostos. De alguma forma foi como se sassemos para a chuva com trs chapus de chuva conceptuais (identidade, etnicidade e transnacionalismo) cada um deles suficiente para apanhar o que quisermos mas nenhum deles abrangente o bastante para abarcar os outros dois. A generosidade destes conceitos, analisados individualmente, tal que abarcam quase tudo, so utilizados tanto nas cincias sociais, como no senso comum, nos media e pela poltica. Ao longo deste trabalho procuraremos explicitar a sua significao.

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    Esta investigao, que pretendemos de ndole Sociolgica (por contraste com outras

    de ndole mais Antropolgica ou com origem em territrios hbridos como os Estudos

    Culturais ou os Estudos tnicos), surge na sequncia da anlise das migraes e da

    cultura cabo-verdiana realizada ao longo de vrios anos e de que resultaram mltiplas

    comunicaes e publicaes2 sobre vrias vertentes desta migrao.

    Esta anlise deu origem a algumas (poucas) certezas sobre o tempo e o modo como

    decorreram as migraes e a um conjunto (grande) de dvidas sobre as consequncias

    (e.g. sociais, polticas, econmicas ou culturais) da disperso geogrfica de um

    conjunto de indivduos que partilham uma mesma forma de ser e estar e (talvez)

    possuam algo que podemos definir como uma etnicidade3 em comum.

    As investigaes mais recentes permitiram questionar o modo como se estruturam as

    ligaes simblicas entre os membros desta nao transnacionalizada e formular a

    hiptese de estarmos perante um exemplo de uma identidade tnica transnacional,

    cuja defesa constituir o cerne desta tese. Estudar uma identidade social, uma

    identidade colectiva no , contudo, um trabalho fcil. Ao longo do desenvolvimento

    desta tese vrias vezes sentimos que despoletramos o dcimo-terceiro dos trabalhos

    de Hrcules tal a dificuldade encontrada.

    To cedo como no ano de 2004 apercebemo-nos de que no seria possvel apresentar

    um estado-da-arte exaustivo da literatura sobre identidade ou identidade tnica.

    Uma pesquisa na Internet atravs do Google (Nov. 1, 2004) sobre identidade social

    devolveu-nos 5,59 milhes de resultados, sobre identidade pessoal 6,66 milhes,

    sobre identidade colectiva 1,06 milhes e sobre identidade tnica 1,49 milhes de

    resultados. Apesar destes resultados no reflectirem necessariamente trabalho

    acadmico ou informao relevante para os objectivos da dissertao, no deixam de

    mostrar que existe uma grande quantidade de informao disponvel a partir destas

    palavras-chave. Mesmo quando cingimos o conceito de relaes tnicas a um

    conceito mais dirigido para a investigao, o de relaes intertnicas, a pesquisa d

    2 Cf. entre outras publicaes: Baganha e Gis, 1998/1999, Gis, 2002, Gis, 2005, 2006 e 2008a, Gis e Marques, 2006 e 2007, Westin et al., 2009. 3 De acordo com vrios autores, h uma vasta bibliografia sobre etnicidade, em que, na maioria dos casos, o termo utilizado mais como uma categoria descritiva do que, propriamente, como um conceito sociolgico que possibilita definir um objecto cientfico (Poutignat,1998: 83) como procuraremos demonstrar ao longo do presente trabalho.

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    origem a um nmero suficientemente grande de resultados para inquietar um largo

    grupo de investigadores durante um perodo considervel de tempo.

    Assim, aps as leituras iniciais rapidamente conclumos que so tantas e to diversas

    as anlises da identidade que, com pragmatismo, necessrio assumir que uma vida

    inteira no daria para as conhecer a todas. A primeira das concluses deste trabalho,

    paradoxalmente apresentada logo na introduo, , portanto, a de que esta

    investigao apenas uma pea de um puzzle multidimensional e que nos serve mais

    para conjecturar a realidade do que para a descrever na sua totalidade. Esperamos, no

    entanto, que a modstia deste contributo concorra para o esclarecimento deste campo

    conceptual ou, pelo menos, para abrir novos caminhos de investigao.

    A conscincia da impossibilidade de ser exaustivo no tratamento da identidade cabo-

    verdiana no nos desobriga de a abordar em profundidade mas, de certa forma, torna

    o nosso trabalho mais descomprometido. Sabemos que certas perspectivas no foram

    seguidas (e.g. a da Psicologia Social), que certos autores no foram abordados em

    profundidade (e.g. Freud ou Erik Erikson4) e que muitas respostas ficam por dar (at

    porque no cabem numa investigao de ndole sociolgica), mas sabemos tambm

    que, s vezes, o simples formular de perguntas pode ser um passo importante nos

    campos cientficos em que nos inserimos (veja-se o inspirador caso de algumas

    conjecturas e hipteses matemticas que nos servem de referncia cientfica).

    Privilegimos neste trabalho a abordagem sociolgica, dando-lhe primazia na anlise

    de um objecto que pode ser observado atravs de perspectivas distintas e

    complementares como as que tm origem, nomeadamente, na Psicologia Social, na

    Antropologia Social e Cultural, nos Estudos Culturais, nos Estudos tnicos e/ou

    Raciais ou nos Estudos ps-coloniais. A nfase foi posta num retorno aos autores da

    Sociologia Clssica como forma de retomar um objecto de estudo (a etnicidade)

    que a Sociologia no tem privilegiado e de demonstrar que este , afinal, um objecto

    sociolgico por excelncia, que tem uma histria na disciplina que importa

    aprofundar e at que alguns conceitos que hoje abundantemente usamos na anlise 4 Na literatura sociopsicolgica sobre identidade existe uma diviso entre identidade autodefinida e hetero-definida. Do lado da identidade autodefinida encontramos muitas perspectivas tericas que se centram nas faces experimental, existencial e emocional da identidade. Sigmund Freud naturalmente uma figura essencial, embora existam outros seguidores da escola psicodinmica, sendo Erik H. Erikson (1950, 1959) um terico importante. O lado da identidade hetero-definida parece concentrar teorias que se centram nas dimenses cognitiva, interactiva e social da identidade.

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    sociolgica so originrios precisamente do campo da Sociologia da Etnicidade.

    Apesar de privilegiarmos a perspectiva sociolgica as pontes com as outras

    disciplinas so evidentes e necessrias mas assumimos que, epistemologicamente,

    sentimos a necessidade de fundar a nossa anlise na Sociologia, nos seus conceitos

    tericos, nos seus mtodos e, sobretudo, nos seus autores de referncia ensaiando

    conceder aos socilogos clssicos e clssicos contemporneos um maior

    protagonismo.

    Em termos sequenciais a nossa anlise partiu da identidade, passou pela

    compreenso da etnicidade e identidade tnica para ter como ponto de chegada a

    anlise da construo da identidade tnica transnacional cabo-verdiana a partir de

    um conjunto de exemplos. Tambm aqui, neste captulo introdutrio, faremos o

    mesmo percurso5 ensaiando lanar as bases para o debate que prosseguiremos ao

    longo deste trabalho.

    Etimologia do conceito de identidade Etimologicamente, o vocbulo identidade tem origem no latim identitatis que

    significa qualidade do idntico e que, por sua vez, deriva do pronome demonstrativo

    idem. Na edio de 1978 do Dicionrio Larousse define-se identidade como

    "aquele que tem qualidade de idntico" e tambm como "o conjunto de circunstncias

    que distinguem uma pessoa das outras". No Academic Press Dictionary of Science

    and Technology caracteriza-se a identidade a partir de trs perspectivas distintas: Identidade: Cincia: estado atravs do qual se permanece igual sob

    condies variveis; Psicologia: Conceito pessoal do ser (self); conjunto de caractersticas

    mediante as quais uma pessoa se reconhece a si mesma e aos outros. Matemtica: 1. Elemento idntico. 2. Equao que se cumpre para

    qualquer valor possvel das variveis (Morris, 1992).

