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1 A coprodução do controle como bem público essencial à accountability Autoria: Arlindo Carvalho Rocha, Enio Luiz Spaniol, Paula Chies Schommer, Alessandra Debone de Sousa Resumo O objetivo deste trabalho é identificar categorias de análise que permitam compreender a coprodução do controle como bem público essencial à accountability. Para tanto, explora-se a noção de que este bem público pode ser coproduzido em rede por diferentes atores e mecanismos, incluindo-se os estatais e os resultantes da articulação entre cidadãos e governantes, por meio de estruturas e estratégias de governança pública. Isso permite uma interpretação sistêmica da interação entre atores e mecanismos de accountability, superando a tradicional classificação nos eixos horizontal e vertical, e propor categorias de análise e questões a serem exploradas em futuros estudos.

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A coprodução do controle como bem público essencial à accountability

Autoria: Arlindo Carvalho Rocha, Enio Luiz Spaniol, Paula Chies Schommer, Alessandra Debone de Sousa

Resumo O objetivo deste trabalho é identificar categorias de análise que permitam

compreender a coprodução do controle como bem público essencial à accountability. Para tanto, explora-se a noção de que este bem público pode ser coproduzido em rede por diferentes atores e mecanismos, incluindo-se os estatais e os resultantes da articulação entre cidadãos e governantes, por meio de estruturas e estratégias de governança pública. Isso permite uma interpretação sistêmica da interação entre atores e mecanismos de accountability, superando a tradicional classificação nos eixos horizontal e vertical, e propor categorias de análise e questões a serem exploradas em futuros estudos.

 

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1. Introdução Accountability pode ser compreendida como estratégia para responder a expectativas

(HEIDEMANN, 2009) ou como obrigação de uma pessoa ou grupo de prestar contas por sua conduta diante de uma responsabilidade assumida perante outrem (KLUVERS e TIPPET, 2010). Complexa, multifacetada e processual, a accountability envolve dimensões substantivas e instrumentais, técnicas e políticas, e depende de diversidade de sujeitos e mecanismos para ser produzida (CENEVIVA, 2006; KOPPELL, 2005; PINHO e SACRAMENTO, 2009; HEIDEMANN, 2009).

Em regimes democráticos, uma das atividades sociais mais importantes consiste em desenvolver formas e instrumentos de accountability, isto é, processos de avaliação e responsabilização permanente dos agentes públicos que permitam aos cidadãos controlar o exercício do poder concedido aos seus representantes e aos servidores públicos em geral.

Uma vez que o controle sobre o poder é fundamental para a construção de sociedades justas e democráticas, é possível considerá-lo como um bem público. Bem público este que pode ser coproduzido em rede, ou seja, a partir do engajamento e articulação de cidadãos, governantes e organizações que atuam na esfera pública, por meio de diversos mecanismos político-institucionais e de variadas estruturas e estratégias de governança pública (KISSLER e HEIDEMANN, 2006; SALM e MENEGASSO, 2009), em relações de mútua influência, de acordo com uma lógica sistêmica (CHILD e MCGRATH, 2001). Tais mecanismos de controle incluem as regras estatais intertemporais, o processo eleitoral e as formas de controle durante os mandatos, tanto as exercidas no âmbito do aparato estatal – controle parlamentar, administrativo e judicial, como as desempenhadas pela sociedade – reunidas sob o rótulo de controle social (ABRUCIO e LOUREIRO, 2005) e, sobretudo, as resultantes da interação entre elas.

Neste ensaio teórico, parte-se do entendimento de que, idealmente, a interação contínua e dinâmica entre formas de controle mais institucionalizadas e formas de controle menos institucionalizadas é potencialmente mais efetiva na promoção da accountability do que os mecanismos estatais e os de controle social atuando isoladamente, na medida em que tal interação forja a coprodução de bens e serviços públicos na atuação conjunta de governantes e cidadãos, aproximando-os e gerando melhores resultados. Esta visão permite reinterpretar e avançar em relação à tradicional compreensão da accountability vertical e horizontal (O’DONNELL, 1998; CENEVIVA, 2006; PINHO e SACRAMENTO, 2009) para uma visão de múltiplas interações.

Olhando para o campo potencial de coprodução do bem público controle, adquirem relevância as atividades de produção e difusão de informações públicas, as quais são essenciais ao controle. A obtenção e divulgação de informações públicas qualificadas é uma das condições para o bom desempenho do controle social e para a efetividade geral dos mecanismos de accountability (ABRUCIO e LOUREIRO, 2005). O uso dessas informações para tomar decisões, influenciar o desenho de políticas públicas e permitir sanções e prêmios aos agentes públicos, tende a contribuir para a ampliação da qualidade da administração pública e da democracia. Nesse campo, cabe observar como se dá o trabalho de órgãos institucionalizados de controle da atividade governamental, de um lado, e como se estruturam iniciativas da cidadania para promoção de controle social das atividades de governantes, de outro. Interessa, sobretudo, identificar características da produção compartilhada entre elas, especialmente os aspectos que possibilitam e os que obstaculizam a coprodução dessas informações e do controle.

Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é identificar categorias de análise que permitam compreender a coprodução do controle como bem público essencial à accountability.

