A Correspondência de Simón Bolívar

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HISTÓRIA, São Paulo, 28 (1): 2009 715 A correspondência de Simón Bolívar e sua presença na literatura: uma análise de O General em seu labirinto de Gabriel García Márquez 1 Fabiana de Souza FREDRIGO Resumo: Simón Bolívar, uma das lideranças mais importantes das independências na América do Sul de colonização espanhola, deixou um epistolário com 2815 cartas. Ao partir do propósito em expor o projeto narrativo epistolar, um dos temas de destaque, no decorrer da leitura, foi o da renúncia do general. As diversas solicitações de renúncia ao cargo administrativo e as justificativas que as acompanhavam levaram-me à análise do que denominei por memória da indispensabilidade. Depois da investigação desse discurso no epistolário, as relações com a literatura e a biografia foram fundamentais para ampliar a compreensão acerca da composição dessa memória da indispensabilidade nas epístolas. Para este artigo, pretende-se cotejar as cartas de Simón Bolívar e o romance de Gabriel García Márquez, O General em seu labirinto. A hipótese é a de que o texto literário, além de usar o epistolário bolivariano para construir seu personagem e a cena romanesca, acrescenta possibilidades explicativas sobre o projeto de memória conduzido pela escrita de cartas, na mesma medida em que reforça o culto ao general Libertador. Palavras-chave: Memória; Cartas; História; Literatura. A correspondência enquanto gênero se caracteriza pela interrupção, pela exigência de continuidade, pela pausa entre uma e outra carta, pela obsessão pelas cartas extraviadas e pela angústia do corte. [...] Professora Doutora – Departamento de História – Faculdade de História – Universidade Federal de Goiás – UFG – 74001-970 – Goiânia – GO – Brasil. E-mail: [email protected]

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  • HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 715

    A correspondncia de Simn Bolvar e sua presena na literatura: uma anlise de O General

    em seu labirinto de Gabriel Garca Mrquez1 Fabiana de Souza FREDRIGO

    Resumo: Simn Bolvar, uma das lideranas mais importantes das independncias na Amrica do Sul de colonizao espanhola, deixou um epistolrio com 2815 cartas. Ao partir do propsito em expor o projeto narrativo epistolar, um dos temas de destaque, no decorrer da leitura, foi o da renncia do general. As diversas solicitaes de renncia ao cargo administrativo e as justificativas que as acompanhavam levaram-me anlise do que denominei por memria da indispensabilidade. Depois da investigao desse discurso no epistolrio, as relaes com a literatura e a biografia foram fundamentais para ampliar a compreenso acerca da composio dessa memria da indispensabilidade nas epstolas. Para este artigo, pretende-se cotejar as cartas de Simn Bolvar e o romance de Gabriel Garca Mrquez, O General em seu labirinto. A hiptese a de que o texto literrio, alm de usar o epistolrio bolivariano para construir seu personagem e a cena romanesca, acrescenta possibilidades explicativas sobre o projeto de memria conduzido pela escrita de cartas, na mesma medida em que refora o culto ao general Libertador. Palavras-chave: Memria; Cartas; Histria; Literatura.

    A correspondncia enquanto gnero se caracteriza pela interrupo, pela exigncia de continuidade, pela pausa entre uma e outra carta, pela obsesso pelas cartas extraviadas e pela angstia do corte. [...]

    Professora Doutora Departamento de Histria Faculdade de Histria Universidade Federal de Gois UFG 74001-970 Goinia GO Brasil. E-mail: [email protected]

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    A escrita um resumo da vida, condensa a experincia e a torna possvel (PIGLIA, 2006: 46-51).

    I.

    Simn Bolvar, um dos mais celebrados lderes das independncias na Amrica do Sul de colonizao espanhola, foi um dedicado missivista2. A escrita de cartas serviu a um propsito muito maior do que a comunicao cotidiana, necessria num cenrio de guerra. Ela representou a aposta na possibilidade de controlar o tempo, transformando o sujeito missivista num indivduo singular porque ele se mostrou capaz de significar sua prpria trajetria, fundindo-a com o destino da Amrica liberta. Ao fazer isso por meio de sua correspondncia, o general emprestou sentido s relaes e experincias de todo um grupo: os militares que o acompanharam nas campanhas pela independncia e, em seguida, foram os polticos estreantes das repblicas emergentes, no sculo XIX.

    Um tema fundamental no epistolrio bolivariano refere-se aos pedidos de renncia do cargo administrativo. No se sabe ao certo o nmero de renncias oficialmente encaminhadas por Simn Bolvar ao Congresso. Na anotao de Gabriel Garca Mrquez, as renncias foram tantas que se incorporaram ao cancioneiro popular. Em todo caso, possvel ter a dimenso da constncia dessa solicitao pela prpria explicao do missivista, quando encaminhava mais um de seus pedidos. Numa carta endereada ao presidente do Congresso da Gr-Colmbia, em 1824, Simn Bolvar escrevia:

    Por quatorze anos consecutivos tenho me submetido com o entusiasmo mais sincero ao servio da causa da Colmbia. Apenas tenho visto essa triunfante em suas diferentes pocas, quando acreditei ser meu dever renunciar ao mando. Assim o fiz pela primeira vez em dois de janeiro de oitocentos e quatorze em Caracas. Em oitocentos e dezenove em Angostura, em oitocentos e vinte e um em Ccuta, e mais tarde no mesmo Congresso

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    quando fui nomeado presidente. Agora a repblica da Colmbia est toda livre, com exceo de um banco de areia em Puerto Cabello (Carta para Congresso da Gr-Colmbia. Pativilca, 09/01/1824. Tomo IV, R. 1.035. Rascunho)3.

    Ao aparecer prematuramente no epistolrio e manter-se

    tema invarivel, a renncia consistiu-se no instrumento por meio do qual o general pde testar sua legitimidade. fundamental que se tenha claro que, embora restrito ao grupo, o discurso da renncia enquanto recurso epistolar alcana uma abrangncia e uma materialidade que desguam no projeto de memria a ser consumido pela posteridade. a partir da fuso entre a necessidade de legitimidade, determinada pelo jogo poltico do presente, e o desejo de memria, delimitado pela perspectiva de futuro, que o missivista constri e solidifica a memria da indispensabilidade4.

    Premido pela necessidade e pelo desejo, Simn Bolvar partiu para o exlio derrotado por seus contemporneos, sem, contudo, assistir presena e perenidade de sua memria na histria essa foi uma de suas maiores vitrias. Simn Bolvar permanece como importante liderana no por ter libertado parte da Amrica, afinal, essa liberdade tantas vezes foi contestada e desdenhada pelos inimigos, amaldioada pelos povos das nascentes repblicas e fruto de desencantamento por parte do prprio missivista. Simn Bolvar permanece na memria social e poltica latino-americana por conta das expectativas e das esperanas que geraes posteriores puderam cultivar em torno de sua figura e da verso histrica dada sua causa.

    A figura do lder, construda ainda em vida por esse ator missivista, responde aos elementos que constituem, no imaginrio ocidental, os heris: singularidade, exemplaridade, abnegao, desengano, proscrio e, por fim, vitria gloriosa. Esses elementos so os mesmos que possibilitam edificar o ciclo de admirao, que sustenta o culto: o heri abandonou tudo que lhe importava em nome de uma causa, lutou vigorosamente por tal causa e, apesar dos inimigos ferrenhos, contava com a

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    providncia divina, pois seria seu destino realizar a causa, vivenciou momentos de desengano e abandono que, embora tenham lhe causado ressentimento, no o permitiram abandonar a causa que era seu destino e, por fim, alcanou glrias eternas concedidas pelas geraes futuras que puderam desfrutar das benfeitorias emergentes com a vitria justa do heri. Com interesses polticos capazes de ressaltar esses elementos constitutivos do imaginrio e a ajuda do trabalho historiogrfico, dentre outros, a figura do general em seu labirinto foi alada categoria de referncia obrigatria na memria do continente5.

    II.

    Gabriel Garca Mrquez percebeu a importncia do uso da renncia para Simn Bolvar e tentou compreend-lo: para o literato, o ato constante de explorar a renncia ao cargo administrativo identificava a ambio pessoal do general. Partindo desse interesse literrio numa figura histrica, a pretenso deste artigo cotejar o epistolrio bolivariano e o romance de Gabriel Garca Mrquez, O General em seu labirinto. A hiptese a de que o escrito literrio usa o epistolrio bolivariano para construir o personagem Bolvar em seus ltimos dias e, ao fazer isso, acrescenta possibilidades explicativas sobre o projeto de memria conduzido por meio da escrita de cartas.

    Ao pensar sobre as relaes entre histria e literatura, essencial anotar que a construo literria engendra forma distinta para tornar o real tangvel, se comparada construo de sentido histrico. Para a literatura, possvel referenciar-se em uma leitura do mundo cujo anseio estabelecer ligaes, tambm, com o que nem sempre compreensvel. Nesse sentido, estranhamente primeira vista, a literatura pode transformar o fantstico em cognoscvel. Se o seu desejo lanar luz compreenso, essa compreenso no exige uma narrativa ordenada que pactue com a verdade. Apresentar os homens e o

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    cenrio que os circunda pode ser objeto trivial, tratando-se, muito particularmente, da literatura contempornea. A densidade psicolgica e a inverso de sentido narrativo passam a ser os trunfos para se contar uma boa histria. Uma boa histria pode ser contada de maneiras distintas, com finais imprevisveis e verdades questionveis.

    A literatura contempornea admite sem problema e sem dilema que a vida no pode se submeter arte, ento, a grandiosidade da experincia vivida, se condensada na escrita, deve causar choque e estranhamento. Portanto, no funo da literatura repor peas, cenrios e pessoas em lugar determinado: os vestgios da experincia servem para aprofundar a sensao de nufrago nos contemporneos. Para a histria, a relao com o incompreensvel no tem como ir ao encontro do desejo orientador em explorar uma possvel racionalidade a ser aplicada ao acontecimento para que esse se encadeie a uma referncia contextual que, por sua vez, faa do tempo o articulador de sentido entre passado e presente. Tais comparaes entre histria e literatura impingem-lhes, respectiva e diametralmente, o domnio da verdade (cincia) e o da fico (arte). Entretanto, tal dicotomia no simples e no deve ser tomada como regra para orientar o conhecimento engendrado por essas escritas, mesmo considerando a presena do inverossmil como importante nutriente para a criao literria.

    O pacto entre a literatura e sua criao advm da possibilidade criativa que imagina o mundo: tudo pode caber numa realidade inventada. Para a literatura, os acontecimentos podem literalmente ser inventados ou tomados emprestados da histria, dependendo do gnero literrio. Nessa ltima circunstncia, a histria, transformada em histrias, pode servir de palco a roteiros inusitados, cujo objetivo, muitas vezes, fazer o leitor embaraar-se entre o real vivido e o real apreendido no casual o fato de a aproximao do romance histrico ser acompanhada por uma dvida corrosiva que obriga o leitor a divisar o que aconteceu mesmo e o que fruto da mente criativa do narrador. Desse modo, o compromisso

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    literrio de outra ordem, quando comparado ao compromisso histrico.