    No Dicionrio filosfico de Pelayo Garca Sierra (1998) explica-se a identidade

    destacando o seu carcter reflexivo: la identidad tiende a ser definida por la reflexividad de las relaciones entre los trminos identificados. No se trata, pues, de que la identidad sea una relacin que, como otras, tenga la propiedad de la reflexividad, sino que mas bien ocurre como si

    5 Esta tese de doutoramento tem uma dvida de gratido para todos os colegas que comigo participaram num grupo de trabalho sobre relaes intertnicas, identidade, representao e discriminao no seio da Rede de Excelncia Europeia IMISCOE (www.imiscoe.org) desde 2004. O cluster 7, liderado pelo Prof. Charles Westin da Universidade de Estocolmo, foi, nas suas mltiplas actividades (e.g. seminrios, edio de textos e livros, debates) um excelente espao de descoberta, de confronto de ideias e fonte inspiradora numa temtica to rica como complexa com a que ensaiamos abordar.

  • 23

    la reflexividad de cualquier relacin constituyese el ncleo mismo de la idea de identidad. (). De hecho, tanto en las frmulas escolsticas de identidad (ens et ens, ens est id quod, etc.), como en el tratamiento lgico formal de la identidad, como constante lgica, es la reflexividad, representada o ejercitada simblicamente, aquello que constituye el ncleo de la idea (Garca Sierra, 1998: 61).

    Tambm no mbito da filosofia, encontramos um estudo exaustivo no Diccionario de

    Filosofa de Ferrater-Mora. Este autor vai examinar o conceito de identidade a partir

    de dois pontos de vista: o ontolgico e o lgico. O primeiro manifesta-se no chamado

    principio ontolgico da identidade (A = A) de acordo com o qual toda a coisa

    (apenas) igual a ela mesma ou ens est ens. O segundo manifesta-se no chamado

    princpio lgico da identidade, o qual considerado por muitos lgicos de tendncia

    tradicional como o reflexo lgico do princpio ontolgico da identidade, e, por outros

    lgicos, como o princpio A pertence a todo A ou ento como o princpio se P

    ento P (FerraterMora, 1994). Aqui, como em geral na literatura filosfica, a noo

    de identidade discutida a chamada identidade estrita ou numrica, a qual

    geralmente oposta a uma noo diferente de identidade, a identidade lata ou

    qualitativa. Esta ltima noo normalmente caracterizada em termos de uma

    determinada relao de semelhana entre coisas, semelhana que sempre com

    respeito a um determinado aspecto ou fim, ou com respeito a um determinado

    conjunto de aspectos ou de fins, isto , a identidade como pressuposto para um fim,

    ou, colocando-a sob um discurso sociolgico: como pressuposto para uma aco

    social. A semelhana como ponto de partida para uma aco social.

    Ao discutir o tpico da identidade, Leibniz, por exemplo, tinha sempre e s em mente

    a identidade estrita. Nesta lgica, sempre que h numericamente duas coisas, no h

    identidade estrita, por muito semelhantes que elas sejam entre si (Leibniz, 1987). Por

    exemplo, gmeos siameses, ou gotas de orvalho virtualmente indiscernveis, no so

    coisas estritamente idnticas6. Apesar de ter suscitado imensa discusso filosfica, o

    conceito de identidade estrita parece ter uma grande clareza e simplicidade, como se

    pode verificar a partir da caracterizao que ele habitualmente recebe: a identidade

    estrita aquela relao que cada coisa tem consigo mesma e com mais nenhuma coisa

    (Branquinho, sd). Claro que a crtica imediata vem de Wittgenstein e :

    6 Apesar de serem idnticas no sentido lato do termo.

  • 24

    rudemente falando, dizer de duas coisas que so idnticas destitudo de sentido, e dizer de uma coisa que ela idntica consigo prpria no dizer nada de todo (L. Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, 5. 5303).

    Esta passagem rpida por vrias definies de dicionrio e pela filosofia da

    identidade, pelas suas mltiplas significaes, demonstra como estamos, tambm

    aqui, perante um conceito cujas fronteiras internas so tnues e as significaes

    mltiplas. No s no h unanimidade na sua definio como as diversas definies

    destacam aspectos muito diversos. Ainda assim, duas outras concluses so, para j,

    possveis: (i) o termo identidade no exclusivo de nenhuma das cincias sociais,

    utilizado por todas elas e tambm por outras cincias; (ii) o termo identidade, no

    mbito da sua utilizao matemtica, significa de forma inequvoca igualdade: a

    identidade acontece quando mudando as variveis o resultado o mesmo. A partir

    destas definies fica, desde logo, excluda a definio matemtica que no

    prosseguiremos. Em sociedade dificilmente poderemos falar de identidade estrita. A

    dinmica dos sistemas sociais tem por base conceitos como os de complexidade,

    contingncia ou diferena (Luhmann, 2007) pelo que as invariveis tendem a ser

    inexistentes. Ensaiemos agora uma aproximao ao nosso modo de entender a

    identidade em Sociologia7.

    Identidade como conceito mltiplo e identidade como conceito complexo Poucos conceitos das cincias sociais e das cincias comportamentais gozaram de

    uma utilizao to abrangente como o de identidade, que se tornou tambm uma

    palavra comum na linguagem quotidiana ao longo das ltimas dcadas. Desde h

    muito que o conceito de identidade nos tem permitido organizar teoricamente um

    vasto nmero de fenmenos aparentemente diferentes estudados por reas acadmicas

    distintas. A popularidade deste conceito fica a dever-se, em nosso entender, ao facto

    de abranger um vasto campo da experincia humana, desde as emoes mais

    profundas e memrias de si mesmo, at interaco social ou a situaes quotidianas.

    Por outro lado, sendo um conceito que funciona na fronteira entre o eu e o ns

    torna-se um conceito de intermediao entre perspectivas ou paradigmas de anlise.

    7 A Sociologia da Identidade uma subrea jovem no interior da disciplina que a sustenta. De acordo com Teixeira Lopes, no processo de construo enquanto objecto cientfico, a identidade tem sido vtima de um erro terico fundamental: ora sendo considerada como uma entidade autnoma e desligada dos enraizamentos societais, ora sendo reduzida a um mero epifenmeno de outras instncias com verdadeiro poder explicativo. Sobre este tpico cf. Lopes, 1998.

  • 25

    um conceito que envolve e analisa auto-concepes e hetero-atribuies que podem

    ser comunicadas, negociadas e modificadas, juntamente com categorizaes de

    colectivos tnicos, culturais, religiosos, de classe ou categorias sociais em sentido

    lato. , neste sentido, um conceito polissmico e polivalente.

    O conceito identidade , como se compreende, complexo e multidimensional ampla

    e diversificadamente usado, tanto num sentido (de senso) comum, como nas vrias

    significaes em que usado por vrias cincias sociais e/ou nos estudos

    humansticos, ainda que, sublinhe-se, raramente definido em qualquer dos casos.

