A crítica do mundo moderno em Georg Simmel

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1 Simmel e a modernidade A crítica do mundo moderno em Georg Simmel 1 Jessé Souza O fenômeno mais geral e característico da modernidade ocidental, o qual põe a nu toda a sua especificidade ambígua e tensional, é para Simmel, a separação entre as culturas subjetiva e objetiva. É essa cisão que dá conteúdo ao conceito de tragédia da cultura moderna. 2 A tragédia da cultura instaura-se, para Simmel, com a autonomização das objetivações humanas, ou seja, das produções culturais em sentido amplo, as quais, embora produzidas por seres humanos para servi-los, assumem a partir da sua objetivação uma lógica independente da intenção original que as constituiu. O caráter fetichista da produção de mercadorias no capitalismo, descoberto por Marx, seria, para Simmel, um caso particular desse fenômeno geral. O homem, nesse contexto, passa a ser visto como mero suporte de constrangimentos que seguem a sua própria lógica. O conceito de tragédia possui aqui um sentido muito preciso, o qual remonta ao significado da tragédia “grega” clássica. Ao contrário de indicar um destino triste ou desconsolador em sentido genérico, o destino trágico, na significação que nos interessa, aponta para o fato peculiar de (10) que as forças destruidoras mobilizadas contra um ser foram produzidas pelas tendências mais profundas deste mesmo ser. Assim, foi a própria lógica interna do ser humano uma conseqüência da dinâmica da sua própria estrutura, que constituiu um “destino” – posto que percebido pelos contemporâneos como uma fatalidade sem autor destrutivo, repressor, estranho, produtor de infelicidade e mal-estar. Esse diagnóstico da modernidade em si não teria muito a acrescentar ao que já havia sido dito por seu contemporâneo e amigo Max Weber ou por Karl Marx. Tanto Marx quanto Weber haviam apontado, no mundo moderno, o domínio das coisas sobre os homens. Seja no fetichismo do mercado capitalista com suas “ilusões objetivas” e suas leis férreas, para Marx, seja, uma visão ainda mais abrangente de heteronomia, em Max Weber, na denúncia da racionalidade instrumental, invadindo com sua lógica impessoal todas as esferas da vida. O que explica a importância e a atualidade da visão simmeliana da sociedade moderna é uma brilhante análise dos fatores estruturais que constituíram a tragédia da cultura moderna, relacionando-os aos fatos mais cotidianos dos indivíduos que vivem sob a sua égide. É nesse contexto que teremos a oportunidade de examinar a rara combinação entre as perspectivas do 1 In: SOUZA, Jesse & ÖELZE, Berthold (Orgs). Simmel e a modernidade. 2. ed. Editora Universidade de Brasília, Brasília, 2005. p. 9-20. (Os números entre parênteses correspondem à paginação original) 2 Georg Simmel. “Der Begriff und die Tragoedie der Kultur”, Philosophische Kultur: Berlim, Klaus Wagenbach, 1986.

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Simmel e a modernidade

A crítica do mundo moderno em Georg Simmel1

Jessé Souza

O fenômeno mais geral e característico da modernidade ocidental, o qual põe a nu toda a sua

especificidade ambígua e tensional, é para Simmel, a separação entre as culturas subjetiva e

objetiva. É essa cisão que dá conteúdo ao conceito de tragédia da cultura moderna.2

A tragédia da cultura instaura-se, para Simmel, com a autonomização das objetivações

humanas, ou seja, das produções culturais em sentido amplo, as quais, embora produzidas por seres

humanos para servi-los, assumem a partir da sua objetivação uma lógica independente da intenção

original que as constituiu. O caráter fetichista da produção de mercadorias no capitalismo,

descoberto por Marx, seria, para Simmel, um caso particular desse fenômeno geral.

O homem, nesse contexto, passa a ser visto como mero suporte de constrangimentos que

seguem a sua própria lógica. O conceito de tragédia possui aqui um sentido muito preciso, o qual

remonta ao significado da tragédia “grega” clássica. Ao contrário de indicar um destino triste ou

desconsolador em sentido genérico, o destino trágico, na significação que nos interessa, aponta para

o fato peculiar de (10) que as forças destruidoras mobilizadas contra um ser foram produzidas pelas

tendências mais profundas deste mesmo ser. Assim, foi a própria lógica interna do ser humano uma

conseqüência da dinâmica da sua própria estrutura, que constituiu um “destino” – posto que

percebido pelos contemporâneos como uma fatalidade sem autor – destrutivo, repressor, estranho,

produtor de infelicidade e mal-estar.

Esse diagnóstico da modernidade em si não teria muito a acrescentar ao que já havia sido

dito por seu contemporâneo e amigo Max Weber ou por Karl Marx. Tanto Marx quanto Weber

haviam apontado, no mundo moderno, o domínio das coisas sobre os homens. Seja no fetichismo

do mercado capitalista com suas “ilusões objetivas” e suas leis férreas, para Marx, seja, uma visão

ainda mais abrangente de heteronomia, em Max Weber, na denúncia da racionalidade instrumental,

invadindo com sua lógica impessoal todas as esferas da vida.

O que explica a importância e a atualidade da visão simmeliana da sociedade moderna é

uma brilhante análise dos fatores estruturais que constituíram a tragédia da cultura moderna,

relacionando-os aos fatos mais cotidianos dos indivíduos que vivem sob a sua égide. É nesse

contexto que teremos a oportunidade de examinar a rara combinação entre as perspectivas do

1 In: SOUZA, Jesse & ÖELZE, Berthold (Orgs). Simmel e a modernidade. 2. ed. Editora Universidade de Brasília,

Brasília, 2005. p. 9-20. (Os números entre parênteses correspondem à paginação original) 2 Georg Simmel. “Der Begriff und die Tragoedie der Kultur”, Philