A CONTROVERTIDA SOCIOBIOLOGIA - :: UNESP … J. Reis suas conseqüências. Escola muito ativa,...

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A CONTROVERTIDA SOCIOBIOLOGIA (6) ~ A publicação, em 1975, do livro Sociobiology: a New Synthesis" pelo entomologista Edward O. Wilson provo- cou em todo o mundo verdadeira explosão crítica, quer de biólogos quer, especialmente, de sociólogos. O que o au- tor caracteriza como sociobiologia é "o estudo científico da base biológica de todas as formas de comportamento social de todos os tipos de organismos, inclusive o ho- mem". Para maior precisão poder-se-ia acrescentar que esse estudo se faz do ponto-de-vista da evolução neodar- winiana e de sua base genética. Para dar idéia de sua lin- guagem, basta dizer que o primeiro capítulo se intitula "A moral do gene". A repercussão dos conceitos de Wilson logo extrava- sou dos círculos acadêmicos para o grande público. Pen- sando neste e também nos estudantes, ele lançou em 1980 uma edição resumida do primeiro livro. Wilson estudou a fundo os insetos sociais e concluiu pela possibilidade de explicar suas interações pelos me- canismos da seleção natural. Passou então a analisar a documentação existente sobre o comportamento de ou- tros grupos animais e chegou à sua provocativa "nova sín- tese". Representa esta o encontro de duas grandes ver- tentes: o comportamento animal e a evolução neodarwi- niana. COMPORTAMENTO Muito antigos são o hábito de observar o comporta- mento dos animais e do homem e as tentativas de explicá- 10.Relativamente novos, porém, são os estudos sistemáti- cos nesse campo, especialmente em relação ao homem, na interpretação de cujos atos campearam por longo tem- po meras especulações. Mesmo no século 20, os estudiosos do comporta- mento animal se têm deixado empolgar por teorias que apenas o descrevem, sem procurar suas causas prímei- raso Contentam-se com explicações imediatistas, sem buscar um paradigma aplicável a todos os casos, e têm feito apressadas generalizações. No começo do século, Jacques Loeb atraiu l')1uítosadeptos com a teoria dos tro- pismos, depois chamados taxias. Não menor foi o entu- siasmo provocado pela revelação, na mesma época, do arco reflexo, por Sherrington. E muito maior ainda foi o in- teresse desperta~o pelos experimentos em que Pavlov demonstrou os reflexos condicionados. A partir da década de 30, os psicólogos prinCipiaram a desenvolver as teorias do comportamento baseadas no aprendizado, merecendo especial destaque Skinner. Em sua teoria do reforço, o comportamento é influenciado por 2 J. Reis suas conseqüências. Escola muito ativa, inspirou numero- sos experimentos, com aparelhagem muitas vezes refina- da, para manipular o comportamento. Embora explicando o comportamento atual, em termos do que o animal faz em resposta a determinados estímulos, a teoria do apren- dizado não raro se mostra inaplicável ao comportamento dos animais de vida livre. E se pode descrever e até pre- ver o que o animal faz ou fará em determinadas circuns- tâncias experimentais, não chega ao porquê dessas rea- ções. Para os sociobiologistas essa deficiência poderia em geral ser contornada por uma perspectiva evolucioná- ria, como veremos mais adiante. A mesma restrição às teorias do aprendizado é apli- cada por alguns sociobiologistas à etologia, campo espe- cialmente definido pelos trabalhos de K. von Frish, N. Tin- bergen e K. Lorenz, que mereceram o prêmio Nobel. Eto- logia é o estudo biológico do comportamento animal. Ba- seia-se na meticulosa observação dos animais em vida li- vre, mediante abordagem principalmente histórica, que tenta identificar homologias e filogenias a partir do pressu- posto de que o comportamento se desenvolveu como uma estrutura. Não repele a experimentação, geralmente feita em condições de vida livr.e.Nem deixa de ter preocu- pação evolucionária, no sentido neodarwiniano, mas o que domina em muitos dos estudos etológicos é o esfor- ço de reduzir o comportamento global a uma série de atos elementares, cada um dos quais deflagra o seguinte. Ao contrário do que possa parecer em vista de certos es- critos sociobiológicos, a etologia também se preocupa com os comportamentos sociais; basta lembrar que um dos livros de Tinbergen se denomina "Social Behaviour in Animais" . A etologia, especialmente quando divulgada por Lo- renz em sua obra sobre agressão, provocou repercussão semelhante à da sociobiologia. Hoje há uma espécie de ri- validade entre sociobiologistas e etologistas. Assim, Wil- son afirma que a etologia será "canibalizada" pela socio- biologia, enquanto Thorpe, etologista, critica a separação dos comportamentos social e não social das espécies e fala, no primeiro caso, de "etologia das espécies sociais". Ainda segundo Thorpe, o etologista pergunta como pode o animal fazer isto ou aquilo, quais as pressões que tornam necessários esses comportamentos e os mantêm, depois de estabelecidos, e por que os animais relativa- mente simples, como a estrela do mar, e outros, relativa- mente complexos como o polvo, se mantiveram com êxi- to em ambíentes semelhantes, com apenas pequenas va- riações ao longo de vastos períodos de tempo geológico.