    Comecemos, portanto, por admitir que no h, como seria de esperar, uma (e uma s)

    definio totalmente satisfatria para a questo: o que a identidade?8. No h

    consistncia universal no uso do conceito e, tambm, no existe uma unanimidade no

    modo de o operacionalizar (o que torna o uso universal ou generalizado deste conceito

    algo problemtico). No entanto, de acordo com James Fearon (1999) existem, pelo

    menos na Sociologia, algumas bases para um consenso sobre o que ou a que se

    refere: identidade refere-se a: (a) uma categoria social, definida atravs de regras de pertena e (alegados) atributos caractersticos, ou comportamentos esperados, ou (b) caractersticas socialmente distintivas, das quais as pessoas se orgulham ou sentem como imutveis mas socialmente consequentes ou, ento, (a) e (b) simultaneamente. Estas duas categorias sociais podem (ainda que de forma simplista) ser identificadas como social e pessoal (Fearon, 1999: 3).

    A identidade pode, se aceitarmos esta definio, por um lado, ser delimitada

    socialmente ou, por outro, ser demarcada individualmente. Uma identidade pessoal ,

    nesta perspectiva, um conjunto de atributos, crenas, desejos, ou princpios de aco

    que um qualquer indivduo considera poder distingui-lo socialmente de forma

    relevante, e de que: (a) o indivduo tem particular orgulho; ou (b) o indivduo no tem

    disso particular orgulho, mas que orienta o seu comportamento de tal forma que ele

    no saberia como agir ou o que fazer sem eles; ou (c) o indivduo sente que no

    consegue mudar, ainda que o quisesse fazer. Uma identidade social, por seu turno,

    uma identidade colectiva, isto , uma identidade que descreve e caracteriza um grupo

    de pessoas. Refere-se (simplesmente) a uma categoria social, a um conjunto de

    8 Em primeiro lugar, no h apenas uma definio porque h muitas (Abdelal et al., 2001). Sendo o conceito de identidade necessariamente plural como procuraremos demonstrar.

  • 26

    pessoas marcadas por um rtulo e distinguidas por regras de pertena e (alegados)

    traos e atributos caractersticos (Fearon, 1999: 11).

    O conceito de identidade (cumulativamente) um conceito politicamente influente

    por uma variedade de razes. Por exemplo, uma destas razes ter a ver com o facto

    de a procura da sua identidade especfica tender a ser um objectivo de muitos

    grupos minoritrios, como forma, nomeadamente, de afirmar a sua diferena e

    alcanar reconhecimento poltico pblico (Hutnik, 1985). Outra razo, provavelmente

    mais forte, advm da tendncia para uma mobilidade em larga escala (mobilidade

    social e geogrfica) que se vem afirmando nas sociedades ps-industriais nas ltimas

    dcadas. A globalizao da economia e de fluxos de informao, bem como os

    contnuos e continuados encontros interculturais trouxeram a questo da identidade

    para o centro do debate.

    Porm, ao mesmo tempo que o debate se globalizou o conceito como que se

    localizou. Numa poca de sociedade(s) em rede, com um rpido desenvolvimento

    tecnolgico de diferentes sistemas de informao e comunicao, a identidade parece

    representar uma espcie de inrcia psicossocial condicionando toda a evoluo do

    sistema social o que, no mnimo, implica a necessidade de conhecer melhor a sua

    gnese e as suas consequncias (Castells, 1996 e 1997). Sendo a identidade um

    conceito analtico central a sua centralidade sociolgica e histrica importa ser

    destacada e analisada tanto na sua dinmica como na sua inrcia.

    Uma sociologia da identidade ou vrias? O conceito de identidade social constri-se historicamente, em Sociologia, a partir

    dos autores clssicos e de alguns dos seus conceitos operativos como o de

    conscincia colectiva em Durkheim, de comunidade em Tnnies, conscincia de

    classe em Marx ou de grupo de status em Weber, para citar apenas alguns que

    ensaiaremos desenvolver em captulos posteriores. Tendo esta base, o conceito de

    identidade em Sociologia refere-se desde logo ideia de pertena de (e a) um grupo

    (contida no conceito anglo-saxnico de we-ness), destacando as semelhanas ou

    atributos volta dos quais os elementos do grupo se agregam. A literatura clssica

    tende a definir estes atributos como caractersticas naturais ou essenciais

    qualidades que emergem de traos fisiolgicos, predisposies psicolgicas,

  • 27

    caractersticas regionais, ou propriedades (de certas regies ou locais) que tenderiam a

    ser estruturantes (Westin et al., 2009). Supostamente, os membros de um grupo

    tendem a internalizar estas qualidades, que lhes proporcionam uma experincia

    singular (mas colectiva para o grupo), social e unificada, um espelho, na qual os

    actores sociais constrem e visualizam um sentido de si mesmos. Vertentes

    associadas raa, etnicidade e/ou nao9 esto normalmente representadas

    nestas identidades10 colectivas conferindo-lhes uma base (de semelhana) comum.

    Em 1915, mile Durkheim concebeu o conceito de representaes colectivas para

    se referir a estas imagens de si e do outro (Durkheim, 1995) e, muitas dcadas depois,

    a mesma ideia foi retomada por Serge Moscovici que se referiu a estas imagens como

    representaes sociais actualizando as suas significaes e a continuidade histrica

    da utilizao deste conceito (Farr e Moscovici, 1984). Esta persistncia conceptual (de

    quase um sculo) alerta-nos para a sua importncia analtica estrutural e para o modo

    como o conceito evoluiu ao longo do ltimo sculo sem, contudo, desaparecer.

    A identidade, seja ela individual, social, cultural, profissional, religiosa ou poltica,

    constitui o ponto de partida para toda e qualquer anlise ou relao com o outro,

    com os outros. A identidade o que faz de ns quem somos e como nos

    apresentamos aos outros. No entanto, a experincia da identidade, a nossa prpria

    experincia da identidade (identidade pessoal), evoca necessariamente cdigos de

    excluso, de diferena, de diferenciao ou de distino pelo que a identidade se

    constri, muitas vezes, em confronto ou conflito. Da mesma forma, a identidade

    social, na sua formulao grupal ou colectiva, constri-se tambm numa tentativa (bi-

    polar ou de oposio) simultaneamente de identificao e de diferenciao, de

    incluso e de excluso. A pertena a um colectivo evoca sempre (de forma implcita

    ou explcita) a construo de outros tambm colectivos e, na mesma lgica, a

    pertena a um colectivo evoca, tambm, sempre, a construo de fronteiras (ns-

    outros, eles-ns) e, quase sempre, uma lgica de conflito e conteno, de

    instituio, implementao e manuteno de relaes de poder.

    9 A ideia de nao conceptualmente complexa e abordada de distintas formas em paradigmas distintos. Uma boa reviso ds debates pode ser encontrada em Visvanathan 2007. 10 As identidades sociais ou colectivas destacam-se e articulam-se quando grupos oriundos de diferentes contextos sociais, culturais, raciais, nacionais, tnicos, religiosos, de classe ou lingusticos partilham espaos sociais em reas pblicas.

  • 28

    A identidade (pessoal) uma qualificao do indivduo que se desenvolve na

    interaco material e simblica com todo o sistema social. Salientamos aqui uma

    ligao directa ao universo conceptual e terico de interaccionismo simblico,

    inicialmente desenvolvido por George Herbert Mead (Mead, 1962)11 numa

    demonstrao da presena da capacidade de agncia do indivduo. Ao nvel pessoal,

    na sua forma mais simples, a identidade a percepo que um indivduo tem de quem

    ou de como e engloba a forma como me apresento aos outros. A pessoa que eu

    acredito ser , no entanto, influenciada por quem os outros (um outros abstracto)

    confiam (e sentem) que eu sou. Alm disso, a minha auto-concepo afectada por

    aquilo que eu acredito que os outros pensam acerca dos meus pensamentos sobre

    eles, numa complexa teia de influncias mtuas muito prxima de uma espiral com

    reaces em cadeia e que entram dimenses como as que apresentamos na figura

    seguinte:

    Figura 0.1. A complexidade dimensional da identidade

    O trabalho de Erving Goffman, que surgiu nos anos 50-60, na sequncia do

    interaccionismo simblico de Mead, levou o conceito de identidade (sobretudo na

    forma da identidade pessoal) aos limites, conduzindo-o fronteira partilhada entre os

    domnios da Psicologia Social e da Sociologia interpretando as distintas

    possibilidades do ser e parecer ser. Goffman introduziu uma perspectiva dramatrgica

    nas interaces de identidade demonstrando que a distino entre situaes privadas

    e pblicas, na forma como se gerem as apresentaes de identidade, est

    relacionada com contexto onde decorre essa interaco, isto , afirmou a(s)

    11 Sobre esta temtica ver, entre outros, Farr e Moscovici, 1984, Goffman et al., 1997, Lamont e Fournier, 1992, Maines, 2001, Matthes, 1982.