Para atender ao seu objetivo, o trabalho ancora-se em pesquisa bibliográfica e está

 

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dividido em sete partes, incluindo esta introdução. Na segunda, faz-se revisão do conceito de accountability, destacando-se a relevância da participação cidadã e a essencialidade dos sistemas de controle para sua promoção e apresentam-se alguns mecanismos de controle em sociedades democráticas. Na terceira parte faz-se revisão dos conceitos de bem público e coprodução, incluindo menção a redes e governança pública, com o objetivo de aprofundar o entendimento sobre “quando” e “como” é possível coproduzir um bem público em meio a visões e interesses sociais diversos. Na quarta parte, focalizando a potencial produção compartilhada de informações públicas, discute-se o controle como bem público coproduzido por meio de diversos atores e mecanismos, buscando identificar características comuns nos processos de coprodução, de modo a permitir uma interpretação sistêmica para a relação entre mecanismos de accountability que vá além da classificação horizontal/vertical. Na quinta parte, promove-se uma síntese da discussão precedente. Desta síntese surge um conjunto de indagações que apontam para potenciais e limites da coprodução do controle que levam à identificação de categorias de análise que permitem compreender a coprodução do controle como bem público essencial à accountability e formular questões orientadoras a serem exploradas em futuros estudos. A relevância dessa síntese está na preocupação em esboçar um modelo inicial para a análise do fenômeno da coprodução, além da incorporação de referências teóricas que permitem pensar e analisar de forma mais sistematizada esse processo no âmbito da sociedade brasileira. Na sexta parte são tecidas as considerações finais e na sétima são apresentadas as referências.

2. Accountability, participação e controle Nas democracias representativas, as atividades dos governantes devem estar

circunscritas pelas leis e desenvolver-se dentro dos limites dos interesses democráticos e sociais. No entanto, para além do desafio de identificar tais interesses, não há nada na representatividade que impeça, do ponto de vista legal, os representantes de violar os interesses daqueles que os escolheram. A única conexão possível é a capacidade dos eleitores de exigir que os representantes expliquem o que fazem. Em outras palavras, a única forma de obrigar os representantes a cumprirem as promessas pelas quais foram eleitos é a accountability (ARATO, 2002).

A expressão accountability deriva do latim e é composta por ad+computare, que significa “contar para, prestar contas a, dar satisfação a, corresponder à expectativa de” (HEIDEMANN, 2009, p. 303). Explorando seu significado a partir da língua inglesa, na qual o termo é amplamente utilizado, Pinho e Sacramento (2009) constataram que não existe um termo único em português para expressar o significado de accountability. É inegável, todavia, que a accountability não se resume à questão legal ou à prestação formal de contas.

O’Donnell (1998), ao discutir os mecanismos que dão curso à accountability, propôs a hoje clássica divisão em dois planos de ação. O vertical corresponde ao controle exercido pelos cidadãos sobre governantes e burocratas, incluindo o processo eleitoral, plebiscitos, consultas públicas e ações da sociedade civil e da imprensa para divulgar transgressões e delitos cometidos por agentes públicos no exercício do poder (CENEVIVA, 2006). Já o horizontal se dá por meio do controle mútuo entre os Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário, na forma de freios e contrapesos (checks and balances), e pela atuação de órgãos específicos de controle do poder público, como controladorias e tribunais de contas (CENEVIVA, 2006).

Para Schedler (1999), a accountability expressa a preocupação contínua com a vigilância em relação ao exercício do poder e as consequentes restrições institucionais sobre o seu exercício. E afirma: “Se o exercício do poder fosse transparente, não seria preciso que alguém fosse accountable. A demanda por accountability origina-se da opacidade do poder” (SCHEDLER, 1999, p. 25). Portanto, nas democracias modernas, a sociedade é instada a

 

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responder por uma dupla obrigação: dos governantes, de prestar contas de suas ações aos cidadãos que os escolheram; e dos cidadãos, de manter uma estreita vigilância sobre o uso do poder concedido aos que foram escolhidos para governá-los, o que implica compartilhar poder, em maior ou menor grau.

Assim, para além do voto, cabe ao cidadão participar do exercício do poder como controlador da ação de seus representantes e, para além disso, como coprodutor do bem público. Participação entendida como a ação empreendida por esse cidadão no compartilhamento do poder com agentes públicos no que se relaciona aos interesses de suas comunidades (ROBERTS, 2004) e que será sempre uma ação legítima quando dirigida à construção do bem comum e à estabilidade da sociedade (SALM e MENEGASSO, 2010).

A participação pode ocorrer, pois, de diversas maneiras, entre elas: mediante a demanda por informações públicas e seu monitoramento, a manifestação de opiniões e expectativas, a exigência de satisfação dessas expectativas, a partilha na tomada de decisões e o engajamento direto na produção de bens e serviços.

Para ser efetiva, a participação exige certos fatores, entre eles o ambiente político-institucional propício, o acesso a informações precisas e confiáveis e a vontade cidadã de participar. É dos matizes entre esses elementos que derivam as várias formas e a profundidade da participação (ARATO, 2002; CENEVIVA, 2006). Ou seja, existe uma relação crucial entre participação, cultura política e accountability, algo sobre o que Campos (1990) chamava a atenção há mais de vinte anos, quando o tema ganhou destaque no cenário sociopolítico brasileiro.

Em suma, a accountability é um processo complexo que requer a participação da sociedade. Participação esta que tende a ser mais efetiva na medida em que se reduza a assimetria de informações entre aqueles que exercem o poder e os cidadãos, propiciando a estes últimos informações pertinentes e adequadas, permitindo que suas escolhas e ações políticas sejam mais bem informadas.

A produção dessas informações, porém, não é tarefa fácil. São necessárias condições como organização, estrutura, capacidade técnica, pessoal especializado e competência legal, condições estas presentes nos sistemas de controle institucional do próprio Estado, e que poderão estar a serviço do controle político da sociedade sobre o governo, referenciado como controle social, e do controle político-institucional exercido no interior do aparato estatal, na medida das possibilidades e da efetividade da realização da coprodução. As informações também podem ser produzidas pela própria sociedade, por meio de diversos mecanismos, em maior ou menor grau de interação com a estrutura estatal.