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A CONTROVERTIDA SOCIOBIOLOGIA

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A publicação, em 1975, do livro Sociobiology: a NewSynthesis" pelo entomologista Edward O. Wilson provo-cou em todo o mundo verdadeira explosão crítica, quer debiólogos quer, especialmente, de sociólogos. O que o au-tor caracteriza como sociobiologia é "o estudo científicoda base biológica de todas as formas de comportamentosocial de todos os tipos de organismos, inclusive o ho-mem". Para maior precisão poder-se-ia acrescentar queesse estudo se faz do ponto-de-vista da evolução neodar-winiana e de sua base genética. Para dar idéia de sua lin-guagem, basta dizer que o primeiro capítulo se intitula "Amoral do gene".

A repercussão dos conceitos de Wilson logo extrava-sou dos círculos acadêmicos para o grande público. Pen-sando neste e também nos estudantes, ele lançou em1980 uma edição resumida do primeiro livro.

Wilson estudou a fundo os insetos sociais e concluiupela possibilidade de explicar suas interações pelos me-canismos da seleção natural. Passou então a analisar adocumentação existente sobre o comportamento de ou-tros grupos animais e chegou à sua provocativa "nova sín-tese". Representa esta o encontro de duas grandes ver-tentes: o comportamento animal e a evolução neodarwi-niana.

COMPORTAMENTOMuito antigos são o hábito de observar o comporta-

mento dos animais e do homem e as tentativas de explicá-10.Relativamente novos, porém, são os estudos sistemáti-cos nesse campo, especialmente em relação ao homem,na interpretação de cujos atos campearam por longo tem-po meras especulações.

Mesmo no século 20, os estudiosos do comporta-mento animal se têm deixado empolgar por teorias queapenas o descrevem, sem procurar suas causas prímei-raso Contentam-se com explicações imediatistas, sembuscar um paradigma aplicável a todos os casos, e têmfeito apressadas generalizações. No começo do século,Jacques Loeb atraiu l')1uítosadeptos com a teoria dos tro-pismos, depois chamados taxias. Não menor foi o entu-siasmo provocado pela revelação, na mesma época, doarco reflexo, por Sherrington. E muito maior ainda foi o in-teresse desperta~o pelos experimentos em que Pavlovdemonstrou os reflexos condicionados.

A partir da década de 30, os psicólogos prinCipiarama desenvolver as teorias do comportamento baseadas noaprendizado, merecendo especial destaque Skinner. Emsua teoria do reforço, o comportamento é influenciado por

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J. Reis

suas conseqüências. Escola muito ativa, inspirou numero-sos experimentos, com aparelhagem muitas vezes refina-da, para manipular o comportamento. Embora explicandoo comportamento atual, em termos do que o animal fazem resposta a determinados estímulos, a teoria do apren-dizado não raro se mostra inaplicável ao comportamentodos animais de vida livre. E se pode descrever e até pre-ver o que o animal faz ou fará em determinadas circuns-tâncias experimentais, não chega ao porquê dessas rea-ções. Para os sociobiologistas essa deficiência poderiaem geral ser contornada por uma perspectiva evolucioná-ria, como veremos mais adiante.

