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EDITORIAL

POLÍTICAS PÚBLICAS?A corrupção venceu a esperançaMaria Lucia Fattorelli Carneiro

Desvendando a política da educação superior do governo LulaCelia Regina Otranto

Faces da privatização do fundo público no Brasil: a utilização dos recursos do FAT pelo BNDESGeorgia Sobreira dos Santos Cêa

POEMA PARA AMANHÃLuiz Paiva de Castro

OS DESAFIOS PARA A UNIVERSIDADEPrecarização do trabalho docente no Brasil: novas e velhas formas da dominação capitalista (1980-2005)Antônio de Pádua Bosi

Crise e privatização da universidade pública: de Fernando Henrique a Lula da SilvaVera Lúcia Jacob Chaves

Precarização do trabalho docente: docentes da carreira de 1º e 2º graus em questãoAgostinho Beghelli Filho

DEBATES CONTEMPORÂNEOSO Banco Mundial e o combate à pobrezaRamon de Oliveira

A juventude e a ideologia da sociedade de consumoAltair Reis de Jesus e Antônio da Silva Câmara

Política de cotas: interesses em disputa na educaçãoDileno Dustan Lucas de Souza e Roberto Boaventura da Silva Sá

Crise ecológica e capitalismoOsvaldo Coggiola

Mulher e negra: a subjetividade oprimidaGraziela de Oliveira

Sumário

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 5

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 9

Após 500 anos de exploração colonialista ede domínio das elites, que fizeram destepaís um dos mais desiguais do mundo,

submetendo-o à ditadura do capital sob todasas formas, uma esperança sem precedentes to-mou conta do povo brasileiro. A eleição deum trabalhador para comandar o Brasil cons-tituía a esperança não somente dos brasilei-ros, mas também das demais nações explora-das do Sul, que vislumbravam a possibilidadede este nosso gigante país liderar uma mu-dança na correlação de forças que regem a he-gemonia do capital.

Quase no final do mandato de Lula, a ava-liação que fazemos, do ponto de vista dos tra-balhadores e movimentos sociais, é deprimen-te e revoltante. O modelo econômico neolibe-ral iniciado por Collor e consolidado por FHCfoi ainda mais aprofundado pelo atual gover-no, que deu seqüência às reformas do Estado emanteve a prioridade do capital, remunerando

os rentistas como nunca, à custa de enorme sa-crifício imposto à sociedade. A “Carta ao PovoBrasileiro”, divulgada em 22 de junho de 2002,foi o início da guinada de um projeto que vinhasendo construído há 20 anos. Apelidada de“Carta aos Banqueiros”, tornou vazios ou semfundamento os marcos da campanha de Lula eseus nobres compromissos contidos no livri-nho azul (Concepção e Diretrizes do Programade Governo do PT para o Brasil – Lula 2002),editado em março de 2002. Traindo o povobrasileiro, nesta “Carta” Lula disse: “Vamospreservar o superávit primário o quanto fornecessário para impedir que a dívida internaaumente e destrua a confiança na capacidadedo governo de honrar os seus compro-missos.”

À medida que o governo Lula e o PT assu-miam o projeto que fora derrotado nas elei-ções, diluía-se a esperança de mudança daque-les que efetivamente elegeram um trabalhador

A corrupção venceu a esperançaMaria Lucia Fattorelli Carneiro

Auditora fiscal da Receita Federal, diretora do Unafisco Sindical

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Políticas Públicas?

para o cargo de presidente da República. Apartir do momento em que o governo fez aopção pelo mercado financeiro - pelo projetodos que não o elegeram - e passou a adotar me-didas neoliberais, o ritmo do processo se ace-lerou, pois já não tínhamos mais a oposição pa-ra exercer o papel antes desempenhado peloPT e demais partidos que passaram a compor abase do governo no Congresso. Assim, foi au-mentado o superávit primário para conquistara confiança dos mercados; foram aprovadas areforma da Previdência, a fatia da reforma tri-butária que interessava ao capital (continuida-de da Desvinculação das Receitas da União –DRU1 - e da CPMF), a Lei de Falências, entreoutras. Paralelamente, o governo acelerou a re-forma universitária. O GovernoLula também promoveu diver-sos leilões das ricas jazidas depetróleo da costa brasileira; au-torizou a comercialização detransgênicos; efetuou a maior re-forma cambial e financeira de to-dos os tempos, à revelia do Con-gresso Nacional, liberando amovimentação de capitais deforma temerária para o país;emitiu títulos da dívida interna e externa aosbilhões e introduziu, também à revelia doCongresso Nacional, a famigerada cláusulaCAC2 nos títulos da dívida externa.

Não esperávamos que o governo Lula resol-vesse, em seu mandato, os problemas que fla-gelam o país há 500 anos. O que não contáva-mos é que fosse ainda mais ortodoxo que seuantecessor, em todas as áreas, e ainda, que seenvolvesse em tamanha corrupção.

Logo que tomou posse, Lula elegeu a refor-ma da Previdência como prioritária. O merca-do, ávido pela privatização da previdência dosservidores públicos em favor dos fundos depensão, exigia uma prova que fosse além dodiscurso e da Carta, o que fez com que Lula

subisse a rampa do Congresso Nacional paraentregar o projeto pessoalmente ao seu presi-dente, demonstrando publicamente que defato havia mudado. O interesse do mercado fi-nanceiro e dos fundos de pensão falou mais al-to que os direitos dos funcionários públicos -ativos e aposentados. Os parlamentares que semantiveram fiéis aos princípios defendidos emtoda a história do PT restaram expulsos dopartido. Outros, da base do governo, que seposicionavam a favor dos servidores, eram su-mariamente substituídos nas comissões. Apressão foi brutal. A imensa mobilização deservidores públicos, que somaram mais de 80mil na Esplanada dos Ministérios, em Brasília,naquele início de agosto de 2003, não foi sufi-

ciente para interromper a vota-ção, que hoje sabemos estava re-gada pelos milionários “mensa-lões”. A repressão à luta dos tra-balhadores, em alguns momen-tos, remeteu nossas lembrançasaos amargos tempos da ditadura,pois fomos proibidos de assistirà sessão da Câmara dos Deputa-dos que votava, na madrugada, aPEC 40; a polícia armada, con-

vocada pelo próprio presidente, deputado JoãoPaulo (PT-SP), impedia o acesso dos servido-res públicos; e aqueles companheiros que con-seguiram entrar foram levados aos porões des-conhecidos da “Casa do Povo”.

A classe trabalhadora aguardava uma me-lhor distribuição de renda, pois havia o com-promisso de implementar mudanças no siste-ma tributário (página 54, item 62 do livrinhoazul)3, tornando-o mais justo; de promoverajustes na política de juros (página 53, item 60);de realizar auditoria da dívida pública (página47, item 51); estabelecer controle de capitais(página 50, item 54); rever o processo de priva-tizações dos governos anteriores (página 51,item 57) e recuperar o poder de compra do sa-

A classe trabalhadoraaguardava uma melhordistribuição de renda,

pois havia ocompromisso de

implementar mudançasno sistema tributário,tornando-o mais justo.

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Políticas Públicas?

lário mínimo. O que se efetivou, na prática, foio aumento da carga tributária sobre o consu-mo, penalizando-se a camada da população demais baixa renda e aumentando ainda mais aregressividade do sistema. Foi um período dejuros exorbitantes, de uma remuneração do ca-pital sem precedentes em toda a história; damaior transferência de recursos para o exterior,de mais benesses tributárias para o capital, demaior liberação financeira e comercial, de maiorliberdade cambial. O compromisso de realizara auditoria da dívida foi transformado no com-promisso de privilégio total para a dívida, au-mentando-se o superávit primário a cada ano esuperando-se as metas estabelecidas pelo FMI.Ao invés de rever o processo das privatizações,o governo deu passos temeráriosno caminho da privatização daprevidência social (por meio dareforma que promoveu a mul-tiplicação dos fundos de pensão),da privatização do ensino univer-sitário (por meio do ProUni) e dasjazidas de petróleo, arrematadaspor companhias estrangeiras nosleilões oficiais. Parlamentares dabase do governo que votaram con-tra o pífio reajuste proposto pelogoverno para o salário mínimo sofreram penas deadvertência e suspensão.

O presidente sindicalista enviou ao Con-gresso Nacional projeto de reforma sindicalcom viés contrário aos interesses dos traba-lhadores, enfraquecendo a organização sindi-cal e as possibilidades de luta por melhores con-dições para a classe trabalhadora. Esta reformanão chegou a ser aprovada, graças à mobilizaçãotanto do setor público quanto do privado, quedenunciaram que tal reforma visava a enfraque-cer os sindicatos para preparar terreno para ogolpe seguinte - a reforma trabalhista. O presi-dente Lula chegou a afirmar, em reunião comjornalistas, dia 11 de fevereiro de 2004: “Tudo é

negociável, menos as férias de 30 dias”. A reforma universitária também foi lançada

pelo governo, que também aprovou o chama-do “Pró-Uni”, privilegiando as universidadesprivadas por meio da isenção de tributos im-portantes: Imposto de Renda, ContribuiçãoSocial sobre o Lucro, PIS e COFINS. Em tro-ca, exige que as faculdades privadas ofereçambolsas de estudo no valor de apenas 8,5% de suareceita. Ora, em vez de investir no ensino supe-rior público, recuperando as instalações, inves-tindo em pesquisas, aumentando o número devagas e remunerando os professores com digni-dade, o governo promove uma “compra de va-gas” junto às faculdades privadas, que agora po-dem mais facilmente resolver seus maiores pro-

blemas: a ociosidade decorrente desobra de vagas e a inadimplência,fruto da queda da renda dos brasi-leiros nos últimos anos.

Está claro que o problema daeducação no Brasil é grave, con-forme recente estudo da Unesco,divulgado em 25 de abril de 2006,que coloca o Brasil em 126º lugarno ranking de repetência no ensi-no fundamental (1ª a 4ª séries),dentre os 142 países que inte-

graram o estudo. A taxa de repetência brasi-leira, de 20,6%, é superior à da Argentina(6,4%), Venezuela (7,3%), Paraguai (7,3%), eaté mesmo do Haiti (15,4%), o país mais po-bre das Américas4.

Com relação ao ensino médio, dados do pró-prio Ministério da Educação comprovam que osestudantes das escolas secundárias privadaspossuem propensão significativamente superiorpara entrar nas faculdades públicas. Enquantoapenas 12,1% dos estudantes do ensino médio es-tão nas escolas privadas, nas universidades fede-rais nada menos que 42,5% das matrículas são dealunos provenientes do ensino médio privado5.Agravando a situação, apenas 17,3% da popula-

A taxa de repetênciabrasileira, de 20,6%, ésuperior à da Argentina

(6,4%), Venezuela(7,3%), Paraguai

(7,3%), e até mesmo doHaiti (15,4%), o país

mais pobre dasAméricas.

ção brasileira entre 18 e 24 anos está matriculadano terceiro grau, de acordo com o Censo da Edu-cação Superior de 20046.

Tentando desviar a atenção dos principaisproblemas da educação superior no Brasil, ogoverno propagandeia a criação de cotas paranegros e índios como uma grande ação. Porém,dada a magnitude destas estatísticas, é evidenteque isso não resolve o problema, pois adia parao momento do vestibular um problema crôni-co de falta de investimento efetivo também emeducação fundamental e média.

Na área de especialidade do presidente foiinstalada, no início do governo, em maio de2003, a Mesa Nacional de Negociação Perma-nente (MNNP), no âmbito do Ministério doPlanejamento, com a promessa de estreitar odiálogo e incentivar a negociação com os tra-balhadores do setor público. Entretanto, à re-velia da Mesa, o governo encaminhou as pro-postas de reajuste linear de 1% em 2003, 3,5%em 2004 e 0,1% em 2005, muito aquém da in-flação do período! As discussões das pautasdos servidores não avançaram, sob a constantejustificativa de contenção de gastos para secumprir a meta do superávit primário, razãopela qual a MNNP passou a ser chamada demesa de enrolação ou encenação.

Com relação ao desemprego, nos doisprimeiros anos do governo Lula a sua taxafoi maior que a observada em 2002, últimoano de FHC, segundo o Dieese (Tabela 1).No ano de 2003, devido à política econô-mica recessiva, foi observado o recorde his-tórico de desemprego em nos-so país. Apenas em 2005 o atualgoverno conseguiu obter umataxa de desemprego menor queseu antecessor, porém, bemperto da taxa observada em1998. Será este o paraíso dacriação de empregos, anuncia-do pelo governo?

Tabela 1

Ano Taxa de Desemprego

1998 18,53

1999 20,22

2000 18,87

2001 18,71

2002 19,49

2003 20,73

2004 19,74

2005 18,01

Fonte: Dieese. Elaboração da autora, com base na média da taxa de de-semprego de seis regiões metropolitanas (São Paulo, Distrito Federal, PortoAlegre, Salvador, Recife e Belo Horizonte), ponderada pela PEA de cadaregião metropolitana.

Quando falamos de renda do trabalho e deformalização do emprego, Lula também perdepara FHC: nos três primeiros anos de mandatode Lula, o salário médio percebido pelos traba-lhadores foi sempre menor que o recebido em2002, e o número de trabalhadores com cartei-ra assinada seguiu o mesmo comportamento,como se vê na Tabela 2 (página seguinte).

Em vez de enfrentar a ganância dos merca-dos financeiros e praticar uma política econô-mica que garantisse investimentos e geração deemprego, renda e dignidade, o governo prati-cou a política econômica mais ortodoxa, segu-rando a inflação com as taxas de juros maiselevadas do mundo e excessivos cortes nos gas-tos e investimentos públicos, optando por pro-gramas assistencialistas e compensatórios, pas-sando a distribuir “bolsas-esmola” de forma

populista e paliativa. É umavergonha que um dos maioresprodutores de alimentos domundo - 120 milhões de tone-ladas de grãos por ano - tenha50 milhões de famintos e precisede um programa como o “FomeZero”. No fundo, este problemaestá ligado com a questãoagrária, cuja solução passa pela

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Políticas Públicas?

É uma vergonha que umdos maiores produtoresde alimentos do mundo

tenha 50 milhões de famintos e precise

de um programa como o “Fome Zero”.

TAXA DE DESEMPREGO, 1998 A 2005

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 13

necessária reforma agrária, quetambém havia sido prometidapor Lula e não ocorreu.

Aprofundou-se a política desuperávit primário, que foi cres-cendo e superando as metas exi-gidas pelo FMI ano a ano, pas-sando de 3,89% do PIB em 2002para 4,25% em 2003; aumen-tando para 4,59% em 2004 e pa-ra 4,84% em 2005, com compromisso de ma-nutenção dessa política nos próximos quatroanos, conforme a Lei de Diretrizes Orçamen-tárias 2007 (LDO), encaminhada pelo governoao Congresso Nacional.

Destoando completamente das propostasque constavam do livrinho azul, o governo en-viou ao Congresso Nacional o projeto de “Fu-são dos Fiscos”, que concentra toda a arreca-dação federal de tributos em geral e contribui-ções previdenciárias no âmbito do Ministérioda Fazenda e, simultaneamente, discute pro-postas de “déficit nominal” zero (que signifi-cará aumento do superávit primário para 7% a8% do PIB!) e “aumento da DRU”, que hojejá retira 20% de receitas vinculadas pela Cons-tituição Federal às áreas da saúde, educação,assistência e previdência. É evidente que a cha-mada “Super Receita” representa séria ameaçaao financiamento da previdência pública nopaís, pois tudo caminha no sentido de engor-dar ainda mais o elevadíssimo superávit primá-

rio, que tem sido obtido à custade muito sacrifício: por um lado,o superávit é produzido pelocrescente aumento da carga tri-butária e, por outro, por drásti-cos cortes nos investimentos egastos sociais promovendo-se ocontingenciamento de fatias sig-nificativas do que está destinado,no Orçamento, às diversas áreas

sociais. Em 2005, por exemplo, nem o progra-ma Fome Zero foi poupado. E todos sabemoso custo social dessas medidas, que significarama subtração de recursos essenciais e urgentes àsociedade brasileira.

A carga tributária brasileira equivale a de paí-ses de primeiro mundo, que garantem um re-torno incomparável ao que o governo brasileiroproporciona. Ela aumentou quase 7% do PIBnos últimos dez anos, e o modelo tributário temse tornado cada vez mais regressivo, onerando oconsumo e os trabalhadores. Quase 60% de tu-do o que se arrecada no Brasil7 é a título de tri-butos sobre consumo, embutidos nos preços, oque faz com que a sociedade não tenha cons-ciência do tributo que paga, pois as empresasapenas transferem para o preço de seus produ-tos e serviços o ônus tributário e quem paga aconta é o consumidor final. Quanto mais pobre,proporcionalmente, mais se paga, pois a tota-lidade da renda que o pobre consegue auferir édestinada ao consumo.

Políticas Públicas?

Quase 60% de tudo o que se

arrecada no Brasil é a título de

tributos sobre consumo,

embutidos nos preços,

o que faz com que a sociedade

não tenha consciência

do tributo que paga.

Tabela 2

(em R$ de fevereiro de 2006)

Ano Valor (R$) Trabalhadores com Carteira (%)

2002 1.132,19 45,53

2003 989,57 44,07

2004 999,11 43,69

2005 1.021,38 45,04

Fonte: IBGE (PME, Tabelas 43 e 140). Elaboração da autora. No caso do rendimento médio, considerou-se a média do período de fevereiro a dezembrode cada ano, uma vez que não havia dados para janeiro de 2002. No caso da percentagem de trabalhadores com carteira, considerou-se a média doperíodo de março a dezembro de cada ano, uma vez que não havia dados para janeiro e fevereiro de 2002.

RENDIMENTO MÉDIO REAL MENSAL DO TRABALHO E PERCENTAGEM DE TRABALHADORS COM CARTEIRA

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE14 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

Por outro lado, permanecem livres de tri-butação ou com tributação amena os latifún-dios, os lucros distribuídos, as remessas para oexterior, as grandes fortunas, as aplicações deestrangeiros em Bolsa de Valores e no mercadofinanceiro. Os ganhos dos ricos nunca foramtão elevados e com total liberdade para sair dopaís, prejudicando a implantação de uma re-forma tributária justa, sob o infame argumentoapresentado pelo governo de que “se tributar ocapital, ele foge do país”. Ora, foge porque nãose implanta uma política de controle de capi-tais, que, aliás, também havia sido prometidano livrinho azul e, na prática, se fez o contrá-rio. Além de impossibilitar a implantação deum modelo tributário mais jus-to, a falta de controle de capitaistem deixado o país vulnerável etem permitido operações de la-vagem de dinheiro, fruto dosmais diversos crimes.

O setor financeiro tem sidoum dos mais privilegiados por es-sas distorções do modelo tribu-tário, aliadas à prática de taxas dejuros exorbitantes, batendo recordes históricosde lucros, nunca vistos no país ou em qualquerparte do mundo, como se vê na Tabela 3.

Tabela 3

Ano Lucro dos bancos (R$ mil)

1996 -4.423.259

1997 4.235.378

1998 688.247

1999 13.089.980

2000 9.264.601

2001 814.201

2002 20.212.105

2003 19.071.440

2004 24.287.054

2005 33.844.079

Fonte: Banco Central.

Enquanto no período de 1996 a 2002 a mé-dia de lucro dos bancos foi de R$ 6,3 bilhõespor ano, no governo Lula a média anual doslucros quadruplicou para R$ 25,7 bilhões. Em2005, bancos como o Itaú e o Bradesco lucra-ram mais de R$ 5 bilhões cada um! O impostopago por tais instituições não cresceu namesma proporção, pois o setor goza de de-duções esdrúxulas como a dos “juros sobre ocapital próprio”8, além de uma série de be-nesses tributárias.

Os grandes empresários também batem re-cordes de lucro, beneficiados com isenções ereduções fiscais, principalmente exportadorese multinacionais que compraram estatais a pre-

ços indecentemente baratos eagora surfam na conjuntura fa-vorável do mercado internacio-nal. O maior exemplo é a Vale doRio Doce, cujo lucro de R$ 10,4bilhões obtido no ano de 2005superou o valor de venda de to-do o seu patrimônio, por apenasR$ 10 bilhões em 1997.

Em resumo, o Estado estásendo financiado pelos mais pobres, o que éevidenciado nos dados que demonstram a con-centração de renda no Brasil. Essa distorçãoconsta do último relatório da ONU sobre de-sigualdade social e respeito aos direitos huma-nos, o qual divulga que no Brasil 46,9% darenda nacional concentram-se nas mãos dos10% mais ricos. Já os 10% mais pobres ficamcom apenas 0,7% da renda. O estudo revelaainda que a transferência de 5% da renda dos20% mais ricos do país para os mais pobresseria capaz de retirar 26 milhões de pessoas dalinha da pobreza e reduzir a taxa de pobreza de22% para 7%. A via mais óbvia para se efetuaressa transferência de renda seria via tributaçãodos ricos, o que só será possível se conse-guirmos conscientizar a população - que efe-tivamente financia o Estado - sobre a necessi-

Políticas Públicas?

Enquanto no período de1996 a 2002 a médiade lucro dos bancos foide R$ 6,3 bilhões por

ano, no governo Lula amédia anual dos lucros

quadruplicou para R$ 25,7 bilhões.

LUCRO DOS BANCOS

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Políticas Públicas?

dade de mobilizar e lutar por um modelo tri-butário mais justo.

O citado relatório da ONU sobre desigual-dade social e respeito aos direitos humanos re-vela ainda uma situação vergonhosa:

- Com relação à distribuição da renda nacional,o relatório aponta que o Brasil é o oitavo país domundo em desigualdade social, perdendo a po-sição de campeão mundial em desigualdade apenaspara a Guatemala e mais seis países africanos: Sua-zilândia, República Centro-Africana, Serra Leoa,Botsuana, Lesoto e Namíbia;

- Relativamente ao Índice de Desenvolvi-mento Humano, o Brasil ocupa a63ª posição, atrás de países quepossuem condição bem maiscomplicada em termos de ordemconstitucional, Estado de direitoe recursos, como a Macedônia ea Malásia.

Infelizmente, temos de admitirque tais relatórios refletem oquadro de enormes injustiças so-ciais que presenciamos em nossopaís: miséria, fome, desnutrição,desemprego urbano e rural, fa-velização, analfabetismo, violên-cia, ausência de serviços de saúde eassistência social para grande parte da população.

Quais as razões para essa vergonhosa situa-ção, se somos um país potencialmente tão rico;se possuímos extenso território privilegiadocom recursos naturais, humanos, culturais,econômicos de todos os setores - industrial,agrícola, comercial, serviços?

A grande amarra, que não deixa nosso paísdeslanchar e seguir seu rumo de grande naçãoque garante direitos humanos e vida digna paratodos os seus habitantes é o modelo econômi-co equivocado, subserviente aos interesses docapital financeiro nacional e internacional, quegira em torno do questionável processo de en-dividamento interno e externo.

Apenas para ilustrar, nos seus quatro anosde governo, Lula destinará para os juros eamortizações das dívidas externa e internanada menos que R$ 717 bilhões, enquantogastará R$ 63 bilhões com educação, R$ 137bilhões com saúde e R$ 12 bilhões com re-forma agrária.

É por isso que, no início deste artigo, friseique estava fazendo uma avaliação crítica doponto de vista dos trabalhadores e movimen-tos sociais, já que do ponto de vista do merca-do financeiro, dos rentistas e dos grandes em-presários a avaliação é inversa.

Os recursos destinados aosjuros da dívida impedem a reali-zação de investimentos geradoresde emprego, a implementação depolítica agrária e a prestação deserviços públicos, especialmenteeducação e saúde, levando a umaumento visível do processo de fa-velização nas cidades, provocandocrescimento brutal do número deassaltos, crimes, presídios super-lotados. Enfim, vem caindo signi-ficativamente a qualidade de vidada população nos últimos anos.

No que se refere à políticaexterna, o governo faz propaganda de quepagou ao FMI e está resgatando antecipada-mente títulos da dívida externa - os Bradies.Na verdade, o que se fez foi uma troca de dí-vida antiga por nova, mais cara e com maiscondicionalidades9.

No caso do FMI, não ficamos livres das amar-ras que ditam a política econômica; tanto é quecontinuamos custeando as periódicas “visitas”dos técnicos do Fundo, que vêm auditar nossascontas. Em termos políticos, portanto, prosse-guimos atrelados. Em termos financeiros foi umpéssimo negócio para o Brasil, que pagou dívidacujo custo era de cerca de 4% ao ano, ao mesmotempo em que está emitindo aceleradamente

Nos seus quatro anos degoverno, Lula destinará

para os juros eamortizações das dívidas

externa e interna R$ 717 bilhões,

enquanto gastará R$ 63 bilhões com educação,

R$ 137 bilhões comsaúde e R$ 12 bilhõescom reforma agrária.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE16 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

títulos da dívida externa que chegam à marca de12,75% ao ano, e com a cláusula CAC, além dastaxas, comissões e demais despesas para colo-cação desses títulos no exterior, que sequer sãodivulgadas.

No caso do recente resgate dos títulos Bra-dies, também assistimos a uma brutal trans-ferência de recursos públicos para a banca pri-vada ao se resgatar por 100% do valor de facetítulos de baixa liquidez - como afirmou o pró-prio governo - e com taxas de juros mais baixasque as incidentes sobre os novos empréstimostomados pelo Brasil.

O governo se vangloria da queda do risco-país. É preciso inicialmente alertar para o fatode que as agências que medem o risco são asmesmas que recomendavam investimento nasempresas americanas envolvidas em escândaloscontábeis. Em segundo lugar, isso reflete aabundância de recursos nos mercados interna-cionais de capital, visto que o risco-país caiupara todos os emergentes: até o final do anopassado o risco médio desses países ainda eramenor que o risco Brasil, e ainda hoje se en-contra bastante próximo ao nosso. Até mesmoos países que recentemente passaram por mo-ratória - como Argentina e Rússia - estão como risco menor ou próximo ao nosso. Em ter-ceiro lugar, com a cláusula CAC, o mercado sesente bastante seguro, pois sabe que poderá di-tar regras caso haja necessidade de uma rene-gociação. Portanto, não há motivo para se fes-tejar a queda do risco-país medido pelas polê-micas agências internacionais, pois ele refleteum aumento do risco para nossa soberania.

Nesse cenário de juros estratosféricos, a dívidapública nunca esteve tão elevada e alcança pata-mares altíssimos. A dívida interna ultrapassou amarca de um trilhão de reais em dezembro de2005 e a dívida externa permanece alta, na casados US$ 188 bilhões em fevereiro de 2006. O go-verno brasileiro está emitindo títulos da dívidaexterna de forma acelerada, conforme pode ser

visto em tabela constante da página da Secretariado Tesouro Nacional10. O crescimento exponen-cial da dívida se deve a essa política suicida dejuros altos e baixo crescimento econômico, pro-vocada justamente pela subtração de investimen-tos e gastos para dar conta dos mega superávitsprimários a cada ano.

Sabemos que a dívida é o pano de fundo dosproblemas nacionais. É por causa da dívida quenão há recursos para investimentos e para ser-viços sociais essenciais. O elevado grau de en-dividamento tem sido usado, nos últimos anos,como justificativa para imposição de enormessacrifícios: modelo agrícola voltado para ex-portação, em detrimento da urgente reformaagrária; privatizações de empresas estratégicase lucrativas; elevação das taxas de juros; au-mento da carga tributária, aliado a cortes de in-vestimentos e gastos sociais para cumprir asmetas de superávit primário. Esse endivida-mento ilegal e ilegítimo é o responsável pelatransferência para o exterior de quantias supe-riores às que tomamos emprestadas, e, aindaassim, a auditoria prevista na Constituição de1988 não foi realizada.

E sequer sabemos que dívida é essa, comoela surgiu, quem se beneficiou, porque cresceutanto e tão velozmente. Por isso é fundamentalque todas as forças vivas da sociedade se unampara exigir que se cumpra a Constituição Fede-ral e se realize uma completa auditoria desseobscuro processo de endividamento. Enquan-to o Congresso Nacional se omite, grande es-forço tem sido despendido pelas entidades queintegram os trabalhos da Auditoria Cidadã daDívida, movimento inserido na Campanha Ju-bileu Sul Brasil, que consiste em levantar infor-mações, buscar documentos, realizar estudos edivulgar periodicamente tais informações, afim de manter o tema do endividamento emdebate e denunciar as verdadeiras causas doatual estado de desrespeito aos direitos huma-nos em nosso rico país11.

Políticas Públicas?

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Nesse final de mandato, po-demos dizer que, infelizmente,as metas estéreis, especialmenteas de inflação e de superávit pri-mário, tiveram prioridade total,em detrimento das metas sociaise humanas. Prevaleceu a “Cartaaos Banqueiros”. Venceu a op-ção pelo aprofundamento domodelo capitalista, um modeloque em si é corrupto, pois cor-rompe mecanismos e instrumen-tos da economia do país para transferir rendados pobres para os ricos, e de países pobres pa-ra os países ricos. O resultado não poderia seroutro: vários integrantes do governo e do PT,no Executivo e Legislativo, desmoralizados porenvolvimento com a corrupção que marca ostempos atuais, denunciados pelo MinistérioPúblico, acusados de formação de quadrilha, la-vagem de dinheiro, evasão ilegal de divisas, cor-rupção ativa e passiva e peculato, conforme de-núncia enviada ao STF em 30 de março de 2006.

De acordo com a investigação do procura-dor-geral, o esquema do mensalão era uma or-ganização criminosa dividida em três núcleos:o político-partidário, o publicitário e o finan-ceiro12.

Infelizmente, a corrupção venceu a esperan-ça. Não foi desta vez, porém, prosseguiremosna luta por um governo popular que promovauma profunda mudança rumo à recuperaçãode nossa soberania e à garantia do atendimentoaos direitos essenciais da sociedade brasileira,mediante acesso à saúde, educação, trabalho,moradia, terra, segurança, assistência, de formaa obtermos um desenvolvimento de forma jus-ta e solidária.

NOTAS

1 A Desvinculação das Receitas da União (DRU) retirarecursos das áreas sociais para os quais a ConstituiçãoFederal garante uma vinculação - como educação, saúde

e previdência - e permite que o governoos destine para o pagamento de juros dadívida pública.2 Cláusula de Ação Coletiva (CAC).Exigência do Fundo Monetário Inter-nacional (FMI). Esta cláusula transfereaos detentores de 85% dos títulos o po-der de decidir como será sua renegocia-ção, no caso de dificuldade de pagamen-to, e ainda transfere para Nova York oforo para o caso de litígio, ferindo fron-talmente a soberania nacional.3 Diz o texto: “Do lado das receitas, co-loca-se a necessidade de realizar uma re-

forma tributária ampla, baseada nos critérios de eficáciada arrecadação e de justiça-fiscal. É preciso desonerar aprodução, reduzir os tributos sobre os assalariados e asclasses médias (progressividade dos impostos), taxargrandes fortunas e grandes heranças e ampliar a base dearrecadação, ao reduzir as brechas para a evasão e a sone-gação fiscais (por exemplo, através do acesso aos dadosda CPMF).”4 O Globo, 26 abr. 2006.5 Informativo INEP, n. 130, 6 mar. 2006. Disponívelem:<http://www.inep.gov.br/informativo/infor-mativo130.htm>.6 Folha de S. Paulo, 18 abr. 2006. Disponível em:<http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u18558.shtml>.7 Não se consideraram as contribuições previdenciáriassobre a folha de salários.8 Despesa permitida pela Lei nº 9.249/95, artigo 9º, quepossibilita a dedução do valor dos juros calculados sobreo próprio capital, para fins de apuração do Imposto deRenda Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Socialsobre o Lucro Líquido (CSLL), beneficiando somentepessoas jurídicas altamente lucrativas.9 Ver recentes artigos Contradição inexplicável e Carna-val da dívida externa. Disponível em: <www.divida-au-ditoriacidada.org.br>.10 Disponível em: <http://www.stn.fazenda.gov.br/-divida_publica/downloads/soberanosinternet.xls>.11 Disponível em: <www.divida-auditoriacidada.-org.br>.12 Ver notícia e íntegra da denúncia do Procurador-Geral daRepública. Disponível em: <http://www.pgr.mpf.gov.br/-pgr/imprensa/iw/nmp/public.php?publ=6890>.

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É fundamental que todasas forças vivas da

sociedade se unam paraexigir que se cumpra a

Constituição Federal e serealize uma completa

auditoria desse obscuroprocesso de

endividamento.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 19

Areforma da educação superior do governoLula da Silva iniciou oficialmente o seucurso, com o Decreto de 20 de outubro de

2003, que instituiu o Grupo de Trabalho In-terministerial (GTI) encarregado de analisar asituação da educação superior brasileira eapresentar um plano de ação visando a rees-truturação, desenvolvimento e democratizaçãodas Instituições Federais de Ensino Superior(IFES). O GTI foi composto por 12 membros,sendo dois representantes de cada um dos ór-gãos que se seguem: Ministério da Educação;Casa Civil; Secretaria Geral da Presidência daRepública; Ministério do Planejamento, Orça-mento e Gestão; Ministério da Ciência e Tec-nologia; Ministério da Fazenda.

O relatório final do GTI foi divulgado, ex-tra-oficialmente, em dezembro de 2003. O do-cumento é composto de quatro partes, enfo-cando: ações emergenciais; autonomia univer-sitária; complementação de recursos (financia-mento) e as etapas para a implementação daReforma Universitária. O texto inicia reconhe-cendo a situação de crise da educação superior

brasileira, em especial das universidades fede-rais, mas atribui o problema à crise fiscal do Es-tado, sem maiores aprofundamentos de suaorigem. Em seguida, procura demonstrar que acrise já está atingindo também as instituiçõesprivadas, que viveram uma expansão recordenos últimos anos e agora se encontram ameaça-das pelo risco da inadimplência generalizada doalunado e de uma crescente desconfiança emrelação aos seus diplomas. Após esse preâmbulo,aponta as soluções: a) um programa emergencialde apoio ao ensino superior, especialmente àsuniversidades federais; b) uma reforma univer-sitária mais profunda (BRASIL, 2003).

A reforma “mais profunda” passa pela re-posição do quadro docente, ampliação de va-gas para estudantes, educação a distância, au-tonomia universitária e financiamento que, se-gundo o GTI, resolveriam o problema das ins-tituições federais de educação superior. Comodefendemos a idéia de que este documento ser-viu de base para os demais que orientam a re-forma da educação superior brasileira e dire-cionou medidas legais, já implantadas oficial-

Desvendando a política da educaçãosuperior do governo Lula

Celia Regina Otranto

Doutora em Ciências, professora-pesquisadora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Políticas Públicas?

20 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

mente, vamos analisar mais detalhadamenteseus princípios.

a) Ampliação do quadro docente e de vagas para estudantes

A ampliação do quadro docente é articuladaà ampliação de vagas para estudantes de gra-duação nas universidades federais que, segun-do o documento, seria preciso chegar a 2,4 mi-lhões de vagas no sistema federal em 2007.Mesmo mencionando a necessi-dade da abertura de concursospara preencher as vagas de pro-fessores e servidores, o GTIapresenta como alternativa parafazer frente à demanda, a criaçãode novas bolsas da Capes, paraaproveitar aposentados e recémdoutores nas atividades de ensi-no de graduação. Na seqüência,propõe o aumento da carga ho-rária dos professores em sala deaula, o aumento no número de alunos e a edu-cação a distância. Além de questionarmos se os700 aposentados e os mil recém doutores, combolsas anuais renováveis por até quatro anos,ocupariam as vagas indicadas anteriormente pa-ra os concursados, cabe aqui, também, uma in-vestigação da origem desta proposta.

Primeiramente, cabe ressaltar a ênfase naquantidade em detrimento da qualidade no en-sino de graduação, em contraposição ao depós-graduação, e às atividades de pesquisa eextensão. Isto nos remete a uma outra concep-ção de universidade, agora centrada somenteno ensino. Se analisarmos o documento doBanco Mundial, de 1994, veremos o incentivoà diversificação da educação superior, ampara-do na crítica ao modelo de ensino superior ba-seado nas universidades de pesquisa que, se-gundo o Banco, são muito caras e inadequadasàs necessidades e recursos dos países mais po-bres (WORLD BANK, 1994). Instituições

universitárias voltadas ao ensino e cursos su-periores de curta duração que no Brasil setransformaram nos Centros Universitários eCursos Seqüenciais por Campo do Saber, porexemplo, são conseqüências dessas indicações,que inspiraram a LDB de 1996 e legislaçãocomplementar. O documento do Banco Mun-dial de 1999, por sua vez, além de tambémdestacar a necessidade de diversificação dasinstituições, defende que o sistema de educa-

ção superior dos países perifé-ricos deve contar com poucasuniversidades de pesquisa, se-guidas por universidades de for-mação profissional de quatroanos, institutos isolados e cen-tros vocacionais e/ou de forma-ção técnica com duração de doisanos (WORLD BANK, 1999).

b) Educação a distânciaDe acordo com o relatório

do Grupo de Trabalho Interministerial, auniversidade pública brasileira, nos limitesimpostos pela educação presencial, mesmocom a ampliação de recursos, não teriacondições de aumentar as vagas de formamaciça em curto e médio prazos. Por estemotivo, apresenta a educação a distância co-mo um caminho viável e necessário.

A educação a distância é também ampla-mente defendida pelo primeiro Ministro daEducação do governo Lula da Silva, CristovamBuarque. No documento intitulado “Universi-dade numa encruzilhada”, Buarque (2003, p. 3)prega “[...] a necessidade de uma revolução noconceito de universidade [...]” e essa revoluçãopassa, segundo o autor, pelo ensino a distânciaque possibilitaria a implantação da “univer-sidade aberta”, que seria uma universidade semmuros e sem um campus fisicamente definido.“A universidade do século XXI será aberta atodo planeta. As aulas serão transmitidas pela

O GTI apresenta comoalternativa para fazerfrente à demanda por

vagas, a criação denovas bolsas da Capes,

para aproveitaraposentados e recém

doutores nas atividadesde ensino de graduação.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 21

televisão, pelo rádio e na Internet”. (BUAR-QUE, 2003, p. 18).

Mais uma vez, chamamos a atenção parauma análise mais detalhada desse discurso, quedefende a adoção da educação a distância deforma indiscriminada, como o caminho maisviável para a ampliação de vagas na educaçãosuperior. Primeiramente, cabe destacar que odocumento do GTI, que afirma ter como meta,até 2007, a ampliação de 600 mil vagas na edu-cação superior, ao se referir à educação a dis-tância, indica que 500 mil alunos serão porela atendidos, deixando passar aidéia de que apenas 100 mil es-tudantes seriam atendidos emcursos presenciais, o que abri-ria, definitivamente, o mercadoda educação a distância às mul-tinacionais e aos governos queexportam tais serviços e vêmexercendo pressão nos chama-dos “mercados emergentes deserviços”.

Esse é um importante pontoda pauta da Associação do LivreComércio das Américas (ALCA) e da Orga-nização Mundial do Comércio (OMC). AOMC lucra com os chamados “serviços edu-cacionais” e os países membros, com desta-que especial para os Estados Unidos, exer-cem pressão para a adoção de regras comer-ciais no campo educacional.

É importante destacar que o setor de ser-viços é considerado o maior da economiaamericana e já vem recebendo atenção espe-cial também do governo brasileiro. Atrelan-do a educação ao setor de serviços, já que,segundo a OMC, ela deve ser vista comomercadoria, a abertura de um mercadoemergente como o Brasil pode representarmuito lucro. Daí o interesse do governoamericano em integrar o Brasil na ALCA ena OMC.

c) Autonomia universitáriaA “garantia” de autonomia universitária está

presente em todos os documentos que fun-damentam a proposta do governo Lula da Sil-va. No Relatório do Grupo de Trabalho In-terministerial há uma relação explícita entre acrise que assola as universidades públicas e as“[...] amarras legais que impedem cada univer-sidade de captar e administrar recursos, definirprioridades e estruturas de gastos e planeja-mento.” Por esse motivo, segundo o relatório,“[...] a imediata garantia de autonomia às uni-

versidades é um passo necessáriopara enfrentar a emergência.”(BRASIL, 2003, p. 9).

O discurso sedutor parece, noprimeiro olhar, que vai ao en-contro dos anseios das comuni-dades universitárias, porém, nodecorrer da leitura deste relató-rio, percebe-se que a autonomiapor ele proposta tem como en-foque principal a autonomia fi-nanceira, e não a autonomia degestão financeira, conforme ex-

plicitado na Constituição Federal. Autonomiafinanceira significa a liberação da universidadepara captar recursos no mercado, sem amarraslegais. Isso daria um enorme alívio financeiroao Estado que seria obrigado, somente, a com-plementar esses recursos e não mais teria, co-mo tem hoje, a obrigação de manter financei-ramente as universidades públicas.

A inspiração dessa “autonomia financeira”do Grupo Interministerial do governo Lula daSilva veio, como as demais, dos documentosdo Banco Mundial (BM). Tomando como refe-rência o documento de 1994, podemos ver queo BM considera a educação superior no Brasilum campo extremamente privilegiado devidoaos subsídios governamentais a ela destinados,e propõe uma ampla reforma. Uma das orien-tações-chave para esta reforma é “[...] propor-

A OMC lucra com os chamados

“serviços educacionais” e os países membros,com destaque especial

para os Estados Unidos,exercem pressão para a

adoção de regrascomerciais no campo

educacional.

Políticas Públicas?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE22 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

Políticas Públicas?

cionar incentivos para que as instituições pú-blicas diversifiquem as fontes de financiamen-to, por exemplo, a participação dos estudantesnos gastos e a estreita vinculação entre o finan-ciamento fiscal e os resultados.” (WORLDBANK, 1994, p. 4).

d) FinanciamentoEm relação ao financiamento das universi-

dades federais o documento do Grupo Inter-ministerial reconhece que essas instituições hámuito deixaram de contar com um programaespecífico para recuperação predial e aquisiçãode equipamentos para seus labo-ratórios e bibliografia para o en-sino de graduação. Admite queessa situação tem provocado ofechamento de laboratórios, de-sabamento de prédios e degrada-ção das instalações. Em seguida,afirma que o MEC estimou para2004 o montante de R$ 241 mi-lhões para possibilitar a recupe-ração de equipamentos, além doaporte anual de R$ 100 milhõespara manutenção predial, mas finaliza, acres-centando que esses recursos não foram con-templados na proposta orçamentária.

O documento do GTI apresenta, então, al-ternativas de fonte de financiamento que, “pornão terem sido aprovadas por todos os mem-bros do grupo”, foram anexadas ao final dotexto. Elas vão desde as já citadas contribui-ções voluntárias e não voluntárias de ex-alu-nos, até distribuição da CPMF de forma a per-mitir que uma parte dos recursos seja cana-lizada para as áreas de saúde das universidadespúblicas, além da retirada da folha de paga-mento dos inativos do orçamento das universi-dades federais. Propõe, ainda, uma Lei de In-centivo Fiscal para o ensino superior, a criaçãode fundos empresariais para financiar o funcio-namento das universidades federais e um acor-

do de troca da dívida externa por investi-mentos na educação.

Todas as propostas objetivam reduzir osgastos da União com a educação superiorsubstituindo-os por outras fontes de financia-mento. Mas surpreendentemente, é garantido,no mesmo documento, que o MEC “[...] sepropõe a assegurar um fluxo regular adicionalde recursos[...]” para aquelas instituições uni-versitárias que aceitem aderir a um “Pacto deEducação para o Desenvolvimento Inclusivo”(BRASIL, 2003, p. 12).

Esse Pacto, segundo o relatório do GTI, terásuas vagas abertas em edital pú-blico e contemplará, prioritaria-mente, as universidades federaise as demais instituições públicasestaduais e municipais. Contu-do, o Pacto inclui ainda institui-ções privadas (comunitárias ouparticulares), “[...] quando o se-tor público não for capaz deatender a toda demanda.” (BRA-SIL, 2003, p. 13).

Ora, o setor público, na gran-de maioria dos cursos, não tem vagas ociosas e,nos vestibulares, a relação candidato/vaga é al-ta. Isso significa que o setor público não tem enão terá condições de atender toda a demandae, por certo, grande parte dessa verba, se hou-ver, será destinada às instituições privadas, quereceberão, segundo o documento, “[...] um va-lor mensal por aluno a título de taxa escolar, aolongo do período correspondente à sua forma-ção, e um valor adicional no momento de con-cluir o curso.” (BRASIL, 2003, p. 13).

Mas de onde será que surgiram as idéias so-bre financiamento que integram o documentodo Grupo de Trabalho Interministerial que es-tá direcionando as ações governamentais? Seusfundamentos, mais uma vez, podem ser en-contrados nos textos do Banco Mundial e dedemais organismos internacionais.

O Banco Mundialconsidera a educaçãosuperior no Brasil umcampo privilegiadodevido aos subsídios

governamentais a ela destinados,

e propõe uma ampla reforma.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 23

Trocar a dívida externa por investimentosem educação foi uma sugestão do Banco Mun-dial e da Unesco em documento conjuntoapresentado em 2000 (The Task Force on Hi-gher Education and Society, 2000). Porém, otexto especifica que a redução da dívida estácondicionada à reforma sistêmica do ensinosuperior. Esta perspectiva também está contidano último documento do Banco Mundial(WORLD BANK, 2004).