No que se refere ao controle político-institucional, o arcabouço legal vigente no país abriga três instâncias: a do controle político propriamente dito, a do controle judiciário e a do controle administrativo. O controle político, em sentido amplo, se refere ao controle exercido pelas instituições políticasi sobre os atos dos agentes públicos com o objetivo de garantir os superiores interesses do Estado e da sociedade, sendo seus agentes primordiais os parlamentares e cidadãos. Os controles judiciário e administrativo, por sua vez, o primeiro exercido privativamente pelo Poder Judiciário sobre os atos da administração, e o segundo derivado do “poder-dever de autotutela que a Administração tem sobre seus próprios atos e agentes”, caracterizam-se por submeterem-se rigorosamente aos ditames da lei (MEIRELLES, 2007, p. 677 e 717).

De um modo geral, o controle administrativo, quando associado às chamadas avaliações de desempenho, é o que gera informações mais abrangentes e detalhadas relacionadas a aspectos operacionais e/ou de resultados, que são mais efetivas e completas na formação de uma consciência de controle (ROCHA e QUINTIERE, 2008), principalmente ao contar-se com o engajamento e a corresponsabilidade de gestores públicos e de cidadãos. Ademais, a própria participação dos cidadãos nas diversas etapas desse processo, tende a

 

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contribuir para a melhoria da qualidade dos programas avaliados e, por consequência, para o incremento da accountability (CENEVIVA e FARAH, 2006).

Assim, quando os agentes de controle político acessam e usam os vários tipos de informações produzidas por órgãos de controle estatal, abrem-se oportunidades para avanços na qualidade da gestão pública, nos próprios mecanismos de controle e de responsabilização e, mais amplamente, na cultura política do país. Estreitamente ligado ao controle político está o controle social exercido pelos cidadãos e suas organizações. Embora não tenha poder para impor sanções diretas aos governantes durante os mandatos, o controle social tende a tornar-se mais efetivo na medida em que, dispondo de informações pertinentes e de qualidade, influencie e/ou acione mecanismos institucionais de controle e de sanção. Além disso, por mais que avancem as condições institucionais para o controle político-institucional no âmbito do aparato estatal, este tende a ser mais efetivo na medida em que seja constantemente pressionado via controle social.

Portanto, ao se considerar que a produção de informações fidedignas e confiáveis é fundamental para a accountability, e admitindo-se que a produção dessas informações é desafiadora e depende da ação de órgãos e mecanismos de controle estatais e de mecanismos de controle social, os quais podem interagir entre si em maior ou menor grau, justifica-se avançar na concepção de coprodução do controle como bem público essencial à accountability.

3. Bem público e coprodução Para Bobbio (1986) bem públicoii é um bem de todos por estarem unidos, um valor

comum que os indivíduos podem perseguir em conjunto, na concórdia. A raiz do conceito, de acordo com Goyard-Fabre (2002), está nas ideias de vida pública, de poder público e de responsabilidade pública. No império romano, bem público referia-se aos negócios comuns a todos. Na revolução francesa, “público” vincula-se ao “domínio público”, ou seja, àquilo que pertence ao povo como corpo ou comunidade política.

Destas concepções deriva a ideia de espaço público, difundida a partir do trabalho de Jürgen Habermas no qual a opinião pública se constitui como paradigma da comunicação sob as influências cruzadas do conhecimento, da política e dos interesses. Goyard-Fabre (2002) usa a expressão “espaço público” como o lugar onde se organiza e se exerce o poder. Na vida pública e no espaço público, coproduz-se o bem públicoiii.

Em sua teoria clássica das formas de governo exposto em “A Política”, Aristóteles afirma que a polis encontra a razão de sua existência no fato de proporcionar aos indivíduos a possibilidade de se reunirem nas cidades ou comunidades políticas para viver em comum e viver bem. Assim, o bem público é a vivência harmoniosa, em segurança com a resolução dos conflitos, buscando-se atender aos interesses coletivos em detrimento dos interesses privados (ARISTÓTELES, 1998).

Martins (2000) mostra que quando Aristóteles solveu a antiga dicotomia existente entre as posturas radicais de Heráclito (o que existe é apenas o devir) e Parmênides (o que existe é apenas o ser estático), desenvolveu sua teoria hilemórfica (diferenciação entre ser em ato e ser em potência), que serve para explicar o bem como causa final que atua no ser: perfeito é o ente que está em ato, isto é, que tem atualmente todas as perfeições que lhe são próprias. Se não tem alguma dessas perfeições, está em potência de adquiri-la. Ao afirmar o bem em ato e potência, Aristóteles caracteriza o bem público em ato - com suas perfeições e qualidades das circunstâncias presentes - e também em potência - buscando sempre, como um processo, as melhorias, a perfeição.

Para além dos conceitos de bem público e espaço público, o fenômeno da coprodução demanda a compreensão de outro conceito: o interesse público. Embora seja um conceito central nas sociedades democráticas em razão da própria natureza dos governos, não se tem

 

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dele um significado exato. Para Denhardt e Denhardt (2007, p. 67), tentar definir o interesse público é como tentar definir o amor: “está claro que o amor significa diferentes coisas para diferentes pessoas em diferentes circunstâncias”. Ainda que difícil, os autores apontam o interesse público como um processo para estabelecer uma “visão”, uma direção ou um futuro desejado para a sociedade mediante o desenvolvimento de um conjunto de ideias (ou ideais) orientadores desse futuro (DENHARDT e DENHARDT, 2007, p. 67). Já para Bandeira de Mello (2005, p. 53), interesse público é o “interesse resultante do conjunto de interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem”. Ainda assim, o interesse público tem caráter contextualizado e dinâmico, o que exige de cidadãos e governantes canais permanentes de expressão e diálogo em torno desses interesses, o que permitirá definir, nas situações concretas, quais os bens ou serviços públicos devem ser produzidos.

