A contextualização no ensino de quimica através do livro didático

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42 QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 22, NOVEMBRO 2005 A contextualização do ensino de Química através do livro didático A seção “Pesquisa no ensino de Química” inclui investigações sobre problemas no ensino de Química, com explicitação dos fundamentos teóricos e procedimentos metodológicos adotados na análise de resultados. PESQUISA NO ENSINO DE QUÍMICA Recebido em 21/1/04, aceito em 13/7/05 N ão há nada no mundo físico ou social que, em princípio, não possa ser relacionado aos conteúdos curriculares da Educação Básica. É, portanto, inesgotável a quantidade de contextos que podem ser utilizados para ajudar os alunos a darem significado ao conheci- mento. Nos Parâmetros Curriculares Na- cionais para o Ensino Médio (PCNEM), na área de Matemática, Ciências e suas Tecnologias (Brasil, 1999b), constata-se a necessidade de se articular o conhecimento cien- tífico com valores educativos, éticos e humanísticos que permitam ir além da simples aprendizagem de fatos, leis e teorias. Trata-se de formar o alu- no/cidadão para sobreviver e atuar nesta sociedade científica e tecnoló- gica, em que a Química aparece como relevante instrumento para in- vestigação, produção de bens, de- senvolvimento socioeconômico e in- terfere no cotidiano de todas as pessoas. O conhecimento científico deve ser caracterizado como produto da vida social, marcado pela cultura da época, como parte integrante, in- fluenciando e sendo influenciado pelos outros conjuntos do conheci- mento. Este aspecto cultural da Ciên- cia está nas idéias de autores como Zanetic (1989) e Pierson (1997), que caracterizam a linha de pesquisa que defende que a trans- formação no ensino das ciências implica a renovação do con- teúdo programático tradicional e não so- mente a melhoria das abordagens me- todológicas. Compondo este contexto está a necessidade de se introduzir, ainda no Ensino Médio, co- nhecimentos que, historicamente, fo- ram produzidos pela humanidade desde os seus primórdios até os nos- sos dias. Isto se justifica pelo fato de que não se pode participar de discus- sões sobre a relação risco/benefício da Ciência (Química) sem se levar em conta as transformações ocorridas nos últimos anos, como os novos meios de produção industrial, a urba- nização acelerada, a poluição e o esgotamento dos recursos naturais. A forma como esses fenômenos se organizam e se reproduzem traz uma série de problemáticas que estão ligadas ao processo de desenvolvi- mento técnico-científico, de seus usos, de suas forma- ções, conformações e transformações, no e do meio am- biente natural e cul- tural. Historicamente, a educação brasileira vem sendo determi- nada por alguns me- canismos de homogeneização do trabalho educativo, seja através de políticas públicas, de instituições so- ciais, dos meios de comunicação de massa, de ideologias políticas e cul- turais, como também da própria insti- tuição escolar. Neste sentido, os livros didáticos (LD) são importantes mecanismos na homogeneização dos conceitos, con- teúdos e metodologias educacionais (Lajolo, 1996). A importância do LD não se restringe aos seus aspectos pedagógicos e às suas possíveis in- Edson José Wartha e Adelaide Faljoni-Alário Neste trabalho, apresentamos as diferentes concepções acerca do uso do termo “contextualização” identificadas nos livros didáticos de Química do Ensino Médio. A metodologia utilizada nesta análise procura verificar como o conhecimento químico é contextualizado e a maneira como é tratado e desenvolvido nos atuais livros didáticos de Química. contextualização, conhecimento químico, livro didático Constata-se, nos PCNEM, a necessidade de se articular o conhecimento científico com valores educativos, éticos e humanísticos que permitam ir além da simples aprendizagem de fatos, leis e teorias

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 22, NOVEMBRO 2005A contextualização do ensino de Química através do livro didático

A seção “Pesquisa no ensino de Química” inclui investigações sobre problemas no ensino de Química, com explicitaçãodos fundamentos teóricos e procedimentos metodológicos adotados na análise de resultados.

PESQUISA NO ENSINO DE QUÍMICA

Recebido em 21/1/04, aceito em 13/7/05

Não há nada no mundo físico ousocial que, em princípio, nãopossa ser relacionado aos

conteúdos curriculares da EducaçãoBásica. É, portanto, inesgotável aquantidade de contextos que podemser utilizados para ajudar os alunosa darem significado ao conheci-mento.