Como se pode perceber, os fundamentos dareforma da educação superior dogoverno Lula estão calcados emmarcos regulatórios defendidospelos organismos internacionais.A maior parte desses funda-mentos foi defendida no docu-mento elaborado pelo Grupode Trabalho Interministerial edirecionou medidas legais queforam sendo implantadas, de-senhando a reforma de acordocom os interesses governamentais. Dentreestas medidas pode-se destacar o PROUNI, oSINAES, a Lei de Inovação Tecnológica, asParcerias Público-Privadas, o decreto quenormatiza a Educação a Distância, além dasmedidas já adotadas para a Educação Pro-fissional.

O Programa Universidade para Todos (PROUNI)

O PROUNI deveria ter sido lançado em17 de abril de 2003, mas o presidente Lulada Silva adiou, na véspera, o seu lança-mento. Segundo o jornal Folha de São Pau-lo (14 abr. 2004), o Programa, que já tinhasido atacado por reitores das universidadesfederais, também recebeu oposição de asso-ciações de entidades privadas de ensino su-perior, que “criticaram o percentual deabertura de vagas e exigiram em troca isen-ção do Imposto de Renda e outros três tri-

butos para as instituições com fins lucra-tivos”.

Aparadas algumas arestas com o setor pri-vado, o governo enviou o projeto de lei doPROUNI ao Congresso Nacional. No entan-to, a despeito da tramitação, o presidente Lulaeditou, em 10 de setembro de 2004, a medidaprovisória (MP) nº 213 que instituiu o Progra-ma Universidade para Todos. Logo em segui-da, o Decreto nº 5.245, de 18 de outubro de2004, regulamentou a MP e a Portaria nº 3.268,

de 19 de outubro de 2004, esta-beleceu os procedimentos paraadesão das Instituições Privadasde Educação Superior aoPROUNI. Mais recentemente,em 13 de janeiro de 2005, o Pro-grama foi transformado em lei –Lei nº 11.096/05.

Em linhas gerais, o PROUNIestende a todas as instituiçõesprivadas (com ou sem fins lucra-

tivos) que a ele aderirem, isenção de Impostode Renda de Pessoa Jurídica; ContribuiçãoSocial sobre o Lucro Líquido; ContribuiçãoSocial para Financiamento da Seguridade So-cial e Contribuição para o Programa de Inte-gração Social. Os 25% de vagas iniciais caírampara “uma bolsa integral a cada nove estudan-tes pagantes”, concedida a “brasileiros nãoportadores de diploma de curso superior, cujarenda familiar per capita não exceda o valor deaté um salário mínimo e meio”. Em 2006, abolsa integral será concedida a cada 10,7 estu-dantes pagantes. Os demais terão que se con-formar com bolsas de 25% ou 50%. Como pe-lo perfil social estes estudantes não terão comocustear seus cursos, a solução encontrada peloMEC foi repassar verbas públicas para o paga-mento de mensalidades. Com esses recursos(perda de impostos e pagamento de mensali-dades), direcionados para as universidades fe-derais, novos professores poderiam ser con-

Políticas Públicas?

Os fundamentos dareforma da educação

superior do governo Lulaestão calcados em

marcos regulatóriosdefendidos pelos

organismosinternacionais.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE24 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

Políticas Públicas?

tratados e todos os cursos de graduação po-deriam ser oferecidos no horário noturno. Atendência seria de chegar em três ou quatroanos a um milhão de novas matrículas nas uni-versidades públicas e não 120.000 bolsas comopressupõe o PROUNI. O mais grave é que oPrograma não prevê mecanismos de controlesobre a qualidade dos cursos.

O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES)

O Sistema Nacional de Avaliação da Edu-cação Superior foi instituído pela Lei nº 10.861,de 14 de abril de 2004, com o objetivo de con-duzir o processo de avaliação da educação su-perior. Está assentado no tripé: avaliação dasinstituições de ensino superior; dos cursos degraduação e do desempenho estudantil.

Uma análise da Portaria do MEC nº 2.051,de 9 de julho de 2004 que regulamenta os pro-cedimentos de avaliação, permite a constataçãode que será através do SINAES que as institui-ções de educação superior serão credenciadas ereconhecidas, obterão autorização e reconhe-cimento para o oferecimento dos seus cursosde graduação, além da renovação periódica daoferta desses cursos (artigo 32). Isso reforça opapel assumido pelo Estado brasileiro no con-texto das reformas dos anos de 1990, de enteavaliador e regulador das ações que se passamna esfera social. O governo Lula fortalece, des-ta forma, os mecanismos de controle sobre asinstituições de educação supe-rior, favorecendo a regulação dasações de vários órgãos que de-senvolvem as políticas públicas eprivadas.

O SINAES atinge, então, oseu objetivo de regular e ajustar aeducação superior brasileira àsexigências de avaliação inseridasnos documentos emanados dosorganismos internacionais, de

forte cunho quantitativo e competitivo entre asinstituições.

A “Lei de Inovação Tecnológica”A Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004,

“dispõe sobre incentivos à inovação e à pes-quisa científica e tecnológica no ambiente pro-dutivo e dá outras providências”. Segundo estaLei, o montante principal das verbas de pes-quisa será repassado às universidades. Isso éuma inversão completa dos fins da universida-de, uma vez que em nenhum lugar do mundo ainovação é feita nas universidades, e sim nasempresas.

No cenário atual brasileiro, de profunda de-terioração salarial e precárias condições de tra-balho, aliado à difusão de ideologias neolibe-rais, essas propostas podem parecer sedutoraspara muitos docentes. “Contudo, a exemplodas experiências das fundações privadas, os be-nefícios dessas atividades acabam privilegiandopoucos e pequenos grupos, cujo foco de traba-lho está dirigido para as atividades que as em-presas consideram de seu interesse.” (ANDES,2004, p. 45). Neste contexto, o benefício finan-ceiro é direcionado a poucos privilegiados, res-tando uma pequena contrapartida à institui-ção, o que pode levar à degradação das condi-ções de ensino e pesquisa.

Os professores passam a ser os “empreen-dedores” e as instalações da universidade po-dem ser cedidas para uso das empresas, com

ônus para o Estado. As pesqui-sas financiadas por mecanis-mos previstos nesta Lei, mes-mo que desenvolvidas no inte-rior das universidades, são sigi-losas. Professores e alunos nãopodem comentar sobre elas.Isso fere a autonomia univer-sitária como a conhecemos atéhoje e como a defendemos,fundamentados no artigo 207

As pesquisas financiadas por

mecanismos previstos na Lei de Inovação

Tecnológica, mesmo quedesenvolvidas no interior

das universidades, são sigilosas.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 25

da Constituição Federal.O professor envolvido na

prestação de serviço poderá rece-ber contribuição pecuniária dainstituição na forma de “adicio-nal variável” ou “bolsa de estí-mulo à inovação” (artigo 9º). Naprática, isso significa mais repas-se de recursos públicos para o se-tor empresarial. A chamada “Leide Inovação Tecnológica” temque ser compreendida, portanto,no bojo das parcerias público-privadas, que prevêem a aplica-ção de fundos federais em pro-jetos de “interesse comum” para acelerar a in-corporação de tecnologias pelas empresas.

As Parcerias Público-PrivadasAs Parcerias Público-Privadas (PPP) foram

regulamentadas pela Lei nº 11.079, de 30 de de-zembro de 2004 que “institui normas geraispara licitação e contratação de parceria públi-co-privada no âmbito da administração públi-ca”. Segundo Lopreato (2005, p. 9), as PPPs“[...] foram pensadas para fazer os investimen-tos que o setor público deixou de realizar por-que tem que gerar o superávit primário exigidona manutenção da sustentabilidade da dívidaque o mercado requer.” Maciel (2005) adverteque quaisquer modificações nas formas deprestação de serviços públicos no Brasil nãopodem desconsiderar as negociações que estãoocorrendo no âmbito da OMC, em particularas pressões para a abertura comercial em ser-viços, as quais não deixarão de incluir os ser-viços públicos. No entanto, parece que o aço-damento brasileiro em aprovar as PPPs não le-vou em consideração muitas dessas variáveis eseus riscos. Alguns críticos da lei que instituiua PPP viram nela potencialidades de um “golpede estado branco”, em razão de seus efeitospossíveis sobre a ordem constitucional e sobre

o funcionamento do próprioEstado brasileiro, podendo co-locar em risco a soberania donosso país, a harmonia dos po-deres da República e o próprioregime democrático (JURUÁ,2005). Mesmo assim, ela foi fes-tejada pela imprensa que vul-garizou o termo “parceria” comuma conotação sempre positiva,desqualificando a função públi-ca e o funcionalismo público,em geral. Em linhas gerais, asPPPs incluem praticamente to-da a Administração Pública di-

reta e indireta. Os contratos de parceria re-servam para o Estado o papel de distribuidore de pagador.

Sob a forma de contratos, haverá uma ampla

distribuição de privilégios [...]. Esses pri-

vilégios podem consistir na autorização para

impor tarifas por prestação de serviços, mas

também no direito de receber remuneração

do Estado, por obras e serviços, os chamados

direitos emergentes do contrato. (JURUÁ,

2005, p. 37).

Ao parceiro privado cabe gastar, contratarobras e serviços e gerir o projeto. Para levar aefeito suas atribuições, poderá contrair em-préstimos no mercado financeiro. Se o parceiropúblico tiver direito a alguma receita os valoressó poderão ser utilizados em gastos de investi-mentos, sendo proibida a utilização em gastoscorrentes, para o seu próprio custeio.

Para a economista,

[...] parece que o Brasil está sendo leiloado.

O governo é um corretor sem direito (legal,

formal) às comissões de corretagem. Os

compradores terão seus direitos plenamente

assegurados, em conformidade aos direitos

Políticas Públicas?

Alguns críticos da lei que instituiu a PPP

viram nelapotencialidades de

um “golpe de estadobranco”, em razão

de seus efeitos possíveis sobre

a ordem constitucional e sobre o funcionamento

do próprio Estadobrasileiro.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE26 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

de propriedade tão prestigiados em países

imperiais. Terão garantia de lucratividade em

suas aplicações financeiras, pouco importa o

desperdício que assumirem. (JURUÁ, 2005,

p. 38-39).

A autora chega a denominar a Lei das Parce-rias Público-Privadas, de “Regimento Internode Recolonização” (JURUÁ, 2005, p. 41). Sequase toda a função pública pode ser alvo dasPPPs, a educação certamente não conseguiráfugir delas.

Educação a distânciaA importância que vem sen-

do dada, em todos os documen-tos oficiais, à educação a dis-tância, direciona muitas análisesno sentido de que a propaladaampliação da oferta da educa-ção superior se dê através dessamodalidade de ensino, e não daabertura de novos cursos degraduação nas instituições públicas. O mer-cado da educação a distância no Brasil vemsendo cortejado há algum tempo por váriospaíses que pretendem explorá-lo. O presi-dente da República, Luis Inácio Lula da Sil-va, e o Ministro da Educação, FernandoHaddad, assinaram, no final do ano passado,o Decreto nº 5622, de 19 de dezembro de2005, regulamentando a oferta no Brasil. Estedecreto, em conjunto com a lei das parceriaspúblico-privadas, consolida a abertura domercado educacional brasileiro ao capital es-trangeiro, com algumas poucas restrições quepodem ser facilmente superadas no decorrerdo processo. Consolida, também, o sonho da“universidade aberta”, do ex-ministro Cris-tovam Buarque. Mais uma vez o governo seantecipa à chamada “reforma universitária”,sem o crivo parlamentar e sem o debate coma comunidade acadêmica.

Educação ProfissionalA mesma prática pode ser percebida em re-

lação à Educação Profissional. Educadores detodo país tinham a expectativa de novos cami-nhos para essa modalidade educacional, fun-damentados em concepções oriundas dos mo-vimentos sociais organizados, do sindicato na-cional dos docentes e da comunidade educa-cional comprometida com as causas sociais econcepções teóricas do campo do trabalho eeducação. No entanto, o Governo Lula vemimplementando um conjunto de ações e pro-gramas específicos no campo jurídico, antesmesmo do Projeto de Lei Orgânica da Edu-

cação Profissional e Tecnológicadar entrada no Congresso Na-cional. Implementou mudançasjurídico-normativas, principal-mente, mediante a edição de qua-tro decretos e uma portaria in-terministerial. O Decreto nº 5154,de 20 de julho de 2004, regula-menta a oferta de educação pro-

fissional tecnológica de graduação e a articu-lação entre os ensinos médio e técnico. Prevê,ainda, a possibilidade de progressividade e cu-mulatividade na formação e na certificação emantém a estrutura modular de organização daeducação profissional, amplamente criticadapelos educadores. O Decreto nº 5225, de 1º deoutubro de 2004, elevou os Centros Federaisde Educação Tecnológica (CEFET), escolastradicionais de nível médio, à categoria de ins-tituições de educação superior. Os cursos tec-nológicos, que eram cursos superiores dife-renciados dos de graduação, adquiriram o sta-tus de cursos de graduação e pós-graduação.Para complementar, o Decreto nº 5254, de 1ºdeoutubro de 2004, dispôs sobre a organizaçãodos CEFETs, as principais escolas de educaçãoprofissional do país.

No entanto, paralelamente, o governo apre-senta o Anteprojeto de Lei Orgânica da Edu-

Políticas Públicas?

O mercado da educaçãoa distância no Brasil vem sendo cortejado há algum tempo por

vários países quepretendem explorá-lo.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 27

Políticas Públicas?

cação Profissional e Tecnológica para “discus-são” da sociedade. Mais uma vez, nos depara-mos com o discurso da discussão democrática.Que democracia é esta, se o balizamento daeducação profissional também já foi determi-nado e implantado? Qualquer discussão, ago-

ra, não teria somente o intuito de validar aqui-lo que foi definido unilateralmente?

A proposta oficial da ReformaParalelamente às medidas legais, já implan-

tadas, o MEC divulgou três documentos como objetivo declarado de apresentar a propostade reforma da educação superior para “discus-são” da sociedade brasileira. O primeiro delesé datado de 2 de agosto de 2004 e tem por títu-lo “Reafirmando princípios e consolidando di-retrizes” (BRASIL, 2004a). Na verdade, o títu-lo é bem apropriado, uma vez que reafirma osprincípios e consolida as diretrizes contidas noRelatório do Grupo de Trabalho Interminis-terial nunca divulgado oficialmente, que foiobjeto de análise no início deste texto. O se-gundo documento, de 6 de dezembro de 2004,foi apresentado como a primeira versão doAnteprojeto de Lei do MEC para a reforma daeducação superior (BRASIL, 2004b). O tercei-ro teve sua divulgação em maio de 2005, comoa segunda versão do Anteprojeto de Lei daEducação Superior (BRASIL, 2005), e encon-tra-se na Casa Civil da Presidência da Repúbli-ca1, acertando alguns detalhes referentes ao fi-nanciamento das Instituições Federais de Edu-cação Superior, para ser encaminhado ao Con-gresso Nacional. Apesar da divulgação destestrês documentos, podemos afirmar que, inde-pendentemente deles, os principais marcos daReforma da Educação Superior no Brasil já fo-ram criados e instituídos legalmente. Leher(2005) apresenta alguns destes marcos por eleconsiderados como “linhas de força”:

1) a consolidação do eixo privado como o

vetor do fornecimento da educação superior;

2) a naturalização de que os (poucos) jovens

das classes populares que terão acesso ao ní-

vel superior receberão ensino de qualidade

drasticamente inferior; 3) a transformação da

universidade em organização de serviços de-

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Políticas Públicas?

28 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

mandados pelo capital, meta-

morfoseados como inovação

tecnológica; 4) a conversão da

educação tecnológica em um

braço da ação empresarial; e 5)

a hipertrofia do controle go-

vernamental (produtividade,

eficiência e ideológica, regula-

das por meio da avaliação) e do

mercado (financiamento e uti-

litarismo) sobre a universidade pública, in-

viabilizando a autonomia e, principalmente,

a liberdade acadêmica. (LEHER apud ADU-

NICAMP, 2005, p. 5).

Todos estes marcos ou “linhas de força”,apontados pelo autor, constituem-se nos mes-mos balizamentos destacados na pesquisa quedeu origem a este texto.

ConcluindoÉ certo que uma lei não pode conter, isola-

damente, toda a reforma da educação superiorno país. Mas, por outro lado, ela não deve sur-gir travestida de uma aura democrática, so-mente para reunir em um único texto legal oque já foi determinado pelo governo, acrescen-tado de uns poucos (e menos importantes)itens negociados no processo.

Como este texto pretendeu mostrar, a refor-ma da educação superior brasileira teve seusprincípios, fundamentos e diretrizes traçadospelo Grupo de Trabalho Interministerial, ins-tituído em outubro de 2003, que seguiu as ori-entações dos organismos internacionais. Todosos demais documentos sobre o assunto, assimcomo os dispositivos legais já implantados, so-mente tiveram por objetivo consolidar o que jáhavia sido determinado. Neste sentido, o dis-curso de que no governo Lula existe mais dis-posição ao diálogo/negociação, para que as de-cisões possam caminhar por um viés mais de-mocrático, pode ser uma falácia. Freqüente-

mente, os pretensos diálogos enegociações só têm servido pa-ra dar um verniz democrático adecisões tomadas unilateral-mente.

Diante do que foi explicita-do, podemos afirmar que a ins-tituição universitária brasileiraestá com a sua identidade seria-mente ameaçada. A universi-

dade (principalmente a pública) é um patrimô-nio da sociedade brasileira e, como tal, deve serpreservado. A educação superior é um bempolítico público, não pode ser visto, como pre-tende a OMC, como um bem econômico decaráter privado. Por esse motivo, as políticaspúblicas para a educação superior têm que sersempre, políticas públicas de Estado, e não degoverno (SILVA JR; SGUISSARDI, 2005). Nãopodem ser orientadas por objetivos de privati-zação econômica ou política. O financiamentoda educação superior não pode ser visto como“gasto” e sim como investimento da sociedadepara a sociedade, uma vez que contribui signi-ficativamente para a soberania da nação e pre-servação de sua identidade cultural.

Reformar a Educação Superior brasileira épreciso, sem nenhuma dúvida. Mas para queisso aconteça, realmente, de forma democráti-ca e mantendo a soberania do País, é necessá-rio que sejam revogados todos os dispositivoslegais que engessam a atual Reforma dita “de-mocrática”. É imperativo que se enfrente o de-bate em torno do público versus privado, comclareza e determinação. Um país que se quersoberano e democrático precisa ter a coragemde estabelecer, por si só, as bases de sua Refor-ma da Educação Superior em real discussãocom os segmentos organizados da sociedade.

NOTA

1 Informações atualizadas até março de 2006.

A educação superior é um bem político

público, não pode servisto, como pretende

a OMC, como um bemeconômico de

caráter privado.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 29

REFERÊNCIAS

ASSOCIAÇÃO DE DOCENTES DA UNICAMP.Caderno Adunicamp, Campinas, fev. 2005.ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DOCENTES DAEDUCAÇÃO SUPERIOR. A contra-reforma da educa-ção superior: uma análise do ANDES-SN das principaisiniciativas do governo de Lula da Silva. Brasília, DF, ago.2004.BRASIL. Presidência da República. Grupo de TrabalhoInterministerial. Bases para o enfrentamento da criseemergencial das universidades brasileiras e roteiro para areforma da universidade brasileira. Brasília, DF, 2003.______ . Ministério da Educação. Reforma da educaçãosuperior: reafirmando princípios e consolidando diretri-zes da reforma da educação superior. Brasília, DF, 2004a.______ . Ministério da Educação. Anteprojeto de lei dareforma da educação superior. Brasília, DF, 2004b.______ . Ministério da Educação. Anteprojeto de lei dareforma da educação superior. Brasília, DF, maio 2005. 2a

versão.BUARQUE, Cristovam. Universidade numa encru-zilhada. Unesco, Brasil: Ministério da Educação, 2003.JURUÁ, Ceci Vieira. Lei das parcerias público-privadas:vícios estruturantes do projeto de lei. Caderno Aduni-camp, Campinas, p. 25-46, fev. 2005.

LOPREATO, Francisco Luiz C. Finanças públicas, PPPe universidade. Caderno Adunicamp, Campinas, p. 6-10,fev. 2005.MACIEL, Cláudio Schuller. Parcerias público-privadas:elementos para a compreensão do projeto de lei nº 2.546/2003.Caderno Adunicamp, Campinas, p. 11-24, fev. 2005.SILVA JR, João dos Reis; SGUISSARDI, Valdemar. Anova lei da educação superior: fortalecimento do setorpúblico e regulação do privado/mercantil ou continuida-de da privatização e mercantilização do público. RevistaBrasileira de Educação, São Paulo, Campinas, n. 29,maio/ago. 2005.WORLD BANK. Higher education. The lessons ofexperience. Washington, D.C.: The World Bank Group,1994.______. Education Sector Strategy. Washington, D.C.:The World Bank Group. Human Development Net-work, 1999.______. World Development Report: making serviceswork for poor people. Washington, D.C.: The WorldBank Group, 2004.

Políticas Públicas?

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 31

FAT e BNDES: orgânicas relações

Desde 1952, quando foi fundado, o BancoNacional de Desenvolvimento Econômi-co e Social (BNDES) vem financiando os

maiores empreendimentos econômicos dopaís. Atualmente, ocupa o posto de maior ins-tituição dessa natureza na América Latina.Com a definição da transferência constitucio-nal do Fundo de Amparo ao Trabalhador(FAT) para o Banco, a partir de 1990, a tarefado BNDES ganhou novo fôlego. Isto porque aConstituição Federal de 1988 definiu, em seuartigo 239, que pelo menos 40% da arrecada-ção do PIS (Programa de Integração Social) edo PASEP (Programa de Formação do Patri-mônio do Servidor Público) que formam oFAT1 devem ser destinados ao financiamentode programas de desenvolvimento econômico,através do Banco. Este fundo, o FAT, é umfundo parafiscal, contábil, de natureza finan-ceira, que foi criado através da Lei n° 7.998, de11 de janeiro de 1990, regulamentando o pre-visto na Constituição Federal. Sua principal

responsabilidade é administrar as contribui-ções para o PIS e para o PASEP, de modo acustear as chamadas políticas públicas de em-prego, entre as quais se destacam: o ProgramaSeguro-Desemprego (que inclui pagamento debenefícios, intermediação e reciclagem de mão-de-obra), o Abono Salarial (14° salário para ostrabalhadores que recebem até dois saláriosmínimos por ano) e diferentes programas eprojetos que possam contribuir com o desen-volvimento econômico do país, como é o casodos programas de geração de emprego e renda(BNDES, 1993). Estes programas é que seconstituem na razão de ser da destinação de40% dos recursos do FAT para o BNDES.

O questionamento do uso que vem sendofeito dos recursos do FAT pelo BNDES é afinalidade última deste trabalho. Objetiva-se,com isso, demonstrar que os recursos do FATa cargo do BNDES vêm, ao longo das duas úl-timas décadas, servindo para financiar, predo-minantemente, empreendimentos privados, emgrande medida poupadores de mão-de-obra,

Faces da privatização do fundo público no Brasil:a utilizacão dos recursos do FAT pelo BNDES

Georgia Sobreira dos Santos Cêa

Doutora em Educação, professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste)

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE32 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

ao contrário de servirem para a geração deemprego e renda. Ainda, objetiva-se apre-sentar elementos que indicam a tendênciade uso dos recursos do FAT a cargo doBNDES para investimentos em capital fi-nanceiro, ao contrário de investimentos emcapital produtivo.

As análises aqui expostas são feitas com baseem dados oficiais do FAT e do BNDES, espe-cialmente a partir da exploração das informa-ções financeiras constantes dos relatórios ge-renciais desses órgãos2. A busca e identificaçãodas contradições entre as finalidades da desti-nação do FAT para o BNDES (financiamentode programas voltados para a geração de em-prego e renda) e a efetiva destinação desses re-cursos (financiamento de iniciativas empresa-riais tendencialmente poupadoras de força detrabalho) são os principais recursos metodo-lógico-analíticos utilizados neste trabalho.

O movimento do BNDES e as tendências de utilização privada do fundo público

As análises dos relatórios ge-renciais do BNDES demons-tram que o FAT, a partir de 1996,torna-se a principal fonte internade recursos do Banco e se desta-ca como a maior parte das obri-gações (recursos devidos) doBanco junto ao FAT. Ou seja, oFAT se constituiu, nos últimos

dez anos, na principal fonte de recursos doBNDES (superior até aos retornos de seuspróprios investimentos), tornando-se o princi-pal avalista do Banco. Também a partir 1996, oFAT se destaca como a maior parte das obri-gações (recursos devidos) do BNDES, ultra-passando o montante do PIS-PASEP ainda acargo do Banco, conforme se observa no grá-fico acima.

Diante da representatividade do FAT para aprópria existência do BNDES, além do fato doBanco ser um órgão do Estado brasileiro, é ne-cessário ressaltar a necessidade e a importânciado efetivo controle social sobre a destinação eutilização desses recursos, visto o caráter pú-blico do FAT e do próprio Banco. Entretanto,tal controle vem sendo fragilmente exercidopelo Conselho Deliberativo do FAT (CODE-FAT), não sendo diferente do que ocorre nosórgãos gestores do próprio BNDES. As res-salvas do Ministério do Trabalho e Emprego(MTE) e do próprio BNDES de que há par-ticipação de trabalhadores no Conselho de

Administração do Banco são in-suficientes para reverter a subal-ternidade dessa inserção. Essaevidente falta de controle públi-co dificulta a negação da imagemde que o BNDES é uma “caixa-preta”, especialmente no que serefere ao uso dos recursos doFAT ali alocados.

Políticas Públicas?

O FAT se constituiu, nos últimos dez anos, na principal fonte derecursos do BNDES,

tornando-se o principal avalista

do Banco.

Fonte: Dados retirados dos Relatórios de Atividades do BNDES de 1991 a 2000a.

Gráfico 1

PARTICIPAÇÃO DO PIS-PASEP E DO FAT NA COMPOSIÇÃO DO PASSIVO DO BNDES

Em %

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 33

Segundo o Planejamento Estratégico doBanco para o período 2001-2005, o BNDESpreviu a definição de prioridade de suas ativi-dades em sete dimensões: modernização dossetores produtivos; infra-estrutura; apoio àsexportações; desenvolvimento social; micro,pequenas e médias empresas; redução dos de-sequilíbrios regionais; e privatização (BRA-SIL, 2000a, p. 8).

No caso específico das priva-tizações, deve-se destacar que oBNDES é o órgão gestor doPrograma Nacional de Desesta-tização (PND), criado em 1990.Em 1997, com a privatização daCompanhia Vale do Rio Doce,encerra-se praticamente a trans-ferência à iniciativa privada dasempresas industriais e tem inícioa fase da privatização de empre-sas da área de infra-estrutura, deconcessões de serviços públicose do setor financeiro. Pode-seafirmar que o BNDES foi o principal gestor efinanciador desse processo. Segundo o próprioBanco, “[...] os resultados acumulados das pri-vatizações realizadas desde 1991 ultrapassarama marca de US$ 100 bilhões, valor esse que co-loca o programa de privatização brasileiro en-tre os maiores já realizados no mundo.” (BRA-SIL, 2000a, p. 44).

Este relatório indica que, em 2000, a transfe-rência do patrimônio público para o setorprivado já havia englobado empresas dos se-tores siderúrgico, petroquímico, de fertilizan-tes, mineração, telecomunicações, transporteferroviário de carga, diversos bancos, rodoviase portos. Naquele ano, os destaques do PNDforam a venda de ações da Petrobrás e a deses-tatização do Banco do Estado de São PauloS.A. (Banespa).

Segundo Biondi (2000), no problemáticoprocesso de privatização conduzido pelo

BNDES, observou-se que comumente as pri-vatizações incorporaram a prática de negociaros pagamentos das transações com moedas “po-dres” (títulos antigos do governo com baixa pos-sibilidade de remuneração), sendo o restante, quedeveria ser pago em dinheiro “vivo”, parcelado ematé dez anos, a juros baixos. Além disso, os deve-dores (compradores das estatais) fizeram do

próprio Estado o seu maior credor,através dos empréstimos públicospara investimentos e, alguns anosapós as privatizações, para a com-pra de empresas de menor porte.Na maioria dos casos, o credor foio próprio BNDES.

O aumento do investimentono setor privado é proporcionalao avanço do processo de priva-tização, o que acaba por creden-ciar um leque ainda maior deempresas privadas a receberemrecursos do BNDES. Essas em-presas compõem a maioria abso-

luta das entidades beneficiadas com os emprés-timos do Banco. Em 1997, elas representaram77% do total de empresas atendidas, saltandopara 90% em 1998 (BRASIL, 1998, p. 6).

Das instituições que receberam recursos doBNDES, a prioridade vem sendo dada a gran-des empresas, exatamente aquelas que menosgeram emprego e que, em casos de maciço in-vestimento tecnológico, acabam sendo poupa-doras de mão-de-obra. As microempresas e omicrocrédito são flagrantemente preteridosnos investimentos do BNDES, contrariandouma de suas supostas dimensões prioritárias,muito embora o alarde nos meios de comuni-cação aparente o oposto.

Segundo o Relatório da Competitividade daIndústria Brasileira (SEBRAE, 2001), um estu-do junto ao setor privado demonstrou que asempresas pretendem contar com recursos go-vernamentais para a elevação dos investimen-

Políticas Públicas?

Os resultadosacumulados das

privatizações realizadasdesde 1991

ultrapassaram a marcade US$ 100 bilhões,

valor esse que coloca oprograma de

privatização brasileiroentre os maiores já

realizados no mundo.

34 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Políticas Públicas?

tos em tecnologia. Ao que pare-ce, essa pretensão dificilmentese efetivará, uma vez que oacesso ao crédito público émais amplo para as empresas demaior porte. Enquanto 57,4%das grandes empresas afirma-ram ter utilizado financia-mentos do BNDES para a áreada infra-estrutura, apenas 2,7%das microempresas fizeram amesma afirmação.

Dessa forma, ao privilegiar as grandes em-presas, essencialmente aquelas poupadoras deforça de trabalho, o BNDES continua igno-rando o objetivo do FAT de custear investi-mentos que resultem em geração de emprego erenda para a população.

É importante observar, ainda, como vemocorrendo a destinação de recursos do FAT,por meio do BNDES, para serem gerenciadospor entidades privadas que intermediam ope-rações financeiras. Em 1998, 52% dos desem-bolsos totais do BNDES corresponderam aoperações financeiras realizadas por grandesentidades privadas do setor (Itaú, Bradesco,Unibanco, por exemplo). Em 1999, esse índicesubiu para 62% (BRASIL, 1998, 1999), em de-trimento da participação das instituições finan-ceiras do setor público.

Outro aspecto relevante é a tendência de di-minuição do investimento no setor produtivo,por parte do BNDES, sintonizando o Bancocom um movimento já consolidado nos paísescentrais do capitalismo. O BNDES prevê ofortalecimento das atividades financeiras junto aomercado de capitais, “[...] considerado um fator-chave para atingir as metas estabelecidas no Pla-no [Estratégico – 2001/2005].” Com essa ênfaseno mercado de capitais, o Banco espera podermultiplicar em duas vezes e meia o montante deinvestimentos (BRASIL, 2000a, p. 18).

Essa orientação do Banco reflete o aumento

dos riscos dos investimentos, emfunção, principalmente, da inter-dependência dos capitais nomercado financeiro.

No Brasil, o déficit em transa-ções correntes3 vem sendo co-berto pelos investimentos exter-nos diretos (IED), que entrampor contas de capital e financeirae que, por sua natureza predomi-nantemente especulativa, podemse retirar facilmente do cenário

econômico. Na relação entre os países centraise periféricos, o IED expressa a atual racionali-dade capitalista, promovendo o processo demundialização do capital (CHESNAIS, 1996),na forma de financeirização, num processo emque somente as grandes corporações sobrevi-vem e o controle econômico se dá pela via docapital financeiro (SALAMA, 1998).

A dependência econômica à estratégia fi-nanceira do IED ocasiona a fragilidade do su-posto equilíbrio financeiro, cujos déficits sãocobertos por capitais “flutuantes”, sem lastroprodutivo, na grande maioria dos casos. Tam-bém no IED em capital produtivo ocorre aprevalência da financeirização, na medida emque as empresas (corporações) não atuam so-mente como unidades produtivas, mas tambémcomo ativos financeiros que se desdobram emautofinanciamento e aplicação financeira, numprocesso que acaba por criar um novo para-digma de organização e uma nova estratégiatecno-financeira (CHESNAIS, 1996, 1998).

A se confirmar no Brasil a tendência mun-dial observada por Chesnais (1996, 1998) eSalama (1998), o aumento do fluxo de capi-tais pela via do IED pode vir a acelerar oprocesso de incorporação tecnológica à pro-dução; esse processo, combinado à conti-nuidade da política de altas taxas de juroscomo regra macroeconômica de captaçãoexterna de capitais, torna ainda menos atra-

Ao privilegiar as grandesempresas, o BNDES continua ignorando o objetivo do FAT decustear investimentos

que resultem em geração de emprego

e renda para a população.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 35

tivo o investimento produtivo por meio dainstalação de novas empresas, única via efe-tiva de geração de emprego.

Na tentativa de ampliar o fluxo de entradade capital estrangeiro, e assim diminuir o défi-cit em transações correntes, a política de ex-portação passa a ser estimulada e o BNDEStem se empenhado para isso.

Considerando o montante de recursos acargo do BNDES devidos ao FAT (tabela 1),pode-se perceber a evolução significativados investimentos voltados para a exporta-ção (FAT – Cambial), ocorrendo o mesmocom os investimentos oriundos dos recur-sos dos depósitos especiais4.

Os recursos totais do FAT a cargo doBNDES cresceram cerca de 2,3 vezes (227,5%)de 1996 a 2000 (Total FAT), principalmentepor conta de um crescimento aproximado de4,6 vezes dos recursos oriundos dos depósitosespeciais durante o mesmo período (FAT –Depósitos Especiais).

Embora em termos absolutos a tendência

seja de evolução dos investimentos de uma ma-neira geral, em termos relativos percebem-sealterações significativas.

A participação do FAT em forma de repasseconstitucional no montante do FAT recolhidoao BNDES (FAT – Ordinário) vem decrescen-do, enquanto que o repasse do FAT ao Banco

em forma de depósitos especiais (FAT – Depó-sitos Especiais) vem se ampliando, conformese pode verificar na tabela 2 e no gráfico 2.

Considerando a participação de cada umadas formas de utilização dos recursos do re-

Políticas Públicas?

Tabela 1

Gráfico 2

COMPOSIÇÃO DAS OBRIGAÇÕES DO BNDES COM O FAT

COMPOSIÇÃO DOS RECURSOS DO FAT A CARGO DO BNDES

1996 1997 1998 1999 2000Total FAT 18.316,2 23.329,2 27.950,7 35.430,1 41.672,0FAT – Ordinário (Art. 239 da C.F.) 16.720,5 19.903,7 23.465,7 29.230,8 34.257,8FAT – TJLP 15.388,1 17.320,6 19.491,4 21.755,0 24.254,6 FAT – Cambial (US$) 1.332,4 2.583,1 3.974,3 7.475,8 10.003,2FAT – Depósitos Especiais 1.595,7 3.425,5 4.485,0 6.199,3 7.414,2PROEMPREGO 1.050,5 2.473,0 3.321,3 4.901,7 5.935,6PRONAF — 724,4 1.163,7 1.218,8 1.359,1Agrícola II 191,8 104,6 — — —Naval 225,8 123,5 — — —Automotivo 127,6 — — — —Outros — — — 78,8 119,5

(Em R$ milhões)

Em %

Fonte: Brasil (1997, 1998, 2000b).

Tabela 2

COMPOSIÇÃO DOS RECURSOS DO FAT A CARGO DO BNDES

1996 1997 1998 1999 2000

FAT – Ordinário (Art. 239 da C.F.)1 91,3 85,3 84,0 82,5 82,2

FAT – Depósitos Especiais2 8,7 14,7 16,0 17,5 17,8

FAT – Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,01FAT – Ordinário/FAT – Total; 2Depósitos Especiais/FAT – Total – Considerando os valores da tabela anterior.

(Em %)

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE36 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

passe constitucional (TJLP eCambial) na composição do totaldo FAT a cargo do BNDES, a ta-bela 2 e o gráfico 2 evidenciam quenos últimos anos da década de 90(de 1996 a 2000) o montante doFAT remunerado pelo mercadointerno (TJLP) decresceu, em mé-dia, 6,3% ao ano, enquanto os re-cursos investidos na produção vi-sando à exportação (Cambial)cresceram numa média anual de39,4%, com a variação mais signifi-cativa ocorrendo entre 1996 e 1997.Abaixo, a evolução da participa-ção das formas de utilização do re-passe constitucional no total doFAT sob responsabilidade do BNDES pode sermelhor observada.

Essas constatações, não obstante necessitemde aprofundamentos, permitem verificar atendência de crescimento da utilização dos re-cursos do FAT na forma de depósitos especiaise de elevação das operações voltadas para aexportação, concordantes e condizentes não sócom as deliberações do CODEFAT nos últi-mos anos, mas com o próprio movimento dereprodução e mundialização do capital pela viafinanceira. É possível, também, localizar ossegmentos que, de fato, vêm se beneficiandocom a política de investimentos custeada comrecursos do FAT, a cargo do BNDES.

Embora seja difícil “rastrear” o percurso dosrecursos do FAT na movimentação financeira doBNDES5 a partir das informações disponíveisnos relatórios gerenciais do Banco, é forte a pos-

sibilidade dos recursos do FAT es-tarem contribuindo com os proces-sos de financeirização e de mundiali-zação do capital. Em 1995, o relató-rio da auditoria do Tribunal de Con-tas da União (TCU) nas contas doFAT6 informava o seguinte:

A Equipe de Auditoria apurou que

não existem critérios definidos, nem

na Constituição Federal nem nas leis

que regulamentam seu art. 239, para

aplicação dos recursos transferidos

pelo FAT ao BNDES. A principal

preocupação do CODEFAT é com o

impacto que esses financiamentos

possam trazer sobre a geração de

empregos. Por serem recursos dos traba-

lhadores, tendo como uma de suas mais

importantes finalidades assistir ao desem-

pregado, ao FAT interessa que os recursos

repassados ao BNDES preservem os atuais

empregos e estimulem a criação de novos.

Nesse sentido, os conselheiros do CODE-

FAT [Conselho Deliberativo do FAT]

queixam-se de que o Banco não obedece a

critérios de geração de empregos para con-

cessão de empréstimos com recursos do FAT,

que se juntam ao montante dos outros re-

cursos do Banco, não tendo qualquer tra-

Políticas Públicas?

Embora seja difícil“rastrear” o percursodos recursos do FATna movimentação

financeira do BNDES,é forte a

possibilidade dosrecursos do FAT

estarem contribuindocom os processos de

financeirização e de mundialização

do capital.

Gráfico 3

Tabela 3

COMPOSIÇÃO DO FAT - ORDINÁRIO

1996 1997 1998 1999 2000

FAT – TJLP 92 87 83,1 74,4 70,8

FAT – Cambial 8,0 13 16,9 25,6 29,2

Total FAT Ordinário 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

(Em %)

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 37

tamento diferenciado. (TCU,

1995, p. 8-9, grifo do autor).

A observação do TCU parece-nos sugestiva de que o controle efe-tivo dos recursos do FAT a cargodo BNDES pode estar sendo rea-lizado pelos grandes capitais, exa-tamente aqueles que mais se bene-ficiam com o “desamparo” dos tra-balhadores.

Há possibilidade de reversão da privatização do FAT pelo BNDES?

As análises realizadas até aqui permitemafirmar que o BNDES, ao longo da década de90, foi se consolidando como o Banco do de-senvolvimento na perspectiva da acumulaçãoflexível e da orientação neoliberal do Estadobrasileiro. Considerando a natureza do FATcomo um fundo público, destinado ao provi-mento de políticas de amparo ao trabalhador,vê-se que o BNDES transforma o FAT nummeio, por excelência, de financiamento do se-tor privado, em especial daquele que tem napromoção do desemprego uma de suas princi-pais medidas para a ampliação da exploraçãodo trabalho excedente. Até o momento, emfunção da política macroeconômica em curso,tal tendência não deu mostras de alteração.

Em 2005, após um processo intenso de dis-putas e negociações com centrais sindicais erepresentações patronais, o governo Lula con-seguiu aprovar o orçamento do FAT com a se-guinte novidade, instaurada a partir de então:os recursos do FAT para os depósitos especiais- exatamente aqueles cuja tendência tem sido odesamparo aos trabalhadores - ao invés de se-rem aprovados um a um, possibilitando, aindaque potencialmente, a discussão de cada pro-posta, passaram a ser aprovados em bloco, parainvestimentos anuais, dificultando a análise ediscussão mais acurada da destinação e uso dos

recursos. A partir do previsto naresolução do CODEFAT nº 439,de 2 de junho de 20057, caberá àSecretaria Executiva do Conselho,ocupada por um membro designa-do pelo próprio MTE, interme-diar a alocação de recursos com asinstituições financeiras, por meiode um termo de alocação de depó-sito especial do FAT (TADE), ob-servando as orientações de umaprogramação anual de depósitos

especiais do FAT (PDE). Dessa forma, a jáfrágil capacidade de controle do CODEFATsobre os usos e destinações do FAT torna-seainda mais precária, assumindo o governofederal a tarefa de “negociador” dos recursosdo FAT junto a instituições financeiras.Diante das recentes denúncias de proximida-de entre a cúpula do governo federal e asmais sombrias redes de favorecimento do ca-pital, é possível prever o agravamento do jáprecário futuro do FAT.

A reversão do processo de privatização doFAT pelo BNDES requer, de pronto, a radicalrevisão da diretriz macroeconômica que rege apolítica nacional, apoiada na subserviência à en-trada de capitais estrangeiros; mas isso só serápossível se os sujeitos políticos coletivos da so-ciedade civil organizada, comprometidos com areversão desse quadro, conseguirem explorar ascontradições do momento em curso e elaborarpropostas contra-hegemônicas de efetivação docaráter público do FAT, a partir dos interesses enecessidades daqueles que disso mais necessitam.Esse é, ainda, um processo a construir.

NOTAS

1 Além da arrecadação das contribuições para o PIS e oPASEP, as demais origens do FAT são: arrecadação dacota-parte da contribuição sindical; receitas oriundas dosretornos dos financiamentos e das aplicações financeirascom os recursos do Fundo; devoluções dos recursos

Políticas Públicas?

A reversão doprocesso de

privatização do FATpelo BNDES requer,

a radical revisão da diretriz

macroeconômica que rege a política

nacional.

Políticas Públicas?

38 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

transferidos às agências financeiras conveniadas para pa-gamento de benefícios que não foram desembolsados;rendimentos dos recursos transferidos às instituições fi-nanceiras para pagamento do seguro-desemprego e doabono salarial (BRASIL, 2001, p. 89). Até 1990, o PIS e oPASEP funcionavam como contas individuais; a partir daLei n° 7.998, os recursos desses programas passam a com-por uma única conta, originando o FAT, a ser utilizadopara o financiamento de políticas sociais vinculadas aoMinistério do Trabalho.2 Para efeitos deste estudo foram consultados os Rela-tórios Gerenciais do BNDES (de 1991 a 2000) e do FAT(de 1994 a 1999). Constarão na bibliografia apenas aque-les explicitamente citados no corpo deste trabalho.3 As transações correntes incluem todas as receitas e des-pesas do País em suas relações com o exterior (O Estadode São Paulo, 1998 - <http://www2.estado.com.br/edi-cao/pano/98/09/ 30/eco771.html>).4 Para uma melhor compreensão dos dados da tabela, apartir de esclarecimentos do próprio BNDES:- A Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) é uma formade remuneração tradicional, limitada a 6% ao ano, calcu-lada pelo Banco Central por meio de parâmetros inter-nos, especialmente as metas de inflação;- A remuneração do FAT – Cambial é calculada por umataxa de juros fixada pelo mercado mundial, a libor, maisa variação do câmbio, voltada para os investimentos emexportação.5 Para a verificação de outros dados e para uma melhorcompreensão dos mecanismos de funcionamento, apro-vação e destinação do FAT, consultar Cêa (2003).6 O FAT vem sendo objeto constante de auditorias doTCU, principalmente pelas denúncias acerca do uso inde-vido de recursos na política de qualificação profissional doMTE. Ao longo da existência do Plano Nacional deQualificação do Trabalhador (PLANFOR, substituído emjulho de 2003 pelo Plano Nacional de Qualificação –PNQ) foram realizadas diversas auditorias: em 1995(Decisão 16/1996 – RS); em 1996 (Decisão 194/1999); em1997 (Decisão 886/1997 – PR); em 1998 (Decisão 188/1998– PI); em 1999 (Acórdão 237/1999 – MS; Decisão664/1999 – CE; Decisão 959/1999 – MS); em 2000 (Deci-são 279/2000; uma auditoria nacional em andamento;outra auditoria em andamento no DF). Em recente acom-panhamento do TCU à implementação do PNQ foi obser-vada a continuidade de problemas estruturais na conduçãoda política de qualificação do MTE em curso.7 Disponível em: <http://www.mte.gov.br/Trabalha-dor/FAT/Codefat/Resolucoes/2005/Conteudo/439.asp>.

REFERÊNCIAS

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 39

Se sou um indivíduo, é preciso saber

se sou eu que faço estes versos com o que penso,

com o que sinto.