Isso permite antever que a coprodução do bem público constitui um constante desafio, em permanente redefinição, permeado pela aprendizagem e que exige a participação ativa e permanente dos cidadãos organizados coletivamente na vida social, definindo as demandas sociais prioritárias e promovendo compartilhamento do poder com a administração pública (TOMBI, SALM e MENEGASSO, 2009) para realizar essas demandas. O cidadão desempenha, pois, um papel ativo na transformação da realidade, considerando e transformando valores que reflitam interesses e expectativas da sociedade (BRUDNEY e ENGLAND, 1983). Além disso, ao participar, o cidadão passa a acessar e a se utilizar do aparato institucional, o que permite, também, redefinir suas concepções de bem público e ampliar sua capacidade de contribuir para serviços de melhor qualidade.

A coprodução é, portanto, uma estratégia para produção de bens e serviços públicos em rede, pressupondo o engajamento de cidadãos, governantes e organizações que interferem na esfera pública (BRUDNEY e ENGLAND, 1983; DENHARDT e DENHARDT, 2007; MARSCHALL, 2004; SALM e MENEGASSO, 2010), exigindo espaços de interlocução e articulação em torno de práticas compartilhadas (ROBERTS, 2004) e na qual o cidadão torna-se o ponto-chave do processo, visto como o elo capaz de ajudar a definir “o que” e “como” deve ser produzido, e participar da elaboração, avaliação e responsabilização pelo processo.

A coprodução do bem público exige, pois, canais de expressão de diferentes interesses e perspectivas, intermediados pelo diálogo e pela construção de consensos e objetivos comuns, que permitam a ação conjunta e o investimento de recursos e capacidades dos diversos envolvidos. Ação conjunta que implica não apenas consenso, acordo e confiança como pressupostos para a cooperação, mas também conflitos, disputas e articulações negociadas entre os diferentes sujeitos em cena.

Assim, a articulação em rede é crucial para que ocorra a coprodução. Redes entendidas, nesse contexto, como conjunto de atores estatais e não estatais que se unem e se estruturam em torno de valores e interesses compartilhados, formal e/ou informalmente, determinando a incorporação de atores não estatais no processo político e exigindo arranjos institucionais e estratégias de governança pública que favoreçam as parcerias entre governo e sociedade (RHODES, 2006). Governança pública entendida como alternativa à gestão baseada na hierarquia, ensejando trabalho conjunto de atores públicos e coordenação e cooperação entre diversas organizações associativas, empresariais e governamentais (KISSLER e HEIDEMANN, 2006).

Para Kissler e Heidemann (2006), a existência de valores compartilhados é essencial para que atores com interesses parcialmente conflitantes envolvam-se em processos de governança pública, ainda que a motivação para a cooperação possa relacionar-se aos possíveis ganhos esperados com a participação. Fleury e Duverney (2007) observam que a construção de uma rede pressupõe valores compartilhados que vão além dos objetivos particulares, os quais, em certa medida, podem permanecer em cena ao longo do processo.

 

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Assim, seria limitada a ideia de que a participação de certo ator é consequência de suas carências ou exclusivamente de seus objetivos pessoais ou organizacionais. Embora estejam presentes os interesses individuais, a participação na rede tende a ampliar perspectivas e promover aprendizagem social, levando à identificação e à construção de interesses públicos.

Uma rede pode ser vista como a representação física de uma vontade política de articulação e de interesses comuns, constituindo matéria prima para a governança pública. Uma vez ocorrendo a articulação da vontade política em redes e viabilizando-se estruturas e estratégias de governança pública, amplia-se o potencial para a coprodução de bens e serviços públicos. As redes possibilitariam a ação conjunta dos atores na resolução de problemas, os quais possivelmente não seriam resolvidos isoladamente, ou cuja solução isolada seria mais onerosa (RONCONI, DEBETIR e DE MATTIA, 2011).

Portanto, é possível coproduzir o bem público em meio a visões e interesses sociais diversos, uma vez que: haja valores compartilhados, prevaleça o interesse público, haja intermediação pelo diálogo e construção de consensos e objetivos comuns, ocorram condições necessárias à participação do cidadão, haja articulação em rede de diferentes atores interessados e, como pano de fundo, sejam produzidas e divulgadas informações públicas qualificadas.

4. Coproduzindo a informação e o controle: da relação horizontal-vertical

para a produção sistêmica A possibilidade de se obter e divulgar informações públicas qualificadas, com

transparência e fidedignidade é uma das condições para o bom desempenho do controle social e para a efetividade dos mecanismos de accountability como um todo (ABRUCIO e LOUREIRO, 2005). O uso dessas informações para tomar decisões, influenciar o desenho de políticas públicas e permitir premiação ou sanção dos agentes públicos tende a contribuir para a ampliação da qualidade da administração pública e da qualidade de vida da população. Assim, informações públicas qualificadas (aí incluídas a sua produção e divulgação) também podem ser consideradas bens públicos.

A produção e a difusão de informações públicas vêm sendo debatidas internacionalmente nas últimas décadas, relacionadas a temas como governo eletrônico, dados abertos e governo aberto (open government). Documento pioneiro no tema é a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (ONU, 2002), ratificada pelo Brasil, que incentiva o fomento à participação da sociedade civil e seus movimentos organizados, bem como o acesso eficaz das pessoas às informações públicas e sobre a atuação dos governos. Esta Convenção passou a integrar o ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei nº 12.527/11 – Lei de Acesso à Informação (BRASIL, 2011), que gerou intenso debate no país e passa a valer a partir de maio de 2012.