    A despeito de todas as crticas que se possa fazer busca pela verdade, ela ainda partcipe na construo de sentido histrico, permanecendo no horizonte da escrita da histria, apesar das discusses contemporneas indicarem a capacidade de (re)construo do historiador. H diferenas entre admitir que o fato contado compe-se pela retrica, indicando que a estrutura lingustica no objetiva e imparcial, e considerar que o fato contado pode ser todo ele inventado, apontando para a importncia do estilo de escrita e da capacidade de se comunicar por meio de um texto que prescinde de associaes ordenadas com o que se conhece.

    Ainda mais: o tempo um ordenador para a histria, embora ele no seja restritivamente o tempo cronolgico. Apesar de estar ciente quanto ao deslocamento constante da fronteira entre presente e passado, uma vez que o instante que mal acabou de se viver virou memria, o historiador no se desvinculou da necessidade de apontar recortes temporais ordenados. Assim mesmo, o historiador controvertido assinala a impossibilidade de controle: os tempos se confundem, conduzindo os homens a uma certeza desconcertante, a existncia do devir que embaralha o tempo se a histria a cincia da mudana, a mudana aponta para a coisa que no mais, que est no decurso. O escrito literrio pode zombar do tempo e no h melhor ambiente para a percepo do devir do que a literatura. Um texto literrio pode, simplesmente, suprimir o tempo ordenado, pode ainda apresentar em suas pginas a mecnica da memria, sem que com ela estabelea qualquer grau de tenso, pois a memria (com seu tempo particular) pode ser a ordenadora de um longo texto literrio. Dessa forma, o importante salientar que histria e literatura buscam verdades diferenciadas, constatao que no faz da literatura uma inveno desconectada do real, nem da histria uma presa ingnua da verdade trata-se de fugir dicotomia incapaz de expressar a riqueza desses campos em construir vislumbres do real.

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    A leitura de Gabriel Garca Mrquez muito contribuiu para a avaliao do epistolrio. O romance O General em seu labirinto expressa o encontro e o dilogo entre histria e literatura. A partir do dilogo, essas escritas produziram uma profcua relao que, convictamente, alargou os horizontes de compreenso do personagem histrico e do projeto narrativo deixado por ele. Assim, salutar a confiana no dilogo, pois, mesmo que no responda a todas as dvidas do historiador, ele oferece complexidade ao debate na medida em que permite expor as distintas metodologias, cuja finalidade tangenciar o conhecimento. O historiador, mesmo que lide com a literatura, continua a fazer perguntas de historiador, continua a observar o real com os olhos de historiador, todavia, enriquece sua anlise quando se depara com um olhar que, distinto do seu, lana problemticas comuns e aponta possibilidades para a reflexo em torno dessas problemticas (BERBERT JR., 2004).

    III.

    Na obra literria, Simn Bolvar o homem vaidoso e ambicioso que precisa usar a renncia como um recurso poltico. No fim de seus dias, o general apresentado como um homem s, derrotado e ressentido. Sua morte na quinta de San Pedro Alejandrino, residncia prxima Santa Marta, teria poucos acompanhantes, boa parte deles generais proscritos como o prprio Bolvar. Na narrativa de Gabriel Garca Mrquez:

    O fim era uma questo de dias, de horas talvez. Aturdido com a m notcia, Montilla deu um soco na parede nua, e machucou a mo. Nunca mais, pelo resto da vida, tornaria a ser o mesmo. Tinha mentido muitas vezes ao general, sempre de boa f e por razes de poltica mida. A partir daquele dia passou a mentir por caridade, e instruiu nesse sentido os que tinham acesso a ele. Nessa semana chegaram de Santa Marta oito oficiais de alta patente expulsos da Venezuela por atividades contra o governo. Entre eles se encontravam alguns dos grandes da gesta

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    libertadora: Nicols Silva, Trindad Portocarero, Julian Infante. Montilla lhes pediu que no somente ocultassem ao general moribundo as ms notcias, como que melhorassem as boas, para alvio do mais grave de seus muitos males. Eles foram mais longe, e lhe fizeram um relato to animador da situao de seu pas que conseguiram acender em seus olhos o fulgor de outros dias (MRQUEZ, 1989: 254-255).

    Presentes na narrativa de Gabriel Garca Mrquez, as

    construes em torno da figura de Simn Bolvar, especialmente s que se referiam ao ressentimento de seus ltimos tempos contraposto ambio e ao poder de antes, aproximavam o romance das biografias. Quando a fonte passa a ser o epistolrio, impossvel negar que o estilo narrativo do missivista, revelador de seu empreendimento em reescrever acontecimentos e doar sua memria posteridade, denotava certo grau de ambio e vaidade. Comparada ao epistolrio, a leitura de Gabriel Garca Mrquez exigiu reconhecer que a urdidura literria apreende um outro Simn Bolvar, mas que, de alguma maneira, era um outro que tambm podia ser identificado nas cartas. Importante acrescentar que o cotejamento foi feito pelo literato tambm. Gabriel Garca Mrquez qualifica seu romance como um romance histrico. Numa espcie de posfcio, ele informa o seu conhecimento da documentao bolivariana, o que permite considerar que ele teve acesso correspondncia de Simn Bolvar e a utilizou para a composio literria de seu personagem.

    Duas leituras podem ser feitas de O General em seu labirinto: a leitura daquele leitor que nunca tomou contato com qualquer fonte (pblica ou particular) relacionada Simn Bolvar e a daquele leitor que tomou contato com algum tipo de fonte vinculada a Bolvar. Dessas leituras e suas articulaes, emerge uma maneira diferente de olhar para a obra literria. No primeiro caso, a despeito do encaixe da criao literria no gnero de romance histrico, a tendncia absorver o livro como se ele nada indicasse para alm de mais uma verso em torno da figura de Simn Bolvar. No segundo caso, a tendncia

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    considerar que a obra literria pode indicar caminhos, ou seja, apontar possibilidades para desvendar um personagem. Partindo da segunda experincia de leitura, surpreendente foi encontrar em O General em seu labirinto elementos que esto presentes no epistolrio. Esses elementos, recorrentes na documentao, na historiografia e na literatura, reagiram de acordo com cada ambiente em que tiveram de se adaptar.

    O fascnio com o Bolvar de Gabriel Garca Mrquez advinha da certeza de que o literato, tendo escolhido escrever sobre os ltimos dias de um homem da primeira metade do sculo XIX, manifesta em seu texto o reforo do culto em torno da figura de Simn Bolvar e, para tanto, elabora sua escrita a partir de importantes referenciais de memria deixados pelo general. No preciso ler toda a obra de Gabriel Garca Mrquez para concluir que ele um autor impregnado e marcado pela histria poltica de seu pas de nascena, a Colmbia. Segundo o literato, no foram as glrias de Simn Bolvar que o levaram escrita do romance histrico. As justificativas de Mrquez esto marcadas por sua biografia:

    Mais que as glrias do personagem, me interessava ento o rio Magdalena, que comecei a conhecer em criana, viajando da costa caribe, onde tive a sorte de nascer, at a cidade de Bogot, distante e turva, onde me senti mais forasteiro do que em qualquer outra, desde a primeira vez. Em meus anos de estudante, eu o percorri onze vezes nos dois sentidos, naqueles navios a vapor que saam dos estaleiros do Mississipi condenados nostalgia, e com uma vocao mtica a que nenhum escritor poderia resistir (MRQUEZ, 1989: 267).

    Essa justificativa no deve iludir o leitor. No era sobre um

    viajante qualquer e sua travessia no rio Magdalena que Gabriel Garca Mrquez escrevia. A empreitada de escrever um romance histrico foi tomada pelo seu autor como uma temeridade literria (MRQUEZ, 1989: 268). Se a imagem do rio lhe trazia lembranas de infncia, certo que a figura de Simn Bolvar lhe interessava e muito, era uma referncia de sua terra natal. A

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    despeito do rio, o primeiro agradecimento de Gabriel Garca Mrquez foi para lvaro Mutis, escritor idealizador do projeto de um romance que tratasse da ltima viagem de Bolvar pelo Magdalena. Foi essa idia, ouvida durante muitos anos, que mobilizou Garca Mrquez, alm do incmodo de que tal projeto casse nas catacumbas do esquecimento:

    Durante muitos anos ouvi de lvaro Mutis o projeto de escrever a viagem final de Simn Bolvar pelo rio Magdalena. Quando publicou El ltimo rostro, que era um fragmento antecipado do livro, o relato me pareceu to maduro, e o estilo e o tom to apurados, que me preparei para o ler completo da a pouco tempo. Entretanto, dois anos depois, tive a impresso de que ele o havia lanado ao esquecimento, como nos acontece a tantos escritores, mesmo com sonhos mais amados, e s ento ousei pedir que me permitisse escrev-lo. Foi um bote certeiro depois de uma tocaia de dez anos (MRQUEZ, 1989: 267).

    O romance conta uma histria e opina sobre ela em vrias

    passagens, situao que confirma o quanto o autor bebeu nas fontes do culto estabelecido em torno de Simn Bolvar. Alis, em seus agradecimentos, h uma nota particular no a um historiador qualquer, mas a um historiador bolivariano, Vincio Romero Martinez. A passagem no romance sobre o desentendimento entre Simn Bolvar e Francisco de Paula Santander esclarecedora:

    Tambm no era verdade que a origem da discrdia fossem os privilgios concedidos ao general Pez, nem a desventurada constituio da Bolvia, nem a investidura imperial que o general aceitou no Peru, nem a presidncia e o senado vitalcios que sonhou para a Colmbia, nem os poderes absolutos que assumiu depois da Conveno de Ocaa. No: no foram esses, nem tantos outros, os motivos causadores da terrvel ojeriza que azedou ao longo dos anos, at culminar no atentado de 25 de setembro. A verdadeira causa foi que Santander no pde nunca assimilar a idia de que este continente fosse um nico pas, disse o general. A unidade da Amrica ficava grande nele. Fitou Lorenzo Crcamo estirado na cama como no ltimo

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    campo de batalha de uma guerra perdida desde sempre, e ps fim visita. Claro que nada disso vale depois de morta a defunta disse. Quando Lorenzo Crcamo o viu levantar-se, triste e desamparado, percebeu que as recordaes lhe pesavam mais do que os anos, tal como a ele. Ao lhe reter as mos entre as suas, percebeu, mais, que ambos tinham febre, e se perguntou de qual dos dois seria a morte que os impediria de se verem de novo. O mundo est perdido, velho Simn disse Lorenzo Crcamo. Perderam o mundo para ns disse o general. O remdio agora comear do princpio. o que vamos fazer disse Lorenzo Crcamo. Eu no disse o general. S falta me jogarem no caixote de lixo (MRQUEZ, 1989: 123).