Nos Parâmetros Curriculares Na-cionais para o Ensino Médio(PCNEM), na área de Matemática,Ciências e suas Tecnologias (Brasil,1999b), constata-se a necessidadede se articular o conhecimento cien-tífico com valores educativos, éticose humanísticos que permitam ir alémda simples aprendizagem de fatos,leis e teorias. Trata-se de formar o alu-no/cidadão para sobreviver e atuarnesta sociedade científica e tecnoló-gica, em que a Química aparececomo relevante instrumento para in-vestigação, produção de bens, de-senvolvimento socioeconômico e in-terfere no cotidiano de todas aspessoas.

O conhecimento científico deveser caracterizado como produto da

vida social, marcado pela cultura daépoca, como parte integrante, in-fluenciando e sendo influenciadopelos outros conjuntos do conheci-mento. Este aspecto cultural da Ciên-cia está nas idéias de autores comoZanetic (1989) e Pierson (1997), quecaracterizam a linha de pesquisa quedefende que a trans-formação no ensinodas ciências implicaa renovação do con-teúdo programáticotradicional e não so-mente a melhoriadas abordagens me-todológicas.

Compondo estecontexto está a necessidade de seintroduzir, ainda no Ensino Médio, co-nhecimentos que, historicamente, fo-ram produzidos pela humanidadedesde os seus primórdios até os nos-sos dias. Isto se justifica pelo fato deque não se pode participar de discus-sões sobre a relação risco/benefícioda Ciência (Química) sem se levar emconta as transformações ocorridasnos últimos anos, como os novos

meios de produção industrial, a urba-nização acelerada, a poluição e oesgotamento dos recursos naturais.A forma como esses fenômenos seorganizam e se reproduzem traz umasérie de problemáticas que estãoligadas ao processo de desenvolvi-mento técnico-científico, de seus

usos, de suas forma-ções, conformaçõese transformações,no e do meio am-biente natural e cul-tural.

Historicamente, aeducação brasileiravem sendo determi-nada por alguns me-

canismos de homogeneização dotrabalho educativo, seja através depolíticas públicas, de instituições so-ciais, dos meios de comunicação demassa, de ideologias políticas e cul-turais, como também da própria insti-tuição escolar.

Neste sentido, os livros didáticos(LD) são importantes mecanismos nahomogeneização dos conceitos, con-teúdos e metodologias educacionais(Lajolo, 1996). A importância do LDnão se restringe aos seus aspectospedagógicos e às suas possíveis in-

Edson José Wartha e Adelaide Faljoni-Alário

Neste trabalho, apresentamos as diferentes concepções acerca do uso do termo “contextualização”identificadas nos livros didáticos de Química do Ensino Médio. A metodologia utilizada nesta análise procuraverificar como o conhecimento químico é contextualizado e a maneira como é tratado e desenvolvido nosatuais livros didáticos de Química.

contextualização, conhecimento químico, livro didático

Constata-se, nos PCNEM, anecessidade de se articularo conhecimento científicocom valores educativos,

éticos e humanísticos quepermitam ir além da

simples aprendizagem defatos, leis e teorias

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fluências na aprendizagem e nodesempenho dos alunos. SegundoFreitag et al. (1989), o “mercado”criado em torno do LD faz dele im-portante mercadoria econômica, cu-jos custos muito influenciam na pos-sibilidade de acesso a ele. O LD éimportante por seu aspecto políticoe cultural, na medida em que repro-duz os valores da sociedade em rela-ção à sua visão da Ciência, da His-tória, da interpretação dos fatos e dopróprio processo detransmissão do co-nhecimento. E, tam-bém, por seremesses materiais osprincipais nortea-dores das práticasde muitos profes-sores.