Tradicionalmente, as informações públicas são produzidas no âmbito do aparato estatal, notadamente por órgãos de controle institucional, como os tribunais de contas, e são direcionadas prioritariamente a outros órgãos estatais. Todavia, a própria sociedade pode e deve contribuir para a produção de informações técnicas qualificadas, de dados e indicadores que auxiliem o monitoramento de promessas políticas, planos de governo, políticas públicas e prestação de serviços. Essa contribuição pode ocorrer de diversas maneiras e em diferentes graus de engajamento, incluindo consulta, demandas específicas, debate sobre dados, produção independente para contraposição de dados e análises e encaminhamento de denúncias. Ao envolverem-se na coprodução de informações, os cidadãos interagem com servidores públicos e representantes políticos de diversos órgãos e instâncias e potencialmente promovem interações entre eles. Podem igualmente promover mudanças em suas maneiras de agir e até mesmo em seus papeis, o que revela características de sistema dinâmico e as mudanças que podem ocorrer na atuação dos atores sociais em cada contexto.

 

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Relembrando a clássica distinção dos mecanismos de accountability proposta por O´Donnell (1998), verifica-se que essa metáfora geométrica, embora amplamente citada e relevante para se compreender a accountability, revela-se limitada. Tanto no sentido horizontal, para representar assimetrias de poder que ocorrem entre os agentes públicos e os mecanismos de controle utilizados no âmbito do aparato estatal, como no eixo vertical, pois nem sempre reflete a diversidade de papéis e formas de interação dos atores sociais nas relações Estado-sociedade (CENEVIVA, 2006). Por esta razão, essa visão corresponderia ao primeiro estágio de articulação entre os mecanismos de accountability, conforme mostrada no estágio 1 da Figura 1.

Ao se admitir que a produção, a difusão e o uso de informações qualificadas para exercício do controle pode ser realizada por agentes estatais e por cidadãos, os mecanismos de controle vertical e horizontal podem interagir entre si, gerando novas formas e um novo eixo de controle sobre a ação do Estado e dos governos, o que corresponderia ao segundo estágio de articulação entre esses mecanismos de accountability (estágio 2 da Figura 1). Figura 1 - Representação dos mecanismos clássicos de accountability (1) e da interação entre os mecanismos (2)

Fonte: Elaboração dos autores No terceiro estágio, os cidadãos, especialmente quando organizados em movimentos,

redes e associações, podem demandar dos órgãos institucionais informações mais apropriadas às necessidades de controle político e, ao mesmo tempo, produzir informações que permitam dialogar, contrapor e questionar informações oficiais, apontando para novas questões e interesses da população. Além disso, cidadãos e governantes podem atuar em conjunto, em papéis complementares e interrelacionados, na produção das informações e do controle. O conjunto de informações produzidas pode servir tanto aos cidadãos como aos órgãos estatais para tomar decisões, alterar cursos de ação, exercer pressão, demandar justificativas, definir prêmios e punições.

Como resultado, haverá múltiplas interações dos mecanismos de controle institucional e de controle social e seus agentes, influenciando-se mutuamente, demandando e produzindo informações e estabelecendo a coprodução do bem público controle (estágio 3 na Figura 2).

Figura 2 – Representação das múltiplas interações dos mecanismos de accountability

Fonte: elaboração dos autores

 

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Neste estágio, são produzidos novos tipos de informações, que podem ser similares

aos produzidos atualmente pelo controle institucional ou assumir caráter diferenciado, inovador. Este tipo de estrutura se aproxima do padrão em rede, o que gera novos desafios em termos de governança pública, inclusive por serem menos claras quais as responsabilidades de cada um e os sentidos do controle de um sobre o outro. O que remete à constatação de Denhardt e Denhardt (2007) de que a accountability, nessa perspectiva, “não é algo simples”.

A coprodução do bem público controle, uma vez obedecendo a uma lógica sistêmica, tem sua qualidade definida pelo desempenho de cada parte e pela qualidade das relações entre elas. Sendo assim, se a articulação entre as partes é frágil, prejudica-se o potencial de coprodução.

Uma vez que há diferentes possibilidades de interação, os papéis dos envolvidos podem variar de uma situação para outra, assim como o centro do processo de controle torna-se móvel. O que não significa que não haja uma estratégia de governança e que não sejam definidas regras, critérios, prazos, responsáveis. Mas as próprias regras, uma vez definidas, são controladas, avaliadas e passíveis de mudança, como fruto dessa interrelação.

A imagem de um centro móvel e a presença de diferentes atores e mecanismos de produção de informações, controle e accountability, em lugar de uma visão centrada nos mecanismos de controle do Estado e sobre o Estado, nos aproximam da visão muldimensional proposta por Ramos (1981) para a análise dos sistemas sociais. Este autor propunha a superação do paradigma econômico (centrado no mercado) em favor do paradigma paraeconômico (multicêntrico), reconhecendo que a sociedade é constituída por uma variedade de enclaves sociais (um deles, o mercado), os quais atuam em diferentes atividades e por meio de formas diversas. O papel dos governos seria promover condições para que ocorressem transações entre os diversos enclaves.