    Primeiro, atente-se para a existncia de um narrador. No

    que a ausncia de um narrador impea a influncia do autor nos caminhos de um romance, mas um narrador acrescenta fora ao personagem. Sua importncia no interior da narrativa contabilizada pela cumplicidade estabelecida entre o narrador e o personagem. Na medida em que o primeiro atua como a figura que se encontra acima do enredo, sendo conhecedor de seu final, pode intervir e justificar seu personagem em nome do desfecho do romance. O narrador usa seu poder de predizer, calcular, conjeturar e insinuar sobre o que h de vir. A trama narrativa depende de seus subterfgios, que podem contribuir ou no com os subterfgios do personagem principal. A escolha de um personagem que contasse a sua histria seria menos vigorosa, em especial se esse personagem fosse Simn Bolvar. No caso do texto em questo, a presena do narrador concede a Bolvar a exata universalidade da qual era merecedor. Esse tipo de estratgia permite cultuar o personagem sem que o personagem seja o ordenador do prprio culto. Nesse sentido, O General em seu labirinto a expresso do cuidado que ainda hoje se guarda, mesmo que literariamente, ao arguir a personalidade histrica de Simn Bolvar.

    Oportunamente, o trecho que pretende explorar o desentendimento entre os antigos amigos (Bolvar e Santander)

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    chama a ateno questo da unidade. Desse trecho, duas interessantes aluses podem ser retiradas. A primeira delas inequvoca, mas merece relevo: no era possvel escrever sobre Simn Bolvar e no trazer tona o ideal que ainda mobiliza polticos contemporneos, a unidade americana. Da perspectiva em que se constri a narrativa, a Santander caberia a pecha do poltico que pensou pequeno, por isso no conseguiu sonhar com um grande futuro para a Amrica. Junto com os inimigos de Bolvar, o mundo perdeu-se e essa constatao, advinda das dolorosas lembranas (entre elas, a da perda de uma amizade que fora responsvel pelas glrias da Gr-Colmbia), pesava bem mais ao general do que os anos em seu calendrio particular.

    O mesmo fragmento aponta para um general absolvido e que indicava o caminho a ser trilhado por seus seguidores: o recomeo. A segunda possibilidade analtica permite ao narrador insinuar a batalha perdida do general. Assim, embora absolvido, o general estava derrotado. No lhe sobravam nem campos de batalha e nem aliados capazes de fazer fulgir novamente sua legitimidade. O narrador insinua e o prprio general, ento personagem, confirma a sua derrota, afinal, nada disso vale depois de morta a defunta. Esse trecho esclarecedor do motivo da diviso de papis: o narrador fortalece o personagem e a narrativa, conferindo maior espao ao autor para influir na composio e julgamento das figuras que desfilam em seu romance.

    O romance histrico exigiu de Gabriel Garca Mrquez grande pesquisa, o que o aproximou de historiadores e profissionais liberais6. A contragosto de seu autor, o rigor do romance foi mantido por uma caada feita por pesquisadores aos anacronismos e imperfeies no texto literrio. Por parte do romancista, anacronismos e imperfeies, na realidade, disparates, acrescentariam gotas de humor involuntrio e talvez desejvel ao horror deste livro (MRQUEZ, 1989: 270). A propsito do rigor do romance histrico, apesar de considerar a importncia da consulta e do manuseio da documentao produzida por Simn Bolvar e em torno dele, Gabriel Garca

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    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 727

    Mrquez sugere a distino entre o seu fazer literrio e o fazer historiogrfico. A complexidade do empreendimento a que se imps Mrquez s foi suavizada por seu conhecimento de que o perodo de Bolvar no rio Magdalena foi pouco documentado. O livro O General em seu labirinto efetivamente um romance histrico, mas no histria:

    Por outro lado, os fundamentos histricos me preocupavam pouco, pois a ltima viagem pelo rio o tempo menos documentado da vida de Bolvar. S escreveu ento trs ou quatro cartas um homem que deve ter ditado mais de dez mil e nenhum de seus acompanhantes deixou memria escrita daqueles quatorze dias aventurados. No entanto, desde o primeiro captulo tive de fazer alguma consulta ocasional sobre seu modo de vida, e essa consulta me remeteu a outra, depois a outra mais e a outra mais, at mais no poder. Durante dois longos anos fui me afundando nas areias movedias de uma documentao torrencial, contraditria e muitas vezes incerta, desde os trinta e quatro volumes de Daniel Florncio OLeary at os recortes de jornais menos imaginados. Minha absoluta falta de experincia em matria de investigao histrica tornou ainda mais rduos os meus dias. Este livro no teria sido possvel sem a ajuda dos que trilharam antes de mim esses territrios, durante sculo e meio, e me tornaram mais fcil a temeridade literria de contar uma vida com documentao tirnica, sem renunciar aos foros desaforados do romance (MRQUEZ, 1989: 267-268).

    As descries do personagem no livro contemplam um

    homem abatido, que caminhava para a morte. No causa espanto essa caracterizao. Entretanto, um grau de surpresa atribudo ao sempre presente adendo ao homem fisicamente decadente: apesar da doena, Simn Bolvar tinha movimentos decididos e alma capaz de restaurar suas foras, mesmo aps uma noite inteira de delrio. Assim, a escolha de Gabriel Garca Mrquez a de apresentar um general perdido, decadente, sem

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    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 728

    apoio, ressentido, doente; mas um general que conservava no esprito o sinal da liderana forte e vigorosa:

    Vamos embora disse voando, que aqui ningum gosta de ns. Por ter ouvido dizer aquilo tantas vezes e em ocasies to diversas, Jos Palcios no achou que fosse valer, embora os animais estivessem preparados nas cocheiras e a comitiva oficial comeasse a se reunir. Ajudou-o a se enxugar de qualquer jeito, e lhe ps o poncho dos paramos sobre o corpo nu, porque a xcara castanholava com o tremor das mos. Meses antes, ao vestir a cala de camura que no usava desde as noites babilnicas de Lima, descobrira que ia diminuindo de estatura medida que perdia peso. At sua nudez era diferente: tinha o corpo plido e a cabea e as mos queimadas de sol. Completara quarenta e seis anos no ltimo ms de julho, mas j sua spera grenha caribe ficara cinzenta: tinha os ossos desmantelados pela decrepitude prematura, e todo ele se via to desfeito que no parecia capaz de durar at o prximo julho. No entanto, seus movimentos decididos davam a impresso de pertencer a outra pessoa menos gasta pela vida, e caminhava sem cessar ao redor do nada. Bebeu a tisana em cinco goles que por pouco lhe empolaram a lngua, fugindo a seu prprio rastro de gua nas esteiras esfiapadas do assoalho, e foi como beber o filtro da ressurreio (MRQUEZ, 1989: 11-12).

    A figura de Bolvar que domina o romance a do homem

    doente e alquebrado que, no entanto, se capaz de enfrentar corajosamente a morte, o mesmo no faz com o seu ressentimento. Tanto a tristeza quanto a ausncia de gratido pblica desejo que suas cartas expressam ter sido buscado no decorrer de seus quarenta e sete anos no possua medicamento eficaz. Estratgia astuta e do ponto de vista narrativo interessante, O General em seu labirinto acompanha o perodo de 1830, fazendo algumas remisses aos anos anteriores. Foi concedido ao personagem, Simn Bolvar, a rememorao de suas glrias passadas, da tentativa frustrada de seu assassinato em 1828 e dos desentendimentos com Santander, o Cassandro7. O personagem de Gabriel Garca

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    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 729

    Mrquez, conturbado ora por sonhos, ora por delrios, ora por lembranas suscitadas por um cheiro, um gosto ou uma visita tambm contava a sua histria, sempre reforada pelo narrador. As evocaes de Simn Bolvar recheiam o livro:

    La Florida de San Pedro Alejandrino, a uma lgua de Santa Marta, nos contrafortes da Sierra Nevada, era uma fazenda de cana-de-acar com um engenho para fazer rapadura. Na berlina do Senhor Mier, l se foi o general pelo caminho empoeirado que dez dias depois seu corpo, sem ele, iria percorrer em sentido contrrio, embrulhado na velha manta dos paramos, em cima de um carro de boi. Muito antes de ver a casa, sentiu a brisa saturada de melao quente, e sucumbiu s insdias da solido. o cheiro de San Mateo disse. O engenho de San Mateo, a vinte e quatro lguas de Caracas, era o centro de suas saudades. [...] O quarto que lhe destinaram foi responsvel por outro extravio de memria, pelo que o examinou com uma ateno meticulosa, como se cada objeto lhe parecesse uma revelao. Alm da cama de dossel, havia uma cmoda de mogno, uma mesa-de-cabeceira tambm de mogno com um tampo de mrmore, e uma poltrona estofada de veludo vermelho. Na parede junto janela havia um relgio octogonal de algarismos romanos, parado a uma hora e sete minutos. J estivemos aqui antes disse (MRQUEZ, 1989: 252-253).

    As lembranas que tambm no texto literrio ocupavam-

    se em vincular um passado glorioso, um presente amargurado e um futuro incerto apareciam no romance para indicar que, apesar da distncia e da diferena do Bolvar e da Amrica de outros tempos, aquele personagem ainda era Bolvar e o lugar em que ele estava ainda era a Amrica. A narrao da entrada de Bolvar em Cartagena ilustrativa:

    A populao do recinto amuralhado, convocada por um dito urgente, se reunira na rua. As tardes comeavam a ser demoradas e difanas no solstcio de junho, e havia grinaldas de flores e mulheres vestidas moda madrilenha nas sacadas, e os

  • FABIANA DE SOUZA FREDRIGO

    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 730

    sinos da catedral e as msicas de regimento e as salvas de artilharia troavam at o mar, mas nada chegava a mitigar a misria que queriam esconder. Cumprimentando com o chapu, do coche desconjuntado, o general no podia deixar de se ver sob uma luz de comiserao, ao comparar aquela recepo indigente com sua entrada triunfal em Caracas, em agosto de 1813, coroado de louros numa carruagem puxada pelas seis donzelas mais formosas da cidade, e em meio multido banhada em lgrimas que naquele dia o eternizou com seu nome de glria: o Libertador. Caracas era ainda uma cidadezinha remota da provncia colonial, feia, triste, pobre, mas as tardes do vila8 eram dilacerantes na nostalgia. Aquela e esta no pareciam ser duas lembranas de uma mesma vida (MRQUEZ, 1989: 173).

    A imagem criada por Gabriel Garca Mrquez encontra

    amparo em narraes presentes no epistolrio. Diante da indigncia da recepo popular, nada espontnea porque fora convocada por um dito9, algum como Bolvar, que tinha sido recebido com altas pompas pelas vitrias de Boyac e Ayacucho, s podia cultivar a comiserao. No romance, a imagem lastimvel, tanto dos manifestantes quanto do prprio general, era complementada pelo aceno com o chapu e pelo coche desajeitado. Os louros e a carruagem puxada pelas donzelas mais belas eram lembranas passadas que tornavam compreensvel a sensao de comiserao. O literato foi certeiro tanto na utilizao do vocbulo indicativo de auto-piedade e ressentimento, quanto na comparao entre a chegada de Bolvar Cartagena, em 1830, e a entrada triunfal em Caracas, no ano de 1813.