O entendimentodo significado dacontextualização éfundamental para que se possamdesenvolver estratégias de ensinoque favoreçam o preparo para o exer-cício da cidadania. Nos PCNEM (Bra-sil, 1999a e 1999b), a contextua-lização é estabelecida como um dosprincípios para a organização do cur-rículo por meio de temas da vivênciados alunos. A abordagem temática,no ensino de Química, tem sido reco-mendada com o objetivo de formaro cidadão. Todavia, nesta perspec-tiva, a sua finalidade não é apenasmotivar o aluno ou ilustrar aplicaçõesdo conhecimento químico, mas de-senvolver atitudes e valores que pro-piciem a discussão das questõesambientais, econômicas, éticas e so-ciais.

Como explicitam as Diretrizes Cur-riculares Nacionais para o Ensino Mé-dio (DCNEM) - Art. 9º: I - na situaçãode ensino e aprendizagem, o conhe-cimento é transposto de situação emque foi criado, inventado ou produ-zido e por causa desta transposiçãodidática deve ser relacionado com aprática ou a experiência do aluno afim de adquirir significado.

Santos & Mortimer (1999a) identi-ficaram diferentes concepções queos professores têm sobre o signifi-cado do termo contextualização noensino de Química: i) contextuali-

zação como estratégia de ensino-aprendizagem; ii) contextualizaçãocomo descrição científica de fatos eprocessos do cotidiano do aluno; iii)contextualização como desenvolvi-mento de atitudes e valores para aformação de um cidadão crítico.

Santos & Mortimer (1999b) tam-bém apresentam a questão do usodo termo contextualização, isto é, adiferenciação entre a contextualiza-ção no ensino e o ensino de Ciências

relacionado ao coti-diano. Para esses au-tores, enquanto acon tex tua l i zaçãoaborda o ensino deCiências (Química)no seu contexto so-cial com as inter-rela-ções econômicas,sociais, culturais etc.,o ensino de Ciências(Química) do cotidia-

no trata dos conceitos científicos rela-cionados aos fenômenos do coti-diano. Neste caso, a abordagem con-tinua centrada nos conceitos cientí-ficos.

Aspectos relacionados à contex-tualização já faziam parte da pro-posta pedagógica de Freire (1990),quando este discutiu o papel da pro-blematização no processo pedagó-gico de ensino de “temas geradores”.Em Freire (1983), o papel da proble-matização na compreensão dos alu-nos sobre os temas, ou seja, a culturaprimeira, é ressaltado e de algummodo se relaciona aos fatores queconfiguram o contexto. Para ele, oprocesso de cons-trução do conheci-mento, no sentido dasuperação dessacultura primeira, pas-sa pela codificação-problematização-descodificação, paraassim superar obstá-culos do conheci-mento empírico, oriundo de suavivência. E esta vivência é compostapelas esferas simbólica, social e pro-dutiva. A esfera simbólica: na qual osujeito constrói explicações diversassobre o mundo natural e social ondese encontra inserido. A esfera social:

está relacionada à família, à escola,ao trabalho e outras relações. Na es-fera produtiva estão as relações coma Ciência e a Tecnologia. Para Freire(1983), o conhecimento exige umapresença curiosa do sujeito em facedo mundo. Requer sua ação trans-formadora sobre a realidade. Deman-da uma busca constante. Implicainvenção e reinvenção. Educar é co-nhecer, é ler o mundo para podertransformá-lo. Conhecer não é acu-mular conhecimentos, conhecer im-plica mudança de atitudes, saberpensar e não apenas assimilarconhecimentos.

Então, qual o significado do termocontextualização? Em vários dicioná-rios consultados, das línguas Portu-guesa, Espanhola e Inglesa, não en-contramos o termo contextualização.A palavra encontrada que mais seaproxima do termo contextualizar écontextuar, que etimologicamentesignifica enraizar uma referência emum texto, de onde fora extraída, e lon-ge do qual perde parte substancialde seu significado. Contextuar, por-tanto, é uma estratégia fundamentalpara a construção de significações.Se pensarmos a informação ou o co-nhecimento como uma referência ouparte de um texto maior, podemosentender o sentido da contextuali-zação: (re)enraizar o conhecimentoao “texto” original do qual foi extraídoou a qualquer outro contexto que lheempreste significado (Machado,1999).

Neste caso, contextualizar o ensi-no significa incorporar vivências con-

cretas e diversifi-cadas, e tambémincorporar o aprendi-zado em novas vi-vências. Contextua-lizar é uma posturafrente ao ensino otempo todo, não éexemplificar. É assu-mir que todo conhe-

cimento envolve uma relação entresujeito e objeto. Contextualizar éconstruir significados e significadosnão são neutros, incorporam valoresporque explicitam o cotidiano, cons-troem compreensão de problemasdo entorno social e cultural, ou

O entendimento dosignificado da

contextualização éfundamental para que se

possam desenvolverestratégias de ensino quefavoreçam o preparo parao exercício da cidadania

Contextualizar é construirsignificados e significados

não são neutros,incorporam valores porque

explicitam o cotidiano,constroem compreensãode problemas do entorno

social e cultural, oufacilitam viver o processo

da descoberta

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facilitam viver o processo da desco-berta. Buscar o significado do conhe-cimento a partir de contextos do mun-do ou da sociedade em geral é levaro aluno a compreender a relevânciae aplicar o conhecimento para enten-der os fatos, tendências, fenômenos,processos que o cercam. Contextua-lizar o conhecimento no seu próprioprocesso de produção é criar condi-ções para que o aluno experimentea curiosidade, o encantamento dadescoberta e a satisfação de cons-truir o conhecimento com autonomia,construir uma visão de mundo e umprojeto com identidade própria.

Objetivos do estudoLivros usados como material de

ensino não são novidades, uma vezque há séculos isto vem ocorrendo.Comenius foi o primeiro “pedagogo”a insistir na importância de certascaracterísticas que tornariam algunslivros mais apropriados para a trans-missão de conhecimentos. Sabemosque é muito difícil avaliar a eficiênciae a eficácia de um LD. É difícil sabero quanto um livro ensina e como doislivros diferentes diferem na sua capa-cidade de ensinar. No entanto, é pos-sível chegar a um acordo a respeitodos objetivos do ensino, da metodo-logia empregada, se segue ou nãodeterminada teoria da aprendizagem.

Acreditamos que, como todo edu-cador tem concepções próprias so-bre processos de abordagem didá-tico-metodológica, os autores de LDtambém as possuem e, portanto, aexplicitação dessas concepções eseu posicionamento frente às ques-tões educacionais devem ser consi-derados na elaboração dos LD.

Este estudo tem como objetivo:i) identificar como a contextuali-

zação do conhecimento químico éefetivada nos LD;

ii) identificar concepções acercado significado do termo contextuali-zação.

Procedimentos metodológicosDada a preocupação em compre-

ender a forma que autores e editoresde LD dão significado ao termocontextualização, vemos o LD comoum meio de serviço de um processo

geral de transmissão de modos depensar e agir, modos estes que ex-pressam objetivamente a visão demundo de um grupo. A autoridade deum livro ou seu valor, tal como é defi-nido, está em sua função expressa decodificar, sistematizar e homogenei-zar uma dada concepção pedagó-gica, que por sua vez traduz uma vi-são de mundo e de sociedade.

O critério usado, nesta pesquisa,para a escolha dos LD considerou ofato de estarem disponíveis para aná-lise. Foram solicitados exemplaresdas coleções às editoras que colo-caram no mercado novas coleçõesapós as novas Diretrizes CurricularesNacionais. Realizamos a análise detodas as coleções de LD que nos fo-ram enviadas pelas editoras, editadasentre os anos de1999 e 2002. Dado opotencial econômi-co dessas editoras,que distribuem gra-tuitamente milharesde exemplares aosprofessores que osusam como livros-texto ou livros-guia,acreditamos seremestes os livros maisutilizados e de maior interesse paraos professores. O Quadro 1 apre-senta as coleções analisadas.

Concentramos nossa análise emtrês aspectos para identificarmos a

concepção do termo contextuali-zação nos LD, como descrito a seguir.

Primeiro aspectoIdentificar nos LD palavras ou ter-

mos que contextualizassem o conhe-cimento químico que classificamosem três categorias:

i) informações de caráter químico,que tenham relação com o conceitocientífico abordado ou que sejamexemplos de aplicações científicas;

ii) idéias do senso comum tradu-zidas em conhecimentos científicos;

iii) processos produtivos e/ou am-bientais traduzidos em termos quí-micos.