A mesma restrição às teorias do aprendizado é apli-cada por alguns sociobiologistas à etologia, campo espe-cialmente definido pelos trabalhos de K. von Frish, N. Tin-bergen e K. Lorenz, que mereceram o prêmio Nobel. Eto-logia é o estudo biológico do comportamento animal. Ba-seia-se na meticulosa observação dos animais em vida li-vre, mediante abordagem principalmente histórica, quetenta identificar homologias e filogenias a partir do pressu-posto de que o comportamento se desenvolveu comouma estrutura. Não repele a experimentação, geralmentefeita em condições de vida livr.e.Nem deixa de ter preocu-pação evolucionária, no sentido neodarwiniano, mas oque domina em muitos dos estudos etológicos é o esfor-ço de reduzir o comportamento global a uma série deatos elementares, cada um dos quais deflagra o seguinte.Ao contrário do que possa parecer em vista de certos es-critos sociobiológicos, a etologia também se preocupacom os comportamentos sociais; basta lembrar que umdos livros de Tinbergen se denomina "Social Behaviour inAnimais" .

A etologia, especialmente quando divulgada por Lo-renz em sua obra sobre agressão, provocou repercussãosemelhante à da sociobiologia. Hoje há uma espécie de ri-validade entre sociobiologistas e etologistas. Assim, Wil-son afirma que a etologia será "canibalizada" pela socio-biologia, enquanto Thorpe, etologista, critica a separaçãodos comportamentos social e não social das espécies efala, no primeiro caso, de "etologia das espécies sociais".

Ainda segundo Thorpe, o etologista pergunta comopode o animal fazer isto ou aquilo, quais as pressões quetornam necessários esses comportamentos e os mantêm,depois de estabelecidos, e por que os animais relativa-mente simples, como a estrela do mar, e outros, relativa-mente complexos como o polvo, se mantiveram com êxi-to em ambíentes semelhantes, com apenas pequenas va-riações ao longo de vastos períodos de tempo geológico.

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EVOLUÇÃOAté entre pessoas dotadasde algumainformação

biológicaé comum a incompreensãodo processoevolu-cionário,sejanos termos em que inicialmenteo apresen-tou Darwin, seja nos atualmenteaceitos sob o nome deneodarwinismo.

Nemtudo o que escreveuo genial naturalistaé hojeaceito como parteda teoriada evolução.Masos fatoseas idéiasbásicaspor ele proclamadosperdurarame nasdécadasde 30 a 50 foram reorganizadasnum todo coe-rente,que incorporouao pensamentodarwinistaoriginalas contribuiçõesda genéticamendeliana,da paleontolo-gia, da teoriada formaçãodas espéciese outrasáreas.Éo neodarwinismo.

Darwin não descobriu a evolução, pois é antiga aidéiade que todos os seres vivos evolveram a partir deumaorigemcomum,mas propôso mecanismopelo qualela se desenrola,baseando-seem formidável arsenaldeobservaçõescolhidas na natureza.A essênciado darwi-nismo consiste na ação da seleção natural como forçaevolutiva.Decorretal seleção,por suavez,damaiorcapa-cidadequecertosindivíduostêmde reproduzir-see tornar-se adultosem face das condiçõesambientais.Nissoresi-de a chamadacompetição,que asseguraa "sobrevivên-cia dosmaisaptos", expressãogeralmentemal interpreta-da como lutade vidaou morteentreos indivíduos.A sele-ção naturalé, no fundo, a reproduçãodiferencialdos indi-víduosde umaespécie,de umaa outra geração.Explica-sea açãodessaseleçãonagênesede novasespéciespe-lo aparecimento.de alteraçõesque passamde um indiví-duo a suadescendência.Omecanismodessasalteraçõessó ficouclaroquandoà idéiadarwinianase superpuseramos conhecimentosda genéticamendeliana,desconhecidade Darwin. Mínimas alterações nos genes (mutações)acarretamalteraçõesem determinadascaracterístícas.Sefavoráveisem face do meio, essasalteraçõestendemapredominarnas populações,porqueaumentama aptidãodo indivíduoe sua capacidadede reproduzir-se.