    Em uma carta para Domingo Caycedo10, que Bolvar escrevera quando de sua passagem por Mompox, anterior passagem por Cartagena citada por Mrquez, o tom do general tambm mudara: no carregava mais as exclamaes e o exagero de outrora. O missivista, em carta datada de 21 de maio de 1830, mostrava-se agradecido pelas manifestaes, sem afirmar, como era de seu costume, o desejo veemente dos povos em comemorar o seu triunfo, ou ainda, sem recorrer descrio dos arcos triunfais, das flores jogadas por belas

  • A CORRESPONDNCIA DE SIMN BOLVAR...

    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 731

    damas e da alegria dos manifestantes. A carta para Caycedo uma carta que alude benevolncia palavra que, se pode indicar estima, associa-se tambm complacncia, expresso a qual o general no recorreu quando da descrio de sua recepo em Santa F, aps a vitria de Boyac, em 1819, em carta endereada para Antonio Zea11. Assim, a relao com o epistolrio se sustenta: embora Bolvar faa questo de ratificar na missiva de 1830 que foi recepcionado com benevolncia, evidente que nem a recepo e nem a sua avaliao da recepo comparavam-se s atividades no passado. Adicione-se que o general escrevia para Domingo Caycedo, homem que ocupara a presidncia deixada por ele, assim, qualquer notcia enviada tornar-se-ia oficial para os que estavam em Bogot:

    Minha viagem tem sido boa at aqui, tanto porque no tive nenhum incmodo, como pelo excesso de benevolncia com o qual tm me recebido este povo do Magdalena. Aqui, sobretudo, tm me tratado melhor do que nunca, e como essas demonstraes so gratuitas e em demasia, tm enchido o meu corao do mais terno reconhecimento. Desde o dia que deixei o cargo, tenho recebido as demonstraes mais lisonjeiras, e com mais prazer ainda, quando foi voc quem deu o exemplo: assim, at agora, no tenho porque para me arrepender de ter deixado o mando supremo (Carta para Domingo Caycedo. Mompox, 21/05/1830. Tomo VII, R. 2.711, p. 480. Xerox do original).

    No perodo abordado pelo romance, Simn Bolvar

    entregara a presidncia a Domingo Caycedo e, para acalmar as mazelas da rebelio na Venezuela, aceitara o acordo com Antnio Pez12. Por conta do acordo firmado, Bolvar devia partir da Colmbia, da sua viagem pelo Magdalena. Em tais circunstncias, o general experimentava o abandono, encontrava-se difamado e enxovalhado pelo adjetivo de tirano e pelas acusaes quanto ao pretenso desejo de se coroar:

    Sempre encarara a morte como um risco profissional sem remdio. Tinha feito todas as guerras na linha de perigo, sem sofrer um arranho, e movia-se em meio ao fogo contrrio com

  • FABIANA DE SOUZA FREDRIGO

    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 732

    uma serenidade to insensata que at seus oficiais se conformaram com a explicao fcil de que se julgava invulnervel. Sara ileso de todos os atentados contra ele urdidos, e em vrios salvou a vida por no estar dormindo em sua cama. Andava sem escolta, comia e bebia sem nenhum cuidado com o que lhe ofereciam por onde andasse. Somente Manuela sabia que seu desinteresse no era inconscincia nem fatalismo, mas melanclica certeza de que havia de morrer na cama, pobre e nu, e sem o consolo da gratido pblica (MRQUEZ, 1989: 16).

    As acusaes de prevaricao contra a repblica

    incomodavam o missivista e, assim sendo, no podiam passar ao largo da narrativa literria. Dentre os inmeros exemplos a no serem seguidos, Bolvar citara, no epistolrio, Augustn Iturbide. No romance, ao comentar com um visitante francs sobre o fuzilamento de Iturbide, o Bolvar de Gabriel Garca Mrquez teria dito:

    Minha testa no ser jamais manchada por uma coroa [...] A est Iturbide para me refrescar a memria [...] Admira-me que um homem comum como Iturbide fizesse coisas to extraordinrias, mas Deus me livre da sorte, como me livrou de sua carreira, embora eu saiba que nunca me livrar da mesma ingratido (MRQUEZ, 1989, p. 127).

    Nas cartas escritas entre os anos de 1824 e 1825, ao lado

    de San Martn e OHiggins, Iturbide era exemplo de m conduta. Para o missivista, a m sorte do imperador, que teve como clmax o seu fuzilamento em 1824, advinha do fato de esse poltico no ter sido um amante da liberdade. Por esse motivo, ainda de acordo com o missivista, Iturbide era o nico responsvel pela perda de sua glria13.

    Pontuada a ligao do epistolrio com as cartas, interessa o final dos trechos citados do romance, nos quais o romancista empresta ao seu personagem uma melanclica certeza, a da ingratido. A vida de glrias terminaria com a incompreenso do povo que ele havia lutado para libertar. A h um destino, um desgnio que retirava de Simn Bolvar suas foras. A ingratido

  • A CORRESPONDNCIA DE SIMN BOLVAR...

    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 733

    pblica e o no reconhecimento de seus vinte anos de servio ptria eram motivos para delrios, assim como foram assunto para inmeras missivas. Se, ao final da vida, algo paralisava Bolvar no era exatamente a doena, mas o ressentimento. No fosse isso, desde que reconhecido como importante liderana, estaria ele disposto a proteger a ptria. O oferecimento de seus servios ptria, mesmo sabendo-se incapaz fisicamente, esteve abundantemente presente nas cartas de seu ltimo ano de vida:

    Vocs vero meu proclama: ainda que parea oferecer muito, no ofereo nada, seno servir como soldado. No quero admitir o mando que me conferem as atas, porque no quero passar por um chefe de rebeldes e nomeado militarmente pelos vencedores14. Tenho oferecido servir ao governo porque no posso me isentar em perigos semelhantes. Se me derem o exrcito aceitarei e se me mandarem Venezuela, eu irei. Entretanto se fizerem as eleies conforme a lei, e se por acaso for nomeado constitucionalmente pela maioria dos sufrgios, aceitarei se me convencerem de que a minha eleio foi verdadeiramente popular. Mas, meu amigo, voc que conhece a constituio que temos e os novos inconvenientes que se multiplicaram nesses ltimos dias, [diga-me] como possvel que algum se comprometa a servir contra tantas probabilidades. S um prodgio de circunstncias favorveis poderia me fazer decidir. Vocs diro que preciso viver; e eu digo o mesmo que preciso que eu viva: no sei se me equivoco, mas creio que valho o mesmo que cada um e, como cada um, devo pretender minha honra, meu repouso, minha vida. Eu no posso viver entre assassinos e facciosos; eu no posso ser honrado entre semelhante canalha, e no posso gozar de repouso em meio de alarmes. A ningum pedem tantos sacrifcios como a mim, e isso para que todos faam o que lhes interessa. Aqui no h equidade, meu amigo: em conseqncia, eu devo tomar por mim mesmo a parte da minha justia. Eu estou velho, enfermo, cansado, desenganado, hostilizado caluniado e mal pago. Eu no peo por recompensa mais do que o repouso e a conservao de minha honra: por desgraa o que no consigo (Carta para Pedro

  • FABIANA DE SOUZA FREDRIGO

    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 734

    Briceo Mndez. Cartagena, 20/09/1830. Tomo VII, R. 2.747, p. 530-531. Original).

    Velho, cansado, desenganado, hostilizado, caluniado e mal

    pago, mas disposto a servir como soldado. O oferecimento era simblico, Bolvar no tinha como servir para acalmar as guerras internas. No tinha como servir porque fora abandonado pelo vigor fsico, e, ainda mais grave, perdera a legitimidade e o poder. A figura literria fantasmagrica do general revelava o descrdito no fim de seus dias assim como era uma revelao o ressentimento presente em suas cartas dos anos de 1829 e 1830. Diversificada pela descrio da natureza, dos transeuntes e da cidade, a sada de Simn Bolvar de Santa F de Bogot narrada da seguinte maneira no romance:

    A primeira jornada foi a mais ingrata, e assim teria sido mesmo para algum no to doente quanto ele, pois se sentia amargurado com a hostilidade insidiosa que percebera nas ruas de Santa F na manh da partida. Apenas comeava a clarear em meio ao chuvisco, e s encontrou no caminho algumas vacas extraviadas, mas o rancor de seus inimigos pairava no ar. Apesar da precauo do governo, que mandara conduzi-lo pelas ruas de menor movimento, o general chegou a ver alguns dos insultos pintados nos muros dos conventos. [...] Em nenhum lugar se sentira to forasteiro como nessas ruelas ermas com casas iguais de telhados pardos e jardins internos com flores cheirosas, onde se cozinhava a fogo lento uma comunidade alde, cujas maneiras alambicadas e cujo dialeto ladino mais serviam para ocultar do que para dizer. E, contudo, embora lhe parecesse uma burla da imaginao, era essa mesma cidade de brumas e sopros gelados que escolhera antes de conhec-la para edificar sua glria, que amara mais do que qualquer outra, e idealizara como centro e razo de sua vida e capital da metade do mundo. Na hora das contas finais, parecia o mais surpreendido pelo prprio descrdito. O governo postara guardas invisveis at nos lugares de menor perigo, e isso impediu que sassem no seu encalo as maltas colricas que o haviam executado em efgie na

  • A CORRESPONDNCIA DE SIMN BOLVAR...

    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 735

    noite anterior, mas em todo trajeto se ouviu um mesmo grito distante: Longaniiiiizo!15 A nica alma que se compadeceu dele foi uma mulher de rua que disse ao v-lo passar: V com Deus, fantasma! (MRQUEZ, 1989: 45-47).

    Aquele que julgava conhecer a Amrica e ser responsvel

    por sua liberdade era caracterizado como um forasteiro a caminhada para o desterro (que a morte impediria) afirmava sua condio de forasteiro e explicitava a sua incompreenso dos novos tempos. Entre seus contemporneos, o projeto de Bolvar estava efetivamente derrotado. Proscrito e sem acreditar numa possvel sada para a Amrica libertada da Espanha, mas cativa das oligarquias, foi o missivista quem, em meio desiluso, decidiu o que fazer: porque sou incapaz de fazer a felicidade do meu pas me nego a mand-lo (Carta para Estanislao Vergara16. Cartagena, 25/09/1830. Tomo VII, R. 2.749, p. 535. Original.). No era ele, Simn Bolvar, desnecessrio. Ao contrrio, se ia embora, era para salvar a ptria e guardar sua glria de maiores ataques. Numa das ltimas missivas da coletnea, o homem que renunciou inmeras vezes, fazia de novo, mas, deixando registrado que, embora proscrito, era ele quem se negava a mandar.