Segundo aspecto Verificar, em cada categoria de

análise, se as palavras e/ou termosusados como formade contextualizar oconhecimento quí-mico:

i) estão presentesno início dos capí-tulos, se são usadoscomo tema motiva-dor para provocar ointeresse nos alunos;

ii) são usados co-mo fio condutor do

conhecimento químico, ou seja, osconceitos científicos usados comoinstrumentos para a compreensão docontexto;

iii) aparecem nos textos como

Quadro 1: Coleções de livros didáticos analisados.

Código de Referênciasidentificação

LD1 Feltre, R. Química. 5ª ed. São Paulo: Moderna, 2000.

LD2 Perruzzo, T.M. e Canto, E.L. Química: Na abordagem docotidiano. 2ª ed. São Paulo: Moderna, 1999.

LD3 Lembo, A. Química: Realidade e contexto. São Paulo: Ática,2000. v. 1.

LD4 Silva, E.R.; Nóbrega, O.S. e Silva, R.H. Química: Conceitosbásicos. São Paulo: Ática, 2001.

LD5 Sardella, A. Química: Série novo Ensino Médio. 5ª ed. SãoPaulo: Ática, 2000. v. 1.

LD6 Covre, G.J. Química: O homem e a natureza. São Paulo:FTD, 2000.

LD7 Fonseca, M.R. Completamente Química. São Paulo: FTD, 2001.

LD8 Usberco, J. e Salvador, E. Química. 6ª ed. São Paulo: Ed.Saraiva, 2000.

LD9 Novaes, V. Química. São Paulo: Atual Editora, 1999.

A autoridade de um livroou seu valor está em sua

função expressa decodificar, sistematizar e

homogeneizar uma dadaconcepção pedagógica,que por sua vez traduz

uma visão de mundo e desociedade

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exemplos, permitindo uma asso-ciação entre os conceitos abordadoscom fatos do cotidiano;

iv) aparecem no final, como com-plemento.

Terceiro aspectoCriar, para cada categoria de aná-

lise, subcategorias que nos permitis-sem identificar se a contextualizaçãodo conhecimento químico identifi-cada no LD:

i) é utilizada como uma forma demotivar e provocar o interesse dosalunos e, desta forma, ser utilizadacomo um facilitador no processo deensino e aprendizagem;

ii) relaciona o conhecimento cien-tífico com temas sociais, ambientaise econômicos;

iii) permite um questionamento dosenso comum dominante na socie-dade, proporcionando ao educandouma mudança de atitude. Neste caso,a relação entre o contexto e o conhe-cimento científico possibilitaria aformação de um cidadão crítico.

Por palavras e/ou termos que con-textualizam o conhecimento químico,consideramos ilustrações de substân-cias do cotidiano dos estudantes quetenham relação com o conceito quí-mico abordado, recortes de jornais ourevistas que trazem alguma informa-ção química ou temas ambientais, in-dustriais, culturais que tenham algu-ma relação com os conceitos quími-cos abordados.

Como exemplo de informações decaráter químico que tenham relaçãocom o conceito científico abordadoforam consideradas termos como:

O 2,2,4-trimetilpentano, co-nhecido como isoctano, éencontrado na gasolina e utili-zado como padrão para medira qualidade do combustível(LD7, p. 49).

Por idéias do senso comum tradu-zidas em conhecimento científico fo-ram consideradas colocações como:

A medida do pH do solo émuito importante na agricultura.De fato, cada vegetal crescemelhor em um determinado va-lor de pH.

Duas espécies que reque-rem solos ácidos são a erva-mate e a mandioca, uma vezque são nativas da América,onde predominam solos áci-dos. Culturas como soja alfafa,algodão e feijão são menostolerantes à acidez, ou seja, seadaptam e crescem melhor emsolos corrigidos com calcário,cujo pH se situa nafaixa de 6,0 a 6,2.

O pH do solo nãoinfluencia apenas ocrescimento dos ve-getais. A hortência,por exemplo, produzflores azuis em solosácidos, e flores ver-melhas em solos al-calinos (LD1, p. 255).

E como exemplo de processosprodutivos e/ou ambientais traduzi-dos em termos químicos:

Curtimento significa subme-ter as peles a tratamento taisque as tornem resistentes àágua e ao apodrecimento. Exis-tem três tipos de curtimento:vegetal, mineral e a óleo, tam-bém chamado de acamurça-mento...