A aptidãomedeaqualidadeseletivadosgenesoudosgenótipos(istoé, a composiçãogenéticados indivíduos),seu sucessoreprodutivo.Os caracteres que os tornammaiscapazesde sobrevivere reproduzir-seassimagemetornam-semaisbem representadosnasgeraçõesseguin-tes.Dizem-seadaptativostodosos caracteres,resultantesda evoluçãode um organismo,que aumentamsua apti-dão. Adaptaçãonadamais é do que esse processo.

O neodarwinismonão apenasrobusteceua idéiadaseleçãonatural,que Darwinadquiriupela observaçãodi-retada natureza,com os dadosexperimentaisda genéti-ca, mas também a enriqueceucom abundantesprovaspaleontológicase com os dados colhidos na teoriamate-mática da genéticadas populações.Alguns pormenoresdo neodarwinismosofreram depois pequenos reparos.Nos últimosanosalgunsde seusprincípios,como o gra-dualismonaevoluçãodas espécies,têm sido desafiados,porémdessesaspectosnãotrataremosaqui,mesmopor-quea sociobiologiase apegaao neodarwinismoclássico.

EVOLUÇÃO E COMPORTAMENTOA sacio biologia procura, como dissemos, explicar

em termos neodarwinianos a evolução dos comportamen-tos ou interações sociais dos animais, sem exclusão dohomem. Ela pretende haver dado, dessa maneira, inter-pretação científica a muitos fenômenos que antes se des-creviam sem Ihes investigar o porquê, a causa primeira,assim como outras circunstâncias que intrigavam os queprocuravam explicar o comportamento pelo simplesaprendizado.

Para mostrar sua maneira de raciocinar, apresentare-mos três exemplos:

1. O cão e o esquilo das árvores comportam-se dife-rentemente num experimento em que o animal tem deafastar-se da meta para atingi-Ia, dando volta a um empe-cilho (Fig. 1). O cão, vendo a comida, repuxa a corda ecorre para a direita e a esquerda, ladrando, ganindo eolhando para o dono como a pedir auxílio, até que, poracaso contornando o empecilho, descobre o caminho pa-ra o alimento. O esquilo observa primeiro a situação e lo-go contorna o obstáculo.

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~~~Fig. 1 - Em cima, um cão tenta puxar a corda em todasas direções, procurando atingir a comida. Embaixo, o es-quilo, sem fazer esse tipo de tentativa, imediatamente con-torna o obstáculo e se dirige à comida (segundo Barash).

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Como explicar essa diferença deprocedimento, especialmente sabendo que o cão é maisinteligente que o esquilo? Difícil fazê-Io pelas teorias doaprendizado. Fácil, pelo raciocinio sociobiológico. Em seumundo tridimensional, explica Barash, o esquilo que dese-ja passar de uma árvore a outra se defronta com duas al-ternativas: descer de sua árvore e subir pelo tronco da ou-tra, expondo-se aos predadores existentes no solo, ou ob-servar as copas, descobrir um ponto em que elas se to-quem e por aí passar. Isso quer dizer que os antepassa-dos do esquilo eram hábeis na solução de problemas decontorno e essa aptidão foi naturalmente selecionada;

2. Ao ouvir o zumbido da mosca dos estábulos, quepica, a vaca enruga a pele e abana a cauda, mas reageviolentamente, saltando e escoiceando, à aproximação deuma mosca que não pica mas transporta as larvas damosca do berne que deposita sobre a pele do animal. Du-rante a história evolucionária, as vacas que reagiam positi-vamente à aproximação da 11\10scaportadora do berne ti-veram menor probabilidade de serem parasitadas e maiorsucesso reprodutivo, em conseqüência disso;