    Numa outra carta, endereada a Flores17, em novembro de 1830, Simn Bolvar escrevia sobre sua doena e sobre a impossibilidade de oferecer seus servios. Nomeado presidente da Nova Granada, aps um golpe dos bolivaristas, notcia que se digna a oferecer, termina sua carta indicando que ele escolhia o seu prprio destino. Descontente por se encontrar como liderana entre golpistas, sem apoio do Congresso, e mediante o seu conhecimento arquivado sobre as revolues, o general pretendia manter-se a salvo e longe do poder por uma deciso de sua inteira responsabilidade:

    Falarei a voc ao fim de mim: fui nomeado presidente de toda Nova Granada, mas no pela guarda de assassinos de Casanare e Popayn; e, entretanto, Urdaneta est desempenhando o Poder Executivo com os ministros eleitos por ele. Eu no aceitei este

  • FABIANA DE SOUZA FREDRIGO

    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 736

    cargo revolucionrio porque a eleio no legtima; logo depois fiquei doente, o que no me deixa servir nem como sdito. No entanto, tudo isso acontece assim, as eleies ocorrem conforme a lei, ainda que fora do tempo em algumas partes. Asseguram que terei muitos votos e pode ser que seja eu que consiga mais e ento veremos o resultado. Voc pode considerar se, um homem que tirou das revolues todas as concluses anteriores, ter vontade de se afogar novamente, depois de ter sado do ventre da baleia: isso claro (Carta para J.J. Flores. Barranquilla, 09/11/1830. Tomo VII, R. 2781, p. 589. Retirada do Boletim Histrico, n. 1, Fundao John Boulton).

    Trechos de cartas endereadas a Briceo Mndez e a

    Rafael Urdaneta aparecem no romance para explicar a hesitao do lder revolucionrio em aceitar a presidncia da Gr-Colmbia, uma vez vitorioso o golpe de seus aliados. As anotaes de Gabriel Garca Mrquez coincidem com a interpretao retirada da anlise do epistolrio. Tambm o autor-narrador de O General em seu labirinto mostra seu espanto com o tom de comando que algumas missivas de Simn Bolvar assumiram em tal contexto:

    Em carta que mandou dois dias depois ao general Briceo Mndez escreveu: No quis assumir o poder que as atas me conferem porque no quero passar por chefe de rebeldes e ser nomeado militarmente pelos vencedores. Contudo, nas duas cartas que ditou nessa mesma noite a Fernando para o general Rafael Urdaneta, teve o cuidado de no ser to radical. A primeira foi uma resposta formal, cuja solenidade era por demais evidente no cabealho: Excelentssimo Senhor. Nela justificava o golpe pelo estado de anarquia e abandono em que ficara a repblica com a dissoluo do governo anterior. O povo nesses casos no se engana, escreveu. Mas no havia nenhuma possibilidade de aceitar a presidncia. A nica coisa que poderia oferecer era sua disposio de retornar a Santa F para servir como simples soldado. A outra era uma carta particular, como j indicava a primeira linha: Meu querido general. Extensa e explcita, no deixava a menor dvida sobre as razes de sua incerteza. Como dom

  • A CORRESPONDNCIA DE SIMN BOLVAR...

    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 737

    Joaqun Mosquera no havia renunciado a seu ttulo, amanh poderia fazer-se reconhecer como presidente legal e coloc-lo na posio de usurpador. Assim, reiterava o que dissera na carta anterior: enquanto no dispusesse de um mandato difano, emanado de uma fonte legtima, no havia possibilidade alguma de assumir o poder. As duas cartas foram pelo mesmo correio, junto com o original de uma proclamao na qual pedia ao pas que esquecesse suas paixes e apoiasse o novo governo. Mas punha-se a salvo de qualquer compromisso. Embora parea oferecer muito, no ofereo nada, diria mais tarde. E reconheceu ter escrito algumas frases cujo nico propsito era lisonjear quem esperava por isso. O mais significativo da segunda carta era o tom de comando, surpreendente para uma pessoa desprovida de todo o poder. [...] Nesses dias costumava repetir com renovada nfase uma antiga frase sua: Estou velho, doente, cansado, desiludido, fustigado, caluniado e mal pago. Entretanto, ningum que o visse teria acreditado. (MRQUEZ, 1989: 205-207).

    O escrito literrio e as cartas apresentam contradies

    compreensveis que se completam e emprestam sentido ao cuidado com a correspondncia. De um lado, a doena e a perda de legitimidade eram fatos inegveis a indicao de Bolvar para assumir a presidncia, com o golpe dos bolivaristas, fora apenas um gesto de respeito militar, que restava entre seus poucos amigos. De outro lado, apesar da incontestvel fora dos acontecimentos, a frmula para uma memria que matizasse a perda de legitimidade e denunciasse as conspiraes injustas contra o Libertador foi doada pelo prprio missivista. Em suas cartas, escritas entre os anos de 1829 e 1830, embora no fosse possvel mais esconder a doena e o ressentimento, era possvel apresentar-se como um general vigoroso. A despeito do seu fastio e das perseguies, o missivista era capaz de fazer exalar autoridade de sua correspondncia:

    Estou cansado e enfastiado das calnias. Penso em retirar-me do mando poltico, mas no do militar. Com isto, se ganha e no se perde. Outro magistrado, se for bom, ser sustentado por mim,

  • FABIANA DE SOUZA FREDRIGO

    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 738

    meus amigos e o exrcito. Ser forte pelas leis e por nossa autorizao. Eu lhe emprestarei toda a minha influncia: influncia que ningum pode me emprestar. Eu me apoio agora neles (os generais) e depois se apoiaro em mim. O governo sobre todos. Pez no ser mais o fantasma das crianas. Eu irei para Venezuela e seremos camaradas. Minha glria se salvar e a Colmbia tambm. (Carta para Mariano Montilla. Popayn, 30/11/1829. Tomo VII, R. 2.640, p. 402. Original). Eu no estou s muito cansado do governo, mas sim sou perseguido por ele; por conseguinte, farei tudo o que for possvel para separar-me do mando, ficando s com o exrcito, se quiserem me dar. Sinto muito dar-lhe esta notcia, mas devo faz-lo para seu governo18. Provavelmente ser o general Sucre o meu sucessor, e tambm provvel que o sustentemos entre todos; de minha parte ofereo faz-lo com alma e corao. (Carta para J.J. Flores. Popayn, 05/12/1829. Tomo VII, R. 2.642, p. 404. Retirada de Asesinato Del gran Mariscal de Ayacucho. A.Flores, p. 383). Juro a voc e prometo com a mais pura sinceridade que teria o maior gosto e seria uma honra para mim sustentar a sua autoridade. Neste caso, teria a Colmbia dois grandes apoios: o governo seria to forte como o exrcito e ambos se apoiariam mutuamente com benefcio do estado. Sobre esse ponto, tenho meditado muito, pelo que estou resoluto a no desistir dessa resoluo. Mas se empenham-se em me fazer voltar ao cargo, podem contar que eu no o admitirei, ainda que isso resulte na runa da repblica. Minha honra e minha glria exigem este ato solene de absoluto desprendimento, para que o mundo veja que na Colmbia h homens que depreciam o poder absoluto e preferem a glria ambio. Por outro lado, com isso deixarei lesados meus inimigos; e tambm meus companheiros de armas vero que no seguiram a quem no merecia, e se gabaro por eu no ter sido o que tm me acusado (Carta para Antnio Pez. Popayn, 12/12/1829. Tomo VII, R. 2650, p. 410-411. Original).

    Se as cartas de Bolvar contavam a histria do heri

    injustiado, no romance, essa figura se completa: o general tinha a aura mgica e os males do corpo eram sempre contrapostos

  • A CORRESPONDNCIA DE SIMN BOLVAR...

    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 739

    fora do esprito. So muitas as passagens de O General em seu labirinto que confirmam esse tipo de construo do perfil de Simn Bolvar. O homem pblico vigoroso que se revelava mais abatido pelo ressentimento do que pelos males fsicos aparecia tanto no epistolrio quanto no romance. Destacando-se por ser dono de um halo mgico, a densidade psicolgica atribuda ao General por Garca Mrquez quer sugerir que Simn Bolvar escolhe como morrer. Do ressentimento no podia se livrar, mas morria como tinha vivido: morria colocando-se como soldado a servio da ptria inestimvel servio literrio prestado ao culto bolivariano. No romance, a indigncia do corpo no exclua a tenso de energia que dele emanava:

    No trazia nenhuma insgnia de seu posto nem lhe restava o menor indcio da imensa autoridade de outros dias, mas o halo mgico do poder o tornava diferente em meio ao ruidoso sqito de oficiais. Dirigiu-se sala de visitas, caminhando devagar pelo corredor atapetado de esteiras que margeava o jardim interno, indiferente aos soldados da guarda que se perfilavam sua passagem. (MRQUEZ, 1989: 39). Empinou-se para se despedir do presidente interino, e este correspondeu com um abrao enorme, que permitiu a todos comprovar como era mirrado o corpo do general, e como se via desamparado e inerme na hora da despedida [...] Procurou ajud-lo, conduzindo-o pelo brao com a ponta dos dedos, como se fosse de vidro, e surpreendeu-se com a tenso de energia que lhe circulava debaixo da pele, como uma torrente secreta sem qualquer relao com a indigncia do corpo. Delegados do governo, da diplomacia e das foras militares, com barro at os tornozelos e as capas ensopadas pela chuva, o esperavam para acompanh-lo na primeira jornada. Ningum sabia ao certo, porm, quem o acompanhava por amizade, quem para proteg-lo e quem para ter confirmao de que ia embora mesmo (MRQUEZ, 1989: 42) .

    Em sua passagem pelo povoado de Honda, o romance

    narra duas importantes cenas, uma num rio e outra numa festa. Em ambas, apesar da proximidade da morte e da imagem

  • FABIANA DE SOUZA FREDRIGO

    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 740

    esqulida do corpo, a entrega atividade fsica representava, mais do que a presena de alguma energia no corpo, a capacidade espiritual do general em se refazer dos reveses. Note-se que o encaminhar da narrativa articula vivncias no passado e no presente. Depois disso, a proposital juno entre esses tempos assume um sentido especfico, que o de demonstrar que algo concedia unidade entre o Bolvar do passado e o do presente: a sua energia, isso porque ela era mais do que fsica, tal energia era pea integrante de seu carter:

    Longe iam os dias em que apostava atravessar uma torrente llanera com uma das mos amarradas e ainda assim ganhava do nadador mais destro. Dessa vez, de qualquer modo, nadou sem cansao durante meia hora, mas os que viram suas costelas de cachorro e suas pernas raquticas no entenderam como podia continuar vivo com to pouco corpo. (MRQUEZ, 1989: 79) Longe ficavam os anos ilusrios em que todo mundo caa vencido, e s ele continuava danando at o amanhecer com o ltimo par no salo deserto. Pois a dana era para ele uma paixo to dominante que danava sem dama quando no havia, ou danava sozinho a msica que ele prprio assobiava, e exteriorizava seus grandes jbilos subindo para danar na mesa da sala de jantar. Na ltima noite de Honda j tinha as foras to reduzidas que precisava se refazer nos intervalos aspirando os vapores do leno embebido em gua-de-colnia, mas valsou com tanto entusiasmo e com maestria to juvenil que, sem querer, destruiu as verses de que estava morte (MRQUEZ, 1989: 81).

