A Crítica Da Modernidade - Reflexões Giddens, Wallerstein e Outros

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Universitas - Relações Int., Brasília, v. 2, n.2, p. 17-23, jul./dez. 2004 17 A CRÍTICA DA MODERNIDADE: BREVES REFLEXÕES DE ANTHONY GIDDENS, IMMANUEL WALLERSTEIN, DAVID HARVEY, MILTON SANTOS E EDGAR MORIN Cláudio Tadeu Cardoso Fernandes 1 Antes de chegarmos a uma abordagem sobre a “crítica da modernidade”, cuja discussão envolve suas conseqüências e contradições, faz-se necessário um esforço de compreensão, a partir de Giddens, do que vem a ser a própria “modernidade”, buscando-se também comparações com as idéias de alguns outros autores que tratam do tema. Utilizamos aqui a expressão “esforço de compreensão” pelo fato de que nem sempre há muita clareza sobre o que é a “modernidade” na literatura corrente, onde ocorrem sensíveis diferenças de percepção entre alguns autores, principalmente quanto a uma situação no espaço e no tempo, havendo mesmo quem argumente que já teríamos chegado a uma “pós-modernidade”. Giddens (1991) nos convida a identificar as descontinuidades que separam as instituições sociais “modernas” das ordens sociais “tradicionais”. Buscando uma primeira aproximação, o autor diz que a modernidade “refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência”. Para ele, isto associa a modernidade a um período de tempo e a uma localização geográfica inicial, “mas por enquanto deixa suas características principais guardadas em segurança numa caixa preta”. Em trabalho mais recente, Giddens (2002) emprega o termo modernidade num sentido mais geral, referindo-se “às instituições e modos de 1 Mestre em Geografia pela Universidade de Brasília – Professor do Curso de Geografia e do Curso de Relações Internacionais do Centro Universitário de Brasília. PDF created with pdfFactory Pro trial version www.pdffactory.com

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  • Universitas - Relaes Int., Braslia, v. 2, n.2, p. 17-23, jul./dez. 2004

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    A CRTICA DA MODERNIDADE: BREVES

    REFLEXES DE ANTHONY GIDDENS, IMMANUEL

    WALLERSTEIN, DAVID HARVEY, MILTON

    SANTOS E EDGAR MORIN Cludio Tadeu Cardoso Fernandes1

    Antes de chegarmos a uma abordagem sobre a crtica da modernidade, cuja discusso envolve suas conseqncias e contradies, faz-se necessrio um esforo de compreenso, a partir de Giddens, do que vem a ser a prpria modernidade, buscando-se tambm comparaes com as idias de alguns outros autores que tratam do tema. Utilizamos aqui a expresso esforo de compreenso pelo fato de que nem sempre h muita clareza sobre o que a modernidade na literatura corrente, onde ocorrem sensveis diferenas de percepo entre alguns autores, principalmente quanto a uma situao no espao e no tempo, havendo mesmo quem argumente que j teramos chegado a uma ps-modernidade.

    Giddens (1991) nos convida a identificar as descontinuidades que separam as instituies sociais modernas das ordens sociais tradicionais. Buscando uma primeira aproximao, o autor diz que a modernidade refere-se a estilo, costume de vida ou organizao social que emergiram na Europa a partir do sculo XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influncia. Para ele, isto associa a modernidade a um perodo de tempo e a uma localizao geogrfica inicial, mas por enquanto deixa suas caractersticas principais guardadas em segurana numa caixa preta. Em trabalho mais recente, Giddens (2002) emprega o termo modernidade num sentido mais geral, referindo-se s instituies e modos de 1 Mestre em Geografia pela Universidade de Braslia Professor do Curso de Geografia e do Curso de Relaes Internacionais do Centro Universitrio de Braslia.