Para alguns processos usa-se um processo misto, ou seja,a combinação de dois dessestrês processos.

O curtimento vegetal é o maisantigo e resulta, aparentemen-te, de uma combinação químicaentre as substâncias extraídasdos vegetais e as proteínas daderme, permitindo a formaçãode compostos não solúveis emágua e imputrecíveis.

Para curtir através deste pro-cesso, são empregados oschamados taninos, ou substân-cias tânicas (...) (LD7, p. 380-382).

O procedimento adotado para aanálise constou da escolha de oito ca-pítulos (matéria e energia; estruturaatômica; funções inorgânicas; rea-ções químicas; soluções; Termoquí-mica; equilíbrio químico e hidrocarbo-netos) cujos tópicos de conteúdo fos-

sem semelhantes nas nove coleçõesutilizadas para nossa análise, de for-ma que abrangessem uma parte con-siderável dos conteúdos ministradosno Ensino Médio das escolas brasi-leiras.

A primeira etapa desta pesquisaconsistiu na identificação de termos e/ou palavras que contextualizassem oconhecimento químico e de sua fun-

ção no capítulo.Em um segundomomento, foi rea-lizada a análisedos termos cru-zando-se dadosquantitativos comdados qualita-tivos, de modo aotimizar uma

maior variação possível entre ascategorias. Os dados quantitativosconsiderados foram: número de ter-mos e/ou palavras que contextualizamo conhecimento químico e a relaçãopercentual em cada LD. Já os dadosqualitativos foram: onde e como sãoabordados esses termos em cada LD.Primeiramente, os LD foram analisadosindividualmente e, com o resultadodessa análise, foram comparadasestatisticamente as coleções de LD.

Resultados e discussãoOs LD apresentam diferenças

quantitativas entre eles; isto é, o nú-mero de termos e/ou palavras quecontextualizam o conhecimento quí-mico varia muito entre as coleçõesanalisadas. Qualitativamente – comosão usados esses termos –, os LDsão muitos semelhantes entre si.

Os resultados desta investigaçãoapontam que em média 80% dostermos referentes à contextualizaçãose referem às informações de carátercientífico relacionadas ao cotidiano,isto é, procuram estabelecer uma co-nexão entre o conhecimento químicoe suas possibilidades de aplicação navida prática. Um índice de 19% dostermos se aplicam a idéias do sensocomum traduzidas em conhecimentoquímico. Apenas pouco menos de 1%dos termos referem-se a processosprodutivos e/ou ambientais traduzi-dos em termos químicos.

A análise em relação ao contexto

Os livros didáticosapresentam diferenças

quantitativas: o número determos e/ou palavras que

contextualizam oconhecimento químico

varia muito entre ascoleções analisadas

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no livro em que se encontram os ter-mos que procuram contextualizar oconhecimento químico indica que79% desses termos são usados comoexemplos, permitindo uma relaçãoentre os conceitos abordados e fatosdo cotidiano: 13% estão presentes noinício dos capítulos e 8% aparecemno final como complemento. Termosusados como fio condutor não foramencontrados nos capítulos investiga-dos. Por fio condutor consideramosos que trazem para o estudante pro-blemas ambientais, sociais ou indus-triais ligados à Química e a partir delesé dada uma visão geral do problema,por meio de atividades, do tratamentode conceitos químicos e do uso dalinguagem científica, de forma a pro-porcionar ao estudante uma nova lei-tura do problema, ampliando-o, decerto modo fazendo com que o alunose posicione, buscando uma tomadade decisão (PCNEM,1999b).

Na análise de como é abordada acontextualização nos LD, identifica-mos que 91% dos termos referem-sea abordagens com o objetivo de mo-tivação, procurando facilitar o proces-so de ensino e aprendizagem.

Deve-se considerar, contudo, queo uso do LD não é automático e me-cânico. Passa pela mediação do pro-fessor e do aluno. Assim, afirmar quea simples relação en-tre contexto e con-ceito está de fatofacilitando o proces-so de ensino-apren-dizagem seria colo-car o LD como“substituto” do atopedagógico.