Se com o que penso, posso negar o que não sinto,

se com o que sinto, posso fazer o que penso:

ser simples, amar, criar, brincar com os bichos,

dizer não ao poderoso quando ele mover as mãos

e com os cordéis manejar a necessidade das palavras,

no palco, como marionetes de silêncio,

peixes, flores, pássaros, navios,

Poema para amanhã

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE40 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

exibindo o casco da forma, a âncora

do medo,

sem o sal, o cheiro, o canto, o mar.

Se sou um indivíduo, é preciso saber

distinguir estes peixes dos homens que os procuram,

mas saber também que eles estão ligados pela fome e pelo sal;

distinguir essas flores dos homens que as colhem,

mas saber também que estão ligadas pela morte e pelo amor;

distinguir esses pássaros dos homens que os ouvem,

mas saber também que eles estão ligados pelo mar e pelo porto.

Enfim, primeiro é preciso saber, se sou um indivíduo,

que não serei um indivíduo se estiver sozinho.

Se sou um indivíduo, é preciso saber primeiro

porque fiz estes versos às dez horas da noite

e não os fiz às oito, ou porque não me deitei às oito

e sonhei estes versos como faz tanta gente.

Se sou um indivíduo, é preciso saber

porque quero escrever estes versos como indivíduo,

como eu mesmo, e não com a voz grave da massa.

É preciso investigar a razão desta escolha às dez horas da noite,

a razão de negar como indivíduo este mundo onde vivo,

de não me fazer a voz grave da massa que o pode negar totalmente.

Talvez seja porque não procure dizer apenas

que o mundo onde vivo deva ser negado.

Talvez eu deseje anunciar à massa que pretendo ser um indivíduo,

que pretendo continuar a ser um indivíduo,

e se este mundo for por ela negado totalmente,

que me respeite como sou

e se transforme também em indivíduos.

Luiz Paiva de Castro, Pássaros na Alfândega, Gavião, Rio de Janeiro, 1963.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 43

Precarização do trabalho docente no Brasil:novas e velhas formas de dominação capitalista

(1980-2005)1

Antônio de Pádua Bosi

Professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e 1º Tesoureiro do ANDES-SN (gestão 2004-06)

Osurgimento do termo “precarização dotrabalho” é recente e tem relação com umconjunto de mudanças econômicas e so-

ciais no mundo do trabalho geralmente carac-terizado pela piora nas relações de contratotrabalhista. Essa definição foi esboçada na dé-cada de 1980 e tornou-se dominante na décadade 1990 a partir de diversos estudos que exami-naram as articulações entre determinada crise docapital evidenciada na década de 1970 e o cres-cimento do desemprego e da informalidade.

De fato o trabalho passou, mais visivel-mente a partir da década de 1970, a sofrer fortedesregulamentação que redundou na perda dedireitos sociais conquistados ao longo daprimeira metade do século XX. São fartos osestudos que evidenciam o aumento, desde adécada de 1970, em todo o planeta, de formasde trabalho precarizadas, temporárias, sub-

contratadas e clandestinas vulgarmente reuni-das sob o conceito de trabalho informal. Maisrecentemente, no final da década de 1990, osíndices que mensuram essa realidade explodi-ram, registrando que 35% da chamada popula-ção economicamente ativa são ocupadas “pre-cariamente”, isto é, sem contrato de trabalho esem direitos sociais. De acordo com dados daOrganização Internacional do Trabalho (OIT),entre os três bilhões de pessoas que compu-nham a população economicamente ativa(PEA) em todo o mundo no ano de 1999, cercade um bilhão de trabalhadores viviam com asua “capacidade de trabalho” sub-utilizada.Desse número cerca de 150 milhões de traba-lhadores não conseguiam nenhum tipo de ocu-pação e os outros 850 milhões de pessoas es-tavam envolvidos em atividades temporárias,parciais e de remuneração irregular2. Mesmo

“Mas que fazer? Era preciso trabalhar. Isso já vinha sendo feito de pai para filho, como bem podia ser outra coisa. Seu filho,

Toussaint Maheu, já se matava no mesmo ofício, assim comoseus netos e toda a família, que morava em frente, na aldeia.

Cento e seis anos de trabalho para o mesmo patrão, as criançasapós os velhos: que tal? Muitos burgueses não saberiam contar tão bem a sua história!”. (Émile Zola, Germinal)

44 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Os Desafios para a Universidade

em economias localizadas no centro do capita-lismo, como a norte-americana, a alemã e a fran-cesa, os empregos oferecidos apresentam-se cadavez mais sob a marca da desregulamentação3. Nocaso brasileiro a posição nesse quadro é dedestaque. Além de ter registrado um índice deaumento do desemprego de 1134,2% entre 1975e 1999 (o vigésimo entre 141 países), a quanti-dade de trabalhadores assalariados formais de-clinou de 25,5 milhões no ano de 1989 para22,3 milhões em 19994.

A farta literatura que se especializou no tra-tamento desse assunto e na interpretação des-ses números indica que esse crescimento dapopulação trabalhadora em situação de traba-lho precarizado teve seu início associado a mu-danças percebidas no mundo do trabalhoocorridas por volta da década de 1970. As ra-zões para tais mudanças têm sido atribuídas auma tentativa do capital de reduzir o custocom o trabalho como resposta preferencial pa-ra determinada crise na acumulação capitalistasentida desde, pelo menos, a década de 1970.Tal solução impôs a introdução de novas téc-nicas de gerenciamento e de organização doprocesso produtivo com o objetivo de “pou-par” trabalho, o que resultaria na diminuiçãodos trabalhadores efetivamente empregados5.Dessas novas técnicas faz parte também a ex-ternalização de certas funções produtivas vi-sando contratá-las sem encargos sociais, vín-culo empregatício direto e pagando saláriosmenores por meio de empresas terceirizadasou mesmo das recentes Cooperativas de traba-lhadores. E amalgamando todo esse processoencontramos a definição de “reestruturaçãoprodutiva”. De maneira cabal a solução encon-trada para a crise do capital foi a “precarizaçãodo trabalho” entendida como resultante desseprocesso de “reestruturação produtiva” que,por seu turno, é apontado como o responsávelpela diminuição dos empregos e pelo aumentodas relações de trabalho desregulamentadas,

destituídas de muitos direitos trabalhistas.Esta percepção sobre a “precarização do tra-

balho” construída historicamente nesses últi-mos 30 anos consolidou uma leitura da realida-de que geralmente tem resumido o “trabalhoprecário” aos diversos tipos de trabalho disci-plinados por contratos - permitidos por lei -caracterizados pela ausência de muitos direitostrabalhistas e sem qualquer estabilidade. As-sim, a “precarização do trabalho” corresponde-ria apenas ao trabalho contratado “precariamen-te”. Na visão de um especialista sobre o assunto,Luciano Vasapollo, esses contratos seriam defi-nidos pela mais completa flexibilidade cuja fina-lidade residiria na busca de vantagens exclusiva-mente econômicas voltadas para garantir:

[...] liberdade por parte da empresa para

despedir uma parte de seus empregados,

sem penalidades, quando a produção e as

vendas diminuem; liberdade, para a em-

presa, quando a produção necessite, de re-

duzir o horário de trabalho ou de recorrer

a mais horas de trabalho, repetidamente e

sem aviso prévio; faculdade por parte da

empresa de pagar salários reais mais baixos

do que a paridade de trabalho, seja para so-

lucionar negociações salariais, seja para

que ela possa participar de uma concorrên-

cia internacional; liberdade de a empresa

subdividir a jornada de trabalho em dia e

semana de sua conveniência, mudando os

horários e as características (trabalho por

turno, por escala, em tempo parcial, horá-

rio flexível etc.); liberdade para destinar

parte de sua atividade a empresas externas;

possibilidade de contratar trabalhadores

em regime de trabalho temporário, de fa-

zer contratos por tempo parcial, sub-con-

tratado, entre outras figuras emergentes do

trabalho atípico, diminuindo o pessoal efe-

tivo a índices inferiores a 20% do total da

empresa.6

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 45

Desse modo, os estudos sobre esse assuntoconvencionaram chamar de “precárias” as for-mas de contrato de trabalho caracterizadas porampla flexibilidade no tempo do contrato(contratos curtos e instáveis), na jornada detrabalho (meio período ou trabalho por tarefa),na definição da remuneração (salário definidopela produtividade individual) e nos direitostrabalhistas (sem FGTS, férias e aviso prévio)7.Também desse modo, “trabalho precário” re-fletiria todo tipo de ocupação que fosse atípicaà legislação trabalhista, servindo como umconceito com capacidade apenas descritiva dasinúmeras situações de relações contratuais commenos direitos trabalhistas. Estaria assim re-duzido somente a um dos sintomas que vemcaracterizando as mudanças nas relações entrecapital e trabalho no final do século XX.

Essa visão da realidade tem marcado tam-bém as reflexões sobre a “precarização do tra-balho docente”. Ela tem nos levado sistemati-camente a considerar como “trabalho preca-rizado” apenas o trabalho docente sob contra-tos temporários - sem estabilidade e direitos.Desse modo, estariam circunscritos a esse uni-verso apenas os docentes sem vínculos empre-gatícios com as Instituições de En-sino Superior, ou seja, grande par-te dos docentes das InstituiçõesPrivadas de Ensino Superior e osdocentes temporários (chamados“substitutos”, “conferencistas” ou“colaboradores”) das Instituiçõesde Ensino Superior Públicas (fede-rais, estaduais e municipais). Acre-dito que essa abordagem que in-forma uma visão de “precarizaçãodo trabalho” bastante reduzidadeve-se a uma compreensão nãomenos restrita de que os impactosda chamada “reestruturação pro-dutiva” sobre os trabalhadores se-riam exclusivamente econômicos,

o que tem viabilizado uma percepção da “pre-carização do trabalho” assentada apenas nocontrato do trabalho, isto é, em sua forma jurí-dica. Noutro sentido ainda não verificado de-vidamente nessas reflexões estariam aspectosdo trabalho docente como a intensificação dotrabalho, a flexibilização e estagnação dos salá-rios, a subtração de direitos sociais (ou sua re-lativização) e o aumento da produtividade edos níveis de exigência institucionais, que esca-pariam à percepção.

Portanto, olhando noutra direção, se a “re-estruturação produtiva” ancora-se como solu-ção dominante para a crise do capital avolu-mada na década de 1970 é possível que tenhamexido na realidade de todos os trabalhadores,para além de ter introduzido (ou ampliado)uma área de trabalhadores “precarizados” co-mumente chamados de “informais”. Mais doque isso, se é válida a idéia de que toda inter-venção econômica do capital (toda reorganiza-ção do trabalho a exemplo do “taylorismo” edo “fordismo”) é uma intervenção fundamen-talmente política, caberia tomar a “reestrutu-ração produtiva”, no dizer de Edmundo Fer-nandes Dias, como uma tentativa do capital de

“[...] resolver a questão complexada incorporação dos trabalhadoresao capitalismo, de sua integraçãopassiva e ao mesmo tempo mantera capacidade acumulativa (do ca-pital)”.8

Dessa maneira, é preciso posi-cionar a questão da “precarizaçãodo trabalho docente” numa per-cepção mais ampliada das mudan-ças ocorridas nesses últimos 30anos no mundo do trabalho bus-cando identificar e problematizarpossíveis alterações na rotina dasatividades docentes (ensino, pes-quisa e extensão) e não apenas nasrelações de contrato. Alargada a

Os Desafios para a Universidade

A abordagem queinforma uma visãode “precarização dotrabalho” bastantereduzida deve-se auma compreensãonão menos restrita de que os impactos

da chamada“reestruturação

produtiva” sobre ostrabalhadores seriam

exclusivamenteeconômicos.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE46 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

Os Desafios para a Universidade

dimensão a partir da qual os im-pactos dessas mudanças no cotidia-no dos docentes serão examinadostem-se de início a idéia de que a“precarização do trabalho” nãopode ser resumida a um processoexclusivamente econômico (enten-dido geralmente como “reestrutu-ração produtiva”), mas tem impli-cações principalmente de naturezasocial (à medida que interfere naforma de existência da classe), cul-tural e política (à medida que inter-fere na auto-percepção que os trabalhadores -e os docentes em particular - têm de si e nomodo com que se organizam para resolverproblemas relacionados ao salário, por exem-plo). Assim, ampliando nossa percepção sobrea precarização do trabalho cabe identificar eavaliar suas razões históricas, seus impactos naclasse trabalhadora e no trabalho docente emespecial, os meios atuais de sua reprodução e aspossibilidades em curso de resistência.

As razões e as condições históricas da precarização do trabalho

A principal referência das mudanças ocor-ridas no mundo do trabalho situa-se numa cri-se de acumulação do capital ocorrida em âm-bito internacional. Por volta do início da déca-da de 1970 diversos estudos identificaram umaqueda significativa nos ritmos do crescimentodas economias capitalistas. Tanto nos países donorte quanto nos países do sul (nas chamadaseconomias do “primeiro” e “terceiro” mun-dos), os índices de crescimento econômico re-gistravam estagnação e até mesmo declínio. Senas décadas do pós-guerra o crescimento daseconomias capitalistas foi geralmente men-surado em torno de dois dígitos seu vigor co-meçou a desaparecer no final da década de19609. Embora os lucros existentes em todo oplaneta continuassem a se concentrar cada vez

mais nas grandes corporaçõesmultinacionais e transnacionais10,suas taxas tenderam a diminuir,com exceção reservada para o ca-pital financeiro apesar das inter-mitentes desvalorizações nas bol-sas ocorridas ao longo das décadasde 1980 e 199011. No campo de re-flexão marxista esse tipo de crisefoi caracterizado pelo excesso deprodução de mercadorias contra-posto a uma escassez na capacida-de de consumo mundial, uma cri-

se de superprodução. Em síntese, o capital nãoconseguia se reproduzir.

Nesse contexto histórico, para recuperar asantigas taxas de lucro, o capital produziu umasolução que combinou três fatores. Em vias dese esterilizar e desvalorizar, o capital foi derra-mado no Sistema Financeiro em busca de me-lhor remuneração convertendo-se em capitalde especulação nas Bolsas de Valores por meioda compra e venda de Títulos de Dívidas Pú-blicas, de Moedas e de todo tipo de Ações12.Esse caminho permitiu ao capital obter renta-bilidade sem realizar nenhum tipo de inversãodireta de recursos no setor produtivo ou deserviços, isto é, sem nenhuma criação de novospostos de trabalho. Em paralelo a sua finan-ceirização o capital iniciou um processo de re-estruturação no processo de trabalho e nas re-lações de contrato dos trabalhadores que ficouconhecido como “reestruturação produtiva”.Tal reestruturação orientou-se por uma redu-ção dos custos do trabalho facilitada, por suavez, pela introdução de novas tecnologias pou-padoras de trabalho, pelo desenvolvimento denovas formas de intensificação do trabalho epela destruição e flexibilização dos direitos tra-balhistas. Este último aspecto certamente temsido o mais prodigioso na ressuscitação de ve-lhas estratégias de dominação do capital sobreo trabalho, tão comuns ao século XIX, tais

A “precarização dotrabalho” não podeser resumida a um

processoexclusivamente

econômico, mas temimplicações

principalmente denatureza social,

cultural e política.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 47

Os Desafios para a Universidade

como o largo emprego de trabalho feminino einfantil, a sub-contratação de trabalhadores e aprodução em três turnos de modo a encurtar ajornada e os salários.

O terceiro fator talvez tenha sido o de maiorimpacto na vida dos trabalhadores e certa-mente foi o que mais diretamente relacionou-se com a precarização do trabalho docente: aincorporação de economias e atividades não-capitalistas à órbita do capital. Embora este fa-tor integre-se à lógica de formação do capita-lismo - compondo desde o século XVI a pró-pria dinâmica do modo de produção capitalis-ta-, sua existência a partir da década de 1970mudou em qualidade de maneira a converterdiversos modos de vida e serviços públicos emmercadoria13. No caso do Brasil este processode conversão do patrimônio público em priva-do apresenta evidências já na década de 198014

(ainda sob o regime militar), mas adensou-sede fato no início da década de 199015, quandoas orientações políticas dos governos no Brasildatados a partir de Collor de Melo foram fran-camente neoliberais.

A opção brasileira pela transferência do pú-blico para o privado fez-se estreitamente arti-culada ao que se convencionou chamar de“neoliberalismo” divulgado como doutrinapolítica na década de 198016. O foco das me-didas chamadas neoliberais residiu, principal-mente, no rebaixamento do custo da força detrabalho. Nesse sentido, as primeiras experiên-cias “neoliberais” emanaram dos governosReagan e Thatcher que, na década de 1980, de-senvolveram políticas caracterizadas central-mente pela redução do Estado materializadaem colossais privatizações de empresas e ser-viços públicos combinadas com o desmontedas instituições de seguridade social e da legis-lação de proteção ao trabalho. A transferênciade áreas inteiras de investimento e manutençãopúblicos (tais como previdência social, educa-ção, saúde, habitação popular, estradas etc.)

para a iniciativa privada constituiu-se numatentativa sistemática de recuperar a acumula-ção de capital estancada desde a década de1970. Nesses casos tratava-se da conversão(mediada ou não por contratos de concessão)do patrimônio público em propriedade priva-da, o que criava condições concretas para valo-rização do capital. Um dos especialistas no as-sunto que mais acompanhou o processo deprivatização no Brasil apresentou ao longo dadécada de 1990 evidências sobre essa conver-são do público em privado:

[...] Antes de vender as empresas telefô-nicas, o governo investiu 21 bilhões dereais no setor, em dois anos e meio. Ven-deu tudo por uma ‘entrada’ de 8,8 bi-lhões de reais ou menos – porque finan-ciou metade da ‘entrada’ para gruposbrasileiros. [...] A Companhia Siderúr-gica Nacional (CSN) foi comprada por1,05 bilhão de reais, dos quais 1,01 bi-lhão em ‘moedas podres’ – vendidas aos‘compradores’ pelo próprio BNDES(Banco Nacional de DesenvolvimentoEconômico e Social), financiadas em 12anos. [...] Assim é a privatização brasi-leira: o governo financia a compra noleilão, vende ‘moedas podres’ a longoprazo e ainda financia os investimentosque os ‘compradores’ precisam fazer.17

Por outro lado, tentou-se “reformar” toda alegislação sobre as relações capital e trabalhocom o objetivo de subtrair as cláusulas que de-finiam proteção e direito dos trabalhadores.Esse esforço foi iniciado no governo Collor econtinuado nos dois mandatos consecutivos deFernando Henrique Cardoso. Por meio de al-gumas dezenas de Medidas Provisórias, Pro-jetos de Lei, Emendas Constitucionais, Porta-rias Ministeriais e Decretos Presidenciais, FHCaprofundou a desregulamentação da legislação

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trabalhista orientando-se sempre no sentido de“subordinar o legislado ao negociado”. Pode-se ilustrar a chamada “flexibilização” do traba-lho com três exemplos elucidativos. Por ordemcronológica merece destaque a Lei 8.949/94 quemodificou o art. 442 da CLT, acrescentando-lhe um parágrafo para determinar a inexistên-cia de vínculo empregatício entre a cooperativae seus cooperados e entre as empresas contra-tantes de serviços. Esta alteração permitiu queempregados passassem à categoria de associa-dos, desobrigando a empresa e acooperativa dos encargos traba-lhistas e previdenciários. Na prá-tica tal lei tornou-se poderoso ve-tor para que empresas transnacio-nais e nacionais terceirizassemsuas atividades utilizando trabalhocontratado de cooperativas deso-brigadas legalmente de qualquerencargo social. À esta lei seguiu-seo engajamento de milhares de tra-balhadores nessas cooperativas (mui-tas delas incentivadas e criadas sob ainspiração da teoria da “EconomiaSolidária”) esperançosos de escapardo desemprego e de converterem-seem seus próprios patrões.

Recorrendo à força ideológicapresente na conversão de trabalha-dores em pequenos e micro-em-presários a Lei 9.468/97 instituiuos Planos de Demissão Voluntária(PDV) com a finalidade de reduziros quadros de pessoal na adminis-tração pública. Este segundo exemplo que teveampla repercussão nos estados, além de desar-ticular o mercado de trabalho, contribuiu parao desemprego, a insegurança e o empobreci-mento dos trabalhadores. O terceiro exemplo,a Lei 9.601/98, radicalizou a flexibilização doscontratos de trabalho e da legislação trabalhis-ta instituindo o contrato temporário de traba-

lho e reduzindo o percentual de contribuiçãodo FGTS de 8% para 2%, estipulando que otrabalhador contratado sob esta forma não ti-vesse direito a receber, em caso de demissão,nem os 40% de multa sobre o Fundo, nem oaviso prévio. Esta lei, de grande abrangência,permitiu ainda a introdução do Banco de Ho-ras, desde que convencionado por acordo entrepatrão e trabalhadores. Tal Banco de Horas, naprática, se caracteriza pela adoção de um au-têntico sistema de créditos (prorrogações de

jornada) e débitos (diminuições dejornada ou folgas) relacionado àshoras trabalhadas e compensadaspelo trabalhador18. Consideradauma grande conquista pela CUT, oBanco de Horas intensificou a ex-ploração sobre a classe trabalhado-ra porque o saldo (as horas nãotrabalhadas em um momento quenão interessava ao capital) passou aser utilizado pelos capitalistas pararegular seus estoques, conter asdespesas com horas extras e mes-mo evitar a contratação de novostrabalhadores. Não é excessivorelembrar que do ponto de vistatanto econômico quanto políti-co tais medidas não são origi-nais ou nativas, mas acompa-nham a orientação mundial deajuste das economias nacionais ànecessidade de recomposiçãodas taxas de lucro do capital quevinham declinando visivelmente

em todo o mundo desde a década de 1970. Essas modificações na superestrutura jurídi-

ca tiveram velozes repercussões. Tomando co-mo exemplo para análise os PDVs e o estímuloà aposentadoria instituídos no ano de 1997 nosetor financeiro público, considerando apenasos bancos estatais, registrou-se já ao final da-quele ano uma redução de quase 40% no nú-

O Banco de Horasintensificou a

exploração sobre aclasse trabalhadora

porque o saldo (as horas não

trabalhadas em ummomento que não

interessava aocapital) passou a ser

utilizado peloscapitalistas para

regular seusestoques, conter asdespesas com horas

extras e mesmoevitar a contratação

de novostrabalhadores.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 49

mero de funcionários. Antes disso, apenas coma introdução de novas tecnologias no trabalhobancário somada à prática sistemática de ter-ceirização dos serviços, houve uma diminuiçãode aproximadamente 50% do corpo funcionalefetivo dos bancos públicos e privados. Entre1986 (quando a categoria bancária represen-tava um milhão de trabalhadores) e 1996(quando essa representação declinou para 497mil) cerca de meio milhão de bancários perde-ram ou deixaram seus empregos19. No caso dosdocentes das IFES, as aposentadorias precocesque foram estimuladas nesse período consti-tuíram-se no fator mais determinante da estag-nação - em alguns casos diminuição - do con-tingente efetivo em diversas universidades eCEFETs. Não havendo contrapartida na for-ma de concursos públicos o aumento dos con-tratos temporários tornou-se re-gra. Em alguns departamentos re-gistrou-se casos em que a metadedo corpo docente compunha-se deprofessores substitutos. No que serefere aos trabalhadores do setorprivado a pressão fez-se sentir pormeio de PDVs e acordos tripartitesentre as categorias mais organiza-das e por meio da “simples” de-missão entre as categorias menosorganizadas. Tomando como referência deanálise os trabalhadores da indústria auto-mobilística - uma das categorias politica-mente mais articuladas nesses últimos 30anos - o estrago não foi menor. Entre 1982e 2000 seu contingente nacional declinoude 107 mil para 89 mil, enquanto o índicede produtividade cresceu de 8% para 19%nesses mesmos anos20.

Entretanto, o fato - já bastante comprovado- da diminuição dos empregos ditos “formais”não significou uma redução da classe trabalha-dora. De outra maneira, a tentativa do capitalde reestruturar (reorganizar) o trabalho provo-

cou um aumento numérico dos trabalhadores.Vejamos esse processo.

Crescimento da classe trabalhadora: o “informal” pelo “formal”

Apesar de óbvia, uma das tendências poucocomentadas da expansão do Modo de Produ-ção Capitalista é a crescente conversão de ho-mens, mulheres, velhos, jovens e crianças emforça de trabalho. Ao contrário do que muitose avalia na atualidade, longe de desaparecer, otrabalho organizado pelo capital é uma con-dição de sobrevivência cada vez mais universal.Nos dias de hoje se anulássemos a tênue fron-teira que demarca a distância entre os empre-gos “formais” e os empregos “informais” en-contraríamos o maior índice de postos de tra-balho (confrontados à população mundial

existente) de toda a curta históriado capitalismo industrial dessesúltimos 200 anos. Mesmo consi-derando apenas os empregos ditos“formais” os números indicamcrescimento:

[...] Nos países da OCDE, ou seja,os países mais desenvolvidos da an-tiga esfera norte-americana, duran-te a década de 1970, que foi a mais

atingida pela crise (de acumulação do ca-pital), o número de empregos teve um au-mento de 28 milhões, só menos 1 milhãodo que durante a década de 1960.” 21

Com relação aos empregos ditos “infor-mais” nossa percepção precisa contabilizartambém as “novas” ocupações surgidas nessesúltimos 30 anos. Atividades que no geral foramabsolutamente desprovidas de interesse econô-mico têm sido ressignificadas pelo capital àscustas de novas tecnologias de produção. É ocaso, por exemplo, dos catadores de reciclá-veis, que evidencia uma situação concreta de

Ao contrário do quemuito se avalia na

atualidade, longe dedesaparecer, o

trabalho organizadopelo capital é uma

condição desobrevivência cadavez mais universal.

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apropriação de um modo de viver pelo capital eda sua conversão em negócio. O que hoje é re-conhecidamente uma força de trabalho nume-rosa, praticamente inexistia antes da década de1980. Somente no Brasil são mais de um milhãode catadores, número que supera, por exemplo,o efetivo de bancários e de metalúrgicos do se-tor automotivo. Na Índia os catadores formamuma das principais categorias de trabalhadores.Na Colômbia já são 300 mil. Na Argentinaaproximam de 100 mil22. Além desse tipo deocupação “informal” há também a “inven-ção” de novas “profissões”, como é o casodos teleoperadores, que já nascem profunda-mente precarizadas. A esse respeito Ruy Bra-ga observa que

[...] Do ponto de vista das característicasgerais do trabalho dos teleoperadoresocupados em CTAs (Centrais de Tele-Atividades) é possível realçar que: (a) oscontratos de trabalho inclinam-se, pormeio das jornadas de 6 horas, na direçãoda precariedade e da instabilidade; (b) odia de trabalho corresponde às 24 horas,sete dias por semana – conseqüentemen-te, as CTAs exigem uma forte disponi-bilidade dos trabalhadores; na medida emque a disponibilidade destes encontra-seassociada a condições de trabalho difí-ceis, resulta um forte turnover; o traba-lho submete-se agudamente ao fluxo in-formacional: Ao final de uma chamada,sucede a seguinte, seja automaticamente(em intervalos de 0 a 20 se-gundos, dependendo doscalls centers), seja manual-mente, após um máximo dedois ou três sonidos.23

De outra forma o capital temsubmetido diversos tipos de tra-balho doméstico. As costureiras

informam um desses casos mais visíveis24. Des-de a década de 1970 muitas mulheres sem ocu-pação “formal” vêm sendo sub-contratadas porconfecções (geralmente micro e pequenas em-presas terceirizadas por médias e grandes em-presas), sem registro em Carteira, caracterizan-do relações ilegais de trabalho, mas que tiveramesta situação “legalizada” à medida que passa-ram a ser contratadas por intermédio de coo-perativas de mão-de-obra isentadas de muitosencargos trabalhistas desde 199425. Noutras si-tuações tem ocorrido a “regeneração” de ocu-pações pela própria utilização generalizada dedeterminada tecnologia que tempos antes forapromessa de debelá-las. Sobre isso, no empregodoméstico houve uma intensificação do traba-lho, devido, principalmente, à simplificação dealgumas tarefas domésticas facilitadas por meiodo uso de eletrodomésticos e mesmo da incre-mentação da indústria alimentícia, o que re-duziu o tempo de realização de atividades co-mo lavar e passar roupas, preparar e cozinharalimentos, por exemplo. Esse processo permi-tiu e estimulou o crescimento do emprego do-méstico “diarista” numa forma completamenteflexibilizada onde os direitos trabalhistas nãotinham lugar, as jornadas tornaram-se parciais eo próprio trabalho intensificou-se. Essa dinâ-mica da exploração do trabalho doméstico pos-sibilitou o crescimento dos empregos ao longodas décadas de 1980 e 1990 que praticamenteelevou as 3,5 milhões de domésticas encontra-das em 1985 para quase seis milhões em 1999no Brasil26.

É, portanto, nesse contexto deprecarização do trabalho que mui-tas mudanças no trabalho docentevêm sendo operadas. A começarpelo crescimento da força de traba-lho docente que passou de 109 milprofessores em 1980 para 279 milem 2004, um aumento de 154%.Mesmo relativizando este número

O crescimento daforça de trabalhodocente passou de

109 mil professoresem 1980 para 279mil em 2004, um

aumento de 154%.

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devido ao fato de que muitos docentes em-pregados nas Instituições Privadas de EnsinoSuperior foram contabilizados duas ou três ve-zes (porque trabalham em mais de umainstituição) e ao fato de ser proporcionalmentemenor que o crescimento da população consi-derada economicamente ativa, o crescimentonão deixa de ser significativo conforme os da-dos da tabela 1.

Olhando esse crescimento por um ângulomais detalhado, percebe-se que sua relevâncialocaliza-se no setor privado, acompanhandouma inversão da lógica estrutural do ensinosuperior adotada a partir do golpe de 1964 quedeu início à expansão pela via da iniciativa pri-vada. Essa dinâmica pode ser facil-mente evidenciada pela compara-ção dos índices referentes às matrí-culas no ensino superior que, seaté a década de 1980 concentra-ram-se no setor público, passarama se concentrar no setor privadoprincipalmente ao longo da décadade 199027. Analisada em relação àevolução dos docentes na ativa dasIES públicas e privadas tal lógica torna-se ain-da mais evidente. Se o crescimento da força detrabalho empregada nas IES públicas registra-do entre 1980 e 2004 foi de 53%, nas IES pri-vadas foi superior a 270%! A inversão dessarelação deu-se a partir de 1998 (segundo man-

dato de FHC) e certamente foi preparada pelalegislação que estimulou a multiplicação dasinstituições de ensino privadas e pela políticade estagnação das IES públicas explicitada fun-damentalmente no arrocho orçamentário e norepresamento de concursos. A tabela 2 repre-senta essa evolução.

Outra característica desse crescimento é aflexibilidade registrada nos regimes de traba-lho. Do total de docentes cadastrados pelocenso do INEP (2004) apenas 16,9% traba-lham em regime de Dedicação Exclusiva. Mes-mo se considerarmos como hipótese que tal ci-fra diz respeito quase que integralmente à rea-lidade das IES públicas sua repercussão ainda

evidenciaria uma grande desregu-lamentação do trabalho docente jáque representaria - nessa hipótese- apenas 48% de todos os docentesdas IES públicas28. E há ainda ou-tros expedientes menos ortodoxosde flexibilização da contratação edo regime de trabalho nas IES pú-blicas como a utilização de alunosde pós-graduação como professo-

res substitutos e a fracassada tentativa do go-verno FHC de instituir o regime de 12 horasnas IFES. No caso das IES privadas são maisde 118 mil docentes em regime “horista”, oque representa quase 70% de todos os docen-tes. Em relação à legislação educacional que

Tabela 1

EVOLUÇÃO DO NÚMERO DE DOCENTES

Docentes 1980 1985 1989 1994 1998 2003 2004IES Públicas 60.037 64.449 70.095 75.285 83.738 88.795 93.800

IES Privadas 49.451 49.010 57.934 66.197 81.384 165.358 185.258

Total 109.788 113.459 128.029 141.482 165.122 254.153 279.058

Fonte: MEC/INEP - Organização do autor

Tabela 2

Docentes 1980 1985 1989 1994 1998 2003 2004IES Públicas 54.6 56.8 54.7 53.3 50.7 34.9 33.6

IES Privadas 45.4 43.2 45.3 46.7 49.3 65.1 66.7

Total 100 100 100 100 100 100 100Fonte: MEC/INEP - Organização do autor

O crescimento daforça de trabalho

empregada nas IESpúblicas registradoentre 1980 e 2004foi de 53%, nas IESprivadas foi superior

a 270%!

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estabeleceu parâmetros de contratação jábastante flexíveis a partir de 1996 (LDB), setedas 84 universidades públicas não cumprem aexigência de terem pelo menos um terço docorpo docente em regime de tempo integral. Jáentre as universidades privadas são 65 das 86existentes, o que representa mais de 75% nu-ma situação ilegal.

No que se refere às IFES o aumento de do-centes entre 1980 e 2004 foi raquítico, pro-gredindo de 42.010 para 50.337, o que signi-ficou um acréscimo de pouco mais de 8.000docentes em 24 anos, como está representadona tabela 3. Assim, o crescimento no setor pú-blico aconteceu principalmente nas IES esta-duais. Enquanto nestas houve um aumento de153%, nas IFES esse percentual foi de tímidos19,8%. A característica principal desse cresci-mento reside no fato de que muitas das jovensuniversidades estaduais criadas nesse períodojá nasceram sob a regra da precarização exi-bindo formas “criativas” de contratação. Alémdos contratos temporários e efetivos baseadosem hora-aula (pagamento por aula e ausênciade Plano de Carreira), tem sido prática corren-te o recurso às “bolsas de pesquisa” e “adicio-nais” a título de extensão como forma de re-muneração docente. Mesmo em universidadesconsolidadas como a UNESP a expansão deu-se, principalmente, pela “extensão” dos docen-tes já efetivos para os novos campi e pela con-tratação de docentes por períodos de três me-ses, regime de trabalho chamado de professo-res “conferencistas”.

Portanto, é certo que tal crescimento da for-

ça de trabalho em geral, e da docente em par-ticular, foi (e tem sido) marcado pela intensi-ficação e aumento da exploração sobre o traba-lho e pela desregulamentação dos contratos.Aliás, são essas possibilidades de contrataçãoprecária, abertas por práticas constituídas àmargem da lei ou mesmo por modificações nalegislação trabalhista, que tem feito com queessa classe aumente em quantidade. Nesse sen-tido, é certo também que, tornado numerica-mente predominante, o trabalho consideradoprecário e informal converte-se em medida pa-ra todo tipo de trabalho restante. Este é o prin-cipal fundamento histórico do processo queatravessamos. É nesse “Espelho de Próspero”às avessas que, por exemplo, os docentes e de-mais trabalhadores ditos “formais” começam ase verem refletidos sem, necessariamente con-seguirem, todos eles, entenderem as formasatuais do seu próprio trabalho como expressãoda dominação capitalista.

Novas e velhas formas da dominaçãocapitalista sobre o trabalho docente

A precarização do trabalho docente nas IESpúblicas não reside apenas nos “novos” em-pregos e nas “novas” formas de contrataçãocriadas. Ao lado da presença da “informalida-de” no trabalho docente foram introduzidasmuitas mudanças na rotina das atividades deensino, pesquisa e extensão nesses últimos 15anos, desde, pelo menos, o governo Collor deMelo. Do ponto de vista do capital trata-se deaumentar o trabalho docente em extensão, in-tensidade e qualidade. Esse processo ainda in-

Tabela 3

Docentes 1980 1985 1989 1994 1998 2003 2004Docentes IFES 42.010 42.087 43.397 43.556 45.611 47.709 50.337

Docentes IEES 14.141 17.392 22.556 25.239 30.621 33.580 35.866

Docentes IMES* 4.186 5.020 4.142 6.490 7.560 7.506 7.597

Total 60.037 64.449 70.095 75.285 83.738 88.795 93.800

*MunicipaisFonte: MEC/INEP - Organização do autor

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concluso é objetivado na mercantilização daeducação pública e, nesse sentido, progridecombinado à transferência dos aportes patri-moniais, financeiros e humanos públicos para ainiciativa privada por meio, principalmente, dealterações na superestrutura jurídica do Esta-do. Além do carreio direto de verbas públicaspara a iniciativa privada, a exemplo do que temrepresentado o Programa Universidade ParaTodos (PROUNI)29 e do que prometem asParcerias Público-Privadas (PPP)30, compõemo núcleo estratégico dessas alterações os meca-nismos desenvolvidos para intensificar o traba-lho e relacioná-lo às demandas de mercado.Desse modo, ao mudar as formas institucionaisdo trabalho docente força-se a mudança da ro-tina do trabalho docente.

No âmbito do trabalho docente nas IFESuma mudança nas regras da remuneração porparte do MEC/governo FHC no ano de 1998,durante uma greve que já se estendia por trêsmeses, estabeleceu uma gratificação por pro-dução chamada de Gratificação de Estímulo àDocência (GED). Teriam direito à gratificaçãoem seu valor integral os docentes que atingis-sem 120 pontos contabilizados em relação àuma série de atividades de natureza acadêmica.Em suma, a obtenção dessa pontuação dava-sepelo aumento de horas-aula semanais. Além

disso, essa gratificação excluía os docentesaposentados. Não obstante a resistência domovimento docente contra esse método deprodução por peça, três fatores combinaram-sede modo a impor a GED na rotina dos profes-sores, ou seja, a longevidade da greve, a “van-tagem” financeira imediata diante do quadrode arrocho salarial e a conivência da diretoriado Sindicato docente recém eleita31. Na práticaessa gratificação significou uma estrondosa in-tensificação do trabalho docente facilmente vi-sualizada no aumento do número de alunos emrelação aos docentes devido ao fato de que,com a GED, também foi aumentada a quanti-dade de aulas para cada professor como repre-senta a tabela 4. Analisando os dados dessa ta-bela esse aumento passou de oito alunos porprofessor em 1998 para 12 alunos por profes-sor em 2004.

No plano geral das IES públicas essa in-tensificação do trabalho também aconte-ceu devendo-se principalmente ao repre-samento de concursos ao longo desses úl-timos 15 anos, fato que confirma comoconstante a racionalização de feição neoli-beral dos orçamentos públicos em todosos Estados do Brasil. Analisando os dadosda tabela 5 verifica-se que a relação de seisalunos para cada docente no ano de 1980

Tabela 5

RELAÇÃO DOCENTES E MATRÍCULAS NAS IES PÚBLICAS

Docentes 1980 1985 1989 1994 1998 2003 2004IES Públicas 60.037 64.449 70.095 75.285 83.738 88.795 93.800

Matrículas 403.841 433.957 459.335 571.608 700.539 1.136.370 1.178.328graduação*

*Considerados apenas os matriculados em cursos de graduação presenciais.Fonte: MEC/INEP - Organização do autor

Tabela 4

RELAÇÃO DOCENTES E MATRÍCULAS NAS IFES

Anos 1980 1985 1989 1994 1998 2003 2004IFES 42.010 42.087 43.397 43.556 45.611 47.709 50.337

Matrículas 305.099 314.102 301.535 349.790 392.873 567.101 567.101graduação*

*Considerados apenas os matriculados em cursos de graduação presenciais.Fonte: MEC/INEP - Organização do autor

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE54 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

aumentou para 12 alunos por cada docen-te no ano de 2004.

A pressão exercida para aumentar a quan-tidade de trabalho dentro da jornada geral-mente de 40 horas se concretiza também ali-cerçada na idéia de que os docentes deveriamser “mais produtivos”, correspondendo à“produção” a quantidade de “produtos” rela-cionados ao mercado (aulas, orientações, pu-blicações, projetos, patentes etc) expelidos pe-lo docente. Por um lado, evidencia esse pro-cesso o direcionamento empresarial da ciência,tecnologia, pesquisa e desenvolvimento pre-sente nos editais dos órgãos de fomento à pro-dução científica. Cada vez mais o CNPq e asFundações Estaduais de Apoio à Pesquisa têmconvertido seus recursos para pesquisas e estu-dos que aparelhem e potencializem a capacida-de de reprodução do capital. Essa razão instru-mental pode ser facilmente verificada no con-junto dos editais divulgados anualmente desde,pelo menos, a criação dos Fundos Setoriais.Nessa lógica, por exemplo, as humanidadesencontram raro apoio financeiro para desen-volver seu trabalho. Por outro lado, mesmosem contar com o aporte institucional para to-do tipo de pesquisa, o perfil de pesquisa queescorre caudalosamente desses editais terminapor ditar o padrão para a produçãoacadêmica em geral. A qualidadeda produção passa então a sermensurada pela quantidade daprópria produção e por valoresmonetários que o docente conse-gue agregar ao seu salário e à pró-pria instituição.

Essa dinâmica tem representadona rotina do trabalho docente nãoapenas uma assimilação desse pa-drão de produção (que em realida-de é de produtividade), mas umanecessidade de criar as condiçõespara a realização dessa produção já

que institucionalmente os meios de produçãoacadêmicos (livros, laboratórios, computado-res, equipamentos, bolsas etc) foram (e conti-nuam sendo) concentrados e disponibilizadospara as áreas que conseguem inverter ciência etecnologia para o capital. O resultado dessapolítica tem se materializado num crescimentocavalar da produção e da produtividade cujoobjetivo se encerra no próprio ato produtivo,isto é, ser e sentir-se produtivo. A evidênciadesse processo é facilmente constatada, con-forme depoimento do atual diretor de avalia-ção da CAPES:

[...] Cada programa de pós-graduação,muitas vezes cada departamento de gra-duação, quer editar a sua revista. Quemvai ler isto? É óbvio que se você publicaartigos que não são lidos é um desastre.32

À medida que os recursos disponíveis para apesquisa são canalizados pelas áreas conside-radas “rentáveis” eles passam a ser usados pri-vativamente dentro da própria instituição: la-boratórios, computadores, salas, auditórios eequipamentos que servem apenas e exclusiva-mente a grupos, núcleos e centros de pesquisaconstruídos às expensas do dinheiro público

(propriamente os editais) e emparceria com empresas33. Cada vezmais privatizados os meios de pro-dução do trabalho docente (e doconhecimento), resta aos profes-sores desenvolver suas própriascondições de trabalho combinan-do “competição”, “empreendedo-rismo” e “voluntarismo”. A co-meçar pelo “empreendedorismo”,um dos mais antigos e eficientesartefatos ideológicos do capitalvoltado para convencer e conver-ter ao trabalho homens e mulhe-res, há exemplos de ímpar vulgari-

Cada vez maisprivatizados os meios

de produção dotrabalho docente

(e do conhecimento),resta aos professores

desenvolver suaspróprias condições detrabalho combinando

“competição”,“empreendedorismo”

e“voluntarismo”.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 55

dade sobre como a instrumentalidade do com-portamento adequado à lógica produtivista édefendida e divulgada, conforme encontra-seexplicitado no Editorial da revista “ProfissãoMestre” de abril de 2006:

[...] A sociedade da informação e da tec-nologia muda o perfil do trabalhador e arealidade do emprego: pesquisas apon-tam que a cada dois postos de trabalhono Brasil, um é formal e outro é infor-mal; entre 16 e 25 milhões de trabalha-dores são autônomos ou empreiteiros in-dependentes; atualmente os maiores em-pregadores não são as megacorporaçõese, sim, as agências de trabalho temporá-rio; [...] O mundo da educação não estáisento à essa nova realidade. Escolas eprofessores sofrerão o impacto dessa no-va tendência econômica e social. É poressas e outras que a equipe das revistasProfissão Mestre e Gestão Educacionalestá lançando o Kit Professor S.A. Ummaterial exclusivo que servirá como umabússola para guiá-lo através desse cenáriode incertezas.34

A principal manifestação desse empreende-dorismo tem sido a produção em série de cur-sos de pós-graduação lato sensu como forma derecompor os parcos salários e de estruturar ascondições de trabalho pela compra de equipa-mentos, livros e até mesmo pela construção deárea física. O resultado dessas intervenções ten-de a tornar esses docentes e as universidades ca-da vez mais dependentes desses tipos de recur-sos extra-orçamentários. Somam-se aos cursosde especialização os diversos tipos de venda deserviços permitida e - em larga medida - orga-nizada pelas legislações internas às IES públicasque prevêem a flexibilização do regime de de-dicação exclusiva. Assim, ganham lugar dentrodas universidades diversos escritórios - e con-

sultórios no caso dos médicos - especializadosem prestar consultorias e desenvolver produ-tos. Nessa via, o trabalho docente concebidocomo extensão universitária é mercantilizado.