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    comportamento estabelecidos pela primeira vez na Europa depois do feudalismo, mas que no sculo XX se tornaram mundiais em seu impacto, sendo que a modernidade pode ser entendida como aproximadamente equivalente ao mundo industrializado, desde que se reconhea que o industrialismo no a sua nica dimenso institucional. O autor argumenta que o mundo industrializado se refere s relaes sociais implicadas no uso generalizado da fora material e do maquinrio nos processos de produo, havendo uma segunda dimenso institucional que o capitalismo, definido como sistema de produo de mercadorias que envolve tanto mercados competitivos de produtos quanto a mercantilizao da fora de trabalho. Essas duas dimenses distinguem-se das instituies de vigilncia, base da fora organizacional e da vida social moderna. Segundo Giddens, a vigilncia se refere ao controle e superviso de populaes submissas ou uso da informao para coordenar atividades sociais e deve ser separada do controle dos meios de violncia que desencadearam a industrializao da guerra.

    Giddens afirma que a modernidade produz certas formas sociais distintas sendo a de maior importncia o Estado-nao, entidade sociopoltica que desenvolve-se como parte de um sistema mais amplo de Estados-naes que hoje atingiu um carter global, e que contrasta com a maioria dos tipos de ordem tradicional. Assim, o Estado-nao tem formas muito especficas de territorialidade e capacidade de vigilncia, e monopoliza o controle efetivo sobre os meios de violncia.

    Na perspectiva do capitalismo histrico, Wallerstein (2002) resgata que h cerca de meio sculo atrs, moderno tinha duas conotaes muito claras, sendo uma positiva-vanguardista, e outra com caracterstica mais antagnica do que afirmativa. Na conotao positiva-vanguardista, a modernidade era material em sua forma e estava inserida no contexto conceitual do progresso tecnolgico supostamente infindvel e, portanto, da constante inovao. Para o autor, essa modernidade era necessariamente fugaz, pois o que moderno hoje ser ultrapassado amanh. Na conotao antagnica, ser moderno significava ser antimedieval, uma antinomia na qual o

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    conceito de medieval representava acanhamento mental, dogmatismo e, sobretudo, as restries da autoridade. Significava ainda o triunfo da liberdade humana contra as foras do mal e da ignorncia, e uma trajetria de progresso to inevitvel quanto a do avano tecnolgico ou o triunfo da humanidade sobre si mesma, ou sobre os privilegiados. Assumia-se a modernidade como libertao, da democracia real (o governo do povo em contraposio ao da aristocracia) da realizao humana. Assim, esta modernidade da libertao no era fugaz, era eterna. Tendo sido alcanada, jamais se deveria abrir mo dela.

    Harvey (1996) cita Habermas para usar o conceito de projeto de modernidade que teria entrado em foco durante o sculo XVIII, embora o termo moderno tivesse uma histria bem mais antiga. Esse projeto equivalia a um extraordinrio esforo intelectual dos pensadores iluministas para desenvolver a cincia objetiva, a moralidade e a lei universais e a arte autnoma nos termos de suas prprias lgicas internas, ou seja, a idia era usar o acmulo de conhecimento gerado por muitas pessoas trabalhando livre e criativamente em busca da emancipao humana e do enriquecimento da vida diria. Desta forma, o pensamento iluminista abraou a idia de progresso em que o desenvolvimento de foras racionais de organizao social e de modos racionais de pensamento prometia a libertao das irracionalidades do mito, da religio, da superstio, liberao do uso arbitrrio do poder, bem como do lado sombrio de nossa prpria natureza humana.

    A partir deste esforo de compreenso do que a modernidade, passamos sua discusso. Para Giddens (1991), uma caracterstica marcante da modernidade o seu dinamismo, derivado de trs fontes dominantes: a separao entre tempo espao, o desenvolvimento de mecanismos de desencaixe e a apropriao reflexiva do conhecimento.