    No que se refere aos pedidos de renncia, O General em

    seu labirinto rico em passagens. O ano era 1830, o lugar era Santa F de Bogot. Depois de uma manifestao contrria ao general a poucos quarteires de onde ele estava acomodado com a sua comitiva, Bolvar anunciou:

    Muito mal devem andar as coisas disse , e eu pior que as coisas, para tudo isso acontecer a um quarteiro daqui e me fazerem acreditar que era uma festa.

  • A CORRESPONDNCIA DE SIMN BOLVAR...

    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 741

    A verdade que mesmo os seus amigos mais ntimos no achavam que fosse deixar o poder nem o pas. A cidade era pequena e a gente bisbilhoteira demais para desconhecer as duas grandes falhas de sua viagem incerta: no tinha dinheiro para chegar a parte alguma com sqito to numeroso e, tendo sido presidente da repblica, no podia sair do pas antes de um ano sem permisso do governo, a qual nem sequer tivera a malcia de solicitar. A ordem de arrumar a bagagem, dada de modo ostensivo, para ser ouvida por todo mundo, no foi entendida como prova terminante nem pelo prprio Jos Palcios, pois em outras ocasies chegara ao extremo de desmanchar uma casa para fingir que partia, o que sempre fora uma manobra poltica certeira. Seus ajudantes militares sentiam que os sintomas do desencanto eram por demais evidentes no ltimo ano. Entretanto, de outras vezes tinha acontecido, e quando menos se esperava o viam despertar com nimo novo, para retomar o fio da vida com mais mpeto que nunca. Jos Palcios, que sempre acompanhara de perto essas mudanas imprevisveis, o dizia sua maneira: O que o meu senhor pensa, s o meu senhor sabe. Suas renncias recorrentes se haviam incorporado ao cancioneiro popular, desde a mais antiga, anunciada no prprio discurso com que assumiu a presidncia: Meu primeiro dia de paz ser o ltimo do poder. Nos anos seguintes, tornou a renunciar tantas vezes, e em circunstncias to diversas, que nunca mais se soube quando era de verdade. A renncia mais ruidosa de todas tinha sido dois anos antes, na noite de 25 de setembro, quando escapou ileso de uma conspirao para assassin-lo, dentro do prprio quarto de dormir do palcio do governo. A comisso do congresso que o visitou de madrugada, depois de ele ter passado seis horas sem agasalho debaixo de uma ponte, encontrou-o embrulhado numa manta de l e com os ps numa bacia de gua quente, mas no to prostrado pela febre quanto pela decepo. Anunciou-lhes que a trama no seria investigada, que ningum seria processado, e que o congresso previsto para o ano-novo se reuniria de imediato para eleger outro presidente da repblica. Depois disso concluiu deixarei a Colmbia para sempre. Contudo, a investigao foi feita, julgaram-se os culpados com um cdigo de ferro, e quatorze foram fuzilados em praa pblica. O congresso constituinte marcado para 02 de janeiro s se reuniu

  • FABIANA DE SOUZA FREDRIGO

    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 742

    dezesseis meses depois, e ningum tornou a falar em renncia. Mas no houve por essa poca visitante estrangeiro, interlocutor casual ou amigo de passagem a quem ele deixasse de dizer: Vou para onde gostem de mim (MRQUEZ, 1989: 21-23).

    Numa leitura rpida, trs so as impresses retiradas deste

    trecho literrio: primeiro, havia descrena generalizada quanto possibilidade concreta de Simn Bolvar deixar a Colmbia e o mando; segundo, a renncia e o anncio de que se retiraria do pas configuravam um tipo de manobra poltica certeira utilizada de forma recorrente; e, terceiro, a renncia e a sada da Amrica vinham associadas ao desencanto que, entretanto, se via atrelado a um nimo novo, nascido sobrenaturalmente. Essa sntese indica que o romance permite amparar a tese de que um projeto de memria foi construdo por meio da escrita de cartas. No interior desse projeto, a renncia torna-se pea fundamental na medida em que tece a memria da indispensabilidade, medindo a legitimidade poltica do general. Ainda que o literato no tivesse por obrigao proceder crtica das fontes e, portanto, o uso do epistolrio pudesse vir acompanhado pela liberdade de dar asas imaginao, certamente, o texto de O General em seu labirinto rende glrias memria construda pelo ator histrico em vida. Assim como a historiografia, a literatura oferece contribuio ao culto contemporneo em torno de Simn Bolvar tendo sido intencional ou no contribuir com o culto, a constatao que a obra literria, a partir do momento que alcana o domnio pblico, tem em seus leitores os reais e exigentes decifradores.

    Num outro trecho de O General em seu labirinto, reaparece a anlise do descrdito conferido possibilidade de Bolvar deixar o mando. Dessa vez, tal anlise vem acompanhada por aluses doena do general e aos seus atos formais, detectados por meio dos pedidos de renncia encaminhados ao congresso:

    [...] no houve agonia mais frutfera do que a dele. Enquanto o acreditavam morte em Pativilca, atravessou mais uma vez os

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    cumes andinos, venceu em Junn, completou a libertao de toda a Amrica espanhola com a vitria final de Ayacucho, criou a Repblica da Bolvia e ainda foi feliz em Lima como nunca fora nem voltaria a ser com a embriaguez da glria. Assim, os repetidos anncios de que afinal ia deixar o poder e o pas por motivo de doena, e os atos formais que o pareciam confirmar, no passavam de repeties desmoralizadas de um drama demais visto para merecer crdito (MRQUEZ, 1989: 24).

    Os bigrafos de Bolvar marcam o ano de 1825 como o

    momento em que a sua sade passaria a incomodar de forma mais intensa e rotineira. As missivas escritas entre os anos de 1825 e 1828 no se referiam, rotineiramente, aos incmodos da sade debilitada. Simn Bolvar mais silenciava do que se expunha no que dizia respeito sua sade. Mesmo entre os anos de 1829 e 1830, no eram longas as passagens acerca dos males que lhe acometiam. O quase silncio no epistolrio acerca dos males que o atacavam surgia como um vestgio importante e, ao lado do extenso e exaustivo discurso da renncia, indicava que no escrever sobre o seu estado de sade podia ser uma manifestao explcita do desejo de Bolvar de continuar sendo visto como o homem pblico de todas as causas, aquele que poderia ser chamado em qualquer contexto, qualquer que fosse a dificuldade. Dividir relatos sobre o seu estado de sade era uma ao concedida apenas queles que o missivista considerava amigos muito prximos e leais e, ainda, dependia de circunstncias especiais.

    Silenciar ou, na melhor das construes, escrever pouco e ligeiramente sobre o seu estado de sade tambm configurava uma pea importante no interior do projeto narrativo: era preciso que os interlocutores de Simn Bolvar continuassem acreditando e apostando em sua vitalidade fsica. Entre outros fatores, de sua vitalidade fsica dependia a vitalidade poltica. De um doente s vsperas da morte no havia o que temer, em especial, se sua honra, sua glria e seu projeto poltico estivessem desacreditados. Por esse motivo, as cartas finais de Simn Bolvar assumiam maior dramaticidade e narravam, um

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    pouco mais detidamente, sua pssima situao fsica. Nessa circunstncia final, a narrativa epistolar associava a doena ao descrdito poltico e ambos confirmavam ento a necessidade da renncia e permitiam desaguar o ressentimento.

    Assim, as fases silenciosas sobre a doena se altercavam, demonstrando a impossibilidade de oniscincia do missivista e seu respeito aos manuais de escrita de cartas dos oitocentos (GAY, 1999). Nas missivas redigidas no incio dos anos vinte, quando o assunto era a sua sade, o modelo era o seguinte: Simn Bolvar iniciava-as agradecendo a preocupao de seus interlocutores e no gastava muito mais do que um pargrafo para dar notcias de seu incmodo. Nas cartas a seguir, ambas de 1824, pode-se confirmar a ocorrncia dos males anotados por Gabriel Garca Mrquez que, no romance, foram atribudos aos sis mercuriais:

    Meu querido presidente: noite, tive a satisfao de receber a sua carta e o seu ofcio pelo qual me felicita e, ao mesmo tempo, se compadece pela indisposio que sofri. Agradecido como devo sincera expresso de amizade e de considerao por sua parte, retorno minhas graas a to distinto amigo. Muito sinto o sucesso dos Granadeiros do Rio da Prata, pois isso indica um estado de anarquia continuado e perene (Carta para Marqus de Torre Tagle19. Pativilca, 07/01/1824. Tomo IV, R. 1033, p. 09-12. Retirada de OLeary, XXIX, p. 361).

    Com Santander, no mesmo ms e ano, Bolvar estendeu-se

    um pouco mais. Permitiu ao amigo uma exceo, pois lhe deu informes mais detalhados sobre o seu mal-estar. Com certeza, a narrativa dessa missiva deixa entrever a confiana que Bolvar depositava no vice-presidente. Na carta para Santander, o missivista escreve sobre seu desejo de se liberar do cargo de mandatrio superior no Peru e associa tal desejo aos desgastes fsicos que vinha sofrendo:

    Alm disso, no quero me encarregar tampouco da defesa do Sul, porque nela vou perder a pouca reputao que me resta com

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    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 745

    homens to malvados e ingratos. Eu creio que disse a voc, antes do que agora, que os quitenhos so os piores colombianos. O fato como eu sempre pensei, que se necessita de um rigor triplo [comparado ao] do que se empregaria em outra parte. Os venezuelanos so uns santos comparados a esses malvados. Os quitenhos e os peruanos so a mesma coisa: viciosos at a infmia e baixos ao extremo. Os brancos tm carter de ndios, e os ndios so todos inescrupulosos, todos ladres, todos embusteiros, todos falsos sem nenhum princpio de moral que os guie. Os guayaquilenos so mil vezes melhores. Por tudo isso eu irei para Bogot to logo eu possa me restabelecer de meus males que, nesta ocasio, tm sido muito graves, resultantes de uma longa e prolongada marcha que fiz na serra do Peru, cheguei aqui e fiquei gravemente enfermo. O pior que o mal tem resistido e os sintomas no indicam seu fim. uma complicao de uma irritao interna e de reumatismo, [provoca] febres e males da urina, vmito e clicas. Tudo isso em conjunto me deixa desesperado e me aflige muito. Eu j no posso fazer um esforo sem padecer infinito. Voc no me conheceria porque estou muito acabado e muito velho, e em meio de uma tormenta como essa, represento a senilidade. Alm disso, me atacam, de quando em quando, alguns ataques de demncia mesmo quando estou bem, perco inteiramente a razo sem sofrer nenhum ataque sequer pequeno de enfermidade e de dor. Este pas com seus soroches nos pramos renova tais ataques quando atravesso as serras. As costas provocam muitas enfermidades e molstias porque o mesmo que viver na Arbia deserta. Se vou convalescer em Lima, os negcios e as tramias voltaro a me deixar enfermo; assim penso dar tempo ao tempo, at o meu completo restabelecimento (Carta para Francisco de Paula Santander. Pativilca, 07/01/1824. Tomo IV, R. 1.034, p. 12-15. Original). A ltima renncia, penosa e necessria para Bolvar, e as

    esperanas renovadas (pela possibilidade de que o Congresso Nacional aprovasse seu nome como mandatrio supremo) apareceriam em O General em seu labirinto com uma lancinante narrativa, permitidas apenas s cartas particulares de Bolvar e ao foro do romance:

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    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 746

    Reiterando a sua renncia, o general indicou Dom Domingo Caycedo para presidente interino enquanto o congresso escolhia o titular. Em primeiro de maro deixou o palcio do governo pela porta de servio, para no topar com os convidados que estavam homenageando o seu sucessor com uma taa de champanhe, e foi em carruagem alheia para a quinta de Fucha, um remanso idlico nos arredores da cidade, que o presidente provisrio lhe emprestara. A simples certeza de ser um cidado comum agravou os estragos do vomitivo. Sonhando acordado, pediu a Jos Palcios que preparasse o necessrio para comear a escrever suas memrias. Jos Palcios trouxe tinta e papel de sobra para quarenta anos de recordaes, e ele preveniu Fernando, seu sobrinho e secretrio, que se preparasse para atend-lo desde a segunda-feira seguinte, s quatro da madrugada, a hora mais propcia para pensar, com seus rancores em carne viva. [...] Os que o visitaram nos dias seguintes tiveram a impresso de que estava refeito. Sobretudo os militares, seus amigos mais fiis, que o instaram a permanecer na presidncia, ainda que por meio de uma quartelada. Ele os desanimava com o argumento de que o poder da fora era indigno de sua glria, mas no parecia afastar a esperana de ser confirmado pela deciso legtima do congresso (MRQUEZ, 1989: 29-30).