Outros 9% dostermos relacionam-se ao conhecimentoquímico com temassociais, ambientais e econômicos.Não identificamos uma abordagemque permitisse ao usuário do LD umquestionamento do senso comumdominante na sociedade, propiciandouma mudança de atitude, ou seja,uma abordagem que proporcione aoestudante uma nova leitura do pro-blema, ampliando-o, e de certo modofazendo com que o aluno se posicio-ne, buscando uma tomada de deci-

são.A influência de conceitos do coti-

diano, como também de idéias dosenso comum no desenvolvimento deconceitos químicos, sob o pretexto dacontextualização, são muito freqüen-tes nos atuais LD.São exemplos queutilizam contextos davida dos estudantestanto para despertaro interesse, comopara construir ativi-dades que facilitemo processo deensino-aprendiza-gem, com o objetivode superar a excessiva aridez daabstração científica. Deste modo, acontextualização é tratada na maioriados casos como estratégia de ensino-aprendizagem para facilitar a apren-dizagem.

Pudemos constatar em nossaanálise que a contextualização nos LDé abordada segundo as seguintesconcepções:

i) contextualização como descri-ção científica de fatos e processos docotidiano do aluno;

ii) contextualização como estraté-gia de ensino-aprendizagem parafacilitar a aprendizagem.

Nos livros didáticos analisados,não verificamos ouso de termos quecontextualizassem oconhecimento quí-mico na perspectivada discussão de te-mas sociais, ambien-tais, tecnológicos,éticos e econômicossob o olhar da Quími-ca de modo a forne-cer informações aoestudante enquanto

cidadão.O que deveria servir de base para

a contextualização do conhecimentoquímico assume apenas função ilus-trativa, da curiosidade, da informaçãojornalística, da mera citação da apli-cação tecnológica de determinadosprincípios ou ainda da simples com-preensão dos conceitos químicosrelacionados aos temas, sem umadiscussão crítica das suas implica-

ções sociais. O fato dos LD cen-trarem a contextualização nos con-ceitos científicos fazendo uma liga-ção entre o conceito e algum fato docotidiano dos estudantes de certa for-ma facilita o processo de ensino e

aprendizagem aomesmo tempo emque motiva os estu-dantes. No entanto,o que precisa me-lhorar é que sejammais bem aprovei-tados didaticamente.Não somos contra ouso de ilustrações,notícias, temas am-

bientais etc. Eles devem e precisamser utilizados como forma do alunoperceber a Química no seu dia-a-dia.Acreditamos que a contextualizaçãodeva centrar-se na abordagem detemas sociais, onde são trabalhadasa integração entre os conceitos cien-tíficos e a discussão dos aspectossociais para que o estudante entendao contexto em que está inserido e,por sua vez, exigindo deste um po-sicionamento crítico quanto à suasolução.

Nosso estudo evidencia a existên-cia de diferentes concepções para otermo contextualização nos LD. Umatendência de entender a contex-tualização mais como descrição defatos e processos do cotidiano doaluno e outra tendência que entendecontextualização como estratégia deensino-aprendizagem facilitadora daaprendizagem dos alunos. Isto de-monstra a necessidade de um maiorestudo do que se pretende com oprincípio da contextualização nos do-cumentos oficiais, como os PCNEM,que deveriam servir como parâ-metros para a efetivação da contex-tualização nos LD, já que juntamentecom a interdisciplinaridade são osprincípios básicos da reforma noEnsino Médio.

Edson José Wartha ([email protected]), mestre emEnsino de Ciências (modalidade Química) pela USP,é professor visitante no Departamento de CiênciasExatas e Tecnológicas da Universidade Estadual deSanta Cruz, em Ilhéus - BA. Adelaide Faljoni-Alário([email protected]), bacharel em Química e doutoraem Bioquímica pela USP, é docente do Departa-mento de Bioquímica do Instituto de Química da USP,em São Paulo - SP.