3. Colocado pela primeira vez num labirinto, o ratoexplora-o meticulosamente, mesmo que não haja alimentoà saída. Mais tarde, quando se introduz Omesrno rato emlabirinto com alimento, ele prontamente chega à comida.Como explicar isso, se o rato, da primeira vez, não tinha oreforço do alimento? Apelou-se para a idéia de um apren-dizado latente, a cujo respeito muito se discute. Outro é oraciocinio evolucionário: os ratos de vida livre ocupam sis-temas de buracos e corredores a, para eles, é útil a explo-ração do ambiente e sua familiarização com ele, para rápi-da evasão.A seleção teria favorecido a cap?cidade deaprender estruturas labirínticas.

Seria impossível abranger em artigo não especializa-do todas as espécies de comportamento social e os me-canismos propostos pela sociobiologia para explicá-Ios,como tamanho dos grupos e reprodução, comunicação(sua natureza, suas origens e sua evolução), agressão,distribuição dos animais no espaço e delimitação de terri-tórios, sistemas de dominação, significação das castas,função social do sexo, cuidados dos pais e mães. A mas-sa desses comportamentos até hoje estudados e para osquais existe explicação sociobiológica é muito grande.

Por isso restringimos nossa exposição a três tipos demecanismos comportamentais: o altruísta, o egoísta e oagressivo ou malevolente. E o faremos visando, em parti-cular, animais ligados entre si por parentesco, dentro deuma população, porém lembrando que esses tipos decomportamento também se manifestam fora daquelas re-lações.

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Há uns 20 anos, Wyne-Edwards, baseado em suasobservações, proclamou que os animais geralmente ten-dem a evitar o excesso de exploração de seu habitat, es-pecialmente quanto ao suprimento alimentar. Para conse-gui-Io restringem sua própria reprodução. Vários compor-tamentos que envolvem exibição (como quando o animalrealiza certos rituais, geralmente para fins sexuais ou me-dição de forças para afirmação da dominância) ou agrega-ção dos indivíduos no inverno, ou vocalização em grupo(de fundo sexual ou para advertir quanto à proximidade deinimigos) nunca encontraram explicação unificadora; a so-ciobiologia procura dá-Ia em termos de seleção natural decomportamentos que se revelam capazes de tornar máxi-ma a aptidão dos indivíduos em face do meio.

Quando um indivíduo aumenta a aptidão de outro àsexpensas da sua própria, diz-se que seu comportamento éaltruísta. É o que ocorre por exemplo, no auto-sacrifícioem benefício da prole, porque na realidade a aptidão indi-vidual se mede pelo número dos descendentes.

O comportamento egoísta é facilmente compreensí-vel em termos de sobrevivência, embora moralmente pos-sa ser reprovável pelos observadores, como diz Wilson;nesse comportamento o indivíduo aumenta sua aptidãoem detrimento de outros.

Finalmente, quando o indivíduo nada ganha, ou reduzsua própria aptidão para diminuir a de outro, praticaumato de agressão ou malevolência.

Wilson esquematiza esses três comportamentos esuas conseqüências mediante uma relação que consisteapenas em dois irmãos. O indivíduo altruísta fará algumsacrifício em benefício do irmão (dando-Ihe alimento, abri-go, retardando a escolha de sua própria companheira ouainda se colocando entre o irmão e o perigo), porque estetem metade de seus genes e o sucesso reprodutivo do ir-mão vai aumentar a quantidade de genes do altruísta napopulação. E isso é muito importante quando o altruísta vêminguar sua aptidão genética (tempo de vida, diminuiçãode sua prole), o que conduz à menor presença de seus ge-nes, na geração seguinte. Supondo-se, no caso extremode o altruísta não de,ixar prole, que seu ato altruísta maisdo que duplique a representação pessoal do irmão na ge-ração seguinte, o altruísta também aumentará sua repre-sentação nessa geração. Muitos dos genes partilhadospelo irmão levarão o caráter altruísta e, assim, a aptidão fi-nal, determinada nesse caso só pelos genes do irmão, se-rá suficiente para causar o espalhamento dos genes al-truístas na população e garantir a evolução do comporta-mento altruísta. Este é, aliás, muito espalhado na natureza.Pode-se estender esse modelo a outros tipos de parentes-co (pais e filhos, primos, etc.), levando-se em conta a pro-porção relativa dos genes.