Alinha-se a esse aspecto financeiro de forteapelo e impacto ideológico uma ressocializaçãodos docentes de acordo com o padrão produ-tivista desenvolvido nesses últimos 15 anos. Oadensamento e a intensificação do trabalho sãotraduzidos em números que estruturam as di-versas avaliações ditas institucionais. Assim, domesmo modo que os cursos de graduação sãoclassificados e hierarquizados desde o “Pro-vão” (transmutado em SINAES)35 e os progra-mas e cursos de pós-graduação são cristaliza-dos em conceitos de três a sete, a produção do-cente tem sido esquartejada, mensurada, tipifi-cada e classificada por critérios quantitativos.Os artigos científicos são valorizados de acor-do com o periódico que o veicula, isto é, casoesteja indexado internacionalmente ou no“Qualis CAPES” (indexador nacional oficialque classifica os periódicos em nove níveis).Nesse “vale quanto pesa” o próprio docente é“valorizado” pela inserção na pós-graduação,pelo número de orientações, artigos e livrospublicados e, principalmente, pela “bolsa deprodutividade em pesquisa” que consegue porméritos próprios. De fato, a inclusão nesse sis-tema opera uma diferenciação entre os docen-tes de maneira a estimular a conformação deuma “elite” definida como tal pela performanceconseguida nos editais de pesquisa, nas bolsasconcedidas, nos artigos publicados, enfim, pelapontuação atingida no escore da produtividade.Aparentemente esse docente tende a acreditarque o seu desempenho é excepcional, fruto dealgum tipo de genialidade que o distingue deseus pares. Em essência, geralmente passa de-sapercebido que sua suposta genialidade é elei-ta por critérios definidos pelos interesses domercado e que é ela mesma produto da própriaescassez dos recursos que se tornam alvo de

Os Desafios para a Universidade

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE56 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 20065

disputa. Por esse processo, surge uma identi-dade docente diferenciada por status e pres-tígio decorrentes da escassez e do caráter mer-cantil dos recursos para pesquisa. Nessa “cul-tura da produtividade”, explica Leopoldo deMéis, do Instituto de Ciências Biomédicas daUniversidade Federal do Rio de Janeiro,

[...] Ser ou não ser um cientista reconhe-cido é um ritual que se repete constante-mente, a cada edital. Se parar de publicar,você perde a bolsa, não ganha mais auxílio.É ejetado do sistema, não interessa o quevocê fez no passado. O que interessa sãoos últimos dois, três anos.36

Esse drama hamletiano vivenciado cotidia-namente pelos docentes converte-se numa cul-tura que é reproduzida desde, pelo menos, asexperiências dos alunos na pós-graduação quetambém recebem tal pressão para que sejamprodutivos sob quaisquer condições. A pontadesse iceberg foi vista pela primeira vez quan-do os prazos para conclusão do mestrado e dodoutorado (bem como os prazosdas bolsas para esses cursos) sofre-ram seguidas reduções. As bolsaspara mestrado, por exemplo, tive-ram redução de três para dois anos emeio no início da década de 1990 ede dois anos e meio para dois anosno final dessa mesma década. Nessanova ossatura institucional osmestrandos e doutorandos quasesempre recebem pressão de seusorientadores e dos programas(que pleiteiam sempre a melhorpontuação na CAPES) para cum-prirem esses prazos a despeito daqualidade final de seus trabalhos.Na visão de Elisa de Campos Bor-ges, presidente da ANPG,

[...] A quantidade exagerada de publicações

para fins de pontuação vem promovendo um

ambiente demasiadamente competitivo den-

tro da academia, nocivo às iniciativas cria-

doras dos estudantes e dos pesquisadores.

Todos os alunos de pós-graduação vivem em

seu cotidiano a dificuldade de conseguir pu-

blicar textos científicos em muitas revistas,

pois o acesso a muitas delas é restrito a de-

terminados pesquisadores, universidades,

programas e temas.37

Em algumas áreas a reprodução desse com-portamento atinge não somente os alunos dapós-graduação, mas repercute também entrealunos da graduação que sofrem, já desde cedo,a pressão para serem competitivos. Formadosnesse ambiente de intensa competitividade -onde é uma constante o estímulo ao espírito“empreendedor” - torna-se difícil a produçãode uma identidade que se dê pela percepção deque é preciso organização e mobilização paramudança desse sistema. Ao contrário, o pa-drão que é socializado deita raízes em práticas

e valores individualistas cuja ra-cionalidade expressa-se na dife-rença de ser produtivo e de nãoser produtivo. A competição é na-turalizada e se torna a regra. A es-cassez de recursos para pesquisa(e para o trabalho docente em ge-ral) também é naturalizada e setransforma em realidade que ava-liza a “competência” dos que con-seguem acessar tais recursos. E oresultado dessa dinâmica trazconseqüências comuns ao mundodo trabalho como o estresse, esta-do permanente de cansaço, de-pressão e até o suicídio. A esse res-peito, estudo realizado com alu-nos de diversos cursos de gradua-ção da Universidade Federal de

Nós tendemos a veros docentes presos

aos cordões daprodutividade

acadêmica comoagentes conscientes

do sistema eprodutores de suas

próprias experiênciasem condiçõesescolhidas por

eles mesmos, o quenos faz torná-los

alvo de umjulgamento moral.

Os Desafios para a Universidade

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 57

São Paulo (UNIFESP), entre 1996e 2003, revela que o diagnóstico decerca de 10 diferentes enfermida-des relacionadas à saúde mentaltêm sido recorrentes nos alunos degraduação38.

Deslindar esses fios alinhavadosque dão os contornos do “novo”trabalhador - em especial do “no-vo” docente - tem sido difícil pri-meiramente porque todos os quese opõem a esse sistema tendem aser vistos como “improdutivos”(ou “sindicalistas” num sentidoexclusivamente pejorativo quecorresponde àquele que “não trabalha”). Numsentido antagônico nós tendemos a ver os do-centes presos aos cordões da produtividadeacadêmica como agentes conscientes do siste-ma e produtores de suas próprias experiênciasem condições escolhidas por eles mesmos, oque nos faz torná-los alvo de um julgamentomoral. A evidência disso é a escolha que geral-mente fazemos por não enfrentar essa questãode modo problematizador preferindo, muitasvezes, hostilizar os docentes imersos na lógicaprodutivista. Esquecemos que as circunstân-cias em que muitos docentes estão escolhendoo produtivismo são historicamente determina-das, obviedade que deveria desmistificar tal es-colha como espontânea.

Assim contextualizadas, as condições histó-ricas da precarização do trabalho docente care-cem de problematização e reflexão sistemáticasproporcionadas por seminários, palestras e de-bates realizados preferencialmente nos locaisde trabalho e com alguma articulação com ou-tras categorias de trabalhadores. Ordenam-se aessa ação as iniciativas de combate ao produti-vismo que incidam na superestrutura jurídicado Estado. Desse modo, a luta contra o enrai-zamento da Lei de Inovação Tecnológica nasIES públicas e as diversas regulamentações afe-

tas ao produtivismo pode e deveser travada em cada órgão colegia-do das universidades. A problema-tização e a redefinição dos critériosde avaliação institucional do traba-lho docente podem abrir possibili-dades para a redistribuição dos re-cursos e a necessária ampliaçãodestes a partir da compreensão deque, assim como todos os profes-sores têm o direito a condiçõesadequadas para realização de suasaulas, devem ter direito também arecursos para suas pesquisas. Tor-na-se também cada vez mais funda-

mental a articulação com os movimentos soci-ais e, em especial, com o movimento estudantilpara desprivatizar as universidades lutandocontra as diversas taxas e cursos cobrados39. Epor fim, somam-se a essas ações as medidas que oANDES-SN e muitas de suas seções sindicaisvêm implementando contra o funcionamentodas Fundações ditas de Apoio Universitário(que vendem a educação) e as formas precari-zadas de contratação do trabalho docente.

Todavia, para enfrentar esses desafios preci-samos superar as dificuldades mais salientesnesse processo de alienação do trabalho. Alémda nossa avaliação prenha de moralidade sobreos professores que aderem e reproduzem essesistema, o que torna mais difícil a tarefa de des-mistificar o produtivismo é o fato de que aindanão compreendemos plenamente esse compor-tamento como uma das mais fortes dimensõesda precarização do trabalho em geral e do tra-balho docente em específico. Em alguma medi-da a produtividade (recompensada monetária esimbolicamente) representa a perda da autono-mia intelectual, a perda do controle sobre oprocesso de trabalho, a forma atual da subsun-ção do trabalho intelectual à lógica do capital.Como os primeiros trabalhadores que inter-nalizaram uma prática econômica baseada na

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A luta contra o enraizamento da Lei

de Inovação Tecnológica nas IES

públicas e as diversasregulamentações

afetas aoprodutivismo pode e deve ser travada

em cada órgãocolegiado das universidades.

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frugalidade, poupança e sentimento de com-pensação espiritual nos começos do capita-lismo, enfrentamo-nos hoje com uma dinâmi-ca muito semelhante. Por isso, o risco de nãodecifrarmos essa realidade e desenvolvermosos melhores instrumentos de luta para com-batê-la reside, como foi na infância da luta declasses, tornarmo-nos cada vez mais prisio-neiros dessa lógica, como nossos “próprioscárceres”.

NOTAS

1 Este artigo é resultado parcial da pesquisa “Tra-balho precarizado no Brasil contemporâneo” e dasreflexões produzidas em espaços do movimentosindical nesses últimos quatro anos, em especial nasoportunidades proporcionadas por seminários epalestras onde foi possível problematizar este temajunto às experiências de trabalhadores de diversossindicatos e, em especial, de docentes de diversasuniversidades do país.2 Dados da OIT citados por Márcio Pochmann. Oemprego na globalização. A nova divisão interna-cional do trabalho e os caminhos que o Brasil es-colheu. São Paulo: Boitempo, 2001. p. 81-82.3 Cf. Jeremy Rifkin. The End of Work. The declineof the global labor force and dawn of the Post-Market Era. New York, Tarcher/Penguin, 2004. p.x-xli.4 Cf. Márcio Pochmann. O emprego na globaliza-ção. A nova divisão internacional do trabalho e oscaminhos que o Brasil escolheu. São Paulo: Boitem-po, 2001. p. 94, 98.5 Ver Helena Hirata (Org.). Sobre o modelo japo-nês. São Paulo: Edusp, 1993.6 Luciano Vasapollo. O trabalho atípico e a preca-riedade. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 27-28.7 No Brasil o mais citado representante dessa visãoé Ricardo Antunes. Cf. ANTUNES, Ricardo. Ossentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e anegação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999. 8 Cf. Edmundo Fernandes Dias. ‘Reestruturaçãoprodutiva’: forma atual da luta de classes. Outubro,São Paulo, n. 1, p. 49, maio 1998. 9 Sobre isso verificar as séries históricas divulgadasnos documentos sobre “Gross Domestic Product”

disponíveis no sítio: http://www.oecd.org. Consultartambém o sítio do FMI: http://www.ifm.org.10 A esse respeito ver os dados apresentados porPaul Baran e Paul Sweezy. Capitalismo Monopolis-ta. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.11 Sobre isso conferir François Chesnais. “Mundia-lização financeira e vulnerabilidade sistêmica”. In:A Mundialização Financeira. São Paulo: Xamã,1998. p. 249-293.12 A esse respeito conferir Robert Guttmann. Asmutações do capital financeiro. In: François Ches-nais. op. cit. p. 61-96.13 Cf. Harry Braverman. Trabalho e capital mono-polista. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara,1987. p. 239.14 Cf. Nádia Araújo Guimarães. O papel do Esta-do e o sentido da privatização na cadeia químico-petoquímica brasileira. In: Caminhos Cruzados.Estratégias de empresas e trajetórias de trabalhado-res. São Paulo: Editora 34, 2004. p. 113-118.15 Cf. Aloysio Biondi. O Brasil privatizado. SãoPaulo: Editora Perseu Abramo, 1996.16 Embora o “Neoliberalismo” - entendido comodoutrina de Economia Política - tenha sido produ-to de uma reunião ocorrida em 1938, em Paris, sobo nome de “Colloque Lipmann”, cujo resultadopode ser resumido na idéia de “intervencionismoliberal” visando assegurar a “estabilidade financeirae monetária” para evitar crises como a que ocorreuem 1929, as medidas governamentais concretizadasao longo da década de 1980 e 1990 identificadascomo “neoliberais” são bem mais abrangentes doque essa definição inicial. 17 Cf. Aloysio Biondi. O Brasil privatizado. SãoPaulo: Editora Perseu Abramo, 1996. p. 49. 18 Cf. ANDES-SN. Liberdade sindical e defesa dosdireitos sociais: a luta do ANDES-SN no contextoda reforma trabalhista e sindical do governo Lula.Caderno de Texto do 47º CONAD, out./nov. 2003,Natal-RN.19 Liliana R.P. Segnini. Reestruturação nos bancosno Brasil: desemprego, subcontratação e inten-sificação do trabalho. Educação & Sociedade, anoXX, n. 67, p.183-209, ago. 1999.20 Dados da Associação Nacional dos Fabricantesde Veículos Automotores (Anfavea).21 Cf. João Bernardo. Transnacionalização do ca-pital e fragmentação dos trabalhadores. São Paulo:Boitempo, 2000. p. 62.

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22 Esses dados estão sistematizados em AntônioBosi. Flexibilização trabalhista e sindical no Brasilcontemporâneo. Caderno de Resumos do I Seminá-rio Internacional de História. Departamento deHistória, Universidade Estadual de Maringá, 2003.23 Cf. Ruy Braga. “O trabalho do teleoperador: in-fotaylorização e degradação da relação de serviço.Artigo publicado conjuntamente com a “RevistaElectrónica Internacional de Economía Política delas Tecnologías de la Información y Comunica-ción”, disponível em: http://www.eptic.com.br.24 Euclides A. Medeiros. O informal pelo formal:trabalhadoras costurando sua história. Relatório finalde Iniciação Científica, Uberlândia: UFU, 1996.25 A respeito das experiências das cooperativas detrabalho consultar Valmíria Piccinini. Cooperativasde trabalho de Porto Alegre e flexibilização do tra-balho. Sociologias, Porto Alegre, ano 6, n. 12, p. 68-105, jul./dez. 2004.26 Esses dados podem ser encontrados nos Censosdo PNAD/IBGE disponíveis na página eletrônica<http://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 3 maio 2005.27 Ver dados, já bastante divulgados, do INEP-/MEC. Disponível em: <http://www.inep.gov.br>.Acesso em: 17 abr. 2005. Ver também Antônio Bosi.Expansão do Setor das IPES: balanço e perspecti-vas. In ANDES-SN. Rumo à Expansão do Setor dasIPES do ANDES-SN. Caderno 22. Brasília, DF, p.25-29, 2006. 28 Consultar INEP/MEC, “Cadastro Nacional deDocentes da Educação Superior 2005.1”. Dispo-nível em: <http://www.inep.gov.br/>. Acesso em:27 abr. 2006.29 Sobre isso consultar a análise de Roberto Leher.Por que tamanho apreço pela privatização da edu-cação superior?. In ADUFPA. Reforma da Educa-ção Superior ou Destruição da Universidade Públi-

ca? Belém, p. 92-109, out. 2004. 30 Ver análise de Ceci V. Jucá. Os contratos de par-ceria público-privada. In ADUNICAMP. A des-truição: o que está em jogo? Campinas, p. 60-65,set. 2004.31 Cf. Marina Barbosa. A subordinação do traba-lho docente à lógica do capital. Outubro, São Paulo,n. 4, p.17-24, 2000.32 Cf. Renato Janine Ribeiro. Revista ADUSP, SãoPaulo, n. 36, p. 42, jan. 2006. 33 A esse respeito consultar ANDES-SN. A propó-sito da regulamentação da Lei de Inovação Tecno-lógica: por quem os sinos dobram. Brasília, DF, jan.2006.34 Cf. Júlio Clebsch. Editorial. In: Profissão Mestre.Curitiba: Humana Editorial, p.4.35 A esse respeito conferir Diretoria do ANDES-SN. Aná-lise da proposta do Sistema Nacional de Avaliaçãoda Educação Superior – SINAES. In Adunicamp. A des-truição: o que está em jogo?. Campinas, p. 53-56,set. 2004.36 Cf. José Chrispiano. Todo poder à avaliação. Re-vista ADUSP, São Paulo, n. 36, p. 28, jan. 2006. 37 Idem, p. 29. 38 Cf. L. A. Nogueira-Martins et al. The mentalhealth of graduate students at the Federal Univer-sity of São Paulo: a preliminary report. In BrazilianJournal of Medical and Biological Research. n. 37,2004, p. 1519-1524.39 Servem como exemplo de que este horizonte épossível, os resultados da luta dos estudantes daUNIOESTE (Universidade Estadual do Oeste doParaná) que conseguiram, em 2004, a extinção deaproximadamente 20 taxas.

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Crise e privatização da universidade pública: de Fernando Henrique a Lula da Silva

Vera Lúcia Jacob Chaves

Professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), diretora geral da ADUFPA-SSIND (2004-2006)

Este artigo tem por objetivo apresentar partedo estudo realizado com a finalidade deexaminar e explicitar o processo de privati-

zação do público na educação superior brasi-leira, tendo como foco de análise a situação daUniversidade Federal do Pará (UFPA) no con-texto da reforma da educação superior bra-sileira1.

Adotamos como ponto de partida a pre-missa de que a crise conjuntural que afeta aeducação pública superior está interligada aomovimento de reforma do Estado, imple-mentada pelos governos neoliberais2 brasilei-ros como parte da estratégia mundial de en-frentamento da crise de acumulação do capital,orientada por organismos internacionais comoo Fundo Monetário Internacional e o BancoMundial. A centralidade dessa reforma consis-te na redefinição do papel do Estado. Reafir-ma-se, por um lado, o valor do Estado demo-crático como âmbito natural da justiça e comoinstância estratégica de redistribuição de re-cursos; ao mesmo tempo, Ele é desmanteladoem função do reforço darwiniano do mercado,procurando, desse modo, a manutenção doslucros. Esta crise, portanto, manifesta-se deforma tensionada, notadamente devido à su-

pressão dos vários direitos de cidadania que asaída do Estado da esfera da garantia da distri-buição de bens públicos engendra.

Como conseqüência, ocorreu o desmontedas políticas sociais, em especial nos países daperiferia do capitalismo, que passaram a desen-volver programas sociais emergenciais “foca-lizados” (SOARES, 2001). A política de foca-lização3, na área educacional, manifesta-se pormeio da priorização dos recursos da União pa-ra o ensino fundamental, reduzindo os investi-mentos para a educação superior, que se abreaos investimentos privados, transformando osaber em mercadoria. As instituições públicasde educação superior foram direcionadas paraa esfera privada, por meio das fundações de di-reito privado e de outros mecanismos que vi-sam à abertura dessas para o mercado.

As bases epistemológicas da reforma do Es-tado brasileiro e da educação superior dos go-vernos de Fernando Henrique (1995-2002) eLuis Inácio (2003-2006) têm como pressupos-to básico a reconceituação/ressignificação dopúblico e do privado. Compreendemos que osconceitos de público e privado são distintos eantagônicos: um ente não pode ser simultanea-mente público e privado. O Estado foi criado

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para atender aos interesses do público (socie-dade), portanto, é derivado do público e a elese submete (LOCKE, 1991). Dessa forma, umainstituição estatal deve ser necessariamente pú-blica. Logo, o argumento presente na reformado Estado brasileiro, idealizada por BresserPereira (1998), que incluía a transformação dasuniversidades públicas em Organizações Soci-ais, que seriam instituições públicas não-esta-tais, não se sustenta4. Sendo o Estado um entepúblico constituído sobre a supressão do Esta-do de natureza, o seu oposto, o não estatal ounão público é, de fato, privado.

Este texto inicia com uma breve discussãosobre a crise que a universidade brasileira temvivenciado nos últimos anos e sobre o papelque as Fundações de Apoio privadas vêm de-sempenhando no interior das instituições pú-blicas. Em seguida, com a finalidade de explici-tar como o processo de privatização vem ocor-rendo no interior das universidades públicas,apresentamos uma análise da prestação de ser-viços realizada na Universidade Federal do Pa-rá, destacando dois exemplos de contratos/con-vênios firmados para o desenvolvimento depesquisas. Nossa base de análise foram os do-cumentos coletados na UFPA e as entrevis-tas semi-estruturadas com docentes-pesqui-sadores, dirigentes e ex-dirigentes da Uni-versidade, cujos nomes foram preservadosnas citações deste artigo.

Considerando a complexidade da privatiza-ção do público na educação superior brasileira,utilizamos em nossa pesquisa as possíveis com-binações das variáveis: quem fornece; quem fi-nancia; qual a finalidade, ou seja, quem serábeneficiado com a implementação da prestaçãode serviços na universidade pública. Uma ati-vidade educacional será caracterizada comopública quando for realizada por instituiçãopública, com financiamento público e visandotorná-la disponível para a coletividade; quandoa atividade tiver por finalidade a preservação de

interesses particulares, seja de indivíduos ougrupos (empresariais, organizações etc.), mesmoque o fornecimento e o financiamento sejam pú-blicos, indicará um processo de privatização daeducação superior pública.

Este trabalho não pretendeu - e, por óbvio,não poderia - esgotar a análise do processo deprivatização da educação superior pública, atéporque a dinâmica da sociedade exigirá novasanálises sobre esse fenômeno, posto que novoselementos irão surgindo, em cada contexto his-tórico. Nossa expectativa, no entanto, é a decontribuirmos, com base na utilização da tipo-logia de análise e nas reflexões teóricas feitas,para uma compreensão mais precisa do pro-cesso de privatização da educação superior eidentificar seus desdobramentos no interiordas universidades públicas.

A crise institucional da universidade públicae as Fundações de Apoio privadas

As universidades públicas brasileiras têm vi-venciado uma crise que foi aprofundada nosúltimos anos. Essa crise foi provocada, dentreoutros fatores, pela implementação de uma po-lítica de privatização que se manifesta por meiode uma série de mecanismos, dentre eles a faltade verbas públicas para o crescimento do ensinosuperior público e a redução drástica dos recur-sos de outros custeios e capitais (OCC), aliada auma política de arrocho salarial.

Essa crise não é um fenômeno local. Boa-ventura de Sousa Santos (1996, p. 192) afirmaque a universidade vivencia uma tripla crise,que eclodiu nos últimos vinte anos: a crise dehegemonia, a de legitimidade e a institucional.Apesar de estarem presentes até os dias atuais,os fatores que condicionaram cada uma delassão diferentes. O autor relaciona essas crisescom os três períodos de desenvolvimento docapitalismo: o liberal, o organizado e o desor-ganizado.

A crise de hegemonia teria ocorrido no pri-

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meiro período do capitalismo liberal, quando a“[...] sociedade liberal começa a exigir formasde conhecimento que a universidade tem difi-culdades em incorporar.” Essa crise é a maisampla e com a maior profundidade histórica,pois nela está o questionamento da exclusivi-dade da universidade na produção e transmis-são do conhecimento. De acordo com Santos,o que entra em crise é a concepção de univer-sidade dotada de grande prestígio social, res-ponsável pela formação das elites e produtorade conhecimentos científicos e culturais de ex-celência, de criatividade intelectual, de liber-dade de discussão, de espírito crítico, auto-nomia e liberdade. Esse modelo de universida-de entra em “[...] relativa dessintonia com as‘exigências sociais’ que emergiam [...]”, dada acomplexidade e rapidez dos processos sociaisque passaram a ocorrer, sobretudo, a partir dosanos sessenta. O autor analisa essa crise tendocomo pressupostos a reprodução das contradi-ções e tensões entre as dicotomias: “alta cultu-ra - cultura popular; educação - trabalho; teo-ria - prática”. (SANTOS, 1996, p. 192-193).

A crise de legitimidade pode ser relacionada àfase do capitalismo organizado, quando se for-talece a luta pelos direitos sociais e a “[...] demo-craticidade da transmissão dos conhecimentosproduzidos”. Essa crise ocorre no momento emque “[...] a procura por educação deixa de seruma reivindicação utópica e passa a ser uma as-piração socialmente legitimada”. Desse modo,para legitimar-se, a universidade passa a ter umadupla função: a de continuar a “[...] produzirconhecimentos e de os transmitir a um gruposocial restrito e homogêneo, quer em termosdas suas origens sociais, quer em termos dosseus destinos profissionais de modo a impedir asua queda de status [...]” e, ao mesmo tempo,atender a camadas sociais amplas e diversifica-das, com a finalidade de promover sua ascensãosocial. (SANTOS, 1996, p. 211).

A crise institucional corresponde ao período

do capitalismo desorganizado e “[...] decorre,em geral, da crise do Estado-providência e dadesaceleração da produtividade industrial nospaíses centrais”. Essa crise afeta, principalmen-te, a autonomia universitária e resulta das pro-fundas transformações que o Estado vem reali-zando nas políticas sociais, por meio de redu-ções significativas do orçamento social. Essescortes orçamentários têm provocado três efei-tos na vida institucional: a) “desestruturam asrelações de poder”, por serem seletivos, alte-rando as posições das diferentes áreas do saberuniversitário; b) submetem a universidade a“critérios de avaliação” por produtividade; c)induzem a universidade a “[...] procurar meiosalternativos de financiamento, para o que sesocorrem de um discurso aparentemente con-traditório que salienta simultaneamente a au-tonomia da universidade e a sua responsabili-dade social”. (SANTOS, 1996, p. 214-215).

A universidade brasileira vivencia as três cri-ses destacadas, no entanto, a institucional é aque mais tem sido evidenciada nos dias atuais.Ela está interligada à crise do modelo do Esta-do de Bem-Estar5, que se manifesta, especial-mente, na redução orçamentária provocada pe-lo ajuste fiscal do Estado. No caso da educaçãosuperior brasileira, a centralidade das políticasgovernamentais reside na redução de verbaspara o custeio das Instituições Federais de En-sino Superior (IFES) e na concessão da auto-nomia universitária para estimular a captaçãode recursos externos.

Como parte dessa política, nos últimos anosas universidades federais vêm atravessandouma série de dificuldades devido à insuficiên-cia de recursos orçamentários oriundos do Te-souro. As restrições ocorrem, sobretudo, nosrecursos destinados à manutenção e ao inves-timento, em razão dos sucessivos cortes efeti-vados pela área econômica do governo.

Essa política é parte da crise institucionalque atinge a universidade pública em três as-

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pectos fundamentais: a) devido àseletividade dos cortes, alteram asposições das diferentes áreas do sa-ber; b) por serem baseados em pa-drões de produtividade, submetema instituição a critérios de avalia-ção cujos resultados tendem a sernegativos; c) impulsionam a univer-sidade a buscar fontes alternativas definanciamento para que possam man-ter suas funções (SANTOS, 1996).

A situação, a cada ano, torna-semais grave, haja vista a escassez dedotação orçamentária, a luta paraconseguir suplementação e a demo-ra em obter recursos, além da irregularidade dofluxo dos recursos financeiros. Essa situação crí-tica do orçamento é parte de uma política gover-namental que tem como finalidade forçar as uni-versidades a buscar recursos no mercado, com aintermediação das fundações de apoio privadas.(AMARAL, 2003).

Além disso, o governo tem forçado as uni-versidades a concorrem entre si para obter al-gum tipo de investimento, por meio do lança-mento de programas específicos desenvolvidospelos Ministérios da Educação, de Ciência eTecnologia e da Saúde para aquisição de acervobibliográfico, computadores e outros equipa-mentos, além dos necessários ao atendimentode programas específicos para os hospitais uni-versitários. Com isso, o governo determina oque a universidade deve fazer, firmando convê-nios, intermediados pelas Fundações de Apoio.Na prática, são estabelecidos contratos de ges-tão, à semelhança dos previstos pela ReformaAdministrativa, do ex-ministro Bresser Perei-ra, na medida em que exigem o cumprimentode metas e a produtividade da instituição paraque ela possa fazer jus às verbas complementa-res necessárias à sua manutenção.

A política do governo federal, desde o inícioda década de 1990 e aprofundada nos governos

de Fernando Henrique (1995-2002) e de Lula da Silva (2003-2006), vem comprimindo o orça-mento das IFES, em geral, subme-tendo essas instituições à situaçãode precariedade gerada pela escas-sez de recursos que, quando libe-rados por meio de convênios, ousão para fins específicos - que nãoatendem às atividades cotidianas -ou dispõem de reduzido tempopara aplicação, impedindo umautilização mais adquada. Como re-sultado dessa política governa-mental baseada em ajuste fiscal e

cortes nos gastos sociais as universidades têmsido induzidas a buscar recursos no mercado.

Contando com a intermediação das Funda-ções de Apoio, as universidades públicas vêmrealizando atividades caracterizadas comoprestação de serviços, para captação de recur-sos externos, transformando as atividades-finsde ensino, pesquisa e extensão em fonte de ren-da para grupos de docentes e técnico-adminis-trativos que aderiram à “racionalidade moder-nizadora” do capital.

Apesar das Fundações de Apoio serem priva-das, legalmente são tidas como sem fins lucra-tivos (por isso, possuem isenção fiscal), funcio-nam como empresas privadas, não recolhemtributos, tendo parte substancial de suas receitasadvindas de recursos do setor público (MEC,MCT, secretarias do Estado, estatais, prefeiturasetc.). Por meio da interveniência dessas funda-ções são estabelecidos contratos de projetos depesquisa, de consultorias, de prestação de servi-ços e de ofertas de cursos, e são cobradas taxas deadministração para “cobrir custos operacionais”que variam em cada IFES6.

As maiores fontes de renda dessas fundaçõesprovêm da intermediação na venda de cursos eassessorias das unidades acadêmicas; dos con-vênios para desenvolvimento de pesquisas com

Essa situação críticado orçamento é parte

de uma políticagovernamental quetem como finalidade

forçar asuniversidades a

buscar recursos nomercado, com a

intermediação dasfundações de apoio

privadas.

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empresas públicas e privadas ligadas ao setorprodutivo, sem licitação7; da cobrança pelaprestação de serviços; dos recursos do SistemaÚnico de Saúde (SUS) utilizados de forma ir-regular na contratação de trabalhadores paraos hospitais universitários8.

É importante ressaltar que a maior parte dosrecursos captados por essas fundações é pro-veniente de fontes públicas9. Os órgãos de fo-mento - como a Financiadora de Estudos eProjetos do Ministério de Ciência e Tecnologia(FINEP), que gerencia os Fundos Setoriais, oConselho Nacional de Pesquisa (CNPq) e oInstituto do Milênio - exigem que os convê-nios da maioria dos projetos de pesquisa sejamfirmados com a intermediação das fundações.Além disso, o estabelecimento de convêniospor parte das universidades tem sido estimula-do pelo governo federal, sendo parte integran-te da política de financiamento das pesquisasestabelecidas pelos Fundos Setoriais.

A utilização das Fundações de Apoio pri-vadas foi reforçada pelo governo Lula da Silvapor meio do Decreto Presidencial nº 5.205, de14 de setembro de 2004 que regulamenta a Leinº 8.958, de 20 de dezembro de 1994 que dis-põe sobre as relações entre as instituições fede-rais de ensino superior e de pesquisa científicae tecnológica e as fundações de apoio. A prin-cipal justificativa utilizada pelos defensoresdessas fundações privadas, especi-almente os reitores das universi-dades públicas, é que elas são fun-damentais para agilizar e viabili-zar a prestação de serviços. Essesargumentos em defesa de umamaior agilidade na execução deconvênios e da ampliação de re-ceita própria fortaleceram tal po-lítica governamental que estimulaas universidades a utilizarem asfundações para o gerenciamentodos recursos. Como resultado

dessa política, as universidades, em sua amplamaioria, dependem das fundações para captarrecursos públicos para suas pesquisas10.

A atuação dessas Fundações de Apoio pri-vadas, no interior das universidades públicas,tem sido marcada pelos seguintes fatores: in-consistência na prestação de contas dos recur-sos captados; ausência de transparência naaplicação dos recursos; falta de controle porparte da Universidade para apurar a lisura nosatos administrativos e financeiros das funda-ções; ausência de licitação em grande parte doscontratos celebrados com as fundações, pelosórgãos públicos, além do fato de que os recur-sos transferidos para a universidade são irrele-vantes; utilização da infra-estrutura pública,por parte das fundações, em prol de interessesprivados11.

Pode-se afirmar que as Fundações de Apoiode direito privado desempenham o papel degerenciadoras de recursos públicos voltadospara o mercado capitalista. A relação entre es-sas fundações e a universidade pública é esta-belecida como se a última fosse uma empresaprivada interessada em vender seus produtos eobter lucros. A lógica da Fundação é mercan-tilista e sua atuação, no interior da universi-dade, retrata uma forma de pensar a educaçãocomo serviço e como objeto de compra e ven-da, ou seja, mercadoria. A utilização das fun-

dações tem acelerado o processo deprivatização das universidades pú-blicas, fomentando um clima fa-vorável à desagregação do ambien-te acadêmico, favorecendo o indi-vidualismo e o empresariamentodos docentes e pesquisadores,transformando-os em gerentes doensino, da pesquisa e da extensão.As fundações de apoio privadasfuncionam como um mecanismoarrecadatório e de gestão, especial-mente, por intermediar junto ao

A lógica da Fundaçãoé mercantilista e suaatuação, no interior

da universidade,retrata uma forma de

pensar a educaçãocomo serviço e comoobjeto de compra e

venda, ou seja,mercadoria.

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Os Desafios para a Universidade

mercado a prestação de serviços de ensino,pesquisa e extensão.

Esse processo de adesão da universidade pú-blica a um modelo educacional que privilegia amercantilização do ensino, da pesquisa e da ex-tensão como principal mecanismo de supera-ção da crise institucional tem sido intenso ecomplexo, assumindo diferentes feições, quevariam de acordo com a realidade interna decada instituição. Nesse sentido, procuramosdesvelar como esse processo vem sendo mate-rializado na Universidade Federal do Pará.

A prestação de serviços: desvelando oprocesso de privatização interna da UFPA

A prestação de serviços na UFPA vinha sen-do caracterizada como parte das atividades deextensão, e, durante muito tempo, foi desen-volvida como forma de interação entre a uni-versidade e a sociedade. Essa interação tinhacomo finalidade ampliar a visibilidade da pro-dução acadêmica da instituição, divulgandosuas potencialidades para o desenvolvimentolocal e regional, além de contribuir, em conso-nância com os movimentos sociais, para a so-lução dos problemas da sociedade local.

Apesar do Estatuto da UFPA, em vigor des-de 1978, estabelecer no artigo 52 que a exten-são seria realizada por meio de cursos e servi-ços a terceiros, tanto a pessoas quanto a enti-dades públicas e privadas, e sempre que possí-vel poderiam ser remunerados, essa prática nãofoi desenvolvida na Universidade até 1997,quando um movimento inicial levou o Conse-lho Superior de Administração (CONSAD) ataxar algumas atividades: segunda via de do-cumentos (diplomas, certificados, histórico es-colar); revalidação de diploma de graduação ede pós-graduação; expedição de transferênciapara outras instituições de ensino superior;certidões em geral e serviços clínicos de orien-tação psicológica. Embora os valores cobradosnão representassem um montante de recursos

significativo para a Universidade, começou aser instalada, no interior da instituição, a idéiade que seria necessário estabelecer cobrançaspela realização de serviços.

Nos anos seguintes esse movimento foi in-tensificado, quando o governo federal apro-fundou a política de corte de verbas públicaspara as IFES, induzindo-as a aceitar novas for-mas de organização e gestão, na busca de alter-nativas que gerassem receitas próprias.

Essa política do Ministério da Educação pa-ra que as universidades públicas ampliassem osrecursos próprios para sua sobrevivência (leia-se: sem depender das verbas federais) foi deci-siva para que a administração superior daUFPA passasse a defender a prestação de ser-viços remunerados. A busca pela ampliação dereceita da universidade levou os gestores daUFPA a defenderem a necessidade da utiliza-ção das potencialidades existentes na institui-ção, como forma de geração de renda, sobretu-do, por meio da prestação de serviços e da co-mercialização de “produtos acadêmicos”.

Os argumentos a favor da cobrança pelaprestação de serviços foram reforçados, supe-rando aqueles favoráveis à gratuidade absolutaque havia. Com isso, uma nova mentalidade,produtivista e pragmática foi fortalecida, espe-cialmente entre os docentes, que passaram aempreender dinâmicas próprias de captação derecursos, como argumenta o pesquisador:

[...] a Universidade, em si, é uma instituição

pública, mas ela não está aqui, nem foi pre-

parada para prestar serviço, seja para A, B ou

C, de graça, porque nós não temos um orça-

mento dirigido para isso. Nós não somos

uma instituição assistencialista. Isso aí eu não

posso aceitar, em hipótese nenhuma, [que] a

pessoa simplesmente chegue e diga – é uma

instituição pública que se você realizar qual-

quer tipo de coisa para empresa, principal-

mente para empresa [...] que essa empresa

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 69

Os Desafios para a Universidade

não pague muito bem por esse serviço. (SP-

02, grifo nosso).

Essa nova mentalidade gera uma nova cul-tura, que ganha força paulatinamente no âm-bito interno da Universidade. Novos hábitos enovas práticas passam a fazer parte do coti-diano institucional. Dentro dessa lógica, todasas atividades de ensino, pesquisa e extensãopodem ser caracterizadas como prestação deserviços. É evidente, no discurso supra, que ocaráter público da UFPA está completamentesuprimido, eliminado. Tanto, que sua equiva-lência para o entrevistado é com oassistencialismo, ou seja, com aatitude que é fruto de uma doaçãopessoal.

A UFPA aumentou o volumede serviços remunerados nos últi-mos anos: assessorias e consulto-rias a empresas privadas; cursos depós-graduação lato sensu; cursosde extensão, atualização e aperfei-çoamento; cursos livres de línguasestrangeiras; oferta de cursos degraduação, por meio de contratosfirmados com prefeituras e gover-no do Estado; processos seletivose/ou concursos para órgãos/insti-tuições governamentais e/ou empresas priva-das; produção/realização de projetos/progra-mas na área de Ciência e Tecnologia voltadapara a iniciativa privada; exames ambulatoriaisrealizados por meio de contratos firmados coma Secretaria de Justiça do Estado; análises decombustíveis; medições de intensidade de cam-po elétrico; instalação de antenas coletivas; ma-nutenção, aferição e instalação de instrumentosde rádio-comunicação; medições de interferên-cia eletromagnética; desenvolvimento de progra-mas computacionais; dentre outros.

A procura de alternativas que gerem recur-sos capazes de arcar com as despesas de ma-

nutenção e conservação de equipamentos tor-nou-se fundamental para a administração su-perior da UFPA. No Plano de Desenvolvi-mento da UFPA para 2001 - 2010 a captaçãode recursos financeiros e a estruturação daprestação de serviços foram as estratégias esta-belecidas para a modernização da gestão. Duasmetas foram consideradas essenciais para aconsecução desse objetivo: promover a revisãodos instrumentos legais para maior agilidade econtrole na execução de projetos e ampliar efortalecer as alternativas de captação de recur-sos financeiros. (UFPA, 2002).

Estão previstas várias ações paraampliar e fortalecer a captação derecursos financeiros, dentre asquais: incentivar a busca de recur-sos externos, por meio da presta-ção de serviços; ofertar cursos àcomunidade; criar e implementar aSecretaria de Apoio à captação derecursos; desenvolver projetos/pro-gramas que promovam a geraçãode renda, otimizando o aproveita-mento sustentável dos recursos na-turais próprios das respectivas lo-calidades.

Atualmente, a prestação de ser-viços engloba quase todas as ati-

vidades de ensino, pesquisa e extensão da Uni-versidade. Nas atividades de ensino destacam-se, por um lado, os cursos de pós-graduaçãolato sensu pagos e, por outro, os cursos de gra-duação voltados para a formação de profes-sores da educação básica, vendidos para as pre-feituras e para o governo do Estado, mantidoscom verbas do Fundo de Manutenção e De-senvolvimento do Ensino Fundamental e deValorização do Magistério (FUNDEF) e in-cluídos como atividade de prestação de ser-viços da UFPA, sob a coordenação da Pró-rei-toria de Extensão (PROEX). Esses cursos re-presentam, hoje, a maior oferta de cursos de

A procura de alternativas quegerem recursos

capazes de arcarcom as despesas

de manutenção e conservação deequipamentos

tornou-se fundamental para a

administração superior da UFPA.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE68 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

Os Desafios para a Universidade

graduação da UFPA nos campi do interior, queatendem 115 municípios.

Tem sido muito difícil definir e controlar autilização do montante de recursos arrecada-dos com esses cursos, como comprova a afir-mação de um ex-dirigente:

[...] o recurso do FUNDEF é livre de rubricas.

O que quer dizer isso? Eles vão lá, dão um

curso, a prefeitura paga e o dinheiro entra

aqui. Esse dinheiro, ele não está carimbado:

olha, é tanto para o professor, tanto para não

sei o quê. Então, como está aqui, quem vai

gastar é ordenador de despesas [...]. (SG-2).

Sabe-se que esses recursos são bastantesignificativos para a complementação salarialdos docentes (para cada disciplina de 60 ho-ras, ministrada em regime de tempo integral,em oito dias os docentes recebem em médiaR$ 2.400,00) e têm contribuído para a manu-tenção e uma pequena melhoria da infra-es-trutura física e de equipamentos das unidadesacadêmicas envolvidas, que ficam em médiacom 15% dos recursos arrecadados. O con-trole dos recursos provenientes desses cursos,no entanto, fica sob a responsabilidade da uni-dade gestora e, de modo geral, assumido peloscoordenadores dos cursos; até o momento, na-da foi publicizado sobre esses recursos e seususos, que não constam dos relatórios finan-ceiros da instituição.

Esse mecanismo, que se repete nos cursos depós-graduação lato sensu, contempla profes-sores, que conseguem “engordar” os seus ma-gros salários; prefeituras, que se livram de fi-nanciar sozinhas a formação de seus quadrosdocentes; unidades acadêmicas, que conse-guem adquirir bens de consumo e de capital;formandos, que poderão expor a grife UFPAem seus diplomas.

Como resultado dessa prática, uma novamentalidade12 começou a ser formada na UFPA.

A defesa da cobrança desses cursos passou aser feita por docentes e técnico-administrati-vos, de forma natural, como se fosse uma si-tuação própria da natureza da instituição, àmedida que nela vislumbravam uma possi-bilidade de melhorar a infra-estrutura e com-plementar seus baixos salários.

Essa questão, no entanto, tem gerado muitapolêmica, especialmente por parte das lideran-ças estudantis e de docentes da UFPA que de-fendem a gratuidade do ensino em todos oscursos ofertados pela instituição13.

A necessidade de se estabelecerem regraspara controle dos serviços prestados foi utili-zada pela Administração da UFPA para defen-der a regulamentação dessas atividades. Aprestação de serviços remunerados, regula-mentada pela Resolução nº 1.132/2003, é con-ceituada como:

Art. 2º. Caracteriza-se como prestação de

serviços as atividades consubstanciadas pela

transferência, à comunidade, de conheci-

mento gerado e/ou reproduzido na Institui-

ção, podendo envolver serviços, produtos,

processos e patentes, cursos, concursos,

consultorias, assessorias e outras ações asse-

melhadas, mediante a contraprestação ou

não de terceiros, quer pessoas físicas ou ju-

rídicas, de natureza pública ou privada.

(UFPA, 2003).

De acordo com esta Resolução do ConselhoSuperior de Administração, além dos cursos deespecialização, todas as atividades de ensino,pesquisa e extensão da UFPA podem ser con-sideradas como prestação de serviços. Com is-so, a cobrança de taxas para a realização dessasatividades foi regulamentada com a finalidadede captar recursos externos, excluindo-se dacobrança apenas os cursos de graduação e depós-graduação stricto sensu (Parágrafo único,do artigo 2º).

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 69

A forma de aprovação e acompanhamentodessas atividades foi definida, cabendo às uni-dades acadêmicas aprovar os projetos e encami-nhá-los ao Conselho Superior competente, ape-nas para registro. Também foram estabelecidoslimites de carga horária para o desenvolvimentodessas atividades, que não poderão ultrapassaroito horas semanais (artigo 3º).

Com essa medida legal, a prática já instituídade cobrança pelos serviços prestados ganhouimpulso, adquirindo uma nova dinâmica, namedida em que se tornou uma das atividadesmais importantes da instituição,passando, portanto, a ser estimu-lada em todas as unidades acadê-micas.

Outra atividade importanterealizada pela UFPA - a pesquisa -foi incorporada à prestação de ser-viços remunerados. Têm sido fir-mados convênios e contratos comempresas estatais e empresas pri-vadas envolvendo grandes quan-tias, destinadas, em sua maioria, adar infra-estrutura necessária àrealização dos serviços (constru-ção de laboratórios e aquisição de equipamen-tos são os mais comuns) e para pagamento depessoal. Como afirma um dirigente da Uni-versidade:

[...] em termos de prestação de serviços pela

pesquisa, em particular, há grandes em-

presas, há empresas estatais e algumas em-

presas particulares, privadas, grandes empre-

sas privadas, médias empresas privadas e as-

sim por diante. Ela [universidade] está sendo

tensionada e pressionada, cada vez mais, para

poder responder [a] essas demandas, porque

você não tem capacidade científica instalada na

região, a não ser dentro da universidade e ela

está sendo pressionada. Há muitos interesses

para que a universidade participe de projetos

de pesquisa e desenvolva soluções tecnoló-

gicas para os problemas que se colocam nos

vários processos de transformação produtiva,

de expansão de mercado. (SG-04).

O interesse do mercado, especialmente nasáreas tecnológicas e/ou relacionadas ao setorprodutivo, ocorre, principalmente, porque: a)a UFPA está localizada na região que detém amaior reserva mundial de biodiversidade, oque desperta o interesse de grupos empresari-ais locais, nacionais e estrangeiros; b) a UFPA

é a maior universidade da região epossui um quadro qualificado depesquisadores; c) é vantajoso parauma empresa firmar convênio/-contrato com a Universidade, pornão ter que arcar com despesas depessoal, além de poder contar comuma infra-estrutura já instalada, oque contribuirá para aumentar seulucro.

A privatização da pesquisa na UFPA

Uma das várias facetas que a pri-vatização interna da universidade pública assu-me - a realização de convênios/contratos entreuniversidades e empresas públicas ou privadas- tem sido um terreno pantanoso, notadamen-te, pela conjugação de interesses (raramenteexplícitos) e a burla de legislações que restrin-gem, impedem ou inviabilizam a consecuçãodesses contratos/convênios.