    Vrios so os elementos que chamam a ateno na

    narrativa romanceada de Garca Mrquez. A sada pela porta dos fundos, a conduo emprestada, a ausncia de Bolvar em uma comemorao que, depois de tantas, no era direcionada a ele ou s suas glrias, o desejo do general em expor seus rancores por meio da escrita de suas memrias. Simn Bolvar no precisou redigir memrias, tinha ainda a quem destinar suas epstolas. Em cartas endereadas, em seus ltimos dias, ao amigo Jos Fernandez Madrid20, indicava as diretrizes para a sua defesa frente aos seus contemporneos, posteridade e histria.

    Desde agora voc deve contar [com o fato de] que no serei mais presidente, seja o que for, e me porei em posio de no sofrer

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    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 747

    mais vexaes saindo do pas, com o nimo de seguir para onde possa, segundo minha escassa fortuna. Sobre esse ponto voc saber mais na prxima correspondncia. Tinha pensado em lhe remeter os documentos de minha vida pblica, mas soube pelo coronel Wilson21 que o general, seu pai, tem a obra em dezesseis volumes, e que voc pode pedi-los emprestado para responder s calnias que esto inventando sobre mim. No vacile em negar positivamente todo fato contrrio ao que voc conhece do meu carter. Primeiro, nunca tentei estabelecer na Colmbia nem mesmo a constituio boliviana: tampouco fui eu quem fez isso no Peru; o povo e os ministros o fizeram espontaneamente. Sobre isso leia o manifesto de Pando daquele tempo, e esse um canalha que no ocultaria nada para favorecer-me. Segundo, tudo o que prfido, dbio ou falso que me atribua, completamente calunioso. O que tenho feito e dito, tem sido com solenidade e sem nenhuma dissimulao. Terceiro, negue voc redondamente todo ato cruel por parte dos patriotas, e se o fui cruel alguma vez com os espanhis foi por represlia. Quarto, negue voc todo ato interessado de minha parte, e pode afirmar sem ocultar que tenho sido magnnimo com a maior parte de meus inimigos. Quinto, assegure voc que no tenho dado nem um passo na guerra, de prudncia ou razo para que se possa me atribuir covardia. O clculo tem dirigido minhas operaes nesta parte, e ainda mais, a audcia. [...] Enfim, meu querido amigo, os documentos de minha vida do muitos meios de defesa, ainda que faltem a maior parte dos primeiros perodos de minha histria; mas como so nos ltimos anos os que mais me atacaram, voc encontrar sempre argumento nos fatos que se tem visto e esto escritos. [...] Remeto a voc a gazeta de hoje, pela qual se informar de algumas explicaes satisfatrias e ver, ao mesmo tempo, que deixei o mando para o senhor Caycedo por causa dos males que padeo, ainda que no sejam graves. No voltarei a tomar mais o mando, porque isso insuportvel sob todos os aspectos para

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    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 748

    mim. Por fortuna, no se dir que abandonei a ptria, sendo ela que tem me renegado do modo mais escandaloso e criminoso como no se tem visto nunca. Eu no sou to virtuoso como Fcio22, mas meus servios se igualam com os dele, e embora no me creia to desgraado como ele, algo se parece na ingratido de nossos concidados. (Carta para Jos Fernandez Madrid. Fucha, 06/03/1830. Tomo VII, R. 2680, p. 449. Original)

    Parte da correspondncia de Simn Bolvar perdeu-se,

    assim mesmo, h cartas de novembro e de dezembro de 1830. O general ditou cartas praticamente at o fim de sua vida. A correspondncia seria responsvel pela construo de um projeto futuro que, embora no estivesse ao alcance de um decreto seu para realizar-se, representava um horizonte alentador, com a qual o missivista fizera um pacto, arriscando-se at o fim de seus dias. Ademais, a escrita era catarse: por meio das palavras, o heri se humanizava. O ressentimento era verdadeiro, tinha de ser expurgado.

    IV.

    Cotejar a correspondncia bolivariana com a literatura amplia a compreenso quanto ao ressentimento e desiluso do general que, ao mesmo tempo, figura histrica, personagem de romance e persona missivista. O dilogo entre a histria e a literatura ilumina a circunstncia na qual Simn Bolvar esteve imerso. A escrita dramtica, que toma conta do epistolrio e aparece no romance de Mrquez, no carente de sentido: o missivista assistiu ao desmantelamento de seu mais caro projeto poltico; a unidade da Gr-Colmbia desfez-se e os comandantes desse processo foram os seus companheiros de outrora. Em Nova Granada, o federalismo conquistou espao na Constituinte de 1830 e, embora Bolvar no vivesse para assistir ao retorno de Santander de seu desterro, esse no s retornou como assumiu a presidncia do pas. Realmente instigante e despercebido numa verso oficial, convicta de que as cartas

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    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 749

    serviam apenas para a confirmao de dados, a delicada construo narrativa epistolar que fez do discurso da renncia e do ressentimento pea importante para a construo da memria da indispensabilidade.

    Por fim, h que se demarcar a existncia de um paradoxo: o discurso da renncia sinalizava muito claramente o desejo da construo da memria da indispensabilidade. J o discurso do ressentimento, muito mais difcil de permanecer sob o controle do missivista, embora quisesse tambm atuar no sentido de atestar a indispensabilidade, era o indicativo da derrota do indispensvel. Com o ressentimento, o general humanizava-se e, uma vez humano, tornava-se mortal e substituvel. O ressentimento revelou a perda da legitimidade e a necessidade de substituio da liderana, a despeito de todos os incontveis protestos do missivista. Mesmo assim, a memria herica, elaborada e conservada no epistolrio, salvou Simn Bolvar do esquecimento pstumo: o general deixou seu labirinto e entrou para a histria.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS BERBERT Jr., Carlos Oiti. Texto, contexto e dialogismo na obra de Dominick LaCapra. In: SERPA, lio Cantalcio et.al. Escritas da Histria: intelectuais e poder. Goinia: Editora da UCG, 2004. p. 53-70. DICCIONARIO DE HISTORIA DE VENEZUELA. Disponvel em: . GAY, Peter. O corao desvelado: a experincia burguesa da Rainha Vitria a Freud. So Paulo: Companhia das Letras, 1999. HARWICH, Nikita. Un hroe para todas las causas: Bolvar em la historiografia. Iberoamericana, [S.I.], v. 3, n. 10, p. 7-22, 2003. LECUNA, Vicente (Org.). Cartas del Libertador (1799-1817). 2. ed. Caracas: Fundacin Vicente Lecuna; Banco de Venezuela, 1964. Tomo I ao VII. MADARIAGA, Salvador. Bolvar: fracaso y esperanza. Mxico: Editorial Hermes, 1953. Tomo I. ______. Bolvar: victoria y desengano. Mxico: Editorial Hermes, 1953. Tomo II.

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    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 750

    MRQUEZ, Gabriel Garca. O General em seu labirinto. Rio de Janeiro: Record, 1989. MASUR, Gerhard. Simn Bolvar. Mxico: Biografias Grandesa, 1960. PIGLIA, Ricardo. O ltimo leitor. So Paulo: Companhia das Letras, 2006.

    FREDRIGO, Fabiana de Souza. Simon Bolivars correspondence and its presence in literature: an analysis of The General in His Labyrinth by Gabriel Garcia Mrquez. Histria, v.28, n.1, p.715-756, 2009. Abstract: Simon Bolivar, one of the most important South American leaders of independence within the areas of Spanish colonialism in South America, left behind an epistolary of 2815 letters. Our proposal starts off with the display of the narrative epistolary project and soon encounters one of its highlights in the course of the reading, which is the generals own resignation. The several requests of resignation from his administrative position, and the justifications that followed them had taken me to the analysis of what I called the memory of the indispensability. After investigating this speech in the epistolary, the relationship between literature and the biography had been fundamental in improving our understanding of the substance of this memory of the indispensability in the epistles. This article intends to compare Simon Bolivars letters and Gabriel Garcia Marquezs novel, The General in His Labyrinth. The hypothesis is that the literary text, besides using Bolivars epistolary to construct its character and the romantic scenario, opens possibilities of explanations concerning the project of memory arising from the writings in the letters, at the same measure in which it strengthens the cult of the Liberating General. Keywords: Memory; Letters; History; Literature.