Não foi identificada umaabordagem que

proporcione ao estudanteuma nova leitura do

problema, ampliando-o, ede certo modo fazendo

com que o aluno seposicione, buscando uma

tomada de decisão

Nosso estudo evidencia umatendência de entender a

contextualização mais comodescrição de fatos e

processos do cotidiano doaluno e outra tendência queentende contextualização

como estratégia de ensino-aprendizagem facilitadora

da aprendizagem dosalunos

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Referências bibliográficasBRASIL (país). Ministério da Educa-

ção. Secretaria de Educação Média eTecnológica. Parâmetros CurricularesNacionais. Ensino Médio: Bases Legais.Brasília: MEC, 1999a.

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Para saber maisWARTHA, E.J. O ensino médio numa

dimensão político-pedagógica: Os parâ-metros curriculares nacionais, o ensinode Química e o livro didático. Dissertaçãode Mestrado. São Paulo: Interunidadesde Ensino de Ciências (USP), 2002.

Também sugerimos uma análise maisdetalhada nos atuais livros didáticos deQuímica para o Ensino Médio.

Abstract: The Contextualization in Chemistry Teaching Through the Textbook – Different conceptions about the use of the term contextualization, identified in high-school chemistry textbooks, arepresented in this work. The methodology used in this analysis seeks to verify how chemical knowledge is contextualized and the way it is treated and developed in current chemistry textbooks.Keywords: contextualization, chemical knowledge, textbook

A contextualização do ensino de Química através do livro didático

17ª ed. São Paulo: Ed. Paz e Terra, SME,1990.

LAJOLO, MP Livro didático: Um (quase)manual de ensino. Em Aberto, v. 16, n. 69,p. 40-49, 1996.

MACHADO, N.J. Eixos teóricos que es-truturam o ENEM: Conceitos principais,interdisciplinaridade e contextualização.Em: I Seminário do Exame Nacional doEnsino Médio. Brasília, 1999.

MOLINA, O. Quem engana quem: Pro-fessor x livro didático. Campinas: Papirus,1987.

PIERSON, A.H.C. O cotidiano e a buscade sentido para o ensino de Física. Tesede Doutorado. São Paulo: Faculdade deEducação da Universidade de São Paulo,1997.

SANTOS, W.L. e MORTIMER, E.F. Con-cepções de professores sobre a contex-tualização social do ensino de Química eCiências. Livro de Resumos da 22ª Reu-nião Anual da Sociedade Brasileira de Quí-

O primeiro Encontro Nacional deEnsino de Química (ENEQ) foirealizado na Faculdade de Educaçãoda Unicamp em 1982 e, depois disso,passou a ser bienal. No período 1984a 1992, ele foi realizado em conjuntocom reuniões anuais da SBPC;posteriormente, foi desvinculado, ten-do ocorrido em Belo Horizonte – MG(1994), Campo Grande – MS (1996),Aracajú – SE (1998), Porto Alegre –RS (2000), Recife – PE (2002) eGoiânia – GO (2004).

O ENEQ é um evento da Divisãode Ensino de Química da SociedadeBrasileira de Química. A última ediçãodo ENEQ, na Universidade Federal deGoiás, congregou cerca de 1000 par-ticipantes, entre pesquisadores na

Nota

área, professores do Ensino Básico,alunos de pós-graduação e gradua-ção e outros interessados.

Foi então proposto que, para2006, o XIII ENEQ fosse realizado naUnicamp, com a coordenação daFaculdade de Educação (FE) em con-junto com o Instituto de Química (IQ),e que fosse um evento comemorativodos 25 anos de realização dosENEQs, que, de certa forma, contri-buíram para consolidar a EducaçãoQuímica como uma área de pesquisae de pós-graduação no Brasil, dentroda área de Educação em Ciências. Aestrutura preliminar do evento prevêmini-cursos, sessões de painéis, con-ferências, mesas redondas, palestras,e sessões coordenadas.

O XIII ENEQ será realizado com acolaboração e apoio de outras univer-sidades paulistas que também man-tém cursos de química, e especial-mente de licenciatura em química,sendo que vários representantes des-sas universidades compõem aComissão Organizadora.

A coordenação geral da Comis-são Organizadora está sob a res-ponsabilidade das Profas. Maria InêsP. Rosa (FE-Unicamp) e AdrianaVitorino Rossi (IQ-Unicamp) e de Cár-men Lúcia Rodrigues Arruda (coor-denadora do setor de eventos da FE-Unicamp).

Maiores informações:www.fe.unicamp.br/eneq