Essa modalidade de privatização já se imis-cuiu de tal forma nas universidades que, paraalém de natural, ela já se tornou banal. Comisso, queremos dizer que já faz parte da culturauniversitária, daquilo que é chamado de “sensocomum”. E, no nosso entendimento, quandouma questão de tal gravidade entra no movi-mento do “senso comum” perde-se o movi-mento do real. A intenção desse estudo é, tam-

Os Desafios para a Universidade

A UFPA estálocalizada na regiãoque detém a maiorreserva mundial de

biodiversidade, o que desperta o

interesse de gruposempresariais locais,

nacionais eestrangeiros.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE70 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

bém, recolocar-lhe concretude e imprimir-lhevisibilidade.

A seguir, faremos uma breve reflexão decomo a pesquisa vem sendo privatizada no in-terior da UFPA por meio da análise de contra-tos/convênios firmados com uma empresa pú-blica-estatal (Eletronorte) e com uma empresaprivada (Ericsson).

Nos casos elencados, que serão utilizados co-mo sustentáculos de nossa premissa, além dasfontes primárias, como os contratos e convêniosestabelecidos, os depoimentos dos pesquisado-res, dirigentes e ex-dirigentes da UFPA foramnosso maior patrimônio.

EletronorteA Centrais Elétricas do Norte do Brasil S. A.

(Eletronorte) é uma empresa subsidiária daEletrobrás e concessionária de serviços públi-cos de energia. A Eletrobrás (Centrais Elétri-cas Brasileiras S.A.) é uma empresa de econo-mia mista e de capital aberto, com ações nasbolsas, tendo o governo federal 52,45% dasações, o que lhe dá controle acionário, e temcomo missão atender ao mercado de energiaelétrica, integrando-se ao desenvolvimento desua área de atuação.

A área de atuação da Eletronorte, caracte-

rizada pela Amazônia Legal, representa 58%do território nacional, compreendendo os Es-tados do Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão,Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e To-cantins.

A Eletronorte firmou, em 2002, oito con-tratos de prestação de serviços de pesquisa edesenvolvimento com a UFPA, sem a interve-niência da Fundação de Amparo e Desenvol-vimento da Pesquisa (FADESP). Os contratosforam executados pelo Departamento de En-genharia Elétrica da UFPA, por um prazo dedoze meses. Coube a UFPA o fornecimento dainfra-estrutura e dos recursos humanos neces-sários à realização dos projetos discriminadosno quadro abaixo.

Evidencia-se um processo de terceirizaçãodos serviços da UFPA, no caso, a pesquisa, poruma empresa estatal. A Eletronorte contratoua UFPA para a realização de pesquisas de seuinteresse, ao invés de ela própria realizá-las, oque implicaria contratação de pessoal e criaçãoda infra-estrutura necessária (laboratórios eequipamentos) e, portanto, dispêndio de re-cursos mais elevado.

Dois aspectos desses contratos nos chama-ram a atenção: a) todo e qualquer material ad-quirido pela UFPA para o desenvolvimento do

RELAÇÃO DOS CONTRATOS FIRMADOS ENTRE A UFPA E A ELETRONORTE, SEGUNDO OBJETO E VALORES

OBJETO VALOR (R$)

• Estudo da poluição por elementos tóxicos em matrizes biológicas 174.000,00

• Desenvolvimento do protótipo de um instrumento virtual para análise on-line de perturbações

harmônicas em sistemas de potências 189.160,00

• Controle coordenado das unidades térmicas e hidráulicas do sistema de geração do Amapá 441.244,00

• Implementação de estabilizadores de sistema de potência em sistemas de excitação

de geradores síncronos da Usina de Tucuruí, usando técnicas adaptativas 361.380,00

• Predição de falha em cadeias de isoladores de linhas de transmissão 180.160,00

• Desenvolvimento de sistema especialista para auxílio à manutenção preditiva

em compensadores síncronos 233.700,00

• Pesquisa, desenvolvimento e implantação de metodologias e sistemas para medição padrão

de grandezas elétricas, no Laboratório Central da Eletronorte 629.200,00

• Alternativa energética renovável para a Amazônia a partir do craqueamento e

transesterificação dos óleos de dendê, maracujá e soja 170.824,00

TTOOTTAALL 22..337799..666688,,0000

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 71

projeto será de propriedade da Eletronorte,que fará uso do mesmo após o encerramentodo contrato (Cláusula 8, alínea e); b) os re-sultados líquidos financeiros serão da Ele-tronorte, que reservará para si os direitos au-torais e de propriedade intelectual (Cláusu-las 21 e 27).

Diante disso, questiona-se: qual o benefícioque a UFPA terá com a execução desses con-tratos? Somente a possibilidade do docente-pesquisador obter, por um curto espaço detempo (doze meses), condições para desen-volver uma pesquisa. Isso porque a UFPAnão poderá usufruir o material adquirido comos recursos oriundos desses contratos paraoutras pesquisas de interesse da instituição;não terá, também, qualquer controle sobre autilização do conhecimento produzido e nempoderá disseminá-lo, o que é uma de suas fun-ções precípuas. Além disso, a UFPA não po-derá utilizar os direitos autorais e de proprie-dade intelectual a que faria jus caso a pesquisafosse definida e financiada pela própria ins-tituição.

Esses contratos firmados com a Eletronor-te podem ser considerados como uma das fei-ções que a privatização assume, com grandeclareza, no interior das universidades públi-cas. Apesar de os serviços serem executadospor uma instituição pública (UFPA) e o fi-nanciamento ser de uma empresa estatal (Ele-tronorte), o conhecimento produzido seráapropriado privativamente. Fica evidente aprivatização do beneficiário, pois somente aEletronorte poderá fazer uso dos resultadosprovenientes das pesquisas. Além do que, éclara a interferência da estatal na agenda depesquisa da UFPA, definindo, de acordo comseus interesses, o que deve ser pesquisado.Por sua vez, a UFPA submete-se a essa situa-ção por motivos econômicos, perdendo suaautonomia. É o econômico sobrepondo-se aosinteresses institucionais.

EricssonTrata-se de um convênio firmado entre a

Ericsson Telecomunicações e a UFPA, em ja-neiro de 2002, com a interveniência da FADESP,para o desenvolvimento de modelos, algorit-mos e programas computacionais, para o estu-do do canal de propagação de sistemas móveisem ambientes urbanos e suburbanos, própriosda região amazônica (Cláusula 1ª do TermoAditivo).

O projeto deveria ser executado em doisanos, sob a responsabilidade da UFPA. Dentreoutras obrigações, constam no Termo Aditivodo convênio: disponibilizar instalações, labo-ratórios e unidades de serviços, bem como re-cursos materiais, em quantidade e qualidade,necessários à execução do projeto; manter pes-soal docente, de pesquisa e técnicos e todas asobrigações trabalhistas; responsabilizar-se portodo o material, equipamento e documentaçãotécnica, utilizando-o, exclusivamente, para apesquisa, sendo vedado o uso para outros fins(Cláusula 4ª).

A Ericsson disponibilizaria para a execuçãodo projeto R$ 529.100,00, exigindo que os re-sultados obtidos fossem de sua propriedadeexclusiva, o que implica que a UFPA deveriaobter, por escrito, do pessoal técnico envolvi-do no projeto, a cessão de quaisquer direitosde registro de privilégios de invenção, modelosde utilidade, modelos industriais, desenhos in-dustriais e registros de software comercial-mente viáveis e patenteáveis. A Ericsson com-prometeu-se a pagar, por cada invenção, a im-portância irrisória de R$ 5.000,00, podendo aUniversidade repassá-la ao inventor, a seu cri-tério, a título de premiação (Cláusula 8ª doTermo Aditivo).

Os resultados da execução desse projeto se-rão de propriedade exclusiva da Ericsson, quepoderá industrializá-los e/ou comercializá-los,sem qualquer direito à participação da UFPAou de qualquer servidor dessa instituição.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE72 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

Os Desafios para a Universidade

Além disso, quaisquer informações técnico-científicas passíveis de publicação devem serautorizadas, por escrito, pela Ericsson (Cláu-sula 8ª do Convênio).

O contrato entre a Ericsson e a UFPA, exe-cutado pelo Departamento de Engenharia Elé-trica, torna evidente a perda do caráter públicoda Universidade, na medida em que a UFPA,até para divulgar o conhecimento que está pro-duzindo, tem que ser autorizada pela empresacontratante. A Universidade, em troca da pres-tação de serviços remunerados, vem se sub-metendo à lógica capitalista e produzindo co-nhecimento para ser apropriado pela empresa,que gerará lucros cada vez maiores. Acres-cente-se a isso a aceitação dos docentes, que sesubmetem às determinações da empresa e, deforma deliberada, privatizam o saber, em detri-mento de benefícios para a população, que, defato, sustenta a UFPA. Como sepode constatar no depoimento deum pesquisador:

[...] eu vejo uma relação de par-

ceria. Se ela pagou, essa informa-

ção é estratégica. A Ericsson,

realmente não, aquela informa-

ção, para ela é estratégica,

aquela informação pode render

o projeto da melhor antena que

vai render um lucro para ela.

Ela vê lucro. A empresa real-

mente vê lucro. Agora, eu tam-

bém vejo lucro. O lucro é, hoje, o meu labo-

ratório está mais equipado, o lucro é eu ter,

hoje, o único laboratório do Brasil que tra-

balha com eletromagnetismo aplicado com

computação paralela. Você não vê isso em

nenhuma universidade brasileira, posso di-

zer com muito orgulho. Por quê? Porque,

dentro da nossa dificuldade, a gente conse-

gue trabalhar com pesquisadores das três

áreas, ou seja, o pessoal de energia elétrica

quer fazer controle de qualidade de energia,

sabe que tem que ter um problema de trans-

missão de dados, quem resolve é a teleco-

municações, e que isso aqui envolve também

a base, transmissão, web, que quem resolve

isso é a computação. Então, vários dos nos-

sos projetos envolvem esse aspecto. Então,

um projeto vai fomentando o outro. Depois

que o grupo percebeu isso, que hoje nós

criamos o Núcleo de Energia Sistêmica. (SP-

04, grifo nosso).

O discurso expõe claramente a apropriaçãoprivada do espaço público. Ao afirmar que“[...] eu também vejo lucro. O lucro é, hoje, omeu laboratório está mais equipado, o lucro éeu ter, hoje, o único laboratório do Brasil [...]”,o pesquisador demonstra um sentimento deposse, de incapacidade em transcender a vida

pessoal, enxergando apenas seuponto de vista. Por outro lado, ma-nifesta-se uma naturalização doprocesso de privatização, na medi-da em que há uma aceitação pas-siva de que é correta e, portanto,natural, a obtenção de lucro daempresa sobre o trabalho desen-volvido pela universidade, uma vezque ela financia tal atividade. Ouseja, a necessidade econômica (fi-nanciamento da pesquisa), ao inva-dir a esfera pública, transfere umaatividade essencialmente pública

para a esfera dos negócios. Percebe-se, ainda,alteração na organização da instituição, quepassa a funcionar de acordo com os interessesexternos, como evidencia o entrevistado, ao as-sumir que um grupo foi criado a partir dessesinteresses - o Núcleo de Energia Sistêmica.

Essa é uma situação extremamente grave,pois a defesa individual por melhores condi-ções de trabalho é utilizada para justificar a eli-minação de direitos de toda a coletividade. A

A necessidadeeconômica

(financiamento da pesquisa), aoinvadir a esfera

pública, transfereuma atividadeessencialmente

pública para a esferados negócios.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 73

Os Desafios para a Universidade

UFPA é uma instituição pública e,como tal, tem deveres para com opúblico que a mantém. No interiordessa instituição, a racionalidadecapitalista passou a dominar cora-ções e mentes e, com isso, observa-se uma exaltação da individualida-de aliada ao processo de destruiçãoda esfera pública. Outro dirigenteda UFPA manifesta-se de formaeufórica sobre o contrato com aEricsson:

[...] aliás, um projeto fantástico que a Ericsson

está financiando, que é na área da telefonia

celular. Nós temos, aqui na Amazônia, uma

situação única no planeta - é o número de

acidentes naturais. Árvores, muitas árvores,

uma umidade muito alta. Então, os equipa-

mentos de telefonia celular, que no mundo

inteiro funcionam totalmente bem, aqui eles

encontram problemas no funcionamento e

esse projeto é justamente desenvolvendo

uma técnica, um equipamento, uma metodo-

logia, uma concepção de uso da telefonia ce-

lular específico para essa região. (SG-05, gri-

fo nosso).

Ora, este contrato é vantajoso para a Eric-sson, pois o volume de recursos aplicados naUniversidade para o desenvolvimento da pes-quisa é incipiente diante do lucro que irá obtercom a apropriação do resultado. O conheci-mento a ser gerado pela instituição pública, aoser expropriado de forma privativa pela em-presa, converte o espaço público em espaçoprivado. Obviamente, a utilização desse co-nhecimento não ficará restrita à Região Ama-zônica; será “exportado” para todo e qualquerlugar do mundo onde se encontrem condiçõessimilares de transmissão.

O exame desse contrato evidencia um casotípico de “privatização do público”. Conside-

rando os critérios definidos nestetrabalho para identificar o tipo deprivatização da universidade (for-necimento/financiamento/finali-dade) podemos afirmar que, nessecaso, trata-se da privatização do fi-nanciamento e do beneficiário.

O econômico passou a ser ocentro das atividades da Universi-dade. A empresa tem interesses co-merciais voltados para a rentabi-lidade, o lucro. A Universidade,

por sua vez, sujeita-se aos interesses empresa-riais, submetendo os interesses da coletividadea interesses privados, seja da empresa ou degrupos de pesquisadores. Assim, “[...] o econo-micismo consiste em conceber o produto uni-versitário como um produto industrial, aindaque de tipo especial e, conseqüentemente emconceber a universidade como uma organi-zação empresarial.” (SANTOS, 1996, p. 217).Como conseqüência, além do processo deprivatização do público, a Universidade perdesua autonomia científica, subordinando-se àsdeterminações, à lógica e aos interesses em-presariais.

A análise dos contratos/convênios de pres-tação de serviços estabelecidos entre a UFPA eas duas empresas destacadas neste estudo, mes-mo que tenham objetivos diversos, no seu con-junto configuram exemplos concretos em queo conhecimento transforma-se em mercadoria.A tecnologia tornou-se a principal finalidadeda ciência, estabelecendo seus objetivos e ori-entando suas atividades. A instituição univer-sitária, por sua vez, de produtora de conheci-mento metamorfoseia-se em uma organizaçãosocial, abandonando a formação e a pesquisapara lançar-se no mercado competitivo, subor-dinando sua produção acadêmica às demandase necessidades do capital e do mercado. Aagenda de pesquisa da universidade é cada vezmais definida por setores externos, estatais ou

O conhecimento a ser gerado pela

instituição pública, aoser expropriado de

forma privativa pelaempresa, converte oespaço público em espaço privado.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE74 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

Os Desafios para a Universidade

privados, em qualquer caso, do mercado. Co-mo conseqüência desse processo, a universida-de pública “[...] corre o risco de se deixar des-caracterizar ao ponto de a ligação universida-de-indústria se transformar numa ligação in-dústria-indústria” (SANTOS, 1996, p. 218).

Algumas conclusõesAs políticas de ajuste fiscal implementadas

pelos sucessivos governos neoliberais, espe-cialmente de Fernando Henrique a Luis Iná-cio, promoveram a redefinição das esferas pú-blica e privada. A precária delimitação das es-feras do público e do privado na relação entreEstado e sociedade civil se desdobrou nas po-líticas educacionais, desvelando o caráter ideo-logicamente privado assumido por estes go-vernos. A edição de uma série de instrumentosnormativos tem configurado a reforma da edu-cação superior brasileira, cujas bases episte-mológicas fundamentam-se na destruição daesfera pública associada à exaltação da indivi-dualidade. Perde-se a figura do Estado comoresponsável pela esfera pública (voltada para osinteresses coletivos), assumindo-se o mercado- lócus da esfera privada - como oreinado da eficiência, da integrida-de e da modernidade.

O Estado foi gradativamente seafastando da manutenção do siste-ma público de ensino superior,agravando a crise vivida pelas uni-versidades públicas federais. Aoreduzir os aportes financeiros parao custeio dessas instituições, o go-verno induziu essas universidadesa recorrerem aos recursos privadose a adotarem medidas administra-tivas de cunho privatizante, sob ajustificativa de que investir no en-sino superior significaria beneficiara elite econômica e que os maioresganhos na economia de um país es-

tariam associados a investimentos nos níveisbásicos da educação.

Pressionadas pela crise de hegemonia, de le-gitimidade e institucional (SANTOS, 1996) eespecialmente diante da diminuição dos recur-sos federais que as mantinham, as IFES passa-ram a buscar na prestação de serviços no mer-cado o caminho para gerar receitas, visando acomplementação salarial e a manutenção devárias atividades institucionais com vistas a re-duzir a situação de penúria produzida pela po-lítica governamental.

Esse fenômeno, caracterizado de “privatiza-ção do público”, tem sido efetivado por pro-fessores e técnico-administrativos que utilizama infra-estrutura física e a credibilidade da uni-versidade pública para executarem convênios econtratos que muitas vezes impedem o desem-penho de suas atividades acadêmicas regulares.

Essa prática, no interior da universidade,tem contribuído para a formação de uma novamentalidade, produtivista e pragmática, quepassou a ser defendida especialmente entre osdocentes que empreendem dinâmicas própriasde captação de recursos na instituição.

Uma nova cultura ganha forçano interior da universidade públi-ca. Novos hábitos, novas práticaspassam a fazer parte do cotidianoda instituição. Dentro dessa lógica,todas as atividades de ensino, pes-quisa e extensão podem ser carac-terizadas como prestação de servi-ços e a defesa para que seja estabe-lecida a cobrança pela realizaçãodessas atividades vem sendo feitade forma natural.

A proliferação de cursos pagose a transformação de docentes emempresários encobertos pela fa-chada das Fundações de Apoioprivadas são conseqüência da po-lítica do Estado em desobrigar-se

A proliferação decursos pagos e atransformação de

docentes emempresários

encobertos pelafachada das

Fundações de Apoioprivadas são

conseqüência dapolítica do Estado em

desobrigar-se damanutenção da

educação pública.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 75

Os Desafios para a Universidade

da manutenção da educação pública.O mercado passou a definir a direção e os

interesses institucionais, subordinando a uni-versidade ao campo empresarial com o apoioirrestrito da Fundação privada. Como conse-qüência desse processo: a) o individualismo e acompetitividade entre os professores-pesqui-sadores foi fortalecido; b) a pesquisa passou aser realizada para atender às demandas do mer-cado e a universidade vem se eximindo da res-ponsabilidade de definir suas linhas de pesqui-sa e de corresponder aos anseios sociais; c) apolítica de atuação institucional passou a ser decunho privado, com a formação de “grupos deconsultoria técnico-científica” e com a formu-lação de projetos articulados com o setor pri-vado, construídos à revelia das demandas ins-titucionais e atendendo à demanda do mercadoempresarial.

Essa situação será agravada com a imple-mentação da Lei 10.973, de 2 de dezembro de2004 que dispõe sobre incentivos à inovação ea pesquisa científica e tecnológica no ambienteprodutivo. Essa Lei estabelece os pressupostosda flexibilização das relações entre pesquisa-dores, instituições de pesquisa e empresas pri-vadas. As condições estabelecidas por esta Leioferecem atrativos para que o pesquisadorabra uma empresa tecnológica, licenciando-seda universidade (por até três anos, renováveispor igual período) para dedicar-se à constitui-ção de empresa com o objetivo de desenvolveratividade empresarial relativa à inovação (ar-tigo 15).

Outras legislações complemen-tam o arcabouço jurídico normati-vo elaborado no governo Luis Iná-cio Lula da Silva, cuja finalidadeprincipal é a de aprofundar o pro-cesso de privatização da educaçãosuperior brasileira, tais como: aLei nº 10.861, de 14 de abril de 2004que institui o Sistema Nacional de

Avaliação da Educação Superior (SINAES); oDecreto nº 5.205, de 14/09/2004 que regula-menta as relações entre as instituições federaisde ensino superior e de pesquisa científica etecnológica e as Fundações de Apoio; o Decre-to nº 5.493, de 18 de julho de 2005 que regula-menta a Lei nº 11.096, de 13 de janeiro de 2005que instituiu o Programa Universidade para To-dos (PROUNI) e destina-se à concessão debolsas de estudo integrais e parciais para estu-dantes de cursos de graduação ou seqüenciaisde formação específica, em instituições priva-das de ensino superior, com ou sem fins lucra-tivos, que tenham aderido ao programa; o De-creto nº 5.622, de 19 de dezembro de 2005 queregulamenta a educação a distância para a ex-pansão da educação superior e cria a Univer-sidade Aberta do Brasil; o Projeto de Lei daReforma da Educação Superior a ser encami-nhado pelo governo federal ao Congresso Na-cional14; dentre outros instrumentos legislati-vos (portarias e resoluções ministeriais).

Diante desses fatores, torna-se necessárioque essa situação seja alterada, pois a autono-mia universitária para a produção do conheci-mento é condição essencial para o desenvolvi-mento de uma nação soberana. A força de tra-balho numa universidade pública deve se res-guardar das determinações da produção capi-talista. Para tanto, é fundamental competênciatécnica, conhecimento científico e vontade po-lítica para fazer frente à ofensiva privatizanteque avança sobre a universidade pública bra-sileira. Há que se ter a clareza de que o que está

em jogo não é apenas a reestrutu-ração neoliberal das esferas públi-ca e privada, mas uma reelabora-ção e redefinição das próprias for-mas de representação destas esfe-ras. Nesse sentido, é imprescin-dível que as universidades públicassejam mantidas pelos fundos pú-blicos para que possam ter plena

A força de trabalhonuma universidade

pública deve seresguardar das

determinações daprodução capitalista.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE76 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

Os Desafios para a Universidade

autonomia na definição de seus projetos depesquisa, ensino e extensão.

NOTAS

1 Os resultados completos da pesquisa podem serencontrados em CHAVES (2005).2 A doutrina neoliberal que orientou as reformasdo Estado nos anos de 1990 fundamenta-se na idéiade que a responsabilidade pela crise é do próprioEstado que ao longo dos anos produziu um setorpúblico ineficiente e marcado pelo privilégio. Dessemodo, justifica-se a necessidade de reduzir o tama-nho do Estado e eliminar os direitos sociais con-quistados pela sociedade.3 Outras ações governamentais integram a políticade focalização. Destacam-se, no governo Lula daSilva, as seguintes: Programa Fome Zero; Bolsa-es-cola; Bolsa-família.4 Os pressupostos básicos da reforma do Estado noBrasil estão especificados no Plano diretor da refor-ma do aparelho do Estado, publicado em novembrode 1995, que estabelece diretrizes para a reforma daadministração pública brasileira. O Plano diretordefine as atividades que devem ficar sob a respon-sabilidade direta do Estado, aquelas que Ele devecoordenar e/ou supervisionar e quais devem ser en-tregues para a iniciativa privada. Segundo este do-cumento, o Estado brasileiro deverá ser reestrutu-rado em quatro setores: 1) o núcleo estratégico doEstado; 2) as atividades exclusivas do Estado; 3) osserviços não exclusivos ou competitivos; 4) a pro-dução de bens e serviços para o mercado. “NaUnião os serviços não exclusivos de Estado maisrelevantes são as universidades, as escolas técnicas,os centros de pesquisa, os hospitais e os museus. Areforma proposta é a de transformá-los em um tipoespecial de entidade não-estatal, as organizaçõessociais. A idéia é transformá-los em ‘organizaçõessociais’, ou seja, em entidades que celebrem umcontrato de gestão com o Poder Executivo e con-tem com a autorização do parlamento para parti-cipar do orçamento público.” (BRESSER PEREI-RA, 1998, p. 186).5 Nos países latino-americanos não se pode afirmarque existiu um Welfare State; no entanto, autorescomo Soares (2001, p. 43) afirmam que, conside-rando a heterogeneidade latino-americana, “[...]onde se sobrepõem formas avançadas e atrasadas deorganização política, social e econômica [...]”, umasérie de elementos de proteção social “[...] indicamtraços de um Estado de Bem-Estar na maioria des-ses países. Em vários países latinoamericanos algu-

mas ações protecionistas foram desenvolvidas peloEstado tais como: reconhecimento de direitos so-ciais em suas legislações, criação de uma seguridadesocial pública para garantir assistência à saúde, apo-sentadorias, compensações por doença, materni-dade e pela perda de emprego; educação pública;programas de benefícios familiares e de habitação;entre outros. No caso brasileiro, podemos destacara legislação trabalhista herdada da Era Vargas; a in-tervenção do Estado que viabilizou o processo deindustrialização e modernização da sociedade bra-sileira; e os direitos sociais inscritos na Consti-tuição Federal de 1988”.6 Até 2000, a Fundação de Amparo e Desenvolvi-mento à Pesquisa (FADESP) cobrava da UFPA10% do montante de recursos de cada convênioe/ou contrato que intermediava, percentual esse re-duzido em 2002 para 5%.7 A dispensa de licitação é permitida pela Lei nº8.666/93. No artigo 24, inciso XIII, com redaçãodada pela Lei nº 8.883/94, que define como “dis-pensável de licitação”, essa dispensa é admitidaquando houver contratação de instituição nacionalincumbida regimental ou estatutariamente de pes-quisa, ensino ou do desenvolvimento institucional,desde que a contratada detenha reputação ético-profissional e não tenha fins lucrativos. Já o artigo25, no inciso II, prevê a inexigibilidade de licitaçãoquando se tratar de contratação de serviços técnicosde natureza singular, com profissionais ou empre-sas de notória especialização.8 No caso da UFPA, tal irregularidade foi consta-tada pela Controladoria-Geral da União no Pará(CGU), na Auditoria realizada no período de10/03/2004 a 27/04/2004, na UFPA, referente aoano exercício de 2003. De acordo com o Relatório nº140063, da Auditoria da CGU, foi constatado que aUFPA estava realizando “[...] contratação indireta depessoal por intermédio de sua Fundação de Apoio -FADESP. A ocorrência foi observada especialmentenas contratações de funcionários para os hospitaisuniversitários João de Barros Barreto e Betina Ferrode Souza. A prática foi considerada irregular porafrontar o princípio do concurso público contido noinciso II do artigo 37 da constituição federal”.(BRASIL, CGU, 2004, p. 177).9 Segundo Relatório da FADESP, 86% dos recur-sos geridos em 2004 foram oriundos de fontes pú-blicas (FADESP - Relatório de Atividades, 2004). 10 Volume de instrumentos jurídicos (convê-nios/contratos/cartas) firmados pela UFPA e ge-renciados pela FADESP: 306 em 2001; 545 em2002, 487 em 2003 e em 2004 foram assinados 627.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 77

Os Desafios para a Universidade

(FADESP, Relatório de Atividades, 2004).11 Em 2005 existiam 195 fundações credenciadaspelo MEC e não se observam melhorias substanci-ais na situação financeira das universidades. Fonte:<www.mec.gov.br/sesu/arquivos/doc/credencia-da.xls>. Acesso em: 5 maio 2005.12 A expressão “nova mentalidade”, aqui utilizada,relaciona-se ao movimento de aceitação acrítica doprocesso de privatização interna da universidadepública. Sobre isso ver: CHAUÍ, 1999.13 Essa polêmica encontra-se documentada nas atasdas sessões dos Conselhos Superiores, das Assem-bléias Docentes e de Estudantes. Maiores detalhessobre o assunto: CHAVES (2005). 14 De acordo com entrevista do Ministro FernandoHaddad, veiculada no jornal Folha de São Paulo de1º de maio de 2006, o governo federal deverá enca-minhar brevemente ao Congresso Nacional projetode lei sobre a Reforma da Educação Superior.

REFERÊNCIAS

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Dispõe sobre as relações entre as instituições fe-derais de ensino superior e de pesquisa científica etecnológica e as fundações de apoio e dá outrasprovidências. Regulamentado [Decreto nº 5.205/-2004]. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21dez. 1994.BRASIL. Lei nº 10.861, de 14 de abril de 2004. Ins-titui o Sistema Nacional de Avaliação da EducaçãoSuperior – SINAES e dá outras providências. Diá-rio Oficial da União, Brasília, DF, 15 abr. 2004. BRASIL. Ministério da Educação. Portaria Ministerial nº452, de 30 de maio de 1978. Aprova o Estatuto daUniversidade Federal do Pará. Brasília, DF, 1978.BRESSER PEREIRA, Luis Carlos; ; SPINK, Peter(Org.). Reforma do Estado e administração pública.Rio de Janeiro: FGV, 1998. CHAUÍ, Marilena. A universidade em ruínas. In:TRINDADE, Hélgio (Org.). Universidade em ruí-nas na república dos professores. Petrópolis: Vozes,1999.CHAVES, Vera Lúcia Jacob. As feições da privati-zação do público na educação superior brasileira: ocaso da UFPA. Tese (Doutorado). UniversidadeFederal de Minas Gerais, 2005.FUNDAÇÃO DE AMPARO E DESENVOLVI-MENTO DA PESQUISA. Relatório de Atividades– 2004. Belém: FADESP, 2004.LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo:ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e ob-jetivo do governo civil. São Paulo: Nova Cultural,1991. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice:o social e o político na pós-modernidade. 2. ed. SãoPaulo: Cortez, 1996.SOARES, Laura Tavares R. Ajuste neoliberal e de-sajuste social na América Latina. Petrópolis: Vozes,2001.UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. Reso-lução nº 604, de 21 de novembro de 2002. Aprova oPlano de Desenvolvimento da UFPA – 2001-2010.Belém: UFPA, Conselho Universitário, 2002.UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. Planode Desenvolvimento da UFPA – 2001-2010. Belém:UFPA, Pró-reitoria de Planejamento e Desenvolvi-mento, 2002.UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. Re-solução nº 1.132, de 2 de julho de 2003. Revoga aResolução nº 1.115, de 19 de dezembro de 2000,que dispõe sobre as atividades de prestação de ser-viços na Universidade Federal do Pará e dá outrasprovidências. Belém: UFPA, Conselho Superior deAdministração, 2003.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 79

Este texto tem como base um levantamentode dados realizado em 2005 com o objetivode apresentar uma pequena radiografia da

situação em que se encontram os Colégios deAplicação ligados às Universidades Federais(os quais serão doravante denominados deCAPs). Está também baseado em documentosque debatem os Centros Federais de EducaçãoTecnológica (CEFETs) e na discussão feita noSeminário “Precarização do Trabalhador Do-cente” realizado em Brasília em 11 de fevereirode 2006, no qual fizemos uma explanação so-bre o tema.

Neste texto é abordada exclusivamente aquestão da precarização do trabalho docentena carreira de 1º e 2º graus nas Instituições Fe-derais de Ensino, já que o texto apresentandopelo companheiro Bosi1 expõe de forma clara aquestão que envolve o complexo arranjo ar-quitetado pelo capital para manutenção dostatus quo a partir da implementação do proje-to neoliberal. Este, dentre outras coisas, atacaos direitos dos trabalhadores tanto do setorprivado quanto do público, destruindo con-

quistas históricas da classe trabalhadora. Nossa análise tenta demonstrar que alguns

elementos são claros indicadores de como aprecarização do trabalho docente na carreirade 1º e 2º graus vem aumentando frente aoaprofundamento de tal projeto.

Temos hoje filiado ao nosso Sindicato2, liga-dos à carreira de 1º e 2º graus, docentes queatuam nos CAPs, nas Casas de Cultura, nosCEFETs e agora na recente Universidade Tec-nológica Federal do Paraná. E é certo que tan-to uns quanto os outros, levando em contasuas peculiaridades, apresentam basicamenteas mesmas dificuldades no dia-a-dia de seu fa-zer pedagógico.

Um ponto que nos chama a atenção é o au-mento de tarefas impingido aos docentes destacarreira, que para não ver a qualidade de seutrabalho decair se desdobram ao máximo emsuas tarefas. Apontamos aqui alguns fatoresque agravam esta situação: a não abertura deconcurso público para prover vagas oriundasde aposentadorias, pedido de demissão ou fale-cimento; a inexistência de políticas de expan-

Precarização do trabalho docente: docentes da carreira

de 1º e 2º graus em questãoAgostinho Beghelli Filho

Professor, mestre pela Universidade Federal de Juiz de Fora

80 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

são dos quadros de professores etécnicos em função da ampliação daoferta de novos cursos e da aberturade cursos noturnos; a dificuldade deafastamento para qualificação emfunção da não alocação de vagas deprofessor substituto; a discrimina-ção existente em algumas Institui-ções na distribuição de bolsas paraqualificação. Podemos tambémconstatar que a baixa oferta de con-cursos para técnico-administrativostem obrigado os docentes a assumi-rem algumas funções burocráticas,sem as quais as tarefas pedagógicasseriam seriamente comprometidas.

Outro fator não menos impor-tante é a questão das linhas de fi-nanciamento para as Instituiçõesque congregam docentes de 1º e 2ºgraus. É o caso dos CAPs. Por es-tarem diretamente ligados às Uni-versidades fazem parte da educa-ção federal, mas com o diferencialde não atender ao ensino tecnoló-gico. Nesta situação não recebemverbas nem da Secretaria de Edu-cação Básica (SEB), nem da Secre-taria de Educação Profissional e Tec-nológica (SETEC). Resta, portanto,a possibilidade de repasse de ver-bas para as Universidades que man-

têm CAPs, via Secreta-ria de Educação Supe-rior (SESU), que tam-bém se furta à responsa-bilidade. Quando a ad-ministração superior daUniversidade à qual oCAP é vinculado nãopossui uma política de fi-nanciamento para o ensi-no, a pesquisa e a exten-são acentua-se a precari-zação no seio da Institui-ção, que nesse caso en-contra grandes dificul-dades de manter a indis-sociabilidade entre o en-sino, a pesquisa e a ex-tensão.

Quanto aos CEFETs,a questão esbarra nanecessidade de atrelaras atividades acadêmi-co-pedagógicas às dire-trizes impostas pela Se-cretaria de EducaçãoProfissional e Tecnoló-

Os Desafios para a Universidade

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

A baixa oferta de concursos para

técnico-administrativostem obrigado os docentes aassumirem

algumas funçõesburocráticas, sem

as quais as tarefas pedagógicasseriam seriamentecomprometidas.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 81

gica, que atualmente vão na direção de umaeducação ‘aligeirada’, comprometendo, obvia-mente, a formação crítica. Pior fica a situaçãoquando constatamos que esta formação aligei-rada está diretamente ligada aos interesses deempresários que vêem no profissional um me-ro repetidor de operações, um leitor de manu-ais, um sujeito que manipula com perfeição asferramentas das tecnologias importadas. Comessa visão o ensino passa a ter uma perspectivatécnico-instrumental, a pesquisa se mira so-mente no viés da especialização e a extensão naprestação de serviços.

Ainda em relação aos CEFETs e às escolastécnicas temos também como forma de pre-carização a implantação obrigató-ria de novas modalidades de edu-cação sem a devida capacitação emesmo sem o devido tempo paraque os docentes possam se prepa-rar para a nova tarefa. Outro pro-blema surge quando ocorre a im-plantação de cursos de nível supe-rior no interior dessas Instituições eos professores da carreira de 1º e 2ºgraus são obrigados a assumir a do-cência de nível superior. Recente-mente, temos o caso do CEFET doParaná que foi transformado emUniversidade Tecnológica Federaldo Paraná. A maior parte dos do-centes daquele estabelecimento deensino pertence à carreira de 1º e 2º graus. Em al-guns casos encontramos docentes das duas car-reiras numa mesma Instituição, com funçõesidênticas e com salários diferentes, caracterizan-do, portanto, a ausência de isonomia salarial.

Se aprofundarmos na questão remuneratóriaencontramos uma série de distorções em fun-ção da existência de gratificações que extrapo-lam, de maneira absurda, o salário-base. Grati-ficações pagas por meio de mecanismos cria-dos com a absoluta conivência das administra-

ções superiores, muitas vezes via fundações. Outro ponto que não pode deixar de ser

mencionado é a falta de um plano de carreiraque atenda à necessidade de ascensão funcio-nal. Devido à pressão sofrida a partir da grevede 2005, atendendo em parte e de forma distor-cida a proposta do ANDES-SN, o MEC criouduas novas classes: uma para a carreira do ma-gistério superior (professor associado) e outrapara a carreira de 1º e 2º graus (professor espe-cial), aprofundando ainda mais a distorção entreas duas carreiras, com objetivo claro de dificultara implantação da carreira única.

Se olharmos atentamente as condições estru-turais que dão suporte ao trabalho docente, den-

tre outras deficiências, verificamosbibliotecas que não têm seu acervobibliográfico renovado e/ou amplia-do e laboratórios que carecem deequipamentos ou os têm em númeroinsuficiente. Essa precária políticade investimentos na manutençãodas instalações e na não constru-ção do espaço físico necessário pa-ra atender à expansão de turmas ecursos é mais uma forma de preca-rização do trabalho docente nessenível de ensino.

Quando a questão é a pesquisanas instituições que agregam os do-centes da carreira de 1º e 2º graus,principalmente nos CAPs, temos

que primeiro entender como o MEC, aten-dendo a determinações do Banco Mundial, vêa pesquisa no interior dessas Instituições. Parao MEC esses estabelecimentos devem ser me-ros reprodutores de ensino, não necessitando,portanto, de programas que incentivem a pes-quisa e de docentes altamente qualificados.

Fazendo uma comparação entre docentes dasduas carreiras que alcançaram o título de doutornos últimos dez anos, podemos facilmenteconstatar a tendência do MEC de não valorizar

A precária política de investimentos na manutenção das instalações e

na não construção do espaço físiconecessário para

atender à expansãode turmas e cursos é mais uma forma

de precarização do trabalho docente

nesse nível de ensino.

Os Desafios para a Universidade

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE82 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

a política de capacitação e de pes-quisa na carreira de 1º e 2º graus.

Grande parte da precarização dotrabalho docente advém da imple-mentação, já no governo de FHC eagora no governo de Lula da Silva,de políticas que, atendendo aos di-tames dos organismos internacio-nais, indicam medidas de saneamen-to na área de recursos humanos nointerior do Estado, por considerareste tipo de gasto uma despesa e nãoum investimento.

Podemos enumerar algumaspolíticas que atendem às imposi-ções dos organismos internacio-nais e que certamente levam à pre-carização do trabalho no interiordo serviço público, sobretudo, norelacionado à educação.

Podemos começar pela formacomo é tratada a carreira no servi-ço público: existe claramente uma valorizaçãode certas carreiras, enquanto outras são secun-darizadas e tratadas como meras tabelas sala-riais. Outro ponto é a redução do aparelhoestatal por meio de incentivos aos pedidos dedemissão voluntária, estimulo a aposentado-rias, reduções expressivas do número de con-tratações, extinção de cargos e grande númerode terceirizações. Por fim, podemos apontar

que a ênfase no caráter individualdos serviços, com a implantação degratificações individuais e produti-vistas no ambiente coletivo de tra-balho, acirra uma competitividadeque, neste caso, descaracteriza aInstituição de Ensino como tal,prejudicando o trabalhador e a so-ciedade.

Pontuamos acima alguns fatoresque, de uma forma ou de outra, con-tribuem para uma maior precariza-ção do trabalho docente. Acredita-mos ser premente que o ANDES-SNfaça uma análise apurada das condi-ções do trabalho docente, tanto nacarreira de 1º e 2º graus quanto nacarreira do magistério superior, como objetivo de proporcionar uma basede dados que possa servir comoponto de partida para a construçãode estratégias de luta e de denúncia,

visando reverter ou pelo menos reduzir estasituação lamentável, hoje já instalada.

NOTAS

1 Antônio de Pádua Bosi, diretor do ANDES-SN(gestão 2004-06).2 Sindicato Nacional dos Docentes das Instituiçõesde Ensino Superior (ANDES-SN).

Os Desafios para a Universidade

A ênfase no caráterindividual dos

serviços, com aimplantação de

gratificaçõesindividuais e

produtivistas noambiente coletivo detrabalho, acirra umacompetitividade que,

neste caso,descaracteriza a

Instituição de Ensinocomo tal,

prejudicando otrabalhador e a

sociedade.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 85

Criado em 1944 com o objetivo de apoiar asnações saídas da guerra em condições eco-nomicamente desfavoráveis, o Banco Mun-

dial, após 62 anos de existência, transformou-se numa instituição estratégica no processo dereestruturação produtiva e de desenvolvimentodos ajustes necessários à nova ordem econômica(CHOSSUDOVSKY, 1999; SOARES, 1996).

Juntamente com o FMI, o Banco Mundialpassou a ser um dos principais protagonistasno processo de ajuste das economias à nova or-dem neoliberal. Segundo estes mesmos auto-res, além dos empréstimos concedidos, tor-nou-se um dos principais avaliadores de comoas economias em desenvolvimento estariam sereestruturando diante da nova realidade, ini-ciada na década de 70.

Contraditoriamente ao propugnado em seusdiversos documentos, as ações do Banco Mun-dial têm se caracterizado, muito mais, pela im-plementação de ajustes provocadores de au-mento da pobreza que propriamente por levaras sociedades mais pobres a alcançarem um de-senvolvimento econômico com maior eqüida-de social. Analisar se de fato isto é uma contra-

dição ou uma decorrência “natural” destes ajus-tes é o objetivo deste trabalho.

A afirmação do projeto neoliberale o combate à pobreza

Com a eclosão da guerra fria houve a neces-sidade do Banco Mundial inserir-se nas econo-mias terceiro-mundistas para gerar um quadrode maior estabilidade social. Boa parte dos em-préstimos para os países pobres e em desenvol-vimento foi para a área de infra-estrutura, como intuito de incentivar o desenvolvimento eco-nômico; para a agricultura, como estímulo àexportação de matérias-primas; bem como pa-ra a área social, visando amenizar as tensõessociais existentes.

Além destas quatro direções distintas, Gon-zales et al (1990) aponta que durante a décadade 1980 o BM direcionou parte de seus em-préstimos para setores específicos, antes de tu-do, objetivando garantir que os países em de-senvolvimento saudassem seus pagamentos dadívida externa.

A contemplação da área social na agenda doBanco Mundial significou uma tentativa de

O Banco Mundiale o combate à pobreza

Ramon de Oliveira

Doutor em Educação, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE86 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

responder aos possíveis conflitos e insatisfa-ções sociais que se explicitaram ou tendiam aacontecer em virtude do modelo social e eco-nômico adotado pelas economias em desenvol-vimento, como pode ser confirmado pela falado seu presidente Robert McNamara em 1972,numa reunião com diretores do Banco:

Quando os privilegiados são poucos, e os

desesperadamente pobres são muitos e quan-

do a diferença entre ambos os grupos se

aprofunda em vez de diminuir, só é questão

de tempo até que seja preciso escolher entre

os custos políticos de uma reforma e os ris-

cos políticos de uma rebelião. Por este mo-

tivo, a aplicação de políticas especificamente

encaminhadas para reduzir a miséria dos

40% mais pobres da população dos países

em desenvolvimento, é aconselhável não so-

mente como questão de princípio, mas tam-

bém de prudência. A justiça social não é sim-

plesmente uma obrigação moral, é também

um imperativo político. (MCNAMARA

apud FONSECA, 1998, p. 41).

Como destacou Leher (1998), esta mudançada postura do Banco Mundial em relação à po-breza é também conseqüência das própriasmodificações que se estabelecem no capitalis-mo global. Se em momentos anteriores (déca-das de 50 e 60) a ideologia do desenvolvimentoprotagonizada por agências internacionais ser-via como resposta ao processo de fragmenta-ção social no interior dos países em desenvol-vimento, com o acirramento da guerra fria e apossibilidade das nações “subdesenvolvidas”aderirem ao modelo comunista, as mesmas es-tratégias de acomodação e de passivização daspopulações destes países mostravam-se inope-rantes. Havia efetivamente a necessidade do es-tabelecimento de novos mecanismos ideológi-cos e de subjugação que garantissem os inte-resses do capital internacional e da economia

americana e servissem como instrumentosjustificadores das desigualdades sociais entre eintranações.

Ao direcionar recursos para investimentosem infra-estrutura ou em capital humano co-mo solução para a elevação das economias emdesenvolvimento a um novo patamar de com-petitividade, o Banco Mundial buscava, de fa-to, garantir segurança a um projeto econômicode cunho universal. Mudam-se as estratégias,reformulam-se as práticas, reconstroem-se osdiscursos, mas a essência do projeto de subor-dinação das economias em desenvolvimentoaos interesses do capital internacional continuainalterada.

A articulação entre segurança e desenvolvi-mento mostrou-se ainda mais ameaçada graçasao desempenho das economias em desenvol-vimento na década de 1980. Ficou claro, notranscorrer da chamada década perdida, que oprojeto de uma sociedade integrada e de con-sumo generalizado nos países do TerceiroMundo não encontrava mais respaldo no de-senvolvimento capitalista. A afirmação de queo desenvolvimento econômico, por si só, res-ponderia satisfatoriamente às distorções eco-nômicas existentes não fazia mais sentido.