Wilson resume numa figura que reproduzimos, o queacabamos de dizer sobre altruísmo, egoísmo e agressão.

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o altruísmo dos indivíduos, como outros comporta-mentos, seria reflexo do "egoísmo" de seus genes. Estesé que teriam "interesse" em predominar nas gerações se-guintes, pouco Ihes "importando" o indivíduo como um to-do ou seu destino. Uma velha frase atribuída a Samuel Bu-tler exprime esse fato: a galinha é apenas um meio que oovo inventou para fazer outro ovo.

ALTRUíSMO

Ato +~ ..- ~ .,cJk1

Conse-qüências ri

Fig. 2 - Esquema de Wilson para mostrar as condiçõesbásicas para evolução do altruismo, egoismo e malevo-lência ou agressão, por meio da seleção por parentesco.A família foi reduzida a um individuo e seu irmão, sendo afração de genes do irmão que é partilhada pela descen-dência comum, indicada pela parte preta do corpo. Umvaso indica algum requisito do ambiente (alimento, abrigo,acesso ao par, etc.), ao passo que um machado represen-ta comportamento nocivo em relação a outrem. O altruistadiminui sua própria aptidão genética, mas aumenta a do ir-mão na medida em que os genes partilhados de fato au-mentam na geração seguinte. O egoísta reduz a aptidãodo irmão, porém aumenta a sua, em medida mais do quecompensadora. O agressivo baixa a aptidão de um com-petidor que não tem relação com ele (figura toda branca),ao mesmo tempo que reduz a sua própria, ou pelo menosnão a aumenta, porém o ato aumenta a aptidão do irmão aum grau mais do que compensador.

Do ponto-de-vista evolucionário, para o sociobiolo-gista, não é, pois, o patrimônio genético total do indivíduoque se deve mostrar mais apto na luta pela sobrevivência,mas o gene individualmente. A luta pela vida não passariade uma competição individual entre genes. Nesse ponto,os sociobiologistas divergem dos neodarwinistas clássi-.coso

EGoíSMO AGRESSÃO

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~f.r~o HOMEM

Os sociobiologistas acham que, em geral, suas expli-cações evolucionárias podem estender-se ao homem. Oúltimo capitulo do livro de Wilson intitula-se "Homem: dasociobiologia à sociologia". Nele o autor tenta observar ocomportamento humano com o espírito de um naturalistadesprovido de preconceitos - por exemplo, um zoólogochegado de outro planeta - e explicar aquele comporta-mento nos mesmos termos sugeridos pela observaçãodos animais. Enfoca dessa maneira a organização social,o altruísmo, a negociação e reciprocidade, as relações so-ciais e a divisão do trabalho, a linguagem, os ritos, a reli-gião, a territorialidade e o tribalismo, a estética, a evoluçãosocial primitiva. A própria ética deveria ser tirada dasmãos dos filósofos e "biologizada".

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Para exemplificar o raciocínio sociobiológico aplica-do ao homem a partir da observação do comportamentoanimal, podemos considerar a infidelidade conjugal.

Barash estudou o comportamento, a esse respeito,de certa ave alpina que vive em casais estáveis (monóga-mos). Quando, na época da procriação, o macho encon-tra, junto do ninho onde está a fêmea, um macho empa-Ihado ali posto pelo observador, ataca violentamente o su-posto rival, mas deixa de atacá-Io fora da época de repro-dução, depois que os ovos já foram postos. Na época daprocriação, o rival poderia ser concorrente do macho pelaimplantação de seus genes nos óvulos da fêmea, o que di-minuiria a probabilidade de permanência dos genes doprimeiro na geração seguinte. Esse risco acabaria com opassar da época da procriação. Após o vigoroso ataqueinfligido ao falso macho, a fêmea fugiu, mas foi logo subs-tituída por outra, mediante a qual o macho pôde conservaros seus genes na geração seguinte. Segundo os sociobio-logistas esse comportamento do macho no passado teráprovavelmente produzido maior descendência do que ou-tras maneiras de agir. A seleção teria, então, fixado talcomportamento na espécie.