    NOTAS

    1 Esse artigo parte da Tese de Doutorado intitulada Histria e memria no epistolrio de Simn Bolvar (1799-1830), defendida no

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    Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Estadual Paulista (UNESP). 2 O epistolrio de Simn Bolvar conta com 2.815 cartas, escritas entre os anos de 1799 e 1830. A coletnea utilizada na investigao foi organizada por Vicente Lecuna, o mesmo que cuidaria da restaurao da Casa Natal do Libertador na Venezuela e que se tornaria o guardio da documentao e da memria do Libertador. Teve-se acesso segunda edio das Cartas del Libertador, publicada em sete tomos, entre os anos de 1964 e 1969. 3 A ABNT omissa quanto citao de documentos tais como as cartas. Em virtude da particularidade dessa documentao (que exige deixar explcito o destinatrio, o lugar e a data da escrita da carta) e do fato de esta pesquisa ter lidado com uma coletnea organizada por terceiros, o que lhe obrigava, ainda, a indicar o tomo em que se encontrava a epstola, o nmero de seu registro e o tipo do documento (se era original ou cpia, anotando de onde era retirada, se de arquivo pblico, pessoal ou de jornais de poca), estabeleceu-se uma forma de citao peculiar. Para que os leitores no perdessem nenhuma informao, padronizou-se a citao das epstolas da seguinte forma: Carta para (destinatrio), Lugar e data de sua escrita, Tomo (I ao VII), R. (Registro, equivalendo ao nmero da carta na coletnea), p. (pgina da carta na coletnea), tipo. 4 Esse termo de minha autoria e serviu ao propsito de explicar o discurso da renncia, apresentando, em conjunto, os outros elementos retricos a ele associados a morte, o ressentimento, a doena e a solido. Sua primeira apario foi na j referida tese de doutorado. 5 Neste artigo, no h espao para discutir os sustentadores da memria bolivariana, mas no possvel duvidar da existncia do culto basta observar as tentativas inauditas do governo chavista. Para uma aproximao do tema historiogrfico, ver: Nikita Harwich. Um here para todas las causas: Bolvar en la historiografia, 2003. 6 Nos agradecimentos, Gabriel Garca Mrquez faz referncia aos historiadores colombianos Eugenio Gutirrez Celys, Fabio Puyo e Gustavo Vargas. Tambm cita o historiador bolivariano radicado em Caracas, Vinicio Romero Martinez. Ainda fazem parte da lista de agradecimentos: um ex-presidente, Belisario Betancur, dois embaixadores, Jos Eduardo Ritter (embaixador da Colmbia no Panam) e Anbal Noguera Mendoza (embaixador da Colmbia em Porto Prncipe), um linguista, Roberto Cadavid, um gegrafo, Gladstone

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    Oliva, um astrnomo, Jorge Prez Doval, e o que o autor chama de um parente oblquo do protagonista, Antonio Bolvar Goyanes. 7 Apelido que, segundo Gabriel Garca Mrquez, Bolvar teria dado a Francisco de Paula Santander aps sua briga com o vice-presidente da Gr-Colmbia. Esse apelido no aparece no epistolrio. Provavelmente, Mrquez retirou tal informao das Memrias de OLeary ou do Dirio de Bucaramanga, de Peru de la Croix fontes que o autor informa ter consultado. 8 Referncia ao Pico do vila, prximo Caracas. 9 A regio de Cartagena era governada por Mariano Montilla, amigo antigo de Bolvar e bolivarista convicto. Da, a conclamao da populao por meio de um dito. 10 Domingo Caycedo ocupava a presidncia do Congresso da Colmbia, que tinha sido instaurado em janeiro de 1830. At maro daquele ano, Bolvar permaneceu nominalmente como ditador e, em maro, entregou o poder que passou para Caycedo e, depois, Mosquera. 11 As referncias ao triunfo, s belas damas, aos arcos e alegria dos populares estiveram presentes numa carta endereada a Antonio Zea, escrita de Puente Real, em 26/09/1819, quando Bolvar narrara sua entrada em Bogot, aps a vitria em Boyac. Pode-se comparar o tom e a composio narrativa das cartas de Zea e Caycedo. Da comparao, fica a concluso sobre o entusiasmo da primeira frente ao agradecimento contido da segunda. Estabelecida a comparao, apesar do agradecimento formal, o ressentimento, embora no evidente, encontra-se implcito. 12 Em fins de 1829, Antnio Pez liderava mais um movimento autonomista (o anterior havia sido a La Cosiata). Desde novembro desse ano, Pez passou a desconhecer a autoridade de Bolvar e das instituies de Bogot, instaurando na prtica a separao da Venezuela Gr-Colmbia. Bolvar, ento muito doente, perdera o apoio militar e, consequentemente, o poltico, uma vez que a sua ltima tentativa centralizadora posta em prtica logo aps a dissoluo da Conveno de Ocaa, quando se atribuiu poderes de chefe supremo falhara. Para a manuteno da unidade entre a Venezuela e a Nova Granada, Antnio Pez imps a condio de que Simn Bolvar abandonasse a Colmbia, queria governar seu territrio sem maiores influncias. Uma Assemblia Nacional reunida em Caracas comunicou Nova Granada essa deciso e declarou que Simn Bolvar estava proscrito. Para provocar o desencanto completo ao general, Joaqun Mosquera, partidrio das fileiras santanderistas, foi eleito presidente

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    do congresso na Nova Granada. Em maro de 1830, Pez era eleito presidente da Venezuela por meio das assemblias eleitorais. 13 Pode-se encontrar tais referncias nas cartas escritas para Riva Aguero (13/04/1824) e para Sucre (20/01/1825). 14 Em setembro de 1830, Urdaneta e outros companheiros de Bolvar foram vitoriosos num golpe, ocorrido em Bogot e que derrubou o presidente Joaqun Mosquera, eleito em maio de 1830. Rafael Urdaneta assumiu a presidncia. 15 Gabriel Garca Mrquez esclarece que Longanizo foi o apelido dado a Simn Bolvar pelos granadinos. Esse apelido era o mesmo conferido a um indigente louco que era famoso porque perambulava pelas ruas com uniformes conseguidos em casas de belchior. 16 Militar, diplomata e poltico (Bogot, 1792-1857). Participou da Campanha de Ccuta sob as ordens de Bolvar, em 1813. Foi designado para as campanhas do Sul e do Apure. Representou, como deputado, a provncia de Casanare no Congresso de Angostura. Atuou em misses diplomticas na Europa ao lado de Pealver. (Diccionario de Historia de Venezuela. Disponvel em: . Acesso em: 29 nov. 2004, 00:17.). 17 Juan Jos Flores (Puerto Cabello, 1800 Equador, 1864). General e chefe do Exrcito Libertador, participou das guerras de independncia nos territrios da Nova Granada, Venezuela e Equador. Em 1823, assumiu o cargo executivo na provncia de Pasto, contrria independncia. Em 1830, quando o Equador decidiu sua sada da Gr-Colmbia, Flores assumiu a presidncia da repblica. Enfrentou muitos golpes em virtude da situao precria do pas, penalizado pelas mazelas deixadas pela guerra (Diccionario de Historia de Venezuela. Disponvel em: . Acesso em: 29 nov. 2004, 00:19.). 18 Nesta carta, Bolvar renunciava ao governo do Equador. Desde 1823, esse territrio, por uma ao militar de Sucre, foi incorporado a Gr-Colmbia. Muitos conflitos opuseram a Gr-Colmbia e o Peru, pois esse ltimo considerava ser seu direito ter posse do territrio de Guayaquil. Numa rebelio liderada por um colombiano, o general Bustamante, por sua vez, comissionado pelos peruanos, Guayaquil proclamara sua independncia da Gr-Colmbia, isso em 1827, em meio aos preparativos para a Conveno de Ocaa que deveria definir sobre as reformas da Constituio de Ccuta, que vigorava desde 1821. O plano de Bustamante era anexar o sul da Colmbia ao Peru. O general venezuelano Flores, que seria futuramente o presidente da

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    Repblica do Equador, foi quem ps fim aos planos rebeldes, entrando vitorioso em Guayaquil em setembro de 1827. Alm de Guayaquil, o Peru queria incorporar a Bolvia, que esteve, desde 1826, sob a presidncia de Antnio Jos de Sucre. Em 1827, foras peruanas, lideradas pelo general Gamarra, invadiram a fronteira boliviana, entretanto, Sucre conseguiu conter a rebelio. Considerando no ser o momento de aprofundar os problemas polticos entre a Gr-Colmbia e o Peru, Sucre no puniu Gamarra e afirmou que no era o caso de hostilizar os peruanos e incitar uma guerra. Os motins no terminaram e Sucre foi preso pelos rebeldes, o que obrigou a Bolvia a entrar em acordo com os insurgentes peruanos. Pelo acordo, seriam expulsas do pas as tropas colombianas. Em setembro de 1828, Sucre chegou em Quito e se instalou. Incidentes diplomticos entre a Colmbia e o Peru pioraram a situao, o que deflagrou a guerra. Em um contexto difcil para a manuteno da unidade no interior da Gr-Colmbia, uma guerra com o Peru foi considerada desastrosa. Os peruanos, sob a presidncia do general La Mar, ocuparam Guayaquil que foi retomada, aps uma campanha de trinta dias, pelo prprio Sucre, na Batalha de Tarqui (27/02/1829). O Tratado de Girn, firmado em 28 de fevereiro de 1829, concedia indenizaes a Gr-Colmbia e anotava o respeito sua integridade territorial. Assim mesmo, La Mar, desrespeitando o acordo, no se disps a entregar Guayaquil. Bolvar j se encontrava no Sul e preparava seu exrcito para sitiar a cidade tomada pelos peruanos. No entanto, a situao foi solucionada pela destituio de La Mar da presidncia por meio de um golpe produzido em Lima. O novo governo, liderado pelo General Andrs de Santa Cruz, ratificou o Tratado de Girn e agradeceu os servios prestados pela Colmbia para a independncia peruana. O exrcito colombiano ocupou Guayaquil (MASUR, 1960, p. 543-547). 19 Jos Bernardo de Tagle, Marqus de Torre Tagle (1779-1825). Atuou como deputado nas Cortes de Cdiz at 1817. Em 1820, declarou a independncia de Trujillo e, com a ausncia de San Martn, assumiu o governo peruano. Foi presidente da Repblica do Peru entre os anos de 1823 e 1824. (Dados disponveis em: . Acesso em: 25 out. 2004, 19:30.). 20 Jos Fernndez Madrid (Cartagena, 1789 Londres, 1830) descendeu de uma famlia da aristocracia criolla, seu pai e seu av foram funcionrios da corte espanhola. Exerceu as profisses de mdico, jornalista e poeta. Foi responsvel pelos poemas patriticos, inspirados

  • A CORRESPONDNCIA DE SIMN BOLVAR...

    HISTRIA, So Paulo, 28 (1): 2009 755

    pela proclamao da Primeira Repblica na Venezuela: Aos libertadores da Venezuela de 1812 e morte do General Atansio Girardot. A dcada de dez do sculo XIX tambm conheceu seus primeiros escritos polticos. Fez parte do I Triunvirato que governaria Nova Granada em 1815. Preso por Morillo, seguiu para Espanha e, no final de 1816, j estava em Havana, onde foi liberado para exercer a medicina e dedicou-se a escrever monografias cientficas. De Cuba, manteve contato com Bolvar, entusiasmado pelo plano do general em intervir na situao cubana. Em 1826, de volta Cartagena, atuou como diplomata em misses na Frana e Inglaterra. Depois da morte de suas filhas, faleceu em um povoado prximo de Londres, em 28 de junho de 1830, aos 41 anos de idade (Por: Gregrio Delgado Garca. Trabalho apresentado em Havana, Cuba, 28/11/1994). (Texto disponvel em: . Acesso em: 02 dez. 2004, 17:00.). 21 Referia-se ao coronel irlands, seu ajudante de campo, Belford Hinton Wilson, filho de um veterano general das guerras europias, Robert Wilson. 22 A grafia usada na carta Focin. Considera-se que Simn Bolvar quis aludir Fcio, um heri grego condenado morte em 317 a.C. por falsas acusaes de traio. Artigo recebido em 04/2009. Aprovado em 06/2009