A pobreza, mais uma vez, tornava-se teme-rária. Só que daí em diante não foi mais o es-pectro do comunismo a grande justificativa pa-ra a aceitação das recomendações do BancoMundial e do FMI, amplamente reforçadas pe-la política externa do Estados Unidos. A glo-balização da economia, a ideologia da tecno-logização e a competitividade internacional fo-ram as justificativas centrais para os governosdos países em desenvolvimento não só aderiremao receituário neoliberal, mas, ao mesmo tem-po, para o Banco Mundial assumir a educaçãocomo remédio para a amenização da pobrezano interior destas nações.

Passados alguns anos desde que foram ini-ciados os ajustes econômicos impostos pelo

Debates Contemporâneos

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 87

Banco Mundial, a realidade tem mostrado queapenas os países credores conseguiram sair be-neficiados com tais medidas. Estas reformasgarantiram a continuidade do pagamento dasdívidas, que não param de crescer, e provo-caram o aumento da pobreza e da desigualdadesocial nas economias menos desenvolvidas.

O Banco Mundial e a mercantilização da pobreza

Para o Banco Mundial, a redução da pobre-za - objetivo imediato desta instituição - re-quer uma maior articulação entre a iniciativaprivada e o poder público. Sustenta que os ser-viços sociais - educação e saúde, por exemplo -apresentarão um melhor desempenho e contri-buirão para elevar a qualidade de vida das po-pulações mais pobres se houver, por parte dopoder público, uma facilitação à intervenção dainiciativa privada na prestação de serviços que,até agora, são quase monopólios do Estado.

Segundo o documento “The role of gover-nement and the private sector in fighting po-verty” elaborado pelo consultorsenior do Banco Mundial, GeorgePsacharopoulos, após um períodono qual a intervenção estatal foiconsiderada uma panacéia para aresolução dos problemas sociais,os acontecimentos de 1980 e 1990,com o fracasso do planejamentocentral, demonstraram a impossi-bilidade dos governos resolverem,sozinhos, os problemas nas áreas de saúde,educação, nutrição.

A crise do planejamento central e a crise dadívida dos países da América Latina levaram omundo a confiar mais nos mercados e menosnos governos para a redução da pobreza e pro-moção do desenvolvimento econômico e social(PSACHAROPOULOS, 1997).

Para o Banco Mundial, a confirmação da im-potência dos governos demonstra a necessida-

de de atividades complementares da iniciativaprivada, permitindo a obtenção de algum lucrona oferta destes serviços (PSACHAROPOU-LOS, 1997). Esta impotência governamentalnão implica dizer que o Estado deixe de serfundamental no processo de desenvolvimentoeconômico e no combate à pobreza, entre-tanto, torna-se claro que sua atuação deve sercomo agente catalisador e impulsionador desteprocesso:

Embora o Estado tenha um papel fundamen-

tal na prestação de serviços sociais básicos –

como educação, saúde e infra-estrutura –

não é verdade que deva ser o único a prestá-

los, nem mesmo que tenha que prestá-los. As

decisões governamentais a respeito da admi-

nistração, financiamento e regulamentação

desses serviços devem valer-se das vantagens

relativas dos mercados, da sociedade civil e

dos organismos estatais. (BANCO MUN-

DIAL, 1997, p. 30, tradução nossa).

Esta preocupação do BancoMundial, em melhor articular asatividades da iniciativa privada edo setor público no combate àpobreza, decorre, segundo ele, daconstatação de que embora mui-tos países em desenvolvimentotenham conseguido melhorar onível de vida das pessoas nesta úl-tima década, a pobreza permane-

ce existindo e, inclusive, aumentando em algu-mas nações. Mais de um bilhão de pessoas, ouseja, um quinto da população planetária, vivecom menos de um dólar por dia, padrão devida atingido pelos países industrializados doOcidente há dois séculos (PSACHAROPOU-LOS, 1997).

Para que possa existir esta relação de com-plementaridade, é necessária a reestruturaçãodo Estado e da iniciativa privada. Esta reestru-

Debates Contemporâneos

Mais de um bilhão de pessoas, ou seja,

um quinto dapopulação planetária,

vive com menos de um dólar

por dia.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE88 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

turação implica, principalmente, aredução da participação do Estadonestas atividades e, em sentido di-ferente, a ampliação da participa-ção da iniciativa privada. Nestesentido, torna-se necessário queos governos locais implementemmodificações, inclusive na legis-lação, para que a iniciativa privadapossa ampliar suas ações.

Segundo o Banco Mundial, pelomenos três vantagens podem serapontadas quando a iniciativa pri-vada participa mais ativamente davida econômica e social de umanação. Uma primeira vantagem decorreria dapossibilidade da mesma poder mobilizar re-cursos adicionais para investimentos em recur-sos humanos, apoio necessário no momentoem que os países em desenvolvimento apresen-tam seus orçamentos reduzidos em virtude dereformas econômicas implementadas. Decor-rente desta primeira vantagem, a economia rea-lizada pelos governos permitiria investimentosefetivos nos setores mais pobres da população,que não têm condições de adquirir serviços nomercado. E a terceira vantagem decorre damaior eficiência que tem a iniciativa privada naprestação de serviços (PSACHAROPOU-LOS, 1997).

Segundo Chossudovsky (1999), mesmoquando o Banco Mundial estabelece comocondição para o financiamento de novos em-préstimos uma ação concreta dos governos nocombate à pobreza, a forma utilizada por estainstituição como remédio para os males so-ciais, na prática, só exacerba o quadro de em-pobrecimento destas sociedades.

Considerando ser basilar a diminuição daparticipação do Estado, o Banco Mundial re-serva apenas aos setores mais vulneráveis o di-reito de serem assistidos pelo Estado.

De fato, não se pode pensar a intervenção do

Banco Mundial na área socialdesvinculada das suas “recomen-dações” de reestruturação econô-mica. A abertura de mercado aosprodutos estrangeiros; a desregu-lamentação das relações de traba-lho; a privatização das empresasestatais; a necessidade de diminui-ção dos gastos públicos, com aefetiva obrigatoriedade de demis-sões de funcionários públicos e aprivatização dos serviços sociaisbásicos apontam para o aumentoda pobreza nos países em desen-volvimento.

Esta nova ordem econômica caracteriza-senão só pela globalização econômica e cultural,mas define-se, principalmente, para os paísesem desenvolvimento, pela globalização da po-breza.

No Sul, no Leste e no Norte, uma minoria

social privilegiada acumulou riqueza em pre-

juízo da grande maioria da população. Essa

nova ordem financeira internacional é nutri-

da pela pobreza humana e pela destruição do

meio ambiente. Ela gera o apartheid social,

estimula o racismo e os conflitos étnicos, sola-

pa os direitos das mulheres e, freqüentemen-

te, precipita países em confrontos destrutivos

entre nacionalidades. Além disso, as reformas

– visto que são aplicadas simultaneamente

em mais de cem países – levam a uma globa-

lização da pobreza, processo que aniquila a

subsistência humana e destrói a sociedade do

Sul, no Leste e no Norte. (CHOSSUDOVS-

KY, 1999, p. 27, grifo do autor).

A constatação do choque negativo provoca-do pelas reformas do Banco Mundial, aos pou-cos, vai se estabelecendo em virtude do poderdestrutivo que essas reformas provocam. Sepor um lado a abertura dos mercados tem re-

Debates Contemporâneos

Esta nova ordemeconômica

caracteriza-se não sópela globalização

econômica e cultural,mas define-se,

principalmente, paraos países em

desenvolvimento,pela globalização

da pobreza.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 89

percussão direta no desempenho das indústriasdomésticas de pequeno capital, agravando ain-da mais o problema do desemprego, a partici-pação crescente da iniciativa privada na provi-são de serviços sociais - como os de saúde e deeducação - acentuam a má qualidade de vidados setores economicamente desfavorecidos.

O poder de compra interno entrou em co-

lapso, a fome eclodiu, hospitais e escolas fo-

ram fechados, centenas de milhões de crian-

ças viram negado seu direito à educação pri-

mária. Em várias regiões do mundo em de-

senvolvimento, as reformas conduziram ao

ressurgimento de doenças infecciosas, entre

elas a tuberculose, a malária e o cólera. Em-

bora a missão do Banco Mundial consista em

‘combater a pobreza’ e proteger o meio am-

biente, seu patrocínio para projetos hidrelé-

tricos e agroindustriais em grande escala

também tem acelerado o processo de desma-

tamento e de destruição do meio ambiente,

causando a expulsão e o deslocamento força-

do de vários milhões de pessoas. (CHOSSU-

DOVSKY, 1999, p. 26).

Fica patente que o Banco Mundial, com opropósito de assegurar melhores condições pa-ra a reprodução do capital, impondo condiçõescatastróficas aos países devedores, de forma al-guma estabelecerá uma atmosfera política eeconômica favorável para as nações em desen-volvimento alcançarem um desenvolvimentosustentável com maior justiça social.

A conseqüência direta desta subordinaçãoao receituário neoliberal é o sucateamento dopatrimônio construído ao longo da históriadestas nações. Sociedades que, no passado,conseguiram assegurar aos seus cidadãos ummínimo de dignidade social, hoje, vêem-se en-volvidas numa situação de extrema pobreza,onde a fome e o desemprego parecem não terremediação (CHOSSUDOVSKY, 1999).

Este empobrecimento é reconhecido, inclu-sive, pelo próprio Banco Mundial. Sobre a cri-se que se abateu na antiga Iugoslávia avalia:

[...] a queda acentuada dos recursos públicos

[ocasionou] graves surtos de caxumba e

sarampo entre bebês e crianças [na Macedô-

nia]. [...] Uma parte cada vez maior da popu-

lação, principalmente a desprovida de segu-

ro, está sendo recusada nos serviços básicos

de saúde por não ter condições de pagar. Isso

demonstra a gravidade da crise fiscal e não

acontece sem sérias conseqüências políticas e

sociais para uma sociedade que, por muito

tempo, considerou a saúde como um direito

básico do cidadão e se orgulhava do acesso

universal a esses cuidados. (WORD BANK,

Macedonia, 1995 apud CHOSSUDOVSKY,

1999, p. 243).

Conclusão não menos pessimista é apresen-tada para o Vietnã, economia apresentada peloBanco Mundial como expressão de competiti-vidade econômica:

Apesar de seu desempenho expressivo no

passado, o setor de saúde vietnamita está

atualmente definhando [...] há uma severa

falta de medicamentos, produtos e equipa-

mentos médicos, e as clínicas de saúde do go-

verno são extremamente subutilizadas. A

falta de verbas para o setor de saúde é tão

aguda que é difícil prever onde os serviços de

saúde públicos vão encontrar subsídios para

continuarem funcionando no futuro. (WORD

BANK, Vietnam, 1993 apud CHOSSUDOV-

SKY, 1999, p. 165)

Segundo Torres (1995), é importante levarem consideração que o Banco Mundial, comoinstituição financeira, tem suas ações voltadaspara o processo de reprodução do capital.Conseqüentemente, como toda e qualquer ins-

Debates Contemporâneos

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE90 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

tituição bancária, seu objetivo nos momentosde contratação de empréstimos é conseguir al-gum tipo de vantagem que permita a continui-dade de tal processo. Entretanto, a diferençaque existe entre o Banco Mundial e outras ins-tâncias financiadoras é que ele está intima-mente vinculado a outras instituições financei-ras, como o FMI, responsável, juntamente como próprio Banco Mundial, pelo processo decondução das políticas de reestruturação daseconomias em todo o mundo. Desta forma,observamos que o teor político das reformassugeridas pelo Banco Mundial tem como ba-lizamento a regulação imposta pelo capital in-ternacional.

O Banco Mundial mostra o seu lado perverso,principalmente, por pressupor, para a constru-ção de uma economia moderna, a desregulamen-tação de direitos historicamenteconquistados pelo conjunto dostrabalhadores. Esta posição é aindamais nítida quando faz a aborda-gem das privatizações.

Ao analisar o desempenho doprocesso de desestatização imple-mentado em várias nações (BAN-CO MUNDIAL, 1995b), esta ins-tituição recomenda aos governan-tes a implementação de algunsmecanismos que poderão, em de-finitivo, facilitar a privatizaçãodas empresas estatais, dentre osquais, a retirada de todas as for-mas de salário indireto, jogandopara o âmbito do mercado a satisfação das de-mandas na área de saúde, educação, transpor-te etc. Junte-se a isto a demissão de parte dosseus funcionários.

A busca do Banco Mundial em garantir ascondições para a reprodução do capital em es-cala ampliada leva Torres (1995) a afirmar quepodemos entender suas imposições como ex-pressões de um novo colonialismo: ao invés de

criar condições para que as nações contratantesde empréstimos possam utilizar estes recursosde forma a garantir um novo papel no cenáriointernacional, esses empréstimos terminamservindo apenas como instrumentos de manu-tenção destas economias em estágio de subor-dinação.

O modelo único de reforma proposto peloBanco Mundial decorre da sua compreensãode que os caminhos a serem trilhados pelaseconomias em desenvolvimento já são extre-mamente conhecidos, não cabendo muitas dis-cussões sobre a melhor estratégia para o alcan-ce da competitividade internacional e para a di-minuição da pobreza.

Em 1991, o Banco Mundial afirmava existirum certo consenso sobre os caminhos nortea-dores das ações governamentais, pois, no seu

entender, já havia “[...] mais una-nimidade que em qualquer épocarecente sobre o que é necessáriofazer e como fazê-lo. O que falta épor em prática estas idéias em to-das as partes do mundo.” (BAN-CO MUNDIAL, 1991, p. 184, tra-dução nossa).

Ao afirmar que o Estado devefazer menos nos setores onde omercado pode fazer mais, terminapor não considerar os limites daintervenção da iniciativa privada.Ou seja, o Banco Mundial reco-menda que o Estado deve focali-zar como áreas de atuação a edu-

cação, a saúde pública, o planejamento familiare outras mais que não digam respeito aos in-teresses do mercado. Entretanto, estes pró-prios setores são tomados pelo Banco Mundialcomo passíveis de terem um melhor desempe-nho, caso o Estado facilite a maior participaçãoda iniciativa privada no oferecimento destesserviços. Aí se encontra o lado perverso destauniversalização doutrinária, pois a relação de

Debates Contemporâneos

Ao afirmar que o Estado devefazer menos nos

setores onde o mercado pode

fazer mais, o Banco Mundialtermina por não

considerar os limites da

intervenção dainiciativa privada.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 91

complementaridade entre Estado e mercado,proposta pelo Banco Mundial, não tem comohorizonte a ampliação do atendimento das de-mandas dos setores mais carentes, mas sim, aampliação do raio de intervenção da iniciativaprivada.

O Banco não considera que a pobreza existaem função do não-atendimento do Estado aosdireitos do cidadão. Sua idéia de cidadania seconstrói por uma relação mercantil. Ou seja, acidadania se adquire pelas próprias relações demercado, passando o poder de compra a deter-minar diretamente o grau de cidadania a ser al-cançado por cada indivíduo.

Também no setor agrícola fica explícito oquanto o Banco Mundial subordina seus inves-timentos, exclusivamente, aos interesses do ca-pital. Segundo Lichtensztejn e Baer (1987),mesmo com uma maior destinação de recursospara projetos ligados ao setor agrário a partirdos anos 70, isto não implicou que houvesse,por parte do Banco, uma preocupação com agarantia do atendimento das demandas alimen-tares dos setores economicamente desassisti-dos. Pelo contrário, segundo estes autores, oaumento da produtividade, decorrente de umamaior mecanização da agricultura e da utiliza-ção de insumos, foi acompanhado da manuten-ção ou aumento da exclusão destes setores àprodução agrícola.

Ainda sobre as conseqüências negativas daação do Banco Mundial na agricultura - devidoa sua posição em defesa da abertura de mer-cado aos produtos estrangeiros - Soares e Sauer(1998) mostram que, em virtude do governobrasileiro ter promovido, a partir de 1988, umamaior abertura para importação de algodão,210 mil trabalhadores agrícolas foram afasta-dos deste cultivo e 100 mil postos de trabalhodeixaram de existir. Tudo isto em menos deuma década.

Estes dados são mais angustiantes quandoobservamos que a busca da competitividade no

setor agrícola, alcançada apenas pelos grandesfazendeiros e pelas indústrias rurais, provocoua supressão de cerca de 850 mil postos de tra-balho no campo, em virtude da política econô-mico-agrária praticada nos governos Itamar-Cardoso.

Por conta destas observações, Lichtensztejne Baer (1987) afirmam que mesmo o BancoMundial tendo inserido na sua plataforma deobjetivos o combate à pobreza, suas ações nãoimplicaram num contra-senso ao modelo con-centrador existente nos países subdesenvolvi-dos. Na prática, seus objetivos não questionamas assimetrias produtivas e de consumo exis-tentes no interior destas nações.

Pode-se afirma que as poucas e mais signi-

ficativas mudanças que a visão estratégica do

Banco sofreu não se devem em absoluto à vi-

são tão apregoada do seu programa de ‘ata-

que à pobreza’. Pode-se ir mais longe asseve-

rar que esse objetivo pode ser diluído sem

que o núcleo central dos lineamentos estraté-

gicos se veja afetado, como já se pode cons-

tatar a propósito da mais recente proposta

quanto à necessidade de ajustes estruturais,

que omite praticamente toda a atenção às ne-

cessidades básicas. (LICHTENSZTEJN;

BAER, 1987, p. 195).

Este conjunto de críticas, que deveria levar oBanco Mundial a repensar a sua forma de im-pulsionar o processo de desenvolvimento capi-talista, provocou apenas medidas destinadas àdiminuição das contradições provocadas pelosajustes econômicos. De forma nitidamenteideológica e presa ao referencial monetarista, oBanco Mundial tem impulsionado um maiorinvestimento na área social, mas sempre vincu-lando-o ao processo de expansão do capital.

Considerações finaisNa década de 90 afloram, com maior inten-

Debates Contemporâneos

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Debates Contemporâneos

92 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

sidade, publicações de entidades governamen-tais, financeiras e agências multilaterais desta-cando a importância do estabelecimento deações mais efetivas por parte dos governos daAmérica Latina no combate à pobreza. Nestaspublicações, instituições multilaterais - BancoMundial, Banco Interamericano de Desenvol-vimento (BID), CEPAL, entre outras -, ressal-tam a importância de tais ações es-tarem articuladas ao desencadea-mento de reformas econômicascom o objetivo de capacitar os Es-tados para melhor intervirem nadiminuição da pobreza na região.

Desta forma, a pobreza, intensi-ficada no transcorrer da década de80, considerada pela CEPAL comoa década perdida, seria reversível àmedida que as economias locaisatingissem novos patamares decompetitividade industrial, e con-seqüentemente, maior participaçãono comércio internacional. A com-petitividade econômica garantirianão só a reativação do processo decrescimento econômico, como traria consigo apossibilidade de melhor distribuição de renda.Em síntese, a pobreza poderia diminuir de in-tensidade desde que fossem tomadas medidasefetivas no campo econômico e no político.

Eqüidade, globalização da economia, com-petitividade, produtividade, desenvolvimentosustentável e muitos outros conceitos estam-pam em documentos governamentais e confi-guram um novo receituário de práticas e de re-formas, cujo objetivo maior é fazer estas eco-nomias despontarem no cenário internacional.

O Banco Mundial advoga a necessidade doEstado focalizar nos setores mais pobres suasações sociais. Para ele, a ausência de uma polí-tica seletiva de atendimento social, por partedo Estado, faz com que setores economica-mente privilegiados usufruam benefícios que

devem ser restritos apenas aos grupos sociaisem processo de marginalização.

De acordo com a seletividade proposta pe-lo Banco Mundial, homens, jovens em idadepara o trabalho, parte considerável das mu-lheres e os idosos em geral ficam totalmenteexcluídos da ação governamental. Estas cons-tatações explicitam que, se não houver por

parte do Estado o fornecimentode serviços sociais básicos paraestes setores, caberá aos mesmosprocurarem no mercado a satisfa-ção das suas demandas.

Um exemplo prático da políticasegregacionista e de forte viés eco-nômico proposto pelo Banco Mun-dial pode ser constatado no con-junto de projetos financiados poresta instituição no Brasil. SegundoFonseca (1998), o Banco Mundial,ao reconhecer a importância daeducação primária como um ele-mento fundamental no combate àpobreza e ao crescimento demo-gráfico, direcionou três, dos qua-

tro projetos aprovados entre 1990 e 1995, paramunicípios com altas taxas de crescimento de-mográfico. Ou seja, ao destinar recursos para amelhoria do ensino primário, o BM selecionoulocalidades que apresentavam índices de cres-cimento populacional superior a 4%.

Como demonstrou o autor, o Banco Mun-dial, ainda que tenha, cada vez mais, referenda-do a importância do investimento nas quatroprimeiras séries do ensino fundamental e de-fendido amplamente maiores investimentos naeducação feminina, articula estas duas questõesao controle demográfico dos países em desen-volvimento, evitando desta forma a criação decondições dificilmente administráveis em vir-tude do aumento da população em estado depobreza e como conseqüência, também, da in-satisfação popular.

De acordo com aseletividade

proposta pelo Banco Mundial,

homens, jovens emidade para o

trabalho, parteconsiderável dasmulheres e os

idosos em geral ficam totalmenteexcluídos da açãogovernamental.

Podemos dizer que, de uma forma geral, ocombate à pobreza advogado pelo Banco Mun-dial está articulado à privatização de boa partedas ações do Estado. Mais do que o questiona-mento e a insatisfação com o quadro social exis-tente, o Banco Mundial questiona o papel doEstado. Minimizar, descentralizar, flexibilizar,privatizar... estas são as palavras mágicas queconduzem as ações de combate à pobreza destainstituição. Entendemos que a grande contra-dição nas ações do Banco Mundial não está noresultado de suas ações, mas no seu discurso.Entretanto, seria difícil que esta instituiçãoconseguisse legitimação perante a opinião pú-blica se, de fato, assumisse o seu papel, junta-mente com o FMI, de grande agente intelectualdo capital. Cabe sim, aos que enxergam o con-traditório ou ideológico em seu discurso, con-tribuir para a sociedade civil estabelecer açõesde vigilância e de contestação ao modelo queesta instituição, juntamente com seus seguido-res latino-americanos, paulatinamente estãoimplementando em nosso continente.

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DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 93UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 95

Considerações preliminares: fetichismo e juventude

Na formulação marxista clássica o processode produção e reprodução das mercado-rias no mundo capitalista compreende

tanto o momento da produção, stricto sensu,como da circulação (processo de troca), estaúltima aparecendo como relação quantitativaentre valores de uso qualitativamente diversos.Logo, o valor de uso está estritamente relacio-nado com a satisfação de necessidades decor-rentes da natureza humana (alimentação, ves-timenta etc.) ou de ilusões. Marx demonstrouna discussão sobre o fetiche da mercadoria quea forma com a qual esta se apresenta no mer-cado lhe empresta um caráter enigmático, re-cobrindo o trabalho humano de sutilezas me-tafísicas. Ao negar, na aparência, o trabalho, amercadoria apresenta-se de modo autônomo,com vida própria, enfim, fetichizada.

Essa dimensão da aparência das mercado-

rias, ao longo do século XX, será reificada pe-los meios de propaganda que emprestaram àmercadoria uma espécie de corpo virtual pormeio da sua divulgação midiática. No centrodas discussões referentes à dimensão fetichiza-da da mercadoria, convencionou-se, entre al-guns autores, considerar que estamos diante deuma “cultura de consumo” que utiliza de mo-do ampliado formas ilusórias de promoção dasmercadorias favorecendo a continuidade do ci-clo reprodutivo do capital. No entanto, nemsempre estes teóricos levam em conta que osegmento da sociedade mais atingido pela in-dústria moderna são os jovens, sobretudo, dascamadas dominantes e médias da sociedade.Logo, considera-se que certos padrões de con-sumo compartilhados por determinados gru-pos sociais hierarquicamente situados nasociedade capitalista poderiam ser aplicadosà toda a juventude. Por isso, a construção dacategoria juventude é fundamental para

A juventude e a ideologiada sociedade de consumo1

Altair Reis de Jesus*Antônio da Silva Câmara**

*Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)**Professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Será que ninguém vê o caos em que vivemos os jovens são tão jovens e fica tudo por isso mesmo

A juventude é rica, a juventude é pobre A juventude sofre e ninguém consegue perceber [...]

Todo adulto tem inveja dos mais jovens...(Renato Russo)2

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE96 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

entender como a cultura de massa (por meiodas mídias) absorve um determinado seg-mento social, estereotipando-o, para a pro-moção do consumo.

As análises científicas em relação aos pro-blemas infanto-juvenis têm seus primeiros es-tudos a partir do século XVIII, quando a temá-tica da juventude passou a ser tratada por vá-rias perspectivas disciplinares (Biologia, Filo-sofia e correntes da Psicologia). Segundo Flit-ner (1968) estes estudiosos nortearam suas in-vestigações para o entendimento do desenvol-vimento do homem, da criança e do jovem. Nafilosofia social de Rousseau (especialmente emEmílio) a temática da juventude é integrada co-mo objeto de estudo necessário para se com-preender as mudanças em curso na sociedadeburguesa da época3.

Já no século XIX os problemas juvenis pas-saram a ser investigados sob a ótica sociológi-ca, particularmente na perspectiva da educa-ção. A partir destes estudos, mais adiante, aPsicologia passou a privilegiar análises empíri-cas e experimentais.

No início do século XX a Psicologia com-parativa (influenciada pelo biologismo evolu-cionista e pelas teorias darwinianas) dominouas pesquisas sobre a juventude. Vários de seusadeptos realizaram pesquisas envolvendo a so-ciabilidade e o comportamento social do uni-verso juvenil.

Sobre isto afirma Flitner:

As formas de sociabilidade e comportamen-

to social generalizado foram tema de especial

interesse sempre que a juventude tenha sido

objeto de pesquisa. Pois a crítica da socieda-

de foi o primeiro tema, o desprendimento

das formas sociais tradicionais, o primeiro

passo, o estabelecimento de configurações

sociais juvenis, o primeiro manifesto da ge-

ração jovem e de sua nova autoconsciência.

(FLITNER, 1968, p. 59).

Foram investigações sobre essa problemá-tica que possibilitaram o surgimento de novoscaminhos para questões que envolveriam o re-lacionamento entre a mentalidade dos jovens ea situação sócio-histórica na qual se inseremesses atores sociais. Neste sentido, estudos so-ciológicos realizados por Karl Mannheim(1968) contribuíram para situar o jovem na so-ciedade moderna, levantando questões sobre osignificado da juventude na sociedade e, emparticular, sobre o fato de que ela é um agenteativo da vida em sociedade. Este autor viu narelação jovem/sociedade o que ele denominoucomo ‘reciprocidade total’ e avançou na com-preensão de que a noção de juventude apre-senta significados não coincidentes nas diver-sas sociedades. No entanto, ao considerar queser jovem no mundo moderno significaria, so-bretudo, ser um homem marginal, logo, umsujeito estranho ao grupo social, Mannheimopta por uma análise parcial entendendo os jo-vens como grupos sociais autônomos, nãocompreendendo a sua inserção nas relações so-ciais de produção e, conseqüentemente, nasclasses sociais.

São significativos os estudos de autores agrupa-dos na Escola de Frankfurt que buscaram enten-der a juventude no século XX e que para isto bus-caram convergências entre a teoria marxista e ofreudismo. Autores como Horkheimer, Adorno,Eric Fromm e Marcuse, em momentos diversos,estudaram a relação entre família, reprodução ca-pitalista, sublimação e instrumentalização da ju-ventude. Ao contrário de Mannheim, estes autoressituavam os jovens na arena da luta de classes e dosinteresses econômicos.

Na Sociologia contemporânea compreende-se a importância dos jovens tanto para a trans-formação da sociedade quanto para assegurar acriação cultural e a transmissão da cultura.

A formação de novos agentes sociais repre-

senta, assim sob o ponto de vista da preser-

Debates Contemporâneos

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 97

vação e transmissão do patrimônio cultural,

uma garantia de continuidade e renovação.

Há, contudo, nesse processo, um ponto crí-

tico, constituído pela passagem da condição

de jovem para a condição de adulto. Na so-

ciedade moderna, como se sabe, essa transi-

ção é especialmente difícil devido à com-

plexidade das formas de organização social, a

variedade das alternativas de vida que se ofe-

recem para o jovem, [...] as incertezas quan-

to ao próprio destino pessoal, etc. (FORAC-

CHI, 1972, p. 22-23).

Um dos aspectos cruciais da condição de serjovem, a transitoriedade, acentuado na citaçãoacima, é apropriada pela cultura de massa que,ideologicamente, eterniza o modo de ser jovem.Por entender a juventude como um rito de pas-sagem para o mundo adulto, a cultura de massaabsorve o que lhe interessa - no caso, a possibi-lidade ilusória de alternativas de vida oferecidaspelo consumo de determinadas mercadorias - ecom isto elabora uma gama hipotética de modosde vida associados ao discurso do consumo en-quanto sinônimo de renovação.

Por outro lado, a dificuldade em se definir oque é juventude e quais os indivíduos que acompõe decorre da própria consciência socialde cada momento histórico analisado. As alte-rações na ordem econômica têm implicado nacrescente redução de postos de trabalho, re-tardando a entrada dos mais “jovens” no mer-cado de trabalho, contribuindo significativa-mente para o alongamento da percepção doque é ser jovem, prolongando o tempo de du-ração da adolescência artificialmente revestidode alguma importância para a sociedade.

Porém, é necessário enfatizar que a partir demudanças ocorridas em época mais recente,entendida por alguns autores como “revoluçãocultural”, desenvolveu-se uma espécie de cul-tura juvenil, indicando uma profunda mudan-ça na relação entre as gerações.

Hobsbawm (1995) admiteque neste período a juventudepassou a ter “consciência” pró-pria, tornando-se um agente so-cial “independente”. Para Ho-bsbawm, a novidade apresen-tada pela nova cultura juveniltinha um caráter triplo. Numprimeiro momento a “juven-tude” era vista como um está-gio final do pleno desenvolvi-mento humano e não estágiopreparatório para a vida adul-ta. O autor enfatiza que estanova cultura juvenil - derivada da primeira -tornou-se dominante nas “economias de mer-cado desenvolvidas”, simplesmente pelo fatode que representava uma massa distinta comum poder de compra, estimulada, também, pe-la espantosa mudança tecnológica que pro-porcionava uma vantagem à juventude quandocomparada a outros grupos etários mais con-servadores. Além disso, as novas gerações deadultos foram igualmente socializadas comofazendo parte da cultura juvenil. O terceiroponto considerado pelo autor é o da influênciadesta nova cultura jovem sobre a sociedade ur-bana. Hobsbawm destaca o espantoso interna-cionalismo da época atual. Neste sentido po-demos entender como o rock e o blue jeanstornaram-se símbolos (ou marcas) da moderna“juventude”.

A nosso ver essa uniformização apontadapelo historiador não coincide com o interna-cionalismo, pois este último ancora-se em umprocesso de consciência político-cultural quenão é decorrente dos estímulos ao consumo,logo, sua constatação só pode ser utilizada paracompreender como operam os mecanismospublicitários na criação de padrões de consu-mo transnacionalizados.

Definida pelo poder da moda na sociedadeconsumista a cultura jovem passou a existir e

Debates Contemporâneos

Um dos aspectoscruciais da condição

de ser jovem, atransitoriedade,

é apropriada pela cultura

de massa que,ideologicamente,

eterniza o modo deser jovem.

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chegou às massas numa perspectiva de âmbitoglobal. Sobre o interesse do mercado no públi-co jovem diz o autor:

Foi a descoberta desse mercado jovem em mea-

dos da década de 1950 que revolucionou o co-

mércio da música popular e, na Europa, o mer-

cado de massa da indústria da moda. O ‘boom

adolescente’ britânico que começou nessa época

baseou-se nas concentrações urbanas de moças

relativamente bem pagas [...], muitas vezes com

mais para gastar do que os rapazes, [...]. O boom

revelou primeiro sua força em áreas em que as

compras das moças se destacavam, como blusas,

saias, cosméticos e discos populares. (HOBS-

BAWM, 1995, p. 321).

Com certo excesso, Hobsbawm consideraque esta cultura jovem configurou-se comomatriz de uma revolução cultural, transfor-mando e criando novos hábitos e costumes.Para ele, a revolução cultural de fins do séculoXX poderia ser entendida como o triunfo doindivíduo sobre a sociedade, ou seja, rompe-ram-se os fios que interligavam os seres huma-nos em determinadas texturas sociais.

Contingente demográfico de jovens: o potencial de consumo

É importante lembrar que existem defini-ções de ordem biológica, psicológica e mesmojurídica quanto à definição de jovem. Algunsórgãos multilaterais, a exemplo da Unesco,vinculada à Organização das Nações Unidas(ONU), utilizam o critério de faixas etárias pa-ra calcular o contingente de jovens no planeta.Segundo a Unesco, os indivíduos situados nasfaixas etárias de 15 a 19 anos e de 20 a 24 anoscomporiam a população de jovens no mundo.No Informe sobre la Juventud Mundial 2005(NACIONES UNIDAS, 2005) elaborado porocasião do décimo aniversário do Programa deAção Mundial para os Jovens, no período

compreendido entre 1995 e 2005 a juventudemundial passou de 1.025.000 milhões para1.153.000 milhões. Atualmente a juventude re-presentaria 18% da população mundial e destetotal 85% vivem em países em desenvolvimen-to. As crianças (indivíduos na faixa etária abai-xo dos 15 anos que se tornarão jovens e ascen-derão à condição de potenciais consumidores)constituem cerca de 30% da população total.Estes dois grupos de indivíduos, conjuntamen-te, representam quase a metade da populaçãomundial. Um fato bastante significativo regis-trado neste relatório é a desaceleração do cres-cimento demográfico: o mundo vivencia umaredução no percentual de jovens e crianças emrelação à população total4.

A situação de pobreza em que vivem os jo-vens de países em desenvolvimento é alarman-te. Calcula-se que, atualmente, em média 209milhões de jovens, 18% do total, vivem commenos de um dólar por dia, e 515 milhões -45% - com menos de dois dólares por dia. Nasregiões mais pobres a maioria dos jovens so-brevive abaixo da linha de pobreza, a exemplodo que ocorre na Ásia Meridional e na ÁfricaSubshariana.

Este relatório, ao indicar o grande percentualde jovens excluídos do mundo dos produtosconsiderados como objetos de desejo, dá tam-bém a dimensão do direcionamento da propa-ganda voltada para os segmentos juvenis comefetivo poder aquisitivo. Em recente matéria daRevista Veja, uma consultora de marketing dosEstados Unidos atribuiu aos jovens americanosum poder de compra de US$ 155 bilhões em20015. As propagandas são dirigidas, preferenci-almente, aos jovens de países desenvolvidos eaos jovens de camadas médias das sociedades pe-riféricas. Não interessa aos veículos promotoresdo consumo saber se todos os jovens podem ounão consumir. Interessa, sobretudo, a difusão dacultura consumista.

Será a própria Unesco6 que realizará tam-

Debates Contemporâneos

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 99

bém um levantamento sobre hábitos da juven-tude e o consumo sustentável comparando re-sultados de 24 países, verificando o quão é sig-nificativo o tema de compras para a juventude.Nessa pesquisa os jovens brasileiros aparecemcomo os que mais valorizam as compras comoatividade de lazer (37%), e os mexicanos osmenos (6%). Curiosamente, os jovens dos Es-tados Unidos não se encontram entre os quedemonstram interesse por fazer compras.

Quando consultados sobre o papel da pro-paganda na divulgação das mercadorias e comoestas influenciam o seu próprio comportamen-to, os jovens acreditam que as empresas de pu-blicidade manipulam informações para a divul-gação de seus produtos. As respostas obtidasrevelam que a maioria dos entrevistados - 55%- considera que sofre influência da propagan-da, mesmo que apenas 5% deles afirmem queesta é bastante forte. Aparentemente tal dadoparece inconsistente quando comparado comas respostas sobre a liberdade de escolher -80% - e de jovens que se consideram informa-dos - 88%. Mas se retomarmos a discussão so-bre a sedução da propaganda que estimula nosindivíduos, inclusive, o sentimento de liberda-de de escolha, as respostas deixam de parecerincoerentes e mostram, ao contrário, a eficiên-cia dos meios de controle utilizados pela pro-paganda.

Por outro lado, os jovens também compre-endem que o seu grupo etário é um dos que maisconsomem na sociedade, ainda que atribuam a simesmos uma elevada consciência no momentodo consumo. (INSTITUTO AKATU, 2005).

Na pesquisa da ONU sobre a distribuiçãoda população jovem no planeta, observa-se apreocupação com o crescimento demográficoda sociedade ameaçada na África e na Ásia Me-ridional pela extrema pobreza deste segmentosócio-demográfico. Por outro lado, a pesquisade opinião sobre hábitos juvenis aponta para aexistência de um grupamento juvenil que tem

acesso ao mercado de consumo moderno e so-fre bastante influência da propaganda. A ju-ventude aparece, aqui, como uma construçãosócio-histórica.

Mídia, espaços comerciais e a ideologia do consumo no universo juvenil

Os veículos midiáticos de informação são osgrandes difusores do consumo na sociedade e,como tais, divulgam a cultura de massa, associ-ando o consumo de mercadorias a um tipo es-tético de jovem. Neste sentido, a juventudepassa a ter um significado extremamente estra-tégico e necessário como meio para a interna-lização de padrões de consumo veiculados pe-los meios de comunicação. No processo deconvencimento visando o consumo a imagemdo jovem aparece como o modelo ideal paraser imitado por todos os indivíduos na socie-dade. Este modelo estereotipado de jovem éutilizado pelos veículos da cultura de massaque escamoteiam as diferenças de classe, etniaou raça. Objetiva-se, com isso, difundir a ideo-logia consumista encobrindo as contradiçõesexistentes na sociedade. Vianna (1992) relacio-na as representações midiáticas aos signos dejuventude, buscando dar conta desta complexarelação:

Juventude é um complexo de representações

na mídia, cujo signos e símbolos são mani-

pulados no domínio do consumo e intro-

jetado por cada pessoa, que lhes dá um sen-

tido específico. A pessoa será sempre jovem

enquanto estiver existencialmente em forma-

ção, atenta à dinâmica do mercado e aberta

para inovações e transformações que se dão

no mundo. Juventude está associada a um

padrão de beleza e isso envolve um aumento

progressivo de cuidados com o corpo [...] e

causar impressão de vitalidade perene. [...] Ju-

ventude, então, significa uma ‘idade mídia’, is-

to é: uma categoria trans-etária, incorporada a

Debates Contemporâneos

1002- DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

cultura de massa como mito da ‘juventude

eterna’. (VIANNA, 1992, p. 2).

A juventude é o modelo que predominacomo padrão nas sociedades de massas7. As-sim, obedecendo aos interesses econômicos eculturais do mercado valoriza-se o perfil jo-vem, por meio da publicidade, associando-o aoconsumo de determinadas mercadorias.

Nas publicidades [...] a juventude é apre-

sentada ao consumidor potencial como parte

da felicidade que se deve ser conquistada a

partir do consumo de certas mercadorias

[...]. A juventude é veiculada como ‘paradig-

ma existencial’, independente da idade real

do indivíduo. Assim a imagem de juventude

veiculada [...] aparece enquanto um ‘modelo-

estético’ para qualquer indivíduo consumi-

dor. (VIANNA, 1992, p. 16).

Desta forma, para a autora, a juventude éconcebida enquanto “disposição estética”, po-dendo ser cultivada pelos consumidores e susci-tada pela indústria cultural. Ser eternamente jo-vem e consumir são os atributos valorizados edisseminados na sociedade pela cultura de massa.

Dentre as inúmeras maneiras de introduzir odiscurso do consumo no universo juvenil, po-demos observar que a indústria cultural apre-senta o jovem como um ser alegre, dinâmico evibrante nos veículos de comunicação, princi-palmente nos comerciais exibidos na televisão.O tipo de jovem exibido nestes comerciais édescrito por Balogh (1992, p. 74).

A julgar pelos comerciais que vemos diaria-

mente, os nossos jovens são todos muito

saudáveis e esportivos, vestem jeans, cami-

setas e tênis ‘supertransados’, comem e be-

bem muito (principalmente guloseimas, re-

frigerantes e iogurtes), em geral, [...] curtem

som adoidado, são muito sensuais, não de-

vem ter grandes problemas econômicos pos-

to que [...] podem consumir o produto anun-

ciado.

Este tipo de jovem é muito próximo do per-fil construído do jovem dos segmentos mé-dios8. Assim, o discurso do consumo veiculadopelos meios de comunicação ajuda a consolidara valorização do jovem de cor branca, com altopadrão de consumo. “Essa potencialização mi-diática impacta diretamente a experiência devida dos jovens, reforçando determinados pa-drões de ser, regidos em grande parte pelos va-lores do consumo.” (MAREUSE apud VI-VARTA, 2004, p. 45).

Observamos que neste tipo de padrão mi-diático imprime-se um discurso ideológico noimaginário dos jovens, abrindo-se espaço paraa internalização de modelos estereotipados(consumistas), assim como, criando uma ten-são no imaginário daqueles jovens que não seencaixam no modelo definido pela mídia. Nãoé difícil compreender, portanto, porque osveículos midiáticos divulgam os valores ideaisde juventude como paradigmas norteadoresdos comerciais da programação. Tais valoressão forjados a partir das condições de vida dedeterminados grupos sociais com elevado po-der aquisitivo, orientando assim a febre doconsumo. Os valores estandardizados sãoapresentados para todos os jovens como co-muns e acessíveis a todos.

Outra maneira de impor o discurso do con-sumo para a juventude é recorrendo a slogans,cujo objetivo é criar uma identificação imedia-ta dos indivíduos com o produto.

A maioria dos anúncios para jovens, além de

se apropriar fortemente da música - um gran-

de apelo para a garotada - se serve de ‘slo-

gans’. Por serem frases muito sintéticas, de-

finidoras de situações e fáceis de memorizar

os ‘slogans’ são poderosos aliados dos anun-

Debates Contemporâneos

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 101

ciantes e são muito rapidamente absorvidos

pelos jovens. Como este: ‘É o seu prazer, o

seu jeito de ser, tão bom viver: Diet Coke’.

(BALOGH, 1992, p. 75).

Os slogans são recursos bem arquitetados,sendo aplicáveis às situações do dia-a-dia e in-corporados facilmente pelos jovens. No mun-do onde a cultura de massa é definidora decomportamentos e estilos de vida, o culto àsestrelas e ídolos é um viabilizador de hábitosde consumo. Por isso nos meios publicitáriosexibem-se atores, atrizes, cantores e apresen-tadores anunciando produtos destinados à ju-ventude. Os veículos publicitários, partindo daidentificação do público jovem com seus ído-los, associam estes últimos a uma variedade deprodutos, a exemplo de celulares, roupas, re-frigerantes, carros.

E também com os ídolos de barro que esta

época cria, para incentivar o consumo. O indi-

víduo acompanhando seus ídolos, na televisão

e cinema, termina por projetar seus sentimen-

tos ‘neles’. E por isto acaba imitando-os, [...],

em suas ações, gestos e maneiras de vestir (que

é o que mais interessa á indústria!). A juven-

tude, que é a maior força consumidora de uma

nação [...], passa a identificar-se facilmente com

seus ídolos. Principalmente na extravagância.

(GOLDMAN, 1970, p. 28).

Os ídolos são cultuados na tv, no rádio, out-doors. No Brasil a publicidade explora bastan-te a imagem de esportistas (especialmente jo-gadores de futebol) e atores de novelas com ointuito de disseminar o consumo juvenil. Astécnicas de merchandising, igualmente, identi-ficam os famosos com determinados produtos;os ídolos da juventude tornam-se marcas con-fiáveis de CDs, DVDs, sandálias etc.

Buscando alcançar os jovens e fixar hábitos deconsumo, as propagandas são veiculadas em to-

dos os espaços da vida cotidiana. Além disso, re-vitalizam-se, cada vez mais, festas coletivas tra-dicionais (carnaval, páscoa, natal) e criam-se no-vas, úteis à expansão do consumo na sociedade.

O shopping center é o ambiente, por exce-lência, que representa este consumismo juve-nil, pois nele a freqüência dos jovens é bastanteexpressiva, constituindo-se em espaço de so-cialização, de encontro de grupos juvenis.

Os espaços espetaculares, a exemplo dos

complexos comerciais de lazer e dos shop-

pings centers, são a reafirmação dessa viven-

cia contemporânea. Inseridos no universo

que se convencionou denominar pós-moder-

no, tais equipamentos urbanos resultam da

combinação entre arquitetura do lúdico - es-

paços cenográficos construídos com o intui-

to de transmitir ao visitante a ilusão de uma

existência sem as dificuldades do mundo real

[...]. (GOTTSCHALL, 2003, p. 83).

Estes espaços espetaculares constituem umambiente, simbólico e concretamente, absor-vido pelos valores do consumo. Não é por aca-so que são criadas no seu interior áreas dirigi-das para a juventude, tais como praças de ali-mentação, discotecas, cinemas e salas de jogos.A cultura de consumo associa estes espaços auma postura e a um modo de ser jovem.

Na cultura do consumo, a juventude assume

um papel quase que emblemático, poder-se-

ia dizer, uma vez que a essa fase da existência

humana estão relacionados valores como be-

leza, sensualidade, saúde, vitalidade, dinâ-

mica e sucesso. Certamente, o elixir da ju-

ventude eterna nunca foi tão ansiado e con-

clamado quando nos dias atuais. Assim, ao

ser percebido por seus visitantes como um lo-

cal ‘freqüentado por pessoas jovens, bonitas,

modernas e que gostam de movimento’ (cf.