  • 29

    identidade(s) como resultados de situaes contextuais. Negociaes de identidade,

    gesto de identidade, alter-casting e marcadores de identidade so, por seu turno,

    conceitos introduzidos por vrios tericos no seguimento da tradio goffmaniana,

    com ligaes teoria da troca social, percepo social e formulaes precoces de

    construtivismo social (Goffman, 1959 e 1963) num paradigma terico que muito tem

    ajudado a consolidar uma perspectiva especfica da identidade como fluda e no

    permanente. Esta abordagem interaccionista tornou-se importante sobretudo na

    compreenso da perspectiva individual da identidade mas teve consequncias tambm

    no modo como se percepcionam as identidades sociais como mutantes e no modo

    como a identidade (ou algumas das suas dimenses) pode ser valorizada ou escondida

    consoante os interesses em questo.

    Num campo que complementa a perspectiva anterior, autores como Peter Berger e

    Thomas Luckmann (1966), bem como as perspectivas tericas que se desenvolveram

    a partir do construtivismo social, demonstraram ser, obviamente, de grande

    importncia. No entanto, as abordagens interactivas surgem tambm na perspectiva da

    auto-identificao, e as abordagens existenciais na ptica da hetero-identificao

    visveis no diagrama em rvore, cuja inter-seccionalidade das suas vrias dimenses,

    ainda que no representada, deve ser tida em conta (ver figura 0.2). No h uma auto-

    atribuio identitria per si, isolada de um grupo de referncia nem uma hetro-

    identificao que no contemple uma imagem de um ns face a outros. Aquilo

    que penso de mim reflecte muito do que penso que os outros pensam de mim e,

    simultaneamente, no que penso dos outros. Veja-se, por exemplo, a complexidade

    da identidade e as suas mltiplas dimenses (aqui apresentadas de forma linear ver

    figura 0.2).

    Compreende-se que conceito de identidade esteja, pois, em permanente mudana,

    tanto, pelo menos, como a(s) identidade(s) dos paradigmas que o sustentam. De

    acordo com Alec Hargreaves e Jeremy Leaman, se nos limitarmos a definir a

    identidade como o padro de significado e valor pelo qual uma pessoa estrutura a sua

    vida, torna-se, desde logo, evidente, que esta estruturao evoca um processo

    dinmico e no uma condio imutvel (Hargreaves e Leaman, 1995). Os indivduos

    constroem os significados e valores com o auxlio de cdigos culturais partilhados,

    muitas vezes, partilhados por (e em) grupos especficos, com subculturas prprias,

  • 30

    que variam, necessariamente, ao longo do tempo (de um tempo individual e de um

    tempo longo mais marcadamente social). A identidade pessoal, neste sentido,

    inseparvel da identidade sociocultural e esta ltima to dinmica como a primeira.

    Figura 0.2. Uma matriz dos conceitos de identidade

    Fonte: Lange (1981 in Galkina sd).

    Na verdade, como vrios estudos demonstraram, no infrequente as pessoas

    mudarem de cdigos culturais, podendo, ao mesmo tempo, mover-se entre uma

    variedade de identidades socioculturais (Klandermans e Johnston, 1995, Swidler,

    1986). Deste primeiro grupo de autores conclumos que, em Sociologia, identidade

    , portanto, uma categoria multidimensional:

    1. Relaciona-se com o grupo de pertena (identidade social);

    2. Com o modo como nos apresentamos a ns prprios ao mundo social

    (identidade pessoal); e

    3. Com o nosso prprio sentido subjectivo de percebermos o modo de sermos

    quem somos (identidade de ego).

    A identidade em aco Na anlise sociolgica da vida quotidiana, o conceito de identidade tem mostrado

    ser relevante na anlise de distintos problemas sociais. As questes de identidade

    esto, aparentemente, relacionadas com a rebelio da juventude, com os processos de

    ajustamento dos imigrantes s sociedades de destino, com os direitos das minorias,

    com a coeso social, com a emergncia, re-emergncia ou esvanecimento do

  • 31

    nacionalismo e com a formao do Estado Nao, com os conflitos tnicos, com a

    discriminao e excluso social de indivduos ou grupos, etc..

    Em consequncia desta (aparente) relevncia explicativa surgiu na literatura uma

    (grande) quantidade de sentidos atribudos ao conceito de identidade, a saber:

    conceitos como identidadeego, auto identidade, identidade pessoal,

    identidade social, identidade nacional, identidade tnica, identidade

    colectiva, identidade para si, ou identidade para os outros so conceitos

    recorrentes na literatura das cincias sociais e humanidades nas ltimas dcadas.

    Surgiram tambm dimenses avaliativas e descritivas de identidade tais como

    identidade positiva ou negativa, identidade forte ou fraca. Apesar de uma grande

    quantidade de literatura secundria sobre identidade ter surgido desde, pelo menos os

    anos 70, foi desenvolvido um esforo mnimo no sentido de coordenar definies ou

    de salientar algum tipo de taxonomia de conceptualizaes. O resultado, como

    afirmmos anteriormente, contribui para uma indefinio conceptual e para uma

    diversa e, por vezes conflitual, utilizao do conceito (Westin et al., 2009).

    Uma outra dificuldade na discusso analtica sobre identidade reside no facto de

    esta no ser necessariamente algo tangvel, algo no qual podemos tocar, que

    podemos avaliar, medir ou comparar12 atravs do recurso a mtodos e tcnicas de

    investigao em cincias sociais. Vrias teorias ilustraram a identidade

    (particularmente em relao ideia de comunidade ou de grupo) atravs de uma

    srie de hipstases, como um contnuo desde algo que pode ser visto como

    objectivo (isto , a identidade como produto puro de vrias formas de vida social)

    at algo subjectivo (a identidade como um produto de si mesmo)13 e que no pode

    ser captado empiricamente de forma simples. No fundo, mais no do que uma outra

    forma de apresentar os efeitos epistemolgicos de um debate entre estrutura e/ou

    agncia um dos debates fundadores e estruturantes da prpria Sociologia ainda que

    no responda questo de como pode ser percebida e medida, como perceberemos ao

    longo deste trabalho.

    12 Sobre esta temtica conferir o conjunto de textos resultante do projecto Harvard Identity Project (http://www.wcfia.harvard.edu/misc/initiative/identity/publications) ver tambm Abdelal, 2009, Constant et al., 2007b. 13 Cf., entre outros, os trabalhos de Bloch e Solomos, 2010, Hinchman e Hinchman, 1997, Misra e Preston, 1978, Rutherford, 1990, Smith e Bender, 2001.