No mesmo sentido, argumentamos que a coprodução do controle é favorecida e favorece as transações entre diversos enclaves, enfraquecendo a centralidade do Estado, por um lado, porém fortalecendo o controle, ao envolver cidadãos que optam por engajar-se, por outro. Superando a condição de Estado como tutor e de cidadãos como tutelados, observada por Campos (1990) no contexto brasileiro ao final dos anos 1980. Nesse sentido, Ramos (1981) observa que, no mundo social, há lugar para a atuação individual livre de regras e prescrições impostas. Cidadãos mais livres de papéis e padrões impostos por uma sociedade superorganizada podem redefinir suas identidades, expressar seus interesses e articular-se com outros para, em conjunto, produzirem os bens e serviços que desejam. Visando estimular essa conduta cidadã, em uma “sociedade multicêntrica”, o autor defende ser necessário um tipo de Estado que se oriente não apenas por objetivos definidos pelo mercado, mas também de cenários sociais adequados à atualização pessoal, a relacionamentos de convivência e a atividades comunitárias dos cidadãos (RAMOS, 1981).

Tal condição é exigente não apenas para burocratas, políticos e para o aparato estatal. O é também para o cidadão, que perde a possível condição de vítima, de acomodação, de passividade ou de observação, apenas. O cidadão passa a ser corresponsável pelo processo e pelos resultados.

A coprodução do controle depende, portanto, da articulação entre: i) diversos atores sociais, órgãos e aparatos administrativos; ii) elementos técnicos e políticos e; iii) elementos de caráter institucional-legal e de caráter informal. Compõem, assim, um sistema político-institucional que depende do desempenho e da articulação de cada uma de suas partes. Conforme observam Child e McGrath (2001), em sistemas interdependentes, para analisar o papel, as estratégias e o desempenho de cada um de seus integrantes, é necessário observá-los nos demais envolvidos, pois a função de qualquer parte de um sistema só pode ser compreendida em referência às demais partes.

 

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Dada a característica de rede sistêmica da coprodução do bem público controle, o desempenho de cada mecanismo tende a ser mais pleno na medida em que se avance, simultaneamente, em capacidade técnica, maturidade política e na articulação entre os diversos atores e mecanismos envolvidos em sua produção, potencialmente gerando avanços na democracia, tanto em termos de cultura política como de suas instituições. A qualidade e a efetividade dos mecanismos de controle dependem, pois, de um processo contínuo de aprendizagem e amadurecimento político e institucional, marcado pela articulação sistêmica entre os vários atores e mecanismos.

Estes e outros argumentos ora desenvolvidos fizeram surgir um conjunto de indagações que se impuseram, instigando a sua investigação em experiências que vem ocorrendo no contexto brasileiro e que apontam para potenciais e limites da coprodução do controle. Além das perguntas, revelam-se algumas pistas, o que permite esboçar uma primeira categorização, apresentada a seguir.

5. Questões que se impõem A relevância dessa síntese está na preocupação em esboçar um modelo para a análise

do fenômeno da coprodução, além da própria incorporação de referências teóricas que permitem pensar de forma mais sistematizada esse processo no âmbito da sociedade brasileira.

Analisando as questões que sobressaem desta abordagem, e que merecem pesquisas e estudos aprofundados que as qualifiquem e respondam, pode-se agrupá-las em cinco categorias de análise, detalhadas na Figura 3, a seguir:

Figura 3: Categorias preliminares para análise de experiências de coprodução do controle

Categorias Questões gerais a) Político-cultural Possibilidades e formas de incorporação da accountability na cultura política brasileira b) Valorativa Significado e consequências de se considerar o controle como bem público c) Sistêmica Possibilidades e formas de articulação sistêmica dos mecanismos de accountability d) Organização Compartilhamento de valores, articulação em redes e governança para a coprodução e) Produção Possibilidades e formas da coprodução específica do controle

Fonte: elaboração dos autores A primeira categoria de análise, a político-cultural, refere-se à incorporação da

accountability na cultura política brasileira, cuja compreensão é fundamental na medida em que oferece as bases para todo o processo subsequente de coprodução de informações e do controle como bem público.

É certo que a partir da CF/88 o legislador brasileiro tem se preocupado em dotar o país de instrumentos de accountability. É certo, também, que a sociedade tem se mobilizado, por vezes motivada por escândalos de corrupção e mau uso do dinheiro público, para superar certo desgaste de formas tradicionais de participação, buscando agir de modo mais qualificado técnica e politicamente, renovando modos tradicionais de controle social e interagindo com formas institucionalizadas de controle na promoção da accountability, de modo sistêmico e dinâmico (PINHO e SACRAMENTO, 2009; SCHOMMER e MORAES, 2010). Ademais, é possível perceber que desde a década de 1980 vêm ocorrendo avanços no contexto político do país (FARAH, 2001; PINHO e SACRAMENTO, 2009; SERRA, 2010), que contribuem para que accountability seja tema mais presente no debate acadêmico e político e seja perseguida no desenho de regras institucionais e práticas de gestão.

Porém, para além desses esforços, é fato que a incorporação da noção de accountability na democracia brasileira é dificultada por características históricas que marcam a relação Estado-sociedade e por fragilidades da cultura política, originada numa estrutura patrimonialista que até hoje a caracteriza e representa um pesado fardo, antepondo-se a

 

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mudanças mais céleres. Portanto, ainda cabe perguntar, em relação a possíveis experiências a serem analisadas:

Em que aspectos o esforço legislativo, as mobilizações sociais e outras experiências demonstram avanços na cultura política brasileira, no sentido da incorporação da noção de accountability às práticas dos agentes públicos e dos cidadãos?

Em que aspectos esses exemplos reproduzem ou superam características arcaicas da cultura política brasileira, como corporativismo, elitismo e patrimonialismo?

Que experiências/atividades/ações/órgãos brasileiros revelam traços, indícios e/ou evidências do processo de aprendizagem social relativo à participação, ao engajamento cidadão e à abertura para a coprodução do bem público controle?