Iguatemi, 1997), [...] termina propiciando iden-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE102 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

tificação ao conjunto dos consumidores. (GOT-

TSCHALL, 2003, p. 87, grifo do autor).

Assim, os shoppings centers como espaçosde entretenimento e consumo possibilitam demodo semelhante ao das mídias a divulgaçãode valores do consumo visando à promoção do“modo de vida jovem”. Os shoppings são di-vulgadores da retórica consumista sobre oimaginário juvenil.

A princípio parece que não ocorrem res-trições de ordem política, cultural ou religiosaà expansão dos hábitos modernos de consumo.Em todos os continentes manipulam-se atémesmo datas religiosas para a promoção doconsumo (inclusive nos países mulçumanos).Por outro lado é legítimo admitir que o forteapelo ao consumo juvenil pode contribuirtambém para o acirramento de contradiçõesentre os jovens pobres e o Estado, como ocor-reu em 2005 nas periferias das grandes cidadesfrancesas.

No caso do Brasil9 o consumo como modo devida calcado na obtenção de bens para a satis-fação pessoal tem uma série de características se-melhantes à de outros países mais desenvolvi-dos. A cultura centrada no consumo como valora ser obtido pelos indivíduos chega a ser um ob-jetivo almejado e perseguido por parcelas sig-nificativas da sociedade brasileira. Os jovens sãobastante influenciados por este discurso ideoló-gico, na medida em que se encontram fortemen-te expostos à sedução da mídia que valoriza atose práticas consumistas.

Não obstante, a sociedade brasileira - comdesigualdades extremas na distribuição da ren-da - mesmo que refletindo estes novos padrõesideológicos da cultura urbana (consumo debens simbólicos e materiais) não pode ser con-cebida como uma sociedade de consumo demassa. A capacidade aquisitiva da maioria dasfamílias brasileiras e em conseqüência dos jo-vens não nos permite tratar a “juventude bra-

sileira” como um grupo homogêneo. SegundoCarmo (2001) a convicção dos estudiosos é ade que os jovens, do mesmo modo que toda asociedade, estão marcados por diferenças declasse, não há uma única juventude, mas simvárias juventudes como, por exemplo, o jovemoperário ou o jovem da periferia. Neste senti-do, o autor busca enfatizar e chamar a atençãopara a criação de um tipo genérico de jovemforjado pelos meios de comunicação que bus-cam padronizar comportamentos relacionadosà moda, ao consumo e a beleza10, negligencian-do e dissimulando as grandes diferenças sociaisque marcam a juventude brasileira, negando aexistência de uma parcela que não tem acessoaos bens de consumo exibidos nos veículos decomunicação de massa.

A guisa de conclusãoA relação da publicidade e de seus veículos de

divulgação com o consumo e a juventude foramanalisados neste artigo. Acentuamos a constru-ção de uma formulação ideológica que acentuavalores de um certo segmento juvenil atribuin-do-o a todos os indivíduos que compõem estegrupo sócio-demográfico. Estes signos distinti-vos são utilizados pela publicidade e veiculadospelos meios de comunicação, que os atribuemtambém a determinadas mercadorias destinadaspreviamente ao consumo dos jovens. Além dis-so, a divulgação de mercadorias que se destinamaos demais segmentos sociais constantementeespelha-se no mito da eterna juventude. A con-dição de extrema pobreza da maioria da popula-ção mundial nos leva a concluir que o discursoconsumista não se dirige, efetivamente, para to-dos os indivíduos jovens do planeta, mas paraaqueles que podem adquirir as mercadorias pro-movidas pela publicidade. No entanto tal comu-nicação que reifica o vigor, a beleza e a perfor-mance jovem alcança, ainda que de forma nega-tiva, também os segmentos juvenis pobres emtodo o mundo.

Debates Contemporâneos

NOTAS

1 Este texto baseia-se no terceiro capítulo da monografiade graduação, de autoria de Altair Reis de Jesus, defen-dida em fevereiro de 2006, no Departamento de Socio-logia da Universidade Federal da Bahia, sob orientaçãodo Prof. Dr. Antônio da Silva Câmara.2 Trecho da música “ALOHA”, Legião Urbana, A Tem-pestade. EMI, 1996.3 Esta temática encontra eco na literatura das últimasdécadas do século XVIII, sobretudo, a partir da obra deGoethe, O sofrimento do jovem Werther. O jovem aíaparece de forma dramática torturado por um caso deamor mal-sucedido. A literatura do século subseqüentetambém enfocará os jovens (especialmente aristocratasou burgueses) às voltas com casos de amor.4 Este fato, aliado ao aumento da expectativa de vida dapopulação adulta, vem sendo utilizado por organismoscomo Banco Mundial e FMI para a elaboração de pro-postas de reforma dos sistemas previdenciários e edu-cacionais no mundo.5 VEJA. Jovens. Disponível em: <http://veja.abril.com.-br/especiais/jovens_2003/p_080.html>.6 Os jovens e o consumo sustentável construindo o fu-turo. Instituto Akatu pelo consumo consciente. 2005.Disponível em: <http://www.rolac.unep.mx/industria/-esp/pdfs/pekisa.pdf>. Esta pesquisa tomou por base in-vestigação da Unesco realizada com 24 países. O Ins-tituto Akatu acrescentou o Brasil e realizou um levanta-mento analisado neste documento.7 As empresas de marketing realizam pesquisas sobre operfil dos consumidores. Em uma dessas enquetes cons-tatou-se que os produtos de beleza constituem um dositens mais procurados nas gôndolas dos supermercados,isto teria levado uma rede de supermercados a remanejara organização de seus produtos para colocar em evidên-cia estas mercadorias (MATOS, 2006).8 Evitamos o termo classe média para evitar confundir anoção de classe com a de estratificação. Os segmentosmédios podem, portanto, referenciar-se nas faixas de ren-dimento dos familiares, logo, não se contrapondo aoconceito de classe.9 Atualmente os jovens e as crianças constituem 40,73% dapopulação brasileira, contra pouco mais de 60%, em 1970.A maioria destes jovens vive nas zonas urbanas, pois ape-nas 18,81% da população brasileira ainda habitam o cam-po, contra 44,06%, em 1970. Este perfil permite entenderporque, cada vez mais, os jovens brasileiros estão ao alcan-ce das grandes empresas publicitárias.10 O termo genérico utiliza-se aqui para identificar aimagem de uma aparente universalidade da juventudetransmitida através dos meios de comunicação de modoque tanto os jovens norte-americanos, europeus, asiáti-cos ou brasileiros possam identificar-se plenamente.

REFERÊNCIAS

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Debates Contemporâneos

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 103

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 105

Odebate que se estabelece sobre as políticascompensatórias em geral, mas com des-taque às cotas aos negros nos vestibulares

das universidades brasileiras, abarca divergen-tes opiniões, pois envolve diferentes formas deencaminhamentos das lutas sociais. Nesse mo-mento em que tudo o que envolve a criação do“politicamente correto” predominando sobrequaisquer outros discursos, e, potencialmente,até mais críticos, tem sido difícil o estabeleci-mento de discussões mais tranqüilas, posto queacusações preconceituosas têm sido impediti-vos para maiores reflexões.

No entanto, acreditamos que os oponentes àpolítica das cotas não devam ser rotulados pre-viamente de racistas ou coisas do gênero; casocontrário, partiremos do pressuposto de quesomente os que sofrem discriminações raciaisestariam aptos para falar da marginalizaçãoexistente em nosso país. Portanto, compactua-mos com a mesma compreensão de que existeuma imensa dívida histórica do capital, mas pa-ra com todos os trabalhadores, e essa dívida

deve ser paga, considerando nossa diversidadeétnica. Daí a necessidade dessa luta se dar nadimensão classista e não somente étnica. E essepressuposto mais amplo não nos impede deentender o processo desde a origem da explo-ração portuguesa nas terras então chamadas deVera e Santa Cruz.

No Brasil colonial, as primeiras práticas quelembram esse tipo de relação ocorriam quandoos da casa grande davam suas sobras aos dasenzala. Numa metáfora simplista, eram as so-bras dos farelos caídos para muitos de umamesa farta preparada para poucos. Com as so-bras, principalmente de alguns tipos de ali-mentos, os escravos, que continuavam nacondição de escravos, no limite, mantinham-serevigorados para procriação e continuação dostrabalhos. A compensação por meio de coisaselementares era mero interesse na manutençãodaquele regime.

Hoje, no estágio do trabalho assalariado, ena profunda concentração de renda, as políti-cas compensatórias estão muito mais próximas

Política de cotas:interesses em disputa na educação

Dileno Dustan Lucas de Souza*Roberto Boaventura da Silva Sá**

* Professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV)**Professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT)

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE106 - DF, Ano XVI, Nº 38, junhode 2006

Debates Contemporâneos

de esmolas oficializadas, com o auxílio fabu-loso da mídia convencional, do que de qual-quer compensação por mínima que seja. Depolíticos, com destaque à figura do presidenteda República, empresários, a artistas, princi-palmente, todos pedem esmolas em nome dostrabalhadores sobrantes do capital. Assim, atéa sua voz vai sendo retirada da cena do cotidia-no. Portanto, compensar é antes de tudo fazer

calar uma parte de um todosocial explorado.

Aqui, vale a reflexão deMarx (1997), em O dezoitobrumário, sobre as derrotasdo proletariado, ela aponta pa-ra uma conclusão comum: aclasse trabalhadora deve criarsuas próprias instituições au-tônomas, pois as alianças coma burguesia e a pequena bur-guesia têm mostrado que osinteresses de classe sempre

prevalecem, criando obstáculos que, por fim,levarão o movimento dos trabalhadores ao fra-casso. Por isso, os movimentos sociais são ti-dos como a expressão da luta de classes, apartir de suas ações críticas e de suas reivin-dicações que levam ao conflito e não à aco-modação que ocorre na base do consenso oudas pequenas concessões. Dessa forma, re-presentam a necessidade de uma ação cole-tiva, na qual está em jogo não só a subversãoda ordem, mas também a disputa pela hege-monia na sociedade.

No Brasil, após o percurso de abertura nosanos de 1980, os movimentos sociais tomaramum caráter diferente, passando a se organizarcom mais intensidade a fim de “dar conta” deuma série de problemas sociais herdados deum longo processo histórico, mas acentuadonos anos de ditadura militar. Naquele momen-to, os movimentos sociais fortaleceram-se esuas crescentes mobilizações incrementaram a

luta pelas Diretas Já, culminando, no crepús-culo daquela década, com a instalação daConstituinte.

Quanto ao “caráter diferente” tomado pelosmovimentos sociais, na esteira de Ribeiro(1999, p. 142), convém recolocar o seguinteconjunto de questões:

A exclusão social, enquanto (sic.) uma realidade

inegável, refletiria a anunciada superação do ve-

lho paradigma dos movimentos sociais ou o re-

fluxo dos movimentos sociais, populares em

decorrência de uma correlação de forças que não

lhe seria favorável? Seria mesmo um refluxo para

acumular novas forças e desenvolver novas cate-

goriais, ou os movimentos sociais estariam ca-

minhando em outra direção que ainda não se

tornaram suficientemente nítidas para os cien-

tistas sociais? Seriam esses os movimentos atores

de mudanças ou pacientes da reação do capital?

Cumpre destacar que as discussões e a sedede participação atraíam as lideranças que háanos estavam comprimidas. Os movimentos so-ciais passaram então a uma nova era, que pode-ríamos chamar de re-organizativa. Dessa forma,nos anos de 1980 assumem uma outra carac-terística de suas lutas, dando ênfase às reivindi-cações por moradia, por construção de creches,de mais escolas, de postos de saúde etc.

Para a consolidação dessa nova perspectivade enfrentamento, que privilegia as questõesmicro, muitos intelectuais, conforme Petras(1994), bateram em retirada da teoria marxista,passando a buscar no Estado formas de com-por uma nova política social. Suas opções teó-ricas, base para qualquer prática política, fo-ram, assim, deslocadas da crítica, aconchegan-do-se no universo da pós-crítica, representadapor um Guattari, um Deleuze, um Melucci,dentre outros.

Por conta disso, a política passa a ser traba-lhada a partir de pressupostos microssociais,

Hoje, as políticascompensatórias

estão muito mais próximas

de esmolasoficializadas, do que de qualquercompensação pormínima que seja.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 107

Debates Contemporâneos

abandonando-se a perspectiva classista, e par-tindo para formulações que colaboraram, e es-tão a colaborar, com as mazelas próprias dassociedades capitalistas; ou seja, os movimentossociais, a partir de então, na sua maioria, abra-çaram o arcabouço teórico pós-moderno comosendo capaz de sustentar e dar respostas àsreivindicações sociais. Logo, entraram na dinâ-mica por pequenos embates, geralmente sus-tentados na dinâmica de grupos sociais (ho-mossexuais, mulheres, negros...). Assim, mui-tos, subordinados às pressões e às perspectivasdo capital, sem nenhum tipo de resistência,passaram a aceitar a mediação das questões so-ciais entre o capital e o trabalho. Dessa com-preensão, esses movimentos sociais começa-ram a ser vistos como cooperadores entre asclasses sociais, dificultando a percepção críticado poderio que as classes dominantes efetiva-mente exercem.

De nossa parte, acreditamos ser necessárioentender que, no enfrentamento com o capital,as questões sociais expressam-se a partir da lu-ta dos movimentos sociais que polarizam asdemandas contra o Estado burguês. É o frutoda acentuação desse conflito que impõe a apa-rição de políticas sociais abrangentes. Logo, épossível referendar que a funcionalidade dapolítica social no âmbito do capitalismo não éuma decorrência natural, e, sim, faz parte daluta de classes. Por isso, “[...] não há dúvidas deque as políticas sociais decorrem fundamen-talmente da capacidade de mobilização da clas-se operária e do conjunto dos trabalhadores aque o Estado, por vezes, responde com ante-cipações estratégicas” (PAULO NETTO,1996, p. 29).

Isso posto, não se trata aqui de desqualificaros movimentos sociais, legítimos em sua formade reivindicação, e nem de agredir sua história.Trata-se, tão-somente, de promover um debateque extrapole noções que parecem ter sidoabandonadas sem uma reflexão mais aprofun-

dada para contribuir com nossa reflexão-ação/ação-reflexão.

Assim, partindo da força dos movimentossociais concordamos com Fernandes (1989)quando afirma que o negro nega duplamente asociedade em que vivemos - na condição sociale de trabalhador. Dessa maneira, a interação deraça e classe existe objetivamente e fornece umcaminho para transformar o mundo, para en-gendrar uma sociedade libertária e igualitáriasem raça e sem classe, sem do-minação de raça e de classe, ecom isso a nossa bandeira de-ve se confrontar com as ban-deiras do capitalismo. Essaunião deve ser a principal ar-ma contra a exploração deuma classe sobre a outra econtra a preservação das desi-gualdades e das iniqüidadesque ela determina, inclusive asraciais. Isso significa que proletários, negrose/ou brancos, os marginalizados explorados,expropriados pelo capital devem se unir paraconstruir uma sociedade sob seu controle.

No que se refere à centralidade de nossasinquietações, cabe aprofundar as indagações:afinal, no processo de exclusão, a dívida da so-ciedade capitalista é apenas com o afro-des-cendente ou com a classe trabalhadora? Que-remos a inclusão de cada parte excluída, a par-tir de suas legítimas peculiaridades, garantindoa tão propalada eqüidade, ou queremos umasociedade que garanta a igualdade para todosos trabalhadores? A quem, de fato, contemplaas tais políticas sociais afirmativas e seus dú-bios conceitos?

A educação como possibilidade de uma saídaNa condição de educadores, acreditamos

que uma das saídas para os problemas sociaispode ser a educação, mas não é possível tratá-la como a mão única, e, por isso, redentora de

A funcionalidade dapolítica social no

âmbito docapitalismo não

é uma decorrêncianatural, e, sim,

faz parte da luta de classes.

108 - DF, Ano XVI, Nº 38, junhode 2006 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

todos os males sociais. Por ora, vale lembrar dadisputa que travamos com o governo para aaprovação do Plano Nacional de Educação(PNE), elaborado pelo conjunto da sociedade ci-vil. Naquele documento, podemos verificar queo registro a respeito dos conceitos de educação ede formação humana é valioso na sua radicaldefesa de se recuperar nossas perdas.

Com a mesma radicalidade, o texto do PNEaponta a desresponsabilização do Estado paracom a educação, fazendo um diagnóstico se-ríssimo das modalidades educacionais e defi-nindo a educação como um instrumento deformação ampla de luta pela cidadania e deemancipação social, ao preparar as pessoas e asociedade para a responsabilidade de construir,coletivamente, um projeto de inserção e dequalidade social. Em seguida, define o homemcomo um ser ativo, crítico, participativo, ple-namente capaz de fazer e refazer sua história.Acreditamos que retomar esse documento sejaimportante para recuperar o caráter da edu-cação que queremos.

Nesse caso, vale lembrar sempre de Marx(1997), chamando a atenção para o fato de quehistoricamente a burguesia tenta inserir a lutados trabalhadores na sua pauta de forma ate-nuada, para que nossas reivindicações sejamdiluídas no interior do capitalismo, e, assim,sejam diluídos todos os conflitos. Afirma, ain-da, que não é possível compor com a burgue-sia, a não ser que se queira estabelecer falsas

relações de ganho.É inegável que a questão

étnica no Brasil merece signi-ficativa discussão, bem como épreciso estabelecer uma políti-ca educacional séria em nossopaís, pois já se vão anos queessas políticas são determina-das por agências multilate-rais que trabalham com a ló-gica da afirmação de políti-

cas que sustentam os interesses do capital, enão do conjunto da sociedade de formaemancipadora; e é nesse espaço que com-preendemos as propostas educacionais cha-madas de “afirmativas”, mas que não têmcomo cerne uma educação que respondaaos interesses dos trabalhadores e afirmemos interesses de classe de forma ampla e noseu conjunto.

É certo, ainda, que precisamos recuperar asperspectivas de garantia, acesso e permanênciade todos, com eficácia, e em todos os níveis emodalidades de ensino. Daí a necessidade im-periosa do combate às propostas e programasque comprometam as qualidades técnica eprofissional da educação, de intervir, organiza-damente, em todos os espaços possíveis, reve-lando as políticas compensatórias do governo,que focalizam níveis de ensino em detrimentode outros, que fragmentam o sistema nacionalde educação, resultando no não-atendimentodo direito social à educação de boa qualidadepara todos. Cabe-nos, por isso tudo, denunciare combater a desresponsabilização crescentedo Estado para com o financiamento da educa-ção pública, sobretudo as de cunho eminente-mente social, além de socializar o conhecimen-to produzido e o combate ao ideário do pensa-mento único. Por fim, lutar contra todas asformas de discriminação referentes a gênero,raça, religião e orientação sexual.

Diante disso, cremos que essas questões le-vantadas dão-nos a noção de que precisamosde escolas e educação que atendam às necessi-dades de todos os trabalhadores, e não partedeles, cindindo-os ainda mais. Por isso, abolir,e não incentivar, a perspectiva de divisão entreraças e consolidar uma compreensão que nosuna como classe deve ser o objetivo dos traba-lhadores, para evitar as falsas inclusões já pro-duzidas tantas vezes ao longo da história. Des-se mesmo raciocínio, destacamos as seguintesconsiderações de Fernandes (1989, p. 11):

Cabe-nos denunciar e combater a

desresponsabilizaçãocrescente do Estado

para com ofinanciamento daeducação pública.

Debates Contemporâneos

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 109

As mentiras desabam. Mas as verdades se

objetivam e se impõem devagar. Elas exigem

que o negro não se separe do todo [...] na so-

ciedade capitalista e como trabalhador assa-

lariado, ele desfruta de uma posição social e

pode associar-se livremente para alterar esse

status quo: [...] Ele pode ser, assim, dupla-

mente revolucionário - como proletário e

como negro. Se não conta com razões im-

perativas para a ordem existente, ele tem

muitos motivos para negá-la, destruí-la e

construir uma ordem nova, na qual raça e

classe deixem de ser uma maldição. Por essa

razão, os de cima estão tão atentos aos movi-

mentos negros [...].

Porém, ao reforçarmos a percepção de so-ciedade, acima de tudo, dividida em classes emdetrimento da visão fragmentada de sociedadepercebida por meio de grupos, isso não nosimpede de considerar as diversas estatísticasque demonstram a marginalização por quepassam os negros, como podem traduzir os se-guintes números: dos mais de 53 milhões depobres brasileiros, 22 milhões são indigentes.65% dos pobres e 70% dos indigentes são ne-gros. Na questão do desemprego, 25% sãomulheres negras; 20,9% são homens. Mulheresbrancas são 19,2% e homens brancos, 13,8%1;porém, se considerarmos o percentual de ne-gros nas universidades, veremos que, de fato,ocupam um percentual baixíssimo.

Além disso, considerando-se a renda e o sa-lário, percebemos que o ganho médio de umnegro é de aproximadamente 2,61 salários mí-nimos, enquanto que o de um branco é deaproximadamente 5,62. Na educação, a discre-pância é mais acentuada; todavia, se conside-rarmos que negros e brancos têm a mesmaescolaridade, ainda assim, o salário dos ne-gros é geralmente menor. Do ponto de vistade vítimas de assassinatos, o número de ne-gros é infinitamente maior que o de brancos.

O mesmo ocorre nos números de encarcera-dos, bem como nos números de mortalidadeinfantil, e assim por diante.

Diante dessas constatações, em nome deuma conscientização, muitos movimentos so-ciais têm feito a opção imediata da defesa fo-calizada na questão que envolve a indiscutívelexclusão do negro. Todavia, assim como paraFernandes (1989), a nós, parece-nos tratar,aqui, de uma falsa consciência, na qual se ocul-ta a realidade, simplificando-se as coisas naadoção da estratégia política do neoliberalis-mo, fragmentárias e insuficientes por excelên-cia, das políticas compensatórias.

No nível semântico, o termo compensatórioremete-nos ao que contém compensação, que,por sua vez, diz do ato ou efeito de compensar;ou seja: estabelecer equilíbrio entre; contraba-lançar, reparar danos, incômodos, ressarcir, in-denizar, recompensar... Mas a perversidade doefeito concreto das políticas compensatóriasnão se resolve com a lógica da semântica, quepressupõe sempre o reequilíbrio de relaçõesnas quais ocorreram situações de erro(s) reco-nhecido(s). No entanto, a semântica, se nãoresolve a questão, por pressupor reparos irres-tritos a quem foi prejudicado - o que definiti-vamente não ocorre na adoção de políticascompensatórias na formatação do Estado pós-moderno -, contribui pelo menos para solidifi-car mais a reflexão. Na perspectiva histórica,podemos dimensionar um pouco melhor a ex-pressão “políticas compensatórias”, claro quenão na equivalência de como ocorrem hoje.

Ao longo do tempo, o Estado tem mostradoque as políticas sociais têm de se subordinaraos interesses econômicos e políticos das elites.O Estado tem sido exatamente a expressão doantagonismo de classes; por isso, não é conci-liatório como pretende aparentar. Com essaaparência, busca evitar quaisquer colisões a fimde derrotar mais adiante os trabalhadores, ca-lando-os antes. Como diria Gramsci (1989), o

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE110 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

Estado apresenta-se como dominador de clas-se, impondo restrições diversas à classe subal-terna por diferentes estratégias.

Acreditamos, por isso, na importância de sedemarcar as contradições entre a sociedadeburguesa e a sociedade que atenda aos anseiosdos trabalhadores, bem como chamar a aten-ção para os perigos de utopias que levam a umafalsificação da realidade que pode gerar falsasesperanças. Para Fernandes (1989), as utopiaspodem ser perigosas e a revolução proletárianão deve entregar-se ao erro de fortalecer o ini-migo encastelado por trás do poder do Estadocapitalista. Assim, a disputa pela hegemoniacoloca-nos a tarefa de compreender que a clas-se que monopoliza o poder deve ser ao mesmotempo dirigente e dominante, se considerar-mos a adesão da classe antagônica. Dessa for-ma, um grupo social é dominante em relação agrupos adversos, que a classe dirigente procuraaniquilar através de políticas e ações variadasde contenção contra-ideológica na sociedade.

Isso posto, cabem-nos algumas considera-ções sobre a democracia representativa. Resga-tamos, para isso, Oliveira (2004, p. 1). Ao tra-tar da questão de como a burguesia refere-se aovoto, diz:

[...] o voto popular é supérfluo,

economicamente irrelevante e

até um estorvo, que as institui-

ções democráticas e republica-

nas são o pão - escasso - do cir-

co - amplo - para manter as

energias cidadãs entretidas en-

quanto os grupos econômicos

decidem conceder às massas,

dando-lhes a ilusão de que con-

trolam os processos vitais, en-

quanto as questões reais são

decididas em instâncias restri-

tas, inacessíveis, e livres de

qualquer controle.

Provavelmente, o exemplo que melhor seencaixa nessa produção de engodo seja a con-cretização dos orçamentos participativos, umaidéia que, a priori, realmente parecia trazer al-go de democratização às gestões públicas. Nu-ma outra ponta da criação de ilusões coletivasencontram-se os inúmeros programas gover-namentais de caráter compensatório. Talvez oque melhor retrata a miséria imposta pelo ca-pital seja o programa governamental intituladoFome Zero, mas sem desconsiderar as inúme-ras bolsas: escola, gás, transporte, alimentaçãoetc. E é no bojo da farsa das políticas compen-satórias que se coloca a discussão das sobreva-gas nas universidades públicas. Para fugiremdo termo compensação, e despistar a lógicatangencial da reivindicação em si, os movimen-tos responsáveis, com destaque a uma parte domovimento negro, encontraram na termino-logia “políticas afirmativas” o mote para levaradiante sua bandeira.

Em todo o caso, acreditamos que a questãocentral é ainda mais profunda. E não discuti-lana sua centralidade, o que tem se tornado co-mum, inclusive nas universidades, que já perde-ram muito da capacidade crítica, pode nos enca-minhar a uma arena, na qual nos digladiaremos

para saboreio das elites. A ausênciada reflexão levar-nos-á ou à adesãosimplista ou à recusa subjetiva deuma causa indiscutivelmente justa,mas de compreensão e soluçãocomplexas. Portanto, mais que di-zer um “sim” ou um “não” o mo-mento é propício à retomada e am-pliação dos espaços da crítica nasuniversidades públicas brasileiras edos movimentos sociais.

Por outro lado, quando falamosda profundidade da questão, po-der-se-ia pensar tratar-se apenas decompreender melhor todo o pro-cesso histórico da invasão portu-

Debates Contemporâneos

Não há nenhum ponto

divergente quanto à

existência daincalculável

dívida social, mas existedivergência em como tratá-la,

compreendê-la.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 111

Debates Contemporâneos

guesa pelas terras das santas e tan-tas cruzes. Todavia, ainda que en-tender a tragédia da dizimação denossos índios, da exclusão do ne-gro, da sujeição de uma parcela deportugueses, portanto, brancos napele, mas excluídos, que para cávieram na condição de degredados,contribua para a reflexão, isso ain-da não é credencial para se pensarter chegado à centralidade do pro-blema, ou seja, da forma de resolução da indis-cutível dívida social existente para com todosos excluídos durante as mais de cinco centenasde anos oficializados. Portanto, entre nós nãohá nenhum ponto divergente quanto à existên-cia da incalculável dívida social, mas existe di-vergência em como tratá-la, compreendê-la.

Em nossa compreensão, o ápice da diver-gência reside justamente na aceitação ou nãodas políticas compensatórias. Porém, para umaatitude ou outra precede uma reflexão teóricade como enxergamos a sociedade atual. E,aqui, parece que começamos a entrar no centrodo problema. Aos que viram a queda do Murode Berlim como episódio facilitador para a di-fusão dos discursos das quebras dos paradig-mas, aceitando, pois, o arcabouço da pós-mo-dernidade no espaço da crítica, fica confortávelcaminhar nas trilhas das políticas compensató-rias; afinal, faz parte do pós-moderno, ou dapós-crítica, se preferirmos a terminologia maisacadêmica, apresentar soluções fragmentadaspara os mais diferentes problemas sociais. Epouca coisa há de mais segmentado de uma lu-ta infinitamente maior que as sobrevagas nasuniversidades públicas.

Mas, dirão os mais imediatistas, ou pragmá-ticos ao extremo, frutos também da pós-mo-dernidade, que enquanto não estão dadas ascondições para mudanças estruturais, devemosatacar com paliativos. Nesse ponto, é pertinen-te lembrar a campanha contra a fome e pela ci-

dadania, encabeçada por Betinho.O resultado concreto de tudoaquilo foi o fim da sopa e o au-mento considerável de miseráveisfamintos. Portanto, esse pensa-mento é tudo o que a elite precisacultivar entre todos os excluídos,principalmente entre seus líderes,alguns, inclusive, atrelados, de umjeito ou outro, a alguma pontinhapermitida de poder mínimo nos

níveis governamental e/ou não-governamen-tal, como as ONGs, por exemplo. Isto é tãoevidente, que a própria mídia burguesa, comdestaque à Rede Globo e à Revista Veja, con-tribui para a disseminação de idéias que este-jam na dimensão redutora das políticas com-pensatórias; e as políticas afirmativas eviden-temente estão nesse espaço de concessão daburguesia para com uma parcela dos excluídos.

Considerações finaisAssim, ao se lutar por sobrevagas/cotas nas

universidades públicas desiste-se de construiruma luta bem maior, porque se deixa perder anoção de classe social. A maioria, que con-tinuará excluída, nunca conseguirá ser sujeitode coisa alguma. Cairá no universo das repre-sentações do pós-moderno. E representaçõesipsis litteris, pois alguns, por via de cotas dissoou daquilo, representarão os índios, outros osnegros e outros mais os brancos pobres, crian-do o fetiche de uma igualdade que conduza àacomodação de classe. Mas a maioria de nossopovo continuará impedida, não somente dessebem comum, que é a educação de qualidade,mas continuará a não ter nenhuma política pú-blica contemplada. Terá de se contentar sem-pre com programas focalizados para que a de-mocracia à brasileira continue no seu já longoprocesso de caricatura.

A democracia só será uma realidade quandohouver igualdade racial, na qual os trabalhado-

Pouca coisa há demais segmentado de

uma lutainfinitamente maiorque as sobrevagasnas universidades

públicas.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE112 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

Debates Contemporâneos

res (negros e brancos) não sofram nenhum tipode discriminação, preconceito, estigmatização,segregação. A “revolução” dentro da ordem éinsuficiente para eliminar as iniqüidades eco-nômicas, educacionais, culturais, políticas etc.,que objetificam os trabalhadores.

Defender as sobrevagas/cotas é, pois, para-doxalmente, defender a manutenção do statusquo, camuflando a real necessidade de enfren-tamento com o establishment. É defender umasociedade de grupos, não de classes sociais.Portanto, é abandonar a visão ampla de socie-dade para ver focalizações, numa tentativa de-sesperada e apressada de ver algum ganho, pormínimo que seja, e ainda que restrito a uma“elite” dos excluídos. É perder a noção dotodo para o benefício da parte. É coadunarcom a ideologia dominante. É ser conserva-dor, supondo-se avançado na luta. É enganaro outro na mesma proporção de seu engano.E, agora, chegamos ao miolo do centro.Gostando ou não, o problema não é de gru-pos sociais, como querem nos impor osteóricos da pós-modernidade, a serviço,conscientes ou não, do ideário neoliberal,mas de classe; e, aqui, independentementedas cores de seus sujeitos.

Assim, a questão passa pela retomada, sim,de antigas lições, enterradas por muitos sob osescombros do Muro de Berlim. O muro nãodeve ser reconstruído jamais. Em contraparti-da, as lições não podem ser esquecidas enquan-to as sociedades continuarem estruturadas porclasses cada vez mais antagônicas.

Aceitar, pois, qualquer implantação de po-líticas meramente compensatórias, além decontribuir na perpetuação do status quo, fo-menta ainda uma divisão muitas vezes veladadentro das próprias classes excluídas. É con-tinuar aceitando a divisão de migalhas. Mas pa-ra além dessa questão teórica, e absolutamentecentral no que diz respeito à própria práxis decada um, as sobrevagas/cotas poderão causar

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 113

Debates Contemporâneos

mais problemas no que tange à questão do pre-conceito racial. Os estudantes que ingressarempor esta porta não poderão ser vistos pelos de-mais como seres inferiores? Será que isso nosinteressa?

Dessa forma, as mentiras desabam. Mas asverdades se objetificam e se impõem paulatina-mente. Elas exigem que os negros não se se-parem do todo como fizeram por inclinação enecessidade ao senhor de escravos. Em termosde transformação da sociedade é imprescindí-vel a luta por igualdade e democracia e sejaconsiderado que a luta pela transformação so-cial é fundamental na perspectiva da luta declasse, separá-la é fazer o jogo do capital. É im-portante a luta por um objetivo comum e te-mos que estar juntos organicamente construin-do uma sociedade justa, sem classes sociais.

NOTAS

1 Revista Caros Amigos, 2002.2 Revista Caros Amigos, 2000.

REFERÊNCIAS

CAROS AMIGOS. São Paulo: Casa Amarela, n.66, p. 20-22, set. 2002.CAROS AMIGOS. São Paulo: Casa Amarela, n.35, p. 24-29, fev. 2000. FERNANDES, F. O significado do protesto negro.São Paulo: Cortez, 1989.MARX, K. O 18 brumário e cartas a Kugelmann.São Paulo: Paz e Terra, 1997.PAULO NETTO, J. Capitalismo monopolista eserviço social. São Paulo: Cortez, 1996.PETRAS, J. et al. Os intelectuais em retirada. In:COGGIOLA, O. (Org.). Marxismo hoje. São Pau-lo: Xamã, 1994. p. 21-82.OLIVEIRA, F. Os direitos do antevalor. Petrópo-lis: Vozes, 1998.L NIN, V. I. O Estado e a revolução. São Paulo:Hucitec, 1986.GRAMSCI, A. Maquiavel, a política e o Estadomoderno. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-leira, 1989. RIBEIRO, M. Exclusão: problematização do con-ceito. Revista educação e pesquisa, São Paulo, v. 25,n. 1, p. 35-49, jan./jun. 1999.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 115

As notícias mais recentes deixaram cada vezmais claro o risco implicado pelo aqueci-mento global (ou “efeito estufa”). Simula-

ção realizada em janeiro de 2005 estabeleceuque a Terra poderia se aquecer, no decorrer doséculo XXI, em até 11º C (a máxima elevaçãoprevista anteriormente era de 5º C). A simula-ção previu um acúmulo de dióxido de carbono(CO2) equivalente ao dobro do que havia naatmosfera antes de 1750, ou seja, antes do iní-cio da Revolução Industrial1.

A camada de gelo no Oceano Ártico está di-minuindo por conta dos verões cada vez maislongos. O fenômeno pode piorar o aquecimen-to global. Os raios solares que atingem a Terrasão refletidos por superfícies claras: se nãohouver a cobertura de gelo, a radiação será ab-sorvida pelo planeta, e é inevitável que esse fe-nômeno influencie o clima da Terra. O chama-do “efeito estufa” obedece à presença de gases

na atmosfera, em especial, de dióxido de car-bono, gerado por muitas combustões (entreelas, a dos motores comuns), que faz que umaparte do calor recebido do Sol, dos raios infra-vermelhos que geralmente se irradiariam ao es-paço, seja absorvida por estes gases, elevando atemperatura média do planeta. Isto é necessá-rio para a sobrevivência humana: se não hou-vesse efeito estufa, a temperatura média do pla-neta seria 33º C mais baixa (agora é de +15º e,então, seria de -18º), tornando a vida quase im-possível. O problema consiste em saber o quepode ocorrer se, ao aumentar a concentraçãode CO2, a temperatura subir mais ainda. A cri-se climática se soma à bioquímica e a biológica,cujos efeitos são irreversíveis2.

De acordo com uma corrente de cientistas, aTerra ingressou numa nova era, o antropoceno,caracterizado por mudanças globais no meioambiente como produto da ação humana. De-

Crise ecológica e capitalismoOsvaldo Coggiola

Professor da Universidade de São Paulo (USP), 2º vice-presidente do ANDES-SN (2004-2006)

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE116 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006

Debates Contemporâneos

vido ao seu sucesso como espécie, os seres hu-manos se transformaram em uma “força geo-lógica”: a dimensão humana deveria ser incluí-da nos modelos do sistema terrestre, pois exis-tiriam processos geofísicos potencialmenteinstáveis devidos à ação humana3.

São diversos os problemas referidos à “crisedo meio-ambiente”: a destruição das florestas,das terras, e a conseqüente erosão; as numero-sas poluições (ar, água, solo); o empobrecimen-to dos recursos minerais, vegetais e animais; odesaparecimento acelerado de numerosas espé-cies animais e vegetais. Dois fatores principaissão invocados para explicar a amplitude dessesfenômenos: a tecnologia e a explosão demográ-fica. Com base nessas simplificações, foram e sãoconcebidas soluções como o “crescimento zero”,e até a conveniência (malthusiana) da redução dapopulação humana.

Certamente, desastres naturais têm acom-panhado a atividade humana desde o início dacivilização. Mas os furacões sobre o Atlânticotêm sido mais freqüentes do que no passado,na última década e, ao que tudo indica, é oaquecimento global o causador dos eventosanômalos. Grandes inundações se tornaramtambém mais freqüentes na China, na Alema-nha, na Europa Oriental, e até no Brasil4. Amedida mais importante seria a de reduzir asemissões de gases emitidos pelo consumo(queima) de combustíveis fósseis(carvão, petróleo e gás natural).Os governos encararam o proble-ma através do Protocolo de Kyo-to, que estabeleceu um cronogra-ma, mas o maior emissor mundial- os Estados Unidos - se recusou aassiná-lo, devido à pressão dosprodutores de carvão e das empre-sas de petróleo. O protocolo esta-beleceu que os países industriali-zados teriam de reduzir suas emis-sões de gases responsáveis pelo

efeito estufa em 5,2%, relativamente ao nívelde emissões de 1990, até 2012.

O desastre de Nova Orleans demonstrouque o aquecimento global provoca grandesinstabilidades climáticas, e não é possível pre-ver onde elas vão acontecer. Prevenir-se contraelas exigiria uma organização da ocupação doterritório do mundo muito diferente do queela é hoje. Por ocasião do desastre provocadopelo furacão Katrina, o New York Times co-mentou, em editorial intitulado A vingança danatureza, que

[...] os danos que causa um furacão como

Katrina se denominam habitualmente como

desastre natural, mas também se trata de algo

antinatural, no sentido de auto-infligido.

Nova Orleans não é uma exceção... Não aju-

dou a sistemática destruição, durante anos,

de locais úmidos na costa, devido ao desen-

volvimento urbano, nem a extração sistemá-

tica de gás e petróleo. O delta do Mississipi

afundou 90 centímetros em um século5.

Para Jeremy Rifkin,[...] primeiro foi o rugido de Katrina que

açoitou a costa do golfo dos EUA. Agora, o

pavoroso silêncio, enquanto emergem as ví-

timas. Parece que todo o Washington oficial

contém o fôlego para que não escape o segredo

sujo: que Katrina é o castigo pelo au-

mento das emissões de CO2 e o aqueci-

mento global. Os cientistas nos adver-

tem já faz anos. Disseram que tínhamos

que estar atentos ao Caribe, que seria o

primeiro lugar onde os efeitos da mu-

dança climática se fariam evidentes, me-

diante furacões muito fortes, inclusive

catastróficos... Katrina não foi má sorte.

Nós criamos a tormenta monstruosa.

Faz quase uma geração estamos inteira-

dos do possível impacto do aquecimen-

to global. Mas continuamos acelerando-

O desastre de NovaOrleans demonstrouque o aquecimento

global provocagrandes

instabilidadesclimáticas, e não é

possível prever ondeelas vão acontecer.

DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 117UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

o, como se não nos importasse.

52% do total dos veículos dos

EUA são de alta cilindrada, cada

um significa um motor letal que

lança quantidades enormes de

CO2 na atmosfera terrestre. Co-

mo explicar que os estaduniden-

ses representam menos de 5% da

população mundial, mas devo-

ram mais da quarta parte do

combustível fóssil que se produz

anualmente no mundo?6

No Golfo do México, onde o furacão de-monstrou grande parte de seu poder destruti-vo, se produz 30% do petróleo e 20% de todoo gás natural dos Estados Unidos. Ali se en-contra, ainda, cerca de 10% da capacidade derefinamento de petróleo. Mas a corporaçãoHalliburton, participante de primeira linha nomassacre iraquiano, e presidida até 2000 pelovice-presidente dos EUA, Dick Cheney, já re-cebeu um contrato de 12 bilhões de dólares pa-ra reconstruir alguns portos devastados peloKatrina e espera outros 500 milhões por parteda Armada. A Fundação Heritage e o InstitutoCato atribuem abertamente a lentidão da ajuda, ea instauração de uma ditadura militar em NovaOrleans, ao fato de que 30% da população da ci-dade vive abaixo da linha de pobreza e 84% dospobres serem negros. Essas instituições susten-tam que não teria ocorrido o mesmo se o Katrinahouvesse golpeado um subúrbio rico ou brancode Boston. Um fenômeno natural desnuda a hi-pocrisia capitalista... Estudos recentes revelaramque as condições meteorológicas extremas quetêm atingido a Europa - secas e incêndios nospaíses do sul e chuvas torrenciais nos Alpes e nabacia do rio Danúbio - são resultado da mudan-ça climática “provocada pelo modelo energéticoescolhido pelos seres humanos”, segundo a orga-nização ambiental WWF (Fundo Mundial para aNatureza): os desastres dos últimos anos se en-

caixam nas previsões mais pessi-mistas sobre as conseqüências doaquecimento global. A concentra-ção de dióxido de carbono na at-mosfera cresceu 36% em relaçãoà era pré-industrial. No último sé-culo, a temperatura média do pla-neta aumentou 0,6º C, enquanto ada Europa subiu 0,95º C, o aqueci-mento parece progressivo. Os oi-to anos mais quentes da história

da Europa se concentram no período dos úl-timos 15 anos.

Em relação à devastação de Nova Orleans,os cientistas avisaram: o mundo inteiro podeesperar mais furacões como o Katrina de agoraem diante, por causa da mudança climática. Foirealizado o primeiro levantamento de furacõesem todas as bacias oceânicas do planeta nos úl-timos 35 anos, quando esses fenômenos come-çaram a ser detectados por satélite. A quanti-dade de furacões nas categorias quatro e cincovem mostrando uma tendência ao aumento7.

A emissão crescente de CO2 não é privilégionorte-americano, tendo também a Europa e aChina como grandes responsáveis. Segundo oProtocolo de Kyoto, os países centrais indus-trializados, responsáveis históricos pela polui-ção ambiental, se comprometeram a reduzirum percentual do total de suas emissões de car-bono em 1990. As metas eram diferentes paracada país. A comercialização internacional decréditos de seqüestro ou de redução de gasescausadores de efeito estufa foi a “solução” en-contrada para diminuir o custo global do pro-cesso. Países ou empresas que conseguirem re-duzir o volume de emissão de gases acima dovalor estipulado como suas metas obterão cré-ditos, que podem ser vendidos para outro paísou empresa que não conseguir atingir os resul-tados previstos no Tratado. A modéstia dosobjetivos traçados revela que em Kyoto, namelhor das hipóteses, definiu-se só um palia-

Debates Contemporâneos

A concentração de dióxido decarbono naatmosfera

cresceu 36% em relação à

era pré-industrial.

tivo, contrariando ao reclamo de setores cien-tíficos que estimam necessária uma redução de60% nas emissões de gás carbônico8.

No último meio século a emissão de CO2 foimultiplicada por quatro. Na atualidade são lan-çados anualmente na atmosfera mais de seis mi-lhões de toneladas de carbono. Em 1860, em ple-na revolução industrial, a atmosfera terrestrecontinha 280 ppm (partes por milhão de CO2),agora a concentração é de 360, significa dizer,quase 30% mais, algo como um incremento de0,4% anual. No mesmo período de tempo, atemperatura média mundial subiu meio grau. Oscientistas calculam que ao ritmo atual de acumu-lação de gases na atmosfera, ao final do século XXIa temperatura média do planeta haverá subido en-tre um e 3,5º C. Isto significa que o nível dos ocea-nos se elevaria meio metro. Isso afetaria profunda-mente a exploração dos recursos naturais, alimen-tação e obtenção de água potável para amplas ca-madas da humanidade. Os deltas dos rios se ero-dem com a correspondente perda de terras culti-váveis e os depósitos de água doce se salinizarãoprogressivamente, impossibilitando-se seu uso pa-ra o consumo humano e a agricultura.

Atualmente 1,7 bilhões de pessoas no mun-do (de uma população total de seis bilhões)têm escassez de água. Um estudo da ONU es-tima que dentro de 25 anos, a escassez afetarácinco bilhões (o mundo contará então com oi-to bilhões de seres humanos). Como já ocorrena Ásia Menor e Oriente Próximo,o controle da água se converterácada vez mais em um objetivo paraas guerras entre os países. A mu-dança climática também pode serobservada por meio do incessanteavanço dos desertos: o aumentodas temperaturas fará com que sedesloquem ao norte uns 500 km.Este fenômeno pode ser particular-mente grave na densamente povoa-da bacia mediterrânea.