  • 32

    As identidades tnicas como identidades colectivas Para autores como Cohen (1997) ou Van Hear (1998), sobretudo o papel

    desempenhado pelas comunidades de migrantes e/ou por comunidades tnicas na

    dispora, que constitui o elemento distintivo da contemporaneidade ou, na formulao

    alternativa de Kachig Tllyan: so as disporas as comunidades exemplares do

    momento transnacional (Tllyan, 1991), isto , fazem a diferena no tempo presente

    e desafiam a nossa compreenso da dinmica social pelo que a sua anlise se torna

    alicerce na construo terica que queremos encetar.

    A percepo de que os laos socioculturais baseados em origens colectivas distintas

    das de outros grupos so a base das identidades tnicas foi assinalado por diferentes

    autores da sociologia ou da antropologia14. Clifford Geertz (1963) descreveu estes

    cdigos culturais associados s identidades tnicas como afinidades e ligaes

    primordiais (Geertz, 1963a)15 explicando o seu significado. Para este autor, o sentido

    primordial da identidade tnica contrasta as relaes sociais que surgem do

    parentesco, do compadrio (kinship), da vizinhana, da partilha de uma lngua comum,

    de crenas religiosas e/ou costumes partilhados, com aquelas que se baseiam numa

    atraco pessoal, numa necessidade tcita, num interesse comum ou numa obrigao

    moral (Rex, 1996)16. Geertz definiu as relaes sociais como simplesmente

    gratuitas e inexplicveis, e tendo uma fora intensa em si e de si mesmas

    (Geertz, 1963a). Reagindo ao funcionalismo britnico, Geertz vai valorizar (tambm)

    a cultura como explicao para o posicionamento identitrio e identificaes do

    indivduo mas assume a cultura como algo mais primordial do que como algo

    construdo17 numa lgica que encontrar seguidores em autores como Frederik Barth

    (1969).

    Os crticos do modelo analtico de Geertz defendem, por seu turno, que novos cdigos

    (incluindo-se aqui, obviamente, os cdigos culturais) podem sempre ser aprendidos ao

    longo da vida, e, em muitas circunstncias, substiturem os que foram previamente

    14 Designadamente por Abdelal, 2009, Bloch e Solomos, 2010, Geertz, 1963a ou Harden e Carley, 2009. 15 Ver entre outros os trabalhos de Glazer et al., 1975, Guibernau e Rex, 1997, Isaacs, 1975a, Maleevi e Haugaard, 2002, Rex, 1996 para uma discusso destes conceitos. 16 Assinale-se que, ao longo dos ltimos anos, esta perspectiva tem sido alvo de algumas crticas, nomeadamente por assumir que os indivduos tm ligaes primrias e permanentes a uma categoria social particular independentemente da forma como esta esteja definida (Watson, 1977). 17 Nesta perspectiva interpretativa da sociedade, fortemente influenciada por Max Weber e Ludwig Wittgenstein, a ausncia de estruturas sociais dinmicas acaba, a nosso ver, por enfraquecer a sua argumentao.

  • 33

    adquiridos pelo que a cultura no pode assumir um valor explicativo hegemnico ou

    totalitrio (Banton, 1983, 1988 e 1997, Hargreaves e Leaman, 1995). John Rex, por

    exemplo, desenvolve uma abordagem sequencialista para mostrar o modo como estes

    cdigos culturais se podem ir alterando ao longo do tempo de vida de cada indivduo

    em funo das circunstncias passando a etnicidade de inevitabilidade a escolha.

    Para este autor, no incio das suas vidas, os membros so apanhados naquilo que Rex

    (1996) chama a armadilha tnica infantil, ou, por outras palavras, as crianas vem-

    se apanhadas numa rede de parentesco na qual os indivduos desempenham papis

    especficos, e em relao a quem tm direitos e deveres claramente definidos.

    Tornam-se membros de um grupo influenciados de fora para dentro e, na verdade,

    sem optarem por lhe pertencer. Estas relaes de dependncia geram dependncias de

    relaes que prendem o indivduo a uma identidade tnica particular. Mais tarde nas

    suas vidas, os indivduos entram num mundo social mais abrangente, e, de acordo

    com Rex (1996), acabam por seguir um de dois caminhos: primeiro, atravs do

    processo de socializao, as interpretaes de personagens (role-players) externas so

    interiorizadas pelos indivduos cujas identidades pessoais so (j) ento o produto de

    uma construo social mais abrangente, levando-os, muitas vezes, a agir como

    indivduos parte de grupos tnicos (eu sou porque tu s). Em alternativa, possvel

    que um indivduo se aperceba que existem grupos maiores alm do seu grupo de

    origem, a que, John Rex chama, habitualmente, de etnias ou grupos tnicos e que lhe

    podem oferecer o mesmo sentimento de pertena e, atravs de uma opo estratgica,

    o indivduo junta-se a estes grupos (Rex, 1986)18. O grupo tnico, para John Rex

    distingue-se do tipo mais simples de grupo com base nas relaes de vizinhana e

    laos familiares, pelo facto de, neste tipo de organizao social, no existir uma

    definio precisa dos papis desempenhados por cada um dos membros.

    De uma forma sinttica podemos afirmar que o grupo social tendo por base a etnia

    se constitui, de uma forma ou de outra, atravs das seguintes seis condies principais

    conjugadas em diferentes formulaes:

    (i) um nome apropriado comum, para identificar e expressar a essncia da

    comunidade. Este nome funciona como ncora, como legenda da polissemia

    conceptual potencial do grupo (Barthes e Heath, 1977);

    18 Veja-se o exemplo dos movimento afro ou latinos nos EUA.

  • 34

    (ii) um mito, e no necessariamente um facto, de antepassado comum, que

    inclui uma origem comum, dando ao grupo tnico um sentimento de afinidade

    fictcio; tambm chamado superfamlia (Horowitz, 1985);

    (iii) memrias histricas partilhadas, ou antes, memrias partilhadas de um

    passado ou passados comuns, incluindo heris, acontecimentos (positivos ou

    negativos), e respectiva comemorao (Connerton, 1989 e 2009);

    (iv) um ou mais elementos de cultura comum, que no precisam de ser

    necessariamente especificados, mas que normalmente incluem religio, hbitos ou

    lngua partilhados, gastronomia e alguns elementos com origem na cultura material ou

    imaterial;

    (v) uma ligao com uma terra natal que no tem que corresponder,

    necessariamente, a uma ocupao fsica pelo grupo tnico, apenas a uma ligao

    simblica terra ancestral, tal como acontece, por exemplo, com os indivduos das

    disporas (Cohen e Vertovec, 1999);

    (vi) um sentido de solidariedade, pelo menos da parte de alguns segmentos do

    grupo tnico que lhes conferem uma empatia grupal (um we-ness).

    No entanto, estas caractersticas no implicam necessariamente que o grupo tnico

    assuma algum (do forte) sentido de pertena emocional, designada e inexoravelmente,

    a existente nos grupos mais pequenos (e.g. famlia) mas, tambm, no significa, como

    veremos, que no possua a sua prpria estrutura de relaes sociais com vnculos

    fortes nem que no necessite de construir relaes sociais baseadas na lgica de um

    poder diferencial. Habitualmente, nos grupos tnicos tender a existir uma espcie de

    diferenciao e complementaridade econmica e de status entre os seus membros,

    bem como um certo tipo de diferenciao de papis em relao aos que exercem

    autoridade (poltica ou religiosa, por exemplo) e aos que se submetem a esse poder

    simblico19. Voltaremos a esta ideia.

    A identidade como estrutura ou ao servio dos agentes? No estudo da identidade social ou colectiva, subsistem vrias discusses que, no

    essencial se polarizam em torno do modo como assumida enquanto varivel. De um

    lado, temos os que a conceptualizam como esttica, essencial, unidimensional, (isto , 19 Sobre esta questo, cf., entre outros, os trabalhos de Hutchinson e Smith, 1996, Rex, 1996, Schermerhorn, 1978, Smith, 1972, 1997 e 2001.