Nada se sabe sobre a reação da fêmea ao adultériodo macho, porém Barash presume que deve ser menosintensa, porque ela tem, sobre o macho, a vantagem dacerteza de que partilha necessariamente 50 por cento deseus genes com a prole, certeza que o macho não podeter de maneira absoluta. Por isso, o "marido" infiel não re-presentaria grande mal, do ponto de vista da fêmea, des-de que cumprisse suas obrigações de sustento da família.

Transferindo o raciocínio para a espécie humana, pre-vê a sociobiologia que os maridos sejam mais intolerantesque as mulheres nas sociedades humanas machistas. Defato, o adultério feminino é severamente punido e até justi-fica violência contra a adúltera, sendo mais permissiva asociedade para com os adúlteros. Mas em sociedades co-mo a dos esquimós, que vivem em ambiente hostil, a coo-peração é mais valiosa que o antagonismo e por isso setolera a partilha da mesma mulher por vários homens,mesmo não aparentados.

É de imaginar o acalorado debate que provocou essatentativa de "biologizar" a sociologia. Ele reflete em gran-de parte a antiga luta sobre a influência relativa do genóti-po e do meio na modelagem do fenótipo - os caracteresfísicos do organismo, sejam eles anatômicos, fisiológicosou de comportamento. Não há dúvida de que o fenótiporesulta da interação dos dois fatores. Barash, sociobiolo-gista, apresenta num gráfico (Fig. 3) a porcentagem dosdois fatores nos vários grupos animais e no homem.

Num livro de critica da aplicação da sociobiologia aohomem, Ashley Montagu reuniu a colaboração de váriosespecialistas, como sociólogos, biologistas, antropólogos,etólogos, neurobiologistas. A conclusão desses especia-listas é que as alegações de Wilson a favor de sua socio-biologia em geral não encontram prova, não sendo válidasas conclusões que ele apresenta como certas e decisivas.

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EscreveMontagu:"Não pode havera mínimadúvida I

quanto à existência de uma base genética em boa partedo comportamento humano, mas isto é muito diferente deafirmar que esse comportamento é geneticamente deter-

minado". Continua ele: "O que os sociobiologistas não Icompreendem plenamente é que, como conseqüência dahistória toda particular da evolução humana, a humanida-de passou para uma zona completamente nova da adap-tação, a cultura". Para ele, "é pela parte aprendida a partirdo meio que os seres humanos reagem aos desafios deseus ambientes,e não pelaação determinativa ou decisi-va de seus genes".

Contribuição do genótipopara o comportamento

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ESPÉCIES

Fig. 3 - Contribuição relativa dos fatores genéticos e am-bientais para o comportamento de diferentes animais. Pa-ra qualquer espécie (X) a soma dos componentes genéti-cos e ambientais é 100% (segundo Barash).

Nem todos os sociobiologistas são tão extremados edogmáticos como Wilson. Barash escreve: "A esta altura,ninguém sabe se a perspectiva da biologia evolucionáriaesclarecerá nosso comportamento social, mas pareceque vale a pena tentar".

Essa discussão não cessará tão cedo, especialmenteporque os sociobiologistas procuram explicar a seu modoa evolução cultural, pilar da argumentação de Montagu eoutros adversários.

Nossa opinião pessoal é que à explicação sociobioló-gica ainda falta muita comprovação. E a labareda que elaacendeu, mais cedo ou mais tarde diminuirá. Não deixará,entretanto, apenas cinzas, porque terá legado um mundode observações e tentativas de explicação que encerramidéias novas e em grande parte inspiradoras.