    A separao entre tempo e espao fomenta relaes entre indivduos, grupos ou instituies ausentes, em que os locais so completamente penetrados e moldados em termos de influncias sociais bem distantes deles. Santos (1997) faz meno a emergncia de um meio tcnico, com o surgimento de um espao mecanizado e

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    artificializado, onde os tempos sociais tendem a se superpor e contrapor aos tempos naturais, como tambm as motivaes de uso dos sistemas tcnicos so crescentemente estranhas s lgicas locais e mesmo nacionais presidida pela razo do comrcio. O autor afirma ainda que a unio da cincia, da tcnica e da informao no perodo atual vem culminando em meio tcnico-cientfico-informacional, sob a gide de um mercado global, onde atores hegemnicos, armados com uma informao adequada, servem-se de todas as redes e se utilizam de todos os territrios transformando os territrios nacionais em um espao nacional da economia internacional.

    Argumentando sobre a crise do fordismo e o surgimento de um novo perodo em que o capitalismo assume a forma de acumulao flexvel, Harvey (1996) afirma que atualmente vem ocorrendo uma mudana abissal nas prticas culturais e poltico-econmicas, mudana esta vinculada a emergncia de novas maneiras pelas quais experimentamos o tempo e o espao. Alm da flexibilidade dos processos e dos mercados de trabalho, dos produtos e padres de consumo, das inovaes comerciais, tecnolgicas e organizacionais, a acumulao flexvel se apia na compresso espao-tempo no mundo capitalista, onde os horizontes temporais da tomada de decises privada e pblica se estreitaram, enquanto a comunicao via satlite e a queda dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difuso imediata dessas decises num espao mais amplo e variado.

    Giddens (1991) afirma que a separao entre tempo e espao a condio principal para o processo de desencaixe das instituies sociais. O autor refere-se a desencaixe como o deslocamento das relaes sociais de contextos locais de interao e sua reestruturao atravs de extenses indefinidas de tempo-espao, fenmeno que serve para abrir mltiplas possibilidades de mudana liberando das restries dos hbitos e das prticas locais. Giddens (1991) distingue dois tipos de mecanismos de desencaixe envolvidos no desenvolvimento das instituies sociais modernas, que compreendem sistemas abstratos: fichas simblicas e sistemas especializados. As fichas simblicas so meios de troca que tm um valor padro de forma intercambivel, cujo principal exemplo o dinheiro. Ainda segundo Giddens (2002), os

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    sistemas especializados dispem de modos de conhecimento tcnico que tm validade independente dos praticantes e dos clientes que fazem uso deles e penetram em todos os aspectos da vida social nas condies de modernidade, isto pode ser exemplificado desde os alimentos que comemos, aos prdios que habitamos ou aos transportes que usamos. Assim os sistemas especializados no se limitam s reas tecnolgicas mas estendem-se s relaes sociais e s intimidades do eu. Estes sistemas especializados dependem essencialmente da confiana, definida por Giddens (1991) como crena na credibilidade de uma pessoa ou sistema, tendo em vista um dado conjunto de resultados ou eventos, em que essa crena expressa uma f na probidade ou amor de um outro, ou na correo de princpios abstratos (conhecimento tcnico). A confiana pressupe conscincia das circunstncias de risco.

    No que tange apropriao reflexiva do conhecimento, Giddens (1991) explica que, com o advento da modernidade, ela foi introduzida na prpria base da reproduo do sistema, de forma que o pensamento e a ao esto constantemente refratados entre si e a rotinizao da vida cotidiana no tem nenhuma conexo intrnseca com o passado. O autor classifica esta perspectiva como perturbadora pois quando as reivindicaes da razo substituram as da tradio, elas pareciam oferecer uma sensao de certeza maior do que a que era propiciada anteriormente, mas estamos em grande parte num mundo que inteiramente constitudo atravs de conhecimento reflexivamente aplicado, mas onde, ao mesmo tempo, no podemos nunca estar seguros de que qualquer elemento dado deste conhecimento no ser revisado. Para Morin (1999), atualmente os caminhos conduzem em direo pesquisa de uma razo aberta, e no mais de uma razo fechada nos princpios da lgica clssica. Assim, o problema atual no o de substituir a certeza pela incerteza, a separao pela inseparabilidade, mas trata-se de saber como vamos fazer para dialogar entre certeza e incerteza, separao e inseparabilidade.