  • 35

    a identidade fixada de acordo com a natureza humana) e, do outro, os que a

    entendem como fluda, socialmente construda e multidimensional. Podemos estudar a

    identidade como varivel independente, no primeiro caso, ou como varivel

    dependente, no segundo (Croucher, 2004). Como varivel dependente, a identidade

    tradicionalmente usada em estudos de identidade nacional, especialmente sobre

    atitudes nacionais, e/ou estudos sobre a identidade tnica (Smith, 1972 e 1986 e

    1995) assumindo-se uma continuidade histrica na sua percepo. Como varivel

    independente a identidade tem sido usada, nomeadamente, para explicar conflitos,

    guerras, agresses, etc. (Croucher, 2004)20. De uma forma necessariamente genrica a

    primeira destas abordagens pode ser denominada de primordialista ou essencialista, a

    segunda, como construtivista ou social construtivista. Entre estes dois extremos, o

    debate assume a forma de escolas de pensamento, de reas sub-disciplinares ou de

    paradigmas de investigao distintos que, no caso da Sociologia, ensaiaremos

    apresentar ao longo deste texto (Fearon, 1999)21.

    Uma abordagem alternativa ao primordialismo (mas ainda longe de ser social

    construtivista) pode ser encontrada, por exemplo, no modelo de situacionismo, do

    antroplogo Frederick Barth (1969), tambm chamada de boundary approach

    theory (Pang, 2000). Com este modelo, Barth sugeriu que a pertena de um

    determinado indivduo a um grupo tnico, dependia dos seus objectivos, ou, por

    outras palavras, do projecto (e.g. social ou poltico) em que o grupo estivesse

    envolvido. As identidades seriam projectos contextuais. De acordo com este ponto de

    vista, e embora no se defenda claramente que os grupos tnicos sejam associaes

    premeditadas, promove-se a ideia do confronto com outros como forma de definir

    fronteiras sociais activas ou reactivas. A identidade tnica, sob a perspectiva da

    teorizao das fronteiras de Barth, surge com o intuito de servir propsitos

    especficos, principalmente no confronto com outros grupos tnicos com pretenses

    similares. Pela sua importncia e influncia voltaremos, detalhadamente, a esta ideia

    no captulo terceiro.

    20 Na verdade poderamos alterar os exemplos e as explicaes permaneceriam ainda plausveis o que mostra a extrema plasticidade na utilizao dos conceitos mas, em nosso entender, no a capacidade de explicar a formao e sustentao de identidades tnicas. 21 Num outro sentido, importa igualmente assinalar que, enquanto categoria social, a identidade socialmente construda e, se assim , historicamente contingente, isto , pode variar ao longo do tempo e, claro, como socialmente construda pode igualmente variar ao longo do espao).

  • 36

    As duas abordagens acima descritas esto ainda relacionadas com aquilo que so

    consideradas as dimenses instrumentalista e expressivista da etnicidade,

    formulaes analticas alternativas da mesma realidade social (Hutchinson e Smith,

    1996). O instrumentalismo refere-se utilizao da etnicidade como uma

    ferramenta para adquirir vantagens, como um recurso ou dispositivo social, poltico e

    cultural, para diferentes grupos muitas vezes vistos como entidades polticas (por

    vezes, sobrepondo-se perspectiva Barthesiana). Uma das verses das teorias

    instrumentalistas vai centrar-se na anlise da competio das elites por recursos, e

    sugere que a manipulao de smbolos vital para conseguir o apoio das massas e

    alcanar objectivos polticos (Brass, 1991) designadamente em momentos de

    redefinio de mecanismos de socializao (eg. no ps-colonialismo), enquanto uma

    outra verso destas teorias vai examinar as estratgias das elites para maximizar as

    experincias em termos de escolha racional individual em determinadas situaes

    (Banton, 1983). Desta forma, uma das ideias centrais do instrumentalismo a

    natureza socialmente construda de etnicidade e a capacidade dos indivduos para

    procederem a uma reformulao identitria a partir de uma variedade de heranas e

    culturas tnicas para forjar as suas prprias identidades individuais ou grupais

    (Hutchinson e Smith, 1996) uma perspectiva que ter tanto de interessante como de

    potencialmente perigosa. Uma terceira via pode ser encontrada na dimenso

    expressivista da identidade que assinala o facto da identidade tnica tambm implicar

    afecto e um sentimento de proximidade e semelhana (sameness) que cria, promove

    ou estimula ligaes e vnculos tnicos. Milton Yinger, por exemplo, afirma que,

    num mundo cada vez mais racional e instrumental, as pessoas sentem dificuldade em

    se identificarem com uma sociedade heterognea e em rpida mudana pelo que uma

    ligao tnica permite preservar (numa escala micro) o sentimento de comunidade,

    saber quem se , ultrapassar o sentimento de no ser ningum num mundo annimo

    (Yinger, 1994: 45-46) sugerindo uma aproximao a uma Gemeinschaft de Tnnies.

    A identificao com o grupo seria, neste caso, uma forma de integrao social um

    outro importante conceito que sentimos a necessidade de aprofundar neste texto.

    Da integrao diversidade. Da diversidade integrao O conceito de integrao, muito ligado ao campo de estudo da sociologia das

    migraes desde, pelo menos a Escola de Chicago de h quase um sculo, tem sido

  • 37

    visto como problemtico (ou no universal) desde os anos 60 do sculo XX. Em

    muitos contextos analticos tem-lhe sido atribuda uma interpretao social e

    psicolgica e tem sido compreendido cada vez mais como uma propriedade individual

    e no grupal. Nos Estados Unidos, nos anos 60-70, por exemplo, autores como

    Nathan Glazer e Daniel Moynihan defenderam que a teoria do melting pot j no era

    uma descrio adequada do processo da incorporao dos imigrantes na sociedade

    americana (Glazer et al., 1975, Glazer e Moynihan, 1963 [1970]). Esta teoria (do fim

    do melting pot) foi igualmente difundida pela psicologia social, por autores como o

    psiclogo social canadiano John Berry, de base funcionalista, que desenvolveu uma

    sntese terica sobre as estratgias de aculturao, em sociedades etnicamente

    diversas sugerindo que h um limite para a gesto social da diversidade. Nestas

    teorias o autor postula que a integrao e outras estratgias de interaco social so

    operacionalizadas em termos da identificao individual com a maioria

    cultura/sociedade e com a minoria cultura/sociedade (Berry, 1990 e 1997).

    Berry (1990) defende a existncia de 4 tipos de respostas sociais: (i) assimilao; (ii)

    segregao; (iii) marginalizao; e (iv) integrao. Para este autor, a assimilao

    representa a imerso total do imigrante na sociedade dominante (ou main stream). O

    imigrante adopta a linguagem, a imagem, as formas quotidianas de interaco, de

    pensar e de actuar da comunidade receptora numa transfigurao completa. A

    segregao, por seu turno, caracteriza-se pelo estabelecimento de relaes mnimas

    com a comunidade receptora enquanto, em simultneo, se criam nichos tnicos

    exclusivamente com elementos da cultura de origem. As relaes com a sociedade

    receptora limitam-se, neste tipo de resposta social, s relaes de produo. No caso

    da marginalizao, o imigrante sofre uma perda de identidade de origem sem se

    tornar parte da sociedade dominante ou receptora. Por ltimo, a integrao a

    resposta que permite ao imigrante manter a sua identidade prpria ao mesmo tempo

    que participa na sociedade dominante ou sociedade receptora. O migrante est

    plenamente consciente das suas razes, da sua origem e da sua cultura, ao mesmo

    tempo que renova dia-a-dia a sua participao na comunidade receptora22.