Como as lideranças sociais, empresariais, políticas e públicas envolvidas nessas experiências veem as novas leis relacionadas diretamente à accountability, a exemplo de regras dos tribunais, lei de acesso à informação, lei da ficha limpa, entre outras?

Admitindo-se que o processo não se resume à legalidade, assim como a lei não garante a mudança de posturas e práticas, de que modos se expressa a vontade geral que conduz a novas leis? E como as mudanças legais admitem avaliação, aprendizagem e mudança, no sentido da eficácia e efetividade?

Se accountability trata, primordialmente, de responder a expectativas, de que maneira ocorre a identificação das expectativas dos interessados e a oferta de respostas a elas nessas experiências?

Qual o perfil dos cidadãos e servidores públicos envolvidos nas experiências analisadas? Em que aspectos seu perfil e suas práticas expressam processo em curso no país de aprendizagem social e mudança na cultura política? Ou em que aspectos revelam tendências elitistas, corporativistas e conservadoras?

A segunda categoria de análise é a valorativa. Refere-se ao significado e à significação de se ter em conta o controle como bem público. Envolve não só o significado de se considerar o controle como bem público, também o valor dessa significação e suas consequências. Algumas questões relevantes a ela relacionadas são:

Quem e como se definem quais informações devem ser produzidas? Quais interessam a quais públicos? Qual a característica desse bem público?

O que as novas leis relativas ao acesso à informação e iniciativas de Open Government nos dizem sobre o entendimento do controle como bem público?

Os tribunais de contas, as controladorias e outros órgãos de controle tem se voltado mais ao controle de resultados, uma vez que a sociedade expressa essa expectativa?

Por que a sociedade, quando atua via observatórios sociais e redes, por exemplo, sente-se corresponsável pela produção e monitoramento de informações sobre a ação de políticos, governantes e servidores?

A terceira categoria de análise é a sistêmica, relativa à articulação entre os mecanismos de accountability. Como visto, essa articulação é uma das condições para o bom desempenho do controle social e para a efetividade dos mecanismos de accountability como um todo (ABRUCIO e LOUREIRO, 2005). Por outro lado, a articulação em rede do conjunto de atores estatais e não-estatais que demandam, produzem e divulgam informações é crucial para que ocorra a coprodução do controle. Daí a importância de se conhecer e entender as formas pelas quais essas interações são possíveis e as consequências delas decorrentes. Algumas questões relevantes em relação a essa dimensão podem ser pesquisadas:

Quais experiências mostram sobre a articulação de diversos mecanismos de accountability? Como ocorre? Quem toma a iniciativa? Que resultados determinam?

Como estimular o acesso e o uso das informações produzidas no âmbito do aparato estatal pelos agentes de controle político – parlamentares e cidadãos? De que modo essas informações influenciam o processo político?

 

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Como tornar o controle administrativo mais abrangente e mais permeável à coprodução?

Os cidadãos e suas organizações envolvidos nas atividades de controle percebem alterações em termos de accountability na medida em que mecanismos de controle administrativo, parlamentar e judicial interagem com o controle social, por exemplo? O engajamento desses cidadãos em atividades de controle de resultados gera efeitos sobre o controle parlamentar e administrativo, por exemplo?

A aproximação de instâncias de controle social dos mecanismos de controle administrativo, judicial e de resultados tende a qualificar o controle social que exercem?

Quais os principais obstáculos enfrentados para a articulação dos diversos mecanismos de accountability? Há resistências à articulação? Que tipos de argumentos são utilizados para resistir à articulação (por exemplo, a ideia de que os cidadãos não são tecnicamente qualificados para participar da coprodução do controle)?

Quais as estratégias empregadas e quais os seus níveis de sucesso/insucesso? A quarta categoria de análise é a de organização. Essa categoria tem em perspectiva

as redes e os valores compartilhados e a governança para a coprodução. Algo desafiador, na medida em que, ao se coproduzir em rede, são redefinidos papeis, responsabilidades e maneiras de atuar, o que se fundamenta no valor atribuído pelos integrantes à colaboração, e também exige novas regras e estratégias de governança. Estas regras e estratégias costumam fugir às práticas tradicionais de administração pública e de administração em geral, mas não podem ignorá-las, tendendo-se, assim, a combinações entre práticas inovadoras e tradicionais.

Na coprodução do controle, supõe-se que cada envolvido emprega no processo suas competências específicas, seus recursos, sua capacidade de trabalho, enquanto desenvolve outras competências, decorrentes da produção conjunta. Inclusive a possível desconfiança com o processo de coprodução pode ser revista no seu decorrer, bem como podem ocorrer frustrações de expectativas e gerar-se efeito inverso, reforçando-se crenças negativas quanto ao envolvimento dos cidadãos e à articulação entre técnica e política na administração pública. Algumas questões que podem ser exploradas em casos empíricos:

Quem integra as redes? Quais valores e interesses compartilham? Quais as características da governança no sentido da coprodução do controle nas

experiências analisadas? Quais as novidades em formas e estratégias de participação? Quais os avanços e os

obstáculos? Quem participa das decisões? De que maneira? Há espaços de diálogo e deliberação conjunta, com participação ativa daqueles diretamente envolvidos na produção e uso da informação em questão? Nesse processo de articulação, há possibilidade de deliberação coletiva sobre os instrumentos formais de gestão, investimentos e atividades a serem realizadas?

De que maneira cada parte interage com diferentes atores e mecanismos de controle? Em que aspectos percebem que podem avançar?

Como prestam contas sobre os bens/informações produzidas de modo compartilhado?