    Voltando a Giddens (1991), o conhecimento reflexivamente aplicado atividade social filtrado por quatro conjuntos de fatores, como o poder diferencial, em que alguns indivduos ou grupos esto

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    mais aptos apropriao de conhecimento especializado do que outros; o papel dos valores em que os valores e o conhecimento emprico se vinculam atravs de influncias mtuas; O impacto das conseqncias no-pretendidas em que o conhecimento sobre a vida social transcende as intenes daqueles que o aplicam para fins transformativos; e a circulao do conhecimento social na hermenutica dupla em que o conhecimento reflexivamente aplicado s condies de reproduo do sistema altera as circunstncias s quais se referia originariamente.

    O contexto da modernidade trouxe a crena no afastamento do lado sombrio da natureza humana, onde, segundo Harvey (1996), as artes e as cincias teriam o papel de promover o controle das foras naturais e a compreenso do mundo do eu, o progresso moral, a justia das instituies e mesmo a felicidade dos seres humanos. Em contraposio, a modernidade do sculo XX trouxe perspectivas jamais imaginadas sobre formas de extermnio da espcie humana, como as guerras mundiais, a ameaa nuclear qumica e bacteriolgica, a constante ecloso de guerras regionais, a destruio e ameaa de ecossistemas, agresses ao meio ambiente. O sculo XXI vem apresentando uma continuidade destas perspectivas sombrias, onde mesmo equipamentos pacficos, como avies comerciais passam a ser utilizados como armas de guerra, ameaando e aniquilando inocentes. O aumento generalizado da violncia gera uma perspectiva de medo e desconfiana, acirrando a crise da modernidade. Citando a tese de Horkheimer e Adorno, Harvey (1996) menciona a suspeita de que o projeto do Iluminismo estava fadado a voltar-se contra si mesmo e transformar a busca da emancipao humana num sistema de opresso universal em nome da libertao humana.

    Mesmo a experincia de transformao, a partir de Marx, do pensamento utpico em cincia materialista, buscando a emancipao humana de forma classista, em que a classe trabalhadora, dominada pela moderna sociedade capitalista seria o agente de libertao, falhou em sua implantao real, cuja lgica baseou-se na represso e no totalitarismo.

    Outra crtica em relao modernidade diz respeito globalizao em suas diversas vertentes, onde, para Santos (2000), h

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    um processo de crises sucessivas que alcanam uma dimenso global e estrutural, cuja tentativa de solues no estruturais, conforme o interesse de atores hegemnicos acaba gerando mais crise. Desta forma, se a nica crise que os responsveis desejam afastar a crise financeira e no qualquer outra, isto causa mais aprofundamento da crise real econmica, social, poltica, moral que caracteriza o nosso tempo.

    Diante da crise de uma modernidade baseada na crena do progresso linear, nas verdades absolutas e no planejamento racional de ordens sociais ideais, encerramos com a indagao de Wallerstein (2002): O que aconteceu com a modernidade, que no mais a nossa salvao e tornou-se o nosso demnio? Referncias Bibliogrficas GIDDENS, Anthony. As Conseqncias da Modernidade. So Paulo: Ed Unesp, 1991, 2a ed. GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. HARVEY, David. Condio Ps-Moderna. So Paulo: Edies Loyola, 1996, 6a ed. MORIN, Edgar. Por Uma Reforma do Pensamento. in PENA- VEGA, Alfredo. NASCIMENTO, Elimar Pinheiro (org). O Pensar Complexo: Edgar Morin e a Crise da Modernidade. Rio de Janeiro: Garamond, 1999. SANTOS, Milton. A Natureza do Espao - Tcnica e Tempo Razo e Emoo. So Paulo: Hucitec, 1997. SANTOS, Milton. Por uma Outra Globalizao: Do Pensamento nico Conscincia Universal. So Paulo: Record, 2000. WALLERSTEIN, Immanuel. Aps o Liberalismo: Em Busca da Reconstruo do Mundo. Petrpolis: Editora Vozes, 200297.

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