A mudança climática teria também seuefeito na saúde, com o aumento das doençasinfecciosas, como a malária, a febre amarela, adengue, ou o cólera. Merece uma especial aten-ção o tema da rápida destruição da massa flo-restal em todo o planeta. Em 1997-98 se perde-ram 3,3 milhões de hectares no Brasil; no Mé-xico e América Central, 1,5 milhões; na Rússia,dois milhões. Em todo o mundo 22 milhões dehectares de terras cultiváveis, florestas e bos-ques registraram incêndios que afetaram a saú-de de mais de 130 milhões de pessoas9. Nospaíses industrializados os bosques também fo-ram afetados pela chuva ácida e a contamina-ção. A massa florestal absorve cerca de 25% deCO2 que é jogado na atmosfera. À medida queo corte e a queima incontrolada se estendemdiminui também a capacidade deste importan-tíssimo mecanismo natural de contenção.

Na cúpula do Rio de Janeiro, celebrada em1992, 154 países firmaram a Convenção sobrea Mudança Climática, na qual se aceitava ummais que modesto (e insuficiente) plano: esta-bilizar as concentrações atmosféricas de gasesestufas ao nível de 1990. A cúpula teve comodestaque a oposição dos EUA e das multina-cionais a reconhecer a existência de perigo. Oobjetivo final do acordo não ia acompanhadodas medidas necessárias para alcancá-lo.

Em 1997, a reunião de Kyoto, apesar das de-clarações, foi um fracasso. Nela foram eviden-

ciados os interesses enfrentados eirreconciliáveis da burguesia in-ternacional. Para os EUA e seusaliados num organismo integradopelos países industrializados nãopertencentes à União Européia(Suíça, Canadá, Austrália, Norue-ga e Nova Zelândia) qualquer cor-reção em sua política de emissõesestava condicionada a que os paí-ses coloniais e semi-coloniais fi-zessem o mesmo. EUA, o prin-

Debates Contemporâneos

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Como já ocorre naÁsia Menor e

Oriente Próximo, ocontrole da água seconverterá cada vezmais em um objetivo

para as guerras entre os países.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 119

cipal país contaminador do mun-do declarou que não estava dis-posto a ir mais além de uma meraestabilização.

A AOSSIS (que agrupa peque-nos Estados insulares, que vêemameaçada sua existência pela ele-vação do nível do mar) propôsuma redução de 20%. A UniãoEuropéia, pressionada por suaopinião pública, aceitou uma redução de 15%das emissões para 2010, e qualquer diminuiçãoestaria condicionada a reduções norte-ameri-canas. Graças à “bolha européia”, a diminuiçãodos gases não deveria ser feita país por país, se-não globalmente. Países como Espanha pude-ram continuar aumentando a contaminação,sem deixar de cumprir os acordos. Países co-mo Alemanha que viram reduzir suas emis-sões sem fazer o mais mínimo esforço, graçasao desmantelamento da indústria da antigaAlemanha Oriental, produzido depois daunificação, puderam cumprir os acordos e ce-der uma parte de sua capacidade contamina-dora a outros países da UE. Japão aceitou acontragosto uma redução de 5% criticando ocinismo europeu.

Em 1998, um ano depois de Kyoto, os re-presentantes dos países se reuniram em BuenosAires. Enquanto a cúpula se perdia em inter-mináveis discussões e negociações, a ameaça demudança climática refletia-se nas trágicas con-seqüências do furacão Mitch que arrasava vá-rios países da América Central. A reunião deBuenos Aires foi um novo fracasso. Em outu-bro de 1999, os representantes dos governos sereuniram novamente em Bonn, na V Confe-rência das Partes da Convenção Marco daONU sobre a Mudança Climática. O objetivoera desobstruir as conversações sobre o Pro-tocolo de Kyoto. Comprovou-se que entre1990 e 1997, países como Canadá e EUA ha-viam aumentado suas emissões em 20%.

Como contraste, um dos acor-dos que mais avançou desde a cú-pula de Kyoto foi o da criação deum comércio internacional deemissões. Rússia e os países doLeste europeu, que teriam visto re-duzir suas emissões pelo desfalecerde suas economias, poderiam bar-ganhar com seus índices de conta-minação, com países como os

EUA, interessados em manter os seus. Sãoemissões que nosso sistema climático nuncairia receber e que agora serão introduzidos poruma porta falsa. A ruína industrial da Rússiafez com que suas emissões diminuíssem 30%em relação ao nível de 1990. Isso significa uns500 milhões de toneladas ao ano, que equivale-riam às emissões de 90 grandes centrais térmi-cas ou a metade do que emitem anualmenteAlemanha ou Japão, em torno de 15% dasemissões da UE.

Os grandes capitais descobriram na ecologiaum novo canteiro de negócios que poderia dar-lhes benefícios. Compram-se e vendem-se di-reitos de emissão de CO2 e outros gases deefeito envenenador em pacotes hot air (arquente), para quadrar seu comércio de conta-minação ou para vendê-los logo a outro que osnecessite. A Câmara Internacional de Comér-cio reclamou que o futuro mercado hot air es-teja livre de restrições e obstáculos burocráti-cos. A ecologia começou a cotizar em Bolsa...

Em julho de 2001, nos EUA, os primeirosresultados dos estudos sobre a capacidade deabsorver CO2 dos sumidouros dos EUA fo-ram um duro revés para as pretensões de Bush.O presidente dos EUA usava como argumentofundamental para opor-se ao protocolo deKyoto o fato de que boa parte das emissões deCO2 emitidas pelos EUA eram absorvidos porseus bosques. As estimativas preliminares ci-fravam a capacidade de absorver dióxido decarbono pelos sumidouros dos EUA em 1,3

Debates Contemporâneos

Os grandes capitaisdescobriram na

ecologia um novocanteiro de negóciosque poderia dar-lhes

benefícios.

milhões de toneladas. Bush ofereceu medidas“imaginativas” para combater a mudança cli-mática: os EUA haviam investido milhões dedólares na investigação para descobrir a capa-cidade de absorção de CO2 dos diferentes tiposde bosques, plantações e ecossistemas vegetais.Os primeiros resultados das investigações esti-maram entre 300 e 600 milhões de toneladas a ca-pacidade de absorção, cifras muito inferiores àsestimadas inicialmente.

Se as emissões de gases estufa fossem man-tidas ao nível de 1990, tal como exige o Proto-colo de Kyoto, o aquecimento da Terra conti-nuaria, porém de forma mais lenta. Contudo,mesmo com a máquina de contaminação capi-talista funcionando a todo vapor, as vozes crí-ticas do sistema já não exigem a diminuição dacontaminação, ou sequer sua estabilização, al-guns pedem somente que não se dupliquemnos próximos anos. Mas inclusive aqui, podemser vistas as diferenças entre os países imperia-listas e os países periféricos. Os primeiros emi-tem entre 40 e 50 vezes mais per capita, que ossegundos. Os países mais ricos do planeta, on-de vivem 20% da população, são os responsá-veis diretos por 60% das emissões globais.

Este é apenas um aspecto doproblema, porque uma parte dasemissões dos países mais pobres éconseqüência direta da transferên-cia de tecnologias “sujas”, o que sedá através do envio das indústriasmais contaminadoras a estes paí-ses, onde a legislação é mais “per-missiva”, ou pelo comércio inter-nacional de direitos de contamina-ção. O sistema capitalista, preso asuas próprias contradições, não estádisposto a frear sua voracidade,mesmo que seja à custa de provocarmudanças catastróficas e irreversí-veis no planeta, e de arrastar a hu-manidade à barbárie.

No início dos anos de 1990, negava-se a exis-tência de uma ameaça climática e tratavam os cien-tistas que se atreviam a denunciá-la quase como aterroristas. A Global Climate Coalition, uma or-ganização de associações de comércio, negócios ecompanhias privadas, por trás da qual se oculta-vam interesses das multinacionais petrolíferas,confundiram a opinião pública através dos meiosde comunicação “independentes”, acusando oscientistas que se atreviam a manter uma posiçãoindependente, de manipular os dados, com o fimde afundar a economia.

Nos últimos anos, as multinacionais muda-ram sua tática, diante da evidência de que asmedidas para fazer frente à mudança climáticapodem ser não só necessárias no futuro, mastambém uma nova fonte de negócios. Expres-sava-o perfeitamente o estudo realizado em1999 por uma instituição estadunidense: “Re-duzir as emissões de CO2 ao mesmo tempoque se faz dinheiro”.

A “ecologia” teria que ser rentável para serrealizável. O aumento das emissões de CO2 éconseqüência de uma política energética detransportes orientada a proporcionar os máxi-mos benefícios às empresas elétricas, de petró-

leo, de automóveis e construtoras,que só consideram o meio ambien-te como um objeto decorativo eum obstáculo para o crescimentoeconômico. Algo parecido ao queestá ocorrendo com a questão damudança climática ocorreu com oProtocolo de Montreal (1997) arespeito do buraco na camada deozônio, onde nada pôde ser feitoaté que os impérios químicos nãotivessem preparado os compostosque iriam substituir os clorofluro-carbonos (CFC), apesar de o bu-raco na camada de ozônio na An-tártida já ser tão grande quanto aEuropa. Um dos problemas com

O sistema capitalista,preso a suas próprias

contradições, nãoestá disposto a frear

sua voracidade,mesmo que seja àcusta de provocar

mudançascatastróficas eirreversíveis no

planeta, e de arrastara humanidade à

barbárie.

Debates Contemporâneos

120 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

que se deparam é que os substitutosque não prejudicam a camada deozônio, aumentam a mudança cli-mática e o efeito estufa.

Estão sendo tomadas muitasdecisões econômicas e sociais so-bre projetos no longo prazo, sobreirrigação e energia elétrica, a ajudaem casos de seca, o uso agrícola daterra, os projetos de infra-estru-tura. Todos eles partem do pressu-posto de que os dados climatoló-gicos passados são uma indicaçãoconfiável para o futuro.

Os governos, junto às organizações ecolo-gistas “responsáveis”, através de toda a parafer-nália dos meios de comunicação, acusaram asvozes críticas de estar fora da realidade e dedefender posições utópicas sobre a necessidadede uma mudança radical do modelo energético(o que questiona o sistema capitalista). Os argu-mentos utilizados são de que 85% da energia uti-lizada procede dos combustíveis fósseis, e que umamudança radical seria um desastre que levaria àperda de milhões de postos de trabalho e à dimi-nuição da qualidade de vida de toda a sociedade emgeral; que as fontes de energia alternativas reno-váveis e não contaminadoras seriam demasiado ca-ras etc. Por trás de tais argumentos não se encontraoutra coisa senão os interesses do grande capital(encarnado nos grandes impérios petrolíferos, quí-micos, automobilísticos).

Há somente alguns anos, se defendia que aenergia nuclear era a energia do futuro. Hojeos governos da Europa, Japão e EUA põem emmarcha planos de redução do número de cen-trais nucleares que se encontram em seus paí-ses, com o pretexto de que são perigosas e ca-ras. Argumentos que não os impedem de ven-der esta tecnologia aos países atrasados.

Não existem planos reais de substituição daenergia fóssil por energias alternativas e nãocontaminadoras, simplesmente porque não in-

teressa aos grandes capitais. En-quanto os “realistas” dizem sepreocupar com o preço que deve-ria ser pago com a colocação emmarcha de planos “tão ambicio-sos”, têm demonstrado que nãolhes importa o preço a ser pago pe-la emissão de gases contaminado-res, se ela continuar ao ritmo verti-ginoso atual.

A fome na África provocada pe-las secas, o avanço da desertifica-ção (Sudão, Etiópia, Eritréa, Somá-

lia) e a proliferação de outros desastres natu-rais em todo o mundo (inundações em Mo-çambique, América Central, furacões no Cari-be e Sudeste Asiático...) são sintomas do aque-cimento do planeta, que estão sofrendo em suaprópria carne as camadas mais despossuídas dahumanidade.

A realidade é que os desertos avançam cadaano uma extensão equivalente à metade da su-perfície da França. Não é certo que na atualida-de não existam alternativas aos combustíveisfósseis, o que não existe na realidade é vontadede substituí-los, especialmente quando produ-zem tão suculentas ganâncias. Nem os gover-nos, nem as multinacionais, investem na inves-tigação sobre as energias alternativas, simples-mente porque não lhes interessa. O capitalis-mo em sua fase atual se converte cada vez maisem uma séria ameaça que pode arrastar a hu-manidade à barbárie.

A oposição a essa perspectiva deveria abrangertodos os aspectos da atividade humana, incluída,principalmente, a educação, que deveria quebrara cisão entre educação científico/humanista eeducação técnica (base da divisão entre trabalhomanual e intelectual), assim como entre formaçãointelectual e formação (educação) física. A pers-pectiva do socialismo precisa ser redefinidaconstantemente, à luz das mudanças histórico-naturais e do aprofundamento do parasitismo e

Não existem planosreais de substituição

da energia fóssil por energias

alternativas e nãocontaminadoras,

simplesmente porquenão interessa aosgrandes capitais.

Debates Contemporâneos

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 121

do anacronismo capitalistas. Ou, como disse o cientista Roland Shep-

pard, em Whither Humanity? The environ-mental crisis of capitalism, “[...] se não derru-barmos o capitalismo, não teremos chance desalvar ecologicamente o mundo. Penso ser

possível uma sociedade ecológica sob o socia-lismo. Não a acredito possível sob o capitalis-mo”. Esta é a única perspectiva realista quepermitiria encarar com chances de sucesso acrise da civilização humana.

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122 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

(em milhares de toneladas anuais)

1. Estados Unidos da América 1528796

2. China (continental) 761586

3. Federação Russa 391664

4. Japão 323281

5. Índia 292265

6. Alemanha 214386

7. Reino Unido 154979

8. Canadá 118957

9. Itália (incluindo San Marino) 116859

10. República da Coréia 116543

11. México 115713

12. Arábia Saudita 102168

13. França (incluindo Mônaco) 98917

14. Austrália 94094

15. Ucrânia 93551

16. África do Sul 89323

17. República Islâmica do Irã 84689

18. Brasil 83930

19. Polônia 82245

20. Espanha 77220

21. Indonésia 73572

22. Turquia 60468

23. Taiwan 57991

24. Tailândia 54216

25. República Popular Democrática da Coréia 51544

26. Venezuela 43054

TToottaall 55228822001111

Notas

1 Folha de São Paulo, 27 de janeiro de 2005.2 Josep Fontana. Introdução ao Estudo da HistóriaGeral. Bauru: Edusc, 2000. p. 31-32.3 El hombre aboca a la Tierra a una nueva era. ElPaís, Madri, 8 de setembro de 2004.4 José Goldemberg. Clima, tsunamis e furacões. OEstado de São Paulo, 20 de setembro de 2005.5 The New York Times, 30 de agosto de 2005.6 Jeremy Rifkin: El fin de la era del combustible fó-sil. Clarín, Buenos Aires, 5 de setembro de 2005.Ponto de vista semelhante foi defendido por RossGelbspan: Hurricane Katrina’s real name. Interna-tional Herald Tribune, 31 de agosto de 2005; assimcomo pelo meteorologista italiano Vittorio Canuto:Mari troppo caldi, rischio uragani in Europa. Cor-riere della Sera, Milão, 3 de setembro de 2005. Pou-cos dias antes do desastre nos EUA, outro impor-tante veículo da “comunidade dos negócios” publi-cava o seguinte artigo: Fiona Harvey. Science risesto the challenge of global warming. Financial Ti-mes, Londres, 23 de agosto de 2005.7 Disponível em: <www.sciencemag.org>.8 Cf. Dave Treece. Why the Earth Summit failed. In-ternational Socialism, Londres, n. 56, outono 1992.9 El País, Madri, 25 de julho de 2000.

TABELA DOS MAIORES EMISSORES DE DIÓXIDO DE CARBONO

Debates Contemporâneos

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 123

Mulher e negra:a subjetividade oprimida

Graziela de Oliveira

Doutora em Ciências Sociais, professora aposentada

Asituação da mulher negra na sociedadebrasileira é determinada por um processohistórico, no qual ela sempre foi objeto de

exploração e dominação. A sociedade assimi-lou, no imaginário e no comportamento, que amulher negra é inferior à branca.

A concepção de inferioridade racial da negrajustificou-se, com o passar do tempo, por meiode teorias racistas divulgadas no Brasil no sé-culo XIX, acolhidas por cientistas brasileirosde diversas áreas, das Ciências Sociais à Medi-cina e ao Direito.

Na linguagem popular, e mesmo na cientí-fica, a cor negra da pele do africano tornou-sedesignação de escravo. Assim, o termo negro/ne-gra referia-se a escravo/a. Transmitido o concei-to por diversas gerações, a sociedade assumiuque o lugar do negro na sociedade é, natural-mente, um lugar de subordinação, dominaçãoe inferioridade.

A mulher negra, em particular, foi objeto deexploração econômica, social e sexual. Durantea escravidão, não era mais que objeto usadopara produzir riqueza material, cuidar da re-produção da família de seu proprietário e sa-ciar seu apetite sexual. O abuso sexual da mu-lher negra, mesmo depois de proclamada a Re-

pública e em pleno século XX, sequer era con-siderado como abuso. Era normal, para os ho-mens das classes médias a das elites, fazeremuso da mulher negra para sua iniciação sexual,uma vez que a mulher branca, a “virgem”, pre-cisava ser respeitada.

Comportamento ilustrativo da argumenta-ção acima nos é dado pelo jornalista ArnaldoJabor (2001, p. 8), quando fala a respeito dasaulas de sexo recebidas de seu avô. Segundo ojornalista, seu avô contou-lhe que “[...] a me-lhor mulher que ele teve na vida tinha sido um‘joão’ (sic). Que era ‘joão’? Este termo, aindaescravista, designava as pretinhas que tinham opixaim da cabeça ralo, quase carecas. Eram as‘joão’. Pois ele me disse: ‘Foi no terreno bal-dio, ali na General Belfort’ [...]”.

As negras foram descaradamente utilizadaspelos brancos como objeto sexual, mas osbrancos sequer se davam conta disso, pois mu-lher negra para a classe média branca não erapara ser considerada com respeito, como con-sideravam as mulheres de suas famílias. Elaseram mero objeto, que os homens podiam usaronde e como queriam.

Na condição de integrante da classe traba-lhadora, a mulher negra vende sua força de tra-

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balho em mercados depreciados, como noserviço doméstico, na limpeza e manutençãoda higiene, tanto no setor público quanto noprivado, e nas casas das famílias abastadas, ge-ralmente brancas ou embranquecidas.

Na medida em que a remuneração, neste se-tor de serviço, não cobre o custo de reprodu-ção ampliada da mulher e de sua família, ela sereproduz, como num círculo vicioso, em bai-xas condições de vida: mora mal, come mal,seus filhos não têm acesso a escolas de boaqualidade e, consequentemente, a melhorespostos no mercado de trabalho e a melhorescondições de vida futura.

A discriminação e o preconceito contra amulher negra não se limitam ao mundo dotrabalho. É publicamente sabido que a popu-lação negra sofre discriminação nas escolas, so-bretudo nas escolas particulares, nos clubes so-ciais, na vizinhança e em praticamente todas asinstâncias da vida social.

A dupla opressão sofrida pela maioria das mu-lheres negras - a de gênero e a de raça -, e quecompõe o complexo de causas que impede que elasdesenvolvam ao máximo sua personalidade, ou se-ja, que possam realizar-se não somente como mão-de-obra, mas como mulheres que se desenvolvemcomo pessoas integrais, torna-se coisa do passado,assim que elas se engajam em movimentos políti-cos, que contribuem para uma verdadeira transfor-mação da sociedade.

É incorreto pensar que a mulher negra, quegoza de boa situação econômi-co-financeira, esteja livre dopreconceito ou da discrimina-ção. No próprio ambiente es-colar ou de trabalho, ela émuitas vezes discriminada;serve para o trabalho, mas nãoserve para ser convidada a casade seus colegas. Basta observaro cotidiano ou a literatura, oumesmo as novelas de televisão.

A negra é quase sempre serviçal e raramenteparticipa das reuniões sociais dos brancos quesão, naturalmente, parte das classes média edominante.

A infância da mulher negraÉ na infância que é forjada a base que estru-

tura a personalidade do indivíduo. No caso damulher negra, a sua infância geralmente é deprivação e humilhação.

A maioria da população negra integra as ca-madas mais baixas da classe trabalhadora, quesão forçadas a se reproduzir em condições so-ciais que condicionam a sua permanência emposições subordinadas na sociedade.

Na medida em que o acesso aos bens de re-produção é mediado pela remuneração, renda,salário, enfim, pelo dinheiro, ocupando os ní-veis de renda mais baixos da sociedade, os/asfilhos/as de família negra freqüentam escolasde qualidade deficiente e não possuem em casauma estrutura mínima que permita a dedicaçãoaos estudos. Faltam os recursos materiais bási-cos: espaço físico no lar, móveis, como mesas ecadeiras próprias para o estudo, livros que des-pertem o gosto pelo estudo, para não falar daalimentação, muitas vezes deficiente, e da faltade privacidade, principalmente nos bairros po-bres e favelas, nos quais se aglomeram as cama-das mais carentes da população. É comum,ainda, que crianças pobres e negras tenham quetrabalhar para contribuir com o sustento dafamília.

A escola, que poderia ser um espaço socialde democratização e demolição das diferençassociais e raciais, mesmo quando pública, mui-tas vezes é palco de humilhação e estigmatiza-ção da criança negra. Nos livros didáticos, onegro é apresentado quase sempre como ingê-nuo, pouco inteligente, submisso, objeto dopaternalismo e da boa vontade da populaçãobranca, a qual pertencem seus superiores e ospatrões de seus pais. No relacionamento com

É incorreto pensarque a mulher negra,

que goza de boasituação econômico-

financeira, estejalivre do preconceitoou da discriminação.

Debates Contemporâneos

126 - DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

professores e colegas não-negros, as criançasnegras são diminuídas e preteridas em diversassituações.

É comum, por exemplo, que nas festividadesescolares as crianças negras, quando chamadasa participar, representem os papéis submissosda sociedade. Nas peças de teatro são sempreos serviçais, nunca os patrões ou as pessoas dealto nível de educação, como médicos e enge-nheiros.

As crianças negras, em geral, recebem amensagem de que suas vidas têm menos valordo que as das brancas. A auto-imagem negativaé reforçada, ao longo da vida, por relações so-ciais discriminadoras.

Observando o impacto do meio ambientesobre a personalidade, comenta o psicólogoErnst Wolf:

Se uma pessoa deve se sentir bem, sentir-se

bem consigo mesma, com um sentido seguro

do eu, gozando de boa auto-estima e fun-

cionando harmoniosamente sem ansiedade e

depressão, ela deve experimentar-se conscien-

temente ou inconscientemente, como cerca-

da pela receptividade dos outros. (WOLF

apud MITCHEL; HERRING, 1998, p. 154,

tradução nossa).

É fato sabido e notório que muitas escolasparticulares rejeitam a matrícula de criançasnegras, mesmo quando seus pais têm condi-ções de custear seus estudos. A discriminaçãoracial nas escolas, contra os negros, é antiga noBrasil. Os diretores, não podendo ser explíci-tos na discriminação, sempre arranjam umadesculpa para a rejeição; geralmente acusam afalta de vagas.

Andrews (1998, p. 246) revela que na décadade 50, em pesquisa realizada em São Paulo,mesmo os colégios religiosos discriminavam ascrianças negras. O autor colheu a seguinte ar-gumentação de uma diretora de um colégio ca-

tólico feminino: “Exigimosmais de uma preta que de umabranca, para que a aceitemos.A situação é muito delicada euma garota de cor, para serrespeitada, deve ser superior auma branca nas mesmas con-dições”.

Vimos, então, que as escolasreligiosas que deveriam ensi-nar que somos todos filhos domesmo Pai e que, portanto, acor da pele é irrelevante, discriminavam as cri-anças negras.

Junto com a precária condição material devida, o peso maior que dificulta o desenvolvi-mento da criança negra é a falta de perspectivade uma vida futura melhor do que aquela queseus pais podem lhe proporcionar. Criançasnegras dificilmente ascendem a patamaresmédios e altos da hierarquia social. Elas rara-mente sonham com completar os estudos se-cundários, com ingressar em universidadepública e desenvolver seu potencial de traba-lho intelectual.

Uma história de privação, opressão e humi-lhação, desde a infância até a idade adulta, ca-racteriza a vida da grande maioria da popula-ção negra, em especial a da mulher. Contudo,essa história só a conhece quem a vivencia. Pa-ra a sociedade, ela não é transparente, fica nainvisibilidade e, portanto, não é questionada.

As vicissitudes por que passa a populaçãonegra, como descrito acima, podem, em parte,ser observadas nas estatísticas sociais. Quandose analisam as informações sobre educação emercado de trabalho, por exemplo, fica clara asegregação social sofrida pela mulher negra, in-clusive em relação à mulher branca.

A mulher negra e a educação1

No Brasil, os negros, em geral, foram e sãodiscriminados no acesso tanto à educação

Uma história deprivação, opressão ehumilhação, desde ainfância até a idadeadulta, caracteriza a

vida da grandemaioria da populaçãonegra, em especial a

da mulher.

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quanto ao mercado de trabalho. Já nos anos 40,o movimento negro reivindicava o acesso àeducação secundária e universitária para jo-vens negros (NASCIMENTO, 1981, p. 190).Gusmão (1997) revela que o ideal para as clas-ses dominantes brancas, representadas no Es-tado, era oferecer à população negra “[...] umaconcepção de educação e preparação para otrabalho, necessária para negros, cujo objetivode formação é a mão-de-obra, não mais queisso”.

Dados apresentados pelo Conselho Esta-dual da Condição Feminina (CECF, sd) para1985 demonstram uma diminuta participaçãoda mulher negra nos grupos de maior tempode escolaridade. Assim, enquanto as mulherespretas e pardas perfazem os maiores percentuaisde analfabetas - 48,6% e 47,8%, respectiva-mente -, em relação ao total de pretas e pardas,as mulheres brancas eram 25,6% de analfabetasno total de mulheres.

Entre as mulheres pretas, apenas 9,4% ti-nham de cinco a oito anos de estudo; as pardasapresentavam ligeira vantagem: eram 10,3%. Jáentre as brancas, 16,1% tinham de cinco a oitoanos de estudo. Quando verificamos a situaçãodas que tinham 12 ou mais anos de estudo, ob-servamos que negras e pardas eram a minoria:0,4% e 0,8%, respectivamente. As mulheresbrancas representavam 4,2% do seu total(CECF, sd, p. 8).

De acordo com o Censo Demográfico de1991 (IBGE, 1991), de um total de 30.551.750mulheres pretas e pardas, 10.467.594, ou seja,em média 34%, eram sem instrução ou tinhammenos de um ano de escolaridade. Com oito a10 anos de estudo, que correspondia ao ensinosecundário, havia 2.298.061 mulheres, repre-sentando 7,52% do total de mulheres negras.Quando se analisa os níveis mais altos de esco-larização, caem os percentuais de mulherespretas e pardas. Assim, na classe de 11 a 14anos de estudo, estavam 18.687.736 (6,11%)

mulheres negras; na de 15 anos ou mais de es-tudo, somente 298.351, menos de 1%, ou seja,0,97%.

Os dados do censo estão discriminados emmulheres pretas e pardas. Contudo, ambas sãoafrodescendentes, ou seja, negras. Como, alémda classificação étnica ser subjetiva, o IBGEclassifica outras etnias não-brancas como par-das, nesta categoria possivelmente estão tam-bém indivíduos que não são afrodescendentes,como os índios. Mesmo assim, o percentual demulheres pardas com 15 anos ou mais de estu-do é de somente 0,99% em relação ao total depardas. Já no caso das pretas, de um total de3.288.283, somente 28.008 estavam na faixa de15 ou mais anos de estudo. Ou seja, somente0,85% do total de pretas possuía o curso supe-rior completo ou incompleto2. Das mulherespretas, 5,22 % estavam na faixa de 11 a 14 anosde estudo, o que significa que, em parte, as quetinham 12 ou mais anos de estudos já cursavamo ensino superior.

O alto percentual de mulheres negras seminstrução, reserva-lhes os postos de trabalhode menor qualificação e menor remuneração.Na medida em que é o mercado de trabalho,através da lei da oferta e da procura, que deter-mina a alocação dos indivíduos nos diversospostos de trabalho e a sua remuneração, naaparência, as mulheres negras são as própriasresponsáveis por sua condição social. Assim,segundo a ideologia da meritocracia, a maioriada população negra e as mulheres, em especial,ocupam os postos de trabalho e os lugares nasociedade que correspondem ao valor de trocade sua força de trabalho.

Em pesquisa realizada com 2.779 mulheresna faixa etária de 15 a 49 anos, na cidade de Pe-lotas, no Rio Grande do Sul, Olinto e Olinto(2000, p. 1139) estudaram a variável raça oucor nas condições socioeconômicas das mulhe-res. As autoras puderam constatar que o me-nor grau de escolaridade, de renda familiar e de

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condições de moradia concentravam-se nogrupo de mulheres negras. A análise dos dadospermitiu-lhes verificar que as mulheres bran-cas têm, em média, mais anos de estudo (8,8anos) do que as pardas (6,9 anos) e as negras(6,6 anos), embora todas elas, em idade ativa,apresentem baixo nível de escolaridade, ou se-ja, apenas o ensino fundamental de oito anos.

A vantagem da mulher branca foi tambémpositiva no que se refere à renda familiar: asmulheres brancas percebiam renda familiar 1,5vez maior do que as pardas e 2,5 vezes mais doque as negras.

A mulher negra e o mercado de trabalhoPara manter-se enquanto assalariado, o tra-

balhador precisa vender sua força de trabalhono mercado e submeter-se à exploração. Con-tudo, apesar do mercado ser “livre”, o acesso aele é discriminativo. A discriminação dos traba-lhadores por gênero e raça, por exemplo, facilitaa regulação do preço da força detrabalho em proveito do capital.

Porque ocupa os postos de tra-balho pior remunerados e de me-nor qualificação reconhecida, amulher negra é, além de dominadae explorada pelo capital, discrimi-nada. Fora da relação de trabalho,na esfera da reprodução, ela é tam-bém discriminada, pois sua remu-neração inferior não lhe permitegozar de condições equivalentes àsda mulher branca, sendo ainda dis-criminada por esta em diversas es-

feras da vida social.Dados do Sistema Estadual de Análises de

Dados (Seade) e do Departamento Intersindi-cal de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômi-cos (Dieese) para o ano de 1998 revelam a dife-rença racial no rendimento médio de mulheresnegras e brancas nas regiões metropolitanas deSão Paulo (SP), Salvador (BA) e Porto Alegre(RS). A discriminação racial sobrepõe-se à degênero.

Santos (2002, p. 94), em estudo sobre as re-lações raciais no Brasil, utilizando-se dos da-dos do Seade/Dieese, considerou a renda dohomem não-negro igual a 100. Ele elaborou atabela acima.

Estes dados comprovam a discriminação damulher em relação ao homem. Contudo, nota-se que o homem negro percebe rendimentomenor do que a mulher branca. A mulher ne-gra é, de todos os grupos, a mais discriminada.

Em Salvador, a mulher negra ganha pratica-mente a quarta parte do rendimentomédio do homem branco. Confor-me Santos, é necessário o trabalhode quatro mulheres negras paraeqüivaler ao rendimento de um ho-mem branco. Em relação à mulherbranca, a mulher negra ganha me-nos da metade.

Em São Paulo, a região mais de-senvolvida do país, a mulher negrateve rendimento médio mensal umpouco acima da metade do rendi-mento da mulher branca.

A discriminação racial da popu-

Porque ocupa ospostos de trabalhopior remunerados e

de menorqualificação

reconhecida, amulher negra é,

além de dominada e explorada pelo

capital, discriminada.

RENDIMENTO MÉDIO MENSAL POR RAÇA E SEXO (1998)

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Em %

Sexo Grupo Racial São Paulo Porto Alegre Salvador

Homem Não-negro 100 100 100

Mulher Não-negra 63 70 62

Homem Negro 51 66 47

Mulher Negra 34 47 28

lação negra no mercado de trabalho perenizaas suas precárias condições de vida e garante amanutenção da opressão a que é submetida.Esse processo condiciona a baixa escolarizaçãoda população negra e o baixo nível de rendi-mento do indivíduo e da família. Informaçõessobre anos de estudo e renda média do grupoocupacional “Técnico e Administrativo Urba-no” em 1988 demonstram a permanência dasdesigualdades raciais no sistema escolar e nomercado de trabalho (CUT, 1998, p. 17).

Homens e mulheres brancos possuíam,respectivamente, 9,8 e 11,4 anos de estudo. Arenda média da mulher branca, embora commaior tempo de escolaridade, era de sete salá-rios mínimos, enquanto a do homem era de 9,4salários mínimos. Homens e mulheres negrostinham 8,3 e 10,3 anos de estudo, respectiva-mente. Quanto à renda média, os homens ne-gros percebiam 6,2 e as mulheres negras, 4,4salários mínimos.

O homem negro tanto apresentou menorescolaridade quanto menor nível de renda quea mulher branca. A mulher negra, porém, ocu-pava a posição mais baixa, tanto em relação aoshomens quanto em relação à mulher branca(CUT, 1998, p. 17).

Informações sobre a primeiraocupação no mercado de trabalho(CUT, 1998, p. 16-17), indicamque 39,39% das mulheres negrastiveram sua inserção no trabalhourbano por meio do serviço manu-al. As mulheres brancas, em per-centual de 30,28%, também en-traram no mercado de trabalhopor esta via. Contudo, enquanto6,02% das mulheres brancas entra-ram no mercado para exercer“Atividades Técnicas e Adminis-trativas” e 8,95% como “Profissio-nais Liberais e Ocupadas na AltaAdministração”, as mulheres negras

apresentaram nestas atividades percentuais bemmenores: 3,18% e 3,16%, respectivamente. Co-mo se nota, a participação das mulheres negrasnas atividades que exigem níveis de escolaridadeacima do fundamental e do médio cai bastanteem relação à de mulheres brancas.

Oliveira, Porcaro e Costa (1981, p. 32) afir-mam que as “Ocupações de Nível Médio ePessoal de Escritório” tiveram uma demandacrescente a partir dos anos de 1950. Contudo,a maior parte das posições ofertadas foi preen-chida por pessoas brancas.

Assim, em 1976, enquanto os brancos ocu-pavam 14,6% desses postos, os pardos ficaramcom 7,2% e, para os pretos, restaram 3,6%desses postos.

Na categoria “Nível Superior, Empresários eAdministradores”, 81,4% do total eram brancos,14% eram pardos e apenas 1,7% pretos. Os da-dos não discriminam a variável gênero.

No grupo ocupacional “Técnico e Adminis-trativo Urbano”, que exige escolaridade de ní-vel médio, em 1976 as mulheres brancas ti-nham mais anos de escolaridade do que as ne-gras. Enquanto as brancas tinham 9,5 anos deestudo, as negras tinham somente 6,5. Comoconseqüência, as mulheres brancas percebiam

renda média de 5,6 salários míni-mos, enquanto as negras perce-biam dois salários mínimos. Com6,5 anos de estudo, as mulheresnegras sequer tinham o curso mé-dio concluído. Sendo assim, asmulheres brancas tiveram rendi-mento médio maior e, com certe-za, ocupavam postos de trabalhoque lhes conferiam posição fun-cional de comando sobre as mu-lheres negras.

Determinantes subjetivos, comoo preconceito e a arrogância daselites e de parte da populaçãobranca subalterna, sustentam a

Determinantessubjetivos, como o

preconceito e aarrogância das elites

e de parte dapopulação branca

subalterna,sustentam a

discriminação racialno mercado detrabalho e na

sociedade.

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discriminação racial no mercado de trabalho ena sociedade. A discriminação racial contra amulher negra é um fato concreto e objetivo, re-sultado de determinação subjetiva e objetiva.Ela afeta as condições de vida da mulher negrae traumatiza sua personalidade.

Condições de vida da mulher negraAs condições concretas de vida da popula-

ção negra são determinadas pelas relações so-ciais de produção dominantes e pelos sistemasjurídico, de crenças, pela ideologia e outroselementos da superestrutura, condicionadospela estrutura social e econômica. A discrimi-nação racial exercida por indivíduos e por al-gumas instituições contra o negro resulta dadominação que o branco exerce na sociedade.

De acordo com Leitão (2000, p. 32), a direçãodo IBGE admitiu em seus estudos, que “[...] adiscriminação dos negros está na raiz da socie-dade brasileira, por isto é preciso políticas ativaspara a redução das desigualdades raciais.”

Segundo dados descritos pela autora, a dis-tribuição de renda permaneceu a mesma de1977 a 1998, ou seja, enquanto 1% da popula-ção deteve 20% da riqueza, os 50% mais po-bres participaram com somente 10% na rique-za. Em relação à composição racial da popula-ção, ficou patente que entre os mais pobres amaioria era/é negra, enquanto as elites do po-der econômico eram/são formadas quase total-mente de brancos.

As condições desfavoráveis da mulher negrano sistema educacional e no mercado de traba-lho, como analisadas acima, determinam assuas condições de vida. É nas condições de vi-da da mulher negra que se encontram as possi-bilidades de desenvolvimento de sua persona-lidade e de transformação de sua vida.

Condicionantes sociais da personalidadeDe acordo com Fernandes (1978, p. 70),

consideráveis parcelas da população negra

concebem seus papéis a partir das imagens donegro construídas pelos brancos e, assim, assu-mem papéis humildes e esboçam uma compre-ensão deformada da realidade.

Em seu livro “Sur l’individu”, Veyne (1987, p.11) afirma que a subjetividade é a imagem que oindivíduo faz de si mesmo. O autor argumentaque a subjetivação é específica de cada classe so-cial, e cada classe faz sua subjetivação de acordocom suas possibilidades. As possibilidades sãodadas pelas condições materiais, sociais e psíqui-cas de vida do indivíduo. Desta forma, a subjeti-vação ou a identidade pode ser positiva ou nega-tiva. Ou seja, o indivíduo pode desenvolver a boaauto-estima ou sucumbir na trama das relaçõessociais a que pertence.

Sobre as possibilidades de desenvolvimentoda subjetivação, Mitchel e Herring (1998, p.96-97) sustentam que relações sociais doentiaslevam ao desenvolvimento de auto-imagemnegativa e reforçam auto-imagens negativas.Segundo as autoras, as mensagens recebidas depessoas e da sociedade criam as condições paraa formação ou a negação da auto-estima.

É na infância que se desenvolve a auto-ima-gem, positiva ou negativa. As crianças internali-zam os valores e as formas de tratamento que re-cebem. Crianças mal-tratadas põem em si mes-mas a culpa do abuso: acreditam que são inferio-res às crianças brancas. Elas crescem pensandono pior sobre elas próprias e, como resultado,geralmente têm baixas auto-estima e auto-ima-gem, que carregam para a idade adulta.

Tratamento adequado para que as criançasdesenvolvam auto-estima e identidade positi-vas pode ser observado em qualquer classe so-cial e grupo racial. No caso das crianças negras(brasileiras), por suas famílias pertencerem àscamadas pior situadas na estrutura econômicae por gozarem condições de vida caracteriza-das por privações materiais e carências afetivas(JESUS, p. 1960), as possibilidades de desenvol-vimento de identidades racial e social sadias são

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XVI, Nº 38, junho de 2006 - 131

bastante limitadas.Hasenbalg e Silva (1992, p. 153)

também concordam que o racis-mo é um problema multifacetadoe, por isto, deve ser estudado tam-bém sob o ponto de vista da psi-cologia. Eles afirmam:

[...] o racismo é algo que afeta

todo o ciclo de vida da pessoa

e é algo que se traduz em pro-

blemas psicológicos e emocio-

nais sérios, na medida em que parte da popu-

lação negra e mestiça tem uma auto-imagem

negativa, na medida em que tem internaliza-

da toda uma série de estereótipos negativos.”

No Brasil, a população negra das camadassociais mais espoliadas convive com os este-reótipos que a sociedade lhes forja. Nas cama-das médias, as melhores condições de vida e oacesso à educação formal oferecem, a muitosindivíduos, as possibilidades de contestarem aordem estabelecida negando, por meio de suaação, o desenvolvimento de patologias ligadasà discriminação.

Desta forma, provam que viver numa socie-dade racista, não torna o negro um indivíduopatológico. Mama (1995, p. 111), por exemplo,afirma que, embora o racismo gere uma cons-ciência racializada, isto nem sempre ou neces-sariamente é patológico.

Os estereótipos, criados para inferiorizar oindivíduo da raça negra, e com os quais ele éobrigado a conviver, têm o poder de fazer comque muitos realmente se diminuam diante dapopulação branca. Determinados indivíduos egrupos assumem comportamento submisso emrelação ao resto da sociedade.

Apesar do efeito sufocante do racismo napersonalidade do negro, o racismo não é o úni-co fator na formação da identidade do indiví-duo. A formação da identidade resulta de múl-

tiplos fatores e, segundo o indiví-duo ou a comunidade considerada,a importância dos diversos fatoresé variável.

Seguindo a argumentação deMama (1995, p. 52), consideramosque mesmo em uma sociedade naqual o preconceito e a discrimina-ção contra a mulher negra são for-tes, ela, mesmo assim, não necessa-riamente sucumbe à força dessasbarreiras. O ímpeto pessoal, aliado

à força de movimentos sociais que lutam pelaigualdade de direitos, em especial o movimen-to negro, podem forjar uma transformação navida dos indivíduos e de grupos.

Assim, o fator político-ideológico e a buscapor transformações nas condições de vida daclasse trabalhadora em geral, e da mulher, emparticular, podem exercer o poder de elevar osníveis educacionais da mulher negra, criandocondições para o desenvolvimento pleno deseu potencial intelectual.

O senso comum nos diz que viver numa so-ciedade que não valoriza a negritude traz con-seqüências para a nossa psique e até para o nos-so corpo. O conhecimento científico, por seulado, já demonstrou que pessoas com dores ousofrimento psicológico dificilmente encontramo caminho da realização pessoal (MITCHEL;HERRING, 1998, p. 147).

Estes autores sustentam que os teóricosafro-centrados consideram que o efeito cumu-lativo de viver numa sociedade em que o racis-mo e a discriminação prevalecem, contribuipara estados de depressão nos afro-america-nos. Além disso, afirmam que “[...] viver emum mundo que alardeia o padrão branco debeleza, fala, vestuário e expressão como o úni-co comportamento aceitável e forma desejávelde aparência é extremamente destrutivo para mu-lheres negras.” (MITCHEL; HERRING, 1998,p. 154, tradução nossa).

Apesar do efeitosufocante do racismona personalidade donegro, o racismo não

é o único fator naformação daidentidade do

indivíduo.

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Mesmo diante dessas dificulda-des, a mulher negra, e outros indi-víduos objetos de opressão social,não devem se resignar. A história dopovo negro, no Brasil, igualmente,demonstra que a reação guerreira oucombativa possibilitou o surgimen-to de líderes e intelectuais negrosque não obstante o peso da socieda-de racista lograram destacar sua ca-pacidade. Os advogados Luis Gama(filho da combativa Luisa Mahin, daRevolta dos Malês, na Bahia, em1835) e Antonio Pereira Rebouças,o médico Juliano Moreira e o enge-nheiro Teodoro Sampaio foram negros que empleno século XIX demonstraram a falácia e opropósito ideológico das teorias sobre a inferio-ridade da raça negra.

As condições de vida da população traba-lhadora em geral e da mulher negra, em parti-cular, têm como base histórica um “processode inferiorização” comandado pelas elitesbrancas. Esse processo está no bojo do pro-cesso de dominação social que caracteriza a so-ciedade. É colocando em questão esse mesmoprocesso de exploração econômica e domina-ção político-social, em seus diversos momen-tos e manifestações, que devemos procurar aspossibilidades de reconstrução da subjetivida-de do indivíduo negro, como ser capaz de for-jar sua própria identidade e desenvolver-se emplenitude. Trata-se de um processo de recons-trução da identidade/subjetividade e da pró-pria sociedade, ao mesmo tempo. É um pro-cesso político, entre outros, e que implica emtransformações de postura frente às diversasinstâncias da sociedade e frente à própria indi-vidualidade.

NOTAS

1 A análise das condições materiais e sociais de vida

da mulher negra é dificultada pela fal-ta de estatísticas oficiais sistemáticas,que contemplem as diferenças raciaisnos indicadores sociais. Embora a va-riável gênero tenha sido contempladanos estudos censitários das últimasdécadas, a variável cor ou raça, da for-ma como tem sido tratada, nem sem-pre permite comparações, seja com apopulação não-negra, seja com o pró-prio grupo racial.Um dos critérios usados pelo Institu-to Brasileiro de Geografia e Estatísti-ca (IBGE), por exemplo, é agregar nogrupo pardo qualquer classificaçãoracial diferente de “branco” e de “pre-to”. Assim, caboclo, mestiço, mulato

ou cor não-identificada, entram na classificação de“pardo”. Apesar desta limitação de fontes oficiais, várias pes-quisas acadêmicas e institucionais oferecem infor-mações que, embora possam não abranger todo opaís, oferecem uma visão geral da realidade da po-pulação negra, da mulher em particular.2 A estrutura escolar no Brasil compreende oitoanos de ensino fundamental e três anos de ensinomédio. Após 11 anos de estudos, o/a aluno/a podeingressar no ensino superior. Desta forma, notamosque o percentual de negras no ensino superior é ín-fimo, menos de 1%.

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As condições de vidada população

trabalhadora emgeral e da mulher

negra, em particular,têm como base

histórica um“processo de

inferiorização”comandado pelas

elites brancas.

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