    Vrios instrumentos, desenvolvidos a partir da conceptualizao de Berry, quando

    utilizados em investigao psicolgica transcultural, tendem a produzir resultados

    22 Segundo a teoria de Berry, a integrao diz respeito participao, nomeadamente, nos domnios econmico e educacional da sociedade maioritria, mantendo simultaneamente valores, linguagens tradicionais e estilos de vida do pas de origem nos domnios da esfera privada da sua vida familiar (Berry, 1990).

  • 38

    significativos e consistentes que acabam por confirmar empiricamente a validade

    desta teoria em termos individuais mas, a nosso ver, no a comprovam em termos

    sociais como procuraremos explicitar. Tomadas na sua simplicidade redutora, estas

    respostas sociais, quasi tipos-ideais no sentido de Max Weber, mostram a sua

    capacidade de enquadramento ao mesmo tempo que revelam a sua incapacidade de se

    tornarem totalmente excludentes. Podemos, sem grande esforo, pensar em casos em

    que duas das situaes referidas acima se sobreponham no tempo e no espao para

    imigrantes de um mesmo pas de origem.

    Por exemplo, Karmela Liebkind (2001) sugeriu que os imigrantes so, antes de mais,

    confrontados com a marginalizao, passando depois por um estdio de separao at

    integrao, alcanando posteriormente a assimilao (Liebkind, 2001, Liebkind,

    1984 e 1989). Tendo em conta que o modelo de Berry no foi utilizado em estudos

    longitudinais (intra e trans-geracionais) mas sobretudo aplicado ao estudo de

    indivduos ou grupos, que so apenas fotografias de uma dada realidade, no existe

    ainda suporte emprico suficiente para uma confirmao total desta anlise. Os

    estudos que se baseiam nas ideias de Berry tendem, alis, a transmitir uma perspectiva

    esttica da integrao individual (e at uma perspectiva em que um se integra no todo

    sem interaco recproca) o que lhe tem valido criticas de diferentes autores que a

    consideram excessivamente funcionalista (Rudmin, 2003, Schmitz, 1998).

    Numa formulao alternativa o socilogo norte-americano Milton Gordon tinha

    anteriormente apresentado uma teoria alternativa (nos anos 60), na qual a integrao

    era entendida como um processo de participao crescente nas instituies da

    sociedade mainstream (Gordon, 1964). As reas importantes de participao seriam,

    no entender deste autor, a economia, o trabalho, a lngua, a educao, a habitao, as

    organizaes, as actividades de tempos livres, o sistema poltico, a vida social e a vida

    familiar e seria a participao em cada uma delas que determinaria o sucesso da

    integrao social. De acordo com esta abordagem, a integrao seria vista,

    igualmente, como uma fase que precederia a fase de assimilao (Gordon, 1964). As

    ideias de Gordon podem ser mais dinmicas do que as de Berry, mas a integrao

    continua a ser vista como uma tarefa e propriedade marcadamente individual sendo o

    nus colocado no indivduo e no na sociedade. Estas teorias acabam por ter

    consequncias no modo como se constroem as polticas migratrias em diferentes

  • 39

    pases e no modo como, no interior dos Estados, se construram politicas de

    integrao ao longo das ltimas dcadas.

    A sociloga Nimmi Hutnik desenvolveu uma conceptualizao semelhante mas,

    declaradamente independente, em relao a John Berry. Na sua anlise, Nimmi

    Hutnik sugere um modelo quadripolar no estudo da identidade das minorias tnicas

    (Hutnik 1985 e 1991, Hutnik et al., 1985). O seu modelo descreve os seguintes quatro

    tipos de identidade de minorias tnicas: (1) assimilativo abraa os valores do grupo

    maioritrio e tem um baixo nvel de identidade tnica prpria; (2) aculturado

    mantm um alto nvel de identificao com a maioria e com o prprio grupo; (3)

    dissociativo revela uma fraca identificao com a maioria do grupo mas segue as

    normas do grupo tnico prprio; (4) marginal oscila entre dois grupos sem saber o

    que escolher, resultando numa fraca identificao com ambos os grupos (Westin,

    2005).

    Ching Lin Pang, ao comentar a tipologia de Hutnik, num estudo de caso sobre as

    crianas japonesas expatriadas, vai negar a aplicabilidade universal desta tipologia. O

    autor vai defender a ideia de que no existem tipos puros mas que, ao invs, as

    pessoas revelam propenso para poderem ser enquadradas em mais do que um dos

    tipos definidos ou em espaos intersticiais entre eles (Pang, 2000). Por outras

    palavras, cada um destes tipos teria graus diferentes e a identificao dos indivduos

    seria (tambm ela) apenas uma questo de grau o que, sendo uma afirmao simples,

    transmite a necessidade de complexificarmos tipologias que podem ser

    simplificadoras da realidade. As segundas geraes ou, no caso do estudo de Pang, as

    crianas que partilham mais do que uma cultura (os descendentes de imigrantes), so

    exemplos desafiadores para a pureza e exclusividade dos tipos utilizados por Hutnik

    ou Berry mas, por isso mesmo, estes tipos-ideais so estimulantes de serem levados

    ao limite. Identificar o grau de etnicidade de cada um torna-se ento na questo

    chave da discusso anterior. Compreendendo que no h uma resposta universal

    implica a necessidade de olharmos para esta realidade atravs de diferentes exemplos

    o que, a seu tempo, faremos. Tendo isto em considerao, e antes de desenvolvermos

    esta questo, importante analisarmos, por agora de forma breve, o conceito de

    etnicidade e as suas aplicaes que desenvolveremos de forma mais aprofundada ao

    longo deste trabalho.

  • 40

    Etnicidade [desterritorializada] A etnicidade, enquanto espao narrativo conceptual, pode ser confusa e incerta, e

    at mesmo paradoxal23. Ao tentar definir o conceito, em primeiro lugar, deve ter-se

    em considerao que as definies na literatura ou no distinguem entre as

    abordagens acima descritas utilizadas na definio do termo, ou, alternativa e

    complementarmente, fazem-no de forma a que seja aplicvel a ambas as situaes

    (Isajiw, 1974 e 1999). Em segundo lugar, vale a pena sublinhar que o conceito de

    etnicidade abarca diferentes propsitos analticos, dependendo da rea de estudo

    (Eriksen, 1993, Guibernau e Rex, 1997) o que por si s gerador de conflitos. Por

    exemplo, enquanto um antroplogo social pode olhar para a etnicidade como uma

    varivel definidora de grupo, um cientista poltico preferir aplicar o termo a uma

    fora de motivao poltica, e, por seu turno, um gegrafo tender a preferir uma

    aplicao do conceito ligando-o a um territrio delimitado. Apesar de uma boa parte

    da teoria sobre etnicidade se ter centrado na ligao de etnia(s) com territrio(s),

    ou, por outras palavras, no mbito de teorias de naes e/ou de nacionalismo, por

    agora, queremos concentrar-nos na etnicidade que se visualiza no mbito das

    migraes e que, ao contrrio da primeira abordagem, se centra muitas vezes,

    precisamente, na separao de um territrio e numa (re)territorializao em

    consequncia de um movimento migratrio internacional. Tendo isto em conta,

    tentaremos fazer aqui um esforo de apresentar vrios argumentos na discusso que

    prosseguiremos depois ao longo de todo este trabalho, apresentando, nesta introduo,

    apenas noes de mbito mais geral.