Finalmente, a quinta categoria é a de produção, cujo foco está nas experiências concretas e específicas de coprodução do controle, de forma a absorver e sistematizar as lições que elas nos oferecem. Algumas questões a serem investigadas são:

Há informações produzidas em colaboração entre órgãos de controle institucional e organizações da sociedade civil? Quais? Como? Quais as responsabilidades de cada parte?

Quais as práticas presentes nessas experiências que revelam o controle cidadão sobre o poder? De que maneiras?

Há indícios de que os órgãos de controle institucional alteraram conteúdos e formas de gerar e divulgar informações por influência de cidadãos e suas organizações?

 

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Órgãos institucionalizados de controle utilizam canais de consulta a outros órgãos/instâncias de controle e à sociedade sobre as informações que produzem?

Há canais sistemáticos de avaliação de suas práticas perante seus públicos de interesse?

As informações produzidas por determinado órgão de controle dentro do aparato estatal são utilizadas por outros atores sociais? Como se dá essa utilização? Sob quais condições?

Há envolvimento de instituições de pesquisa, a exemplo de universidades, no monitoramento e análise das informações produzidas pelos órgãos institucionais de controle? Nessas iniciativas, há canais de diálogo entre os analistas externos e os servidores responsáveis pela produção das informações, no sentido do aperfeiçoamento dos mecanismos?

A partir dessas categorias de análise e questões orientadoras da discussão do controle

como bem público essencial à accountability, esquematizadas na Figura 5, julga-se possível explorar experiências que vem ocorrendo atualmente no contexto político-institucional brasileiro. Observa-se que a categoria político-cultural permeia e fundamenta as demais, as quais se relacionam e influenciam mutuamente.

Figura 5: Categorias e questões que balizam a discussão sobre a coprodução do controle

Fonte: elaboração dos autores

Outras questões tendem a surgir na medida em que se aprofunde o conhecimento sobre

as experiências, o que permitirá revisão e refinamento do modelo, bem como exigirá novo aprofundamento dos conceitos que permitiram formular essa primeira versão. Evidencia-se a natureza in progress das práticas de coprodução do controle e de accountability e da própria pesquisa sobre o tema, o que torna instigante e desafiadora a investigação.

6. Considerações Finais O entendimento de que, idealmente, a interação contínua e dinâmica entre formas de

controle institucionalizadas e formas de controle menos institucionalizadas é potencialmente mais efetiva na promoção da accountability do que os mecanismos estatais ou de controle social atuando isoladamente centra-se na perspectiva de que, assim, se está forjando a

 

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coprodução entre Estado e sociedade. Sua aproximação tende a gerar melhores resultados, tanto no âmbito dos órgãos institucionalizados de controle da atividade governamental, como no âmbito do controle social das atividades do governo.

Nesse sentido, tendo como objetivo explorar a noção de controle como um bem público essencial à accountability que pode ser coproduzido por diferentes atores e mecanismos, promoveu-se uma pesquisa bibliográfica para fundamentar e discutir a ideia de controle como bem público. Inicialmente, mediante revisão do conceito de accountability, destacando-se a relevância da participação e a essencialidade dos sistemas de controle para sua promoção. A seguir, mediante apresentação do conceito de coprodução do bem público e identificação de suas características, fazendo-se breve revisão dos conceitos de bem público e coprodução, passando pelas noções de rede e governança pública, com o objetivo de aprofundar o entendimento sobre “quando” e “como” é possível coproduzir.

A partir desse pano de fundo, surgiram dois tipos de resultados. Em primeiro lugar, a compreensão da evolução do processo de coprodução a partir da demonstração da interação sistêmica entre mecanismos de accountability. Em segundo, uma categorização das questões relevantes para compreender e incorporar a coprodução do controle como bem público essencial à accountability, além da proposta de questões que poderão servir como vetores de futuras pesquisas empíricas.

Por fim, considerando a importância do tema no contexto nacional, cabe lembrar que para ampliar e acelerar os avanços políticos da sociedade brasileira e dar mais consistência à cidadania há que se insistir na criação e implantação das condições institucionais e na promoção de ações de educação política necessárias ao desenvolvimento dos ideais democráticos e seus instrumentos de controle. Pois quando a sociedade organiza-se para demandar informações e novas regras de controle institucional e encontra ou conquista abertura para tal por parte do Estado, os cidadãos demonstram uma inegável vontade de atualização pessoal, de atuação social e de contribuição para a produção de bens e serviços públicos.

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                                                            i Instituições políticas podem ser entendidas como órgãos permanentes por meio dos quais se exerce o poder

político. A expressão instituições políticas engloba, além dos poderes institucionalizados, as organizações que participam do poder ou nele influem, a exemplo dos partidos políticos, dos sindicatos de classe, dos grupos de interesse, das associações profissionais, da imprensa e outras. 

ii Embora haja autores que distingam bem público de bem comum, a exemplo de Bobbio (1986), aqui ambos são considerados como sinônimos. 

iii A expressão bens públicos também é utilizada sob o prisma material, significando os bens que constituem o patrimônio da administração pública direta e indireta, incluindo o mar, os rios, ruas, praças, estradas, parques, bibliotecas, teatros, escolas, fóruns, quartéis, museus, repartições públicas, terras devolutas etc. (Código Civil Brasileiro, art. 98 e 99). Pode, ainda, designar o conjunto de bens e serviços de cuja fruição ninguém está (ou poderia estar) excluído, e cujo consumo por um indivíduo não diminui ou impede o consumo pelos demais (SANTOS, 2003). Neste trabalho, utiliza-se a expressão bem público em seu sentido político, que pode ou não adquirir materialidade, em situações contextualizadas.