    Operacionalizar a etnicidade O antroplogo Thomas Eriksen defende que, na linguagem comum, etnicidade

    sugere habitualmente questes minoritrias e relaes raciais (Eriksen, 2002,

    Guibernau e Rex, 1997: 34). De acordo com o tambm antroplogo Malcom

    Chapman o termo etnicidade, na sua forma mais simples, pode significar: a

    essncia de um grupo tnico; ou a qualidade de pertencer a uma comunidade ou

    grupo tnico; ou aquilo que se tem se se pertencer a um grupo tnico por oposio

    a outros grupos tnicos (Chapman, 1989: 15). De forma alternativa ou

    complementar, o conceito pode ainda respeitar a uma rea de estudo: a classificao

    23 Cf., entre outros, os trabalhos de Bell, 1975, Hutchinson e Smith, 1996.

  • 41

    de pessoas e as relaes entre grupos, num contexto de distino eu-outro (Erikson,

    1993, Erikson e Coles, 2000, Hoover, 2004).

    Daniel Bell acrescenta que o conceito pode ter como referncia uma categoria

    residual, designando um lao comum a um grupo no identificado pela lngua, cor ou

    religio, mas antes pela histria comum e/ou ter uma coerncia garantida por

    smbolos comuns. Pode igualmente ser um termo genrico que permita que algum

    identifique mais ou menos facilmente qualquer grupo minoritrio num padro

    dominante, ainda que a unidade particular de identificao possa ter, de forma

    indistinta, um origem nacional, lingustica, racial ou religiosa (Bell, 1975: 156)24.

    Tendo em conta as definies acima descritas, podemos afirmar que a etnicidade

    parece ser, para estes autores, a varivel mais comum na construo da identidade de

    grupo principalmente quando essa identidade deriva da pertena quilo que

    habitualmente chamado de grupo tnico.

    Numa contribuio adicional para a definio de grupo tnico, John Rex (1986),

    sugere os seguintes trs aspectos essenciais: (i) a etnicidade composta por

    padres culturais e de comportamento atravs dos quais os indivduos preenchem as

    suas necessidades comuns, implicando um sentimento de pertena a uma rede de

    relaes fechadas; (ii) existe uma conscincia de pertena a um tipo (comum)

    criada pelo reconhecimento de caractersticas culturais e fsicas; (iii) existe um

    comportamento cultural semelhante, visto como uma marca de relaes biolgicas

    (Rex, 1986, Rex e Mason, 1986).

    Dando continuidade a alguns dos aspectos referidos por Rex, Paul Brass, por seu

    turno, estabelece trs formas de definir grupos tnicos: (i) no que diz respeito a

    atributos objectivos (traos culturais distintos); (ii) em relao a sentimentos

    subjectivos (identidade e pertena); e (iii) em relao ao comportamento (cdigos ou

    interaces explcitas que se tornam caractersticos e impregnantes numa sociedade

    complexa) (Brass, 1991). Todos estes factores podem (devem) ser relevados na

    caracterizao dos grupos tnicos e, de igual forma, todos eles so caracterizadores

    da etnicidade grupal cabo-verdiana em diferentes contextos. Nos diferentes estudos

    24 Cf. Eriksen, 1993, Glazer et al., 1975, Glazer e Moynihan, 1963 [1970].

  • 42

    de caso, nos captulos da segunda parte deste trabalho, ensaiaremos destacar quais as

    caractersticas mais relevantes em cada situao.

    Modelo cultural, modelo ambiental, modelo poltico Vrios modelos tericos foram elaborados com base em diferentes estudos de caso e

    em distintas geografias com o objectivo de explicar os processos que levam

    formao dos grupos tnicos25 em contexto ps-migratrio. Analisemos, de forma

    breve, trs destes modelos que resumem muitas das caractersticas importantes para a

    nossa anlise.

    Os canadianos Marger e Obermiller explicam, a partir da anlise de diferentes grupos

    de migrantes e seus descendentes no Canad, que os indivduos se agrupam sob a

    forma de grupos tnicos principalmente por razes ou modelos culturais, ambientais

    e polticas (Marger e Obermiller, 1987). O modelo cultural explica-se, de acordo com

    estes autores, pela forma como os imigrantes dependem da sua cultura como forma de

    se adaptarem a um contexto desconhecido. Alm de funcionarem como barreiras do

    grupo, os elementos culturais desempenham igualmente um importante papel como

    amortecedores do choque em relao ao ajustamento. De acordo com Marger e

    Obermiller, os imigrantes recm-chegados, frequentemente por razes de proteco,

    tendem a gravitar em torno dos que partilham a mesma cultura (Marger e Obermiller,

    1987, Sardinha, 2004).

    O modelo ambiental centra-se na ecologia dos ambientes urbanos como base para a

    formao de grupos tnicos. Segundo esta perspectiva, os grupos tnicos

    desenvolvem-se como resposta s condies urbanas, muitas vezes relacionadas com

    as mudanas ou com as condies de alojamento e de trabalho. Esta forma de

    proximidade tnica mais evidente quando se observam concentraes tnicas

    ligadas ao trabalho (o que chammos noutro local de sectorizao da etnicidade (Gis,

    2002) ou aglomeraes residenciais (bairros tnicos), bem como a dependncia de

    certos servios e instituies ligadas a grupos especficos (e.g. associaes de

    imigrantes, crculos religiosos, actividades culturais tnicas).

    25 Cf, entre outros, os trabalhos de Alba, 2000, Barth, 1969, Baumann e Sunier, 1995, Maleevi, 2004a, Maleevi e Haugaard, 2002.

  • 43

    No terceiro modelo, baseado em interesses de ndole poltica, a formao de grupos

    tnicos ocorre quando os indivduos comeam a fazer exigncias de poder, prestgio

    e/ou prosperidade, ou a defender direitos em nome de grupos colectivos especficos

    (ethnic claims). Estes grupos so muitas vezes compostos por indivduos que buscam

    meios polticos ou econmicos, aglomerando-se como resposta competio externa

    e/ou para desenvolver tcticas ou estratgias que lhes permitam melhorar o seu

    estatuto colectivo quando competem por recursos, no apenas no pas de acolhimento,

    mas tambm no seu pas de origem (Westin et al., 2009).

    A criao e sustentao de uma etnicidade singular, de acordo com estes autores,

    parece ser uma base essencial para defender os interesses de grupo numa sociedade

    muitas vezes caracterizada pelo domnio da cultura da maioria (main stream) sobre a

    cultura dos grupos minoritrios ou da cultura das elites sobre todos os outros (Glazer

    et al., 1975, Maleevi, 2004a, Rex, 1996). Neste caso, a etnicidade funcionaria

    como um recurso que poderia ser utilizado para servir objectivos a uma escala

    cultural, social, poltica ou econmica, por exemplo, ao lidar com situaes de

    conflito, discriminao, explorao ou opresso. A ideia principal em todos estes

    autores que a etnicidade pode, em diferentes circunstncias ser utilizada (ou

    potencialmente utilizada) como um importante factor de mobilizao individual ou

    grupal (Song, 2003). Esta uma ideia que desenvolveremos mais frente a partir das

    anlises circunstanciadas de estudos de cabo-verdianos na Argentina, em Portugal ou

    nos EUA.

    Identidades tipo: a investigao em torno da etnicidade de base identitria A maioria das investigaes nas cincias sociais tem tido por base o que Fearon

    (1999) designa por identidade social e, em particular, o que ele apelida identidades

    tipo (type identities) (e.g. classe, sexo, raa, etnia, religio, etc.) por oposio a

    identidades performativas (role identities) (e.g. pai, advogado, professores, etc.).

    Para Fearon (1999: 17) a etnicidade pode ser vista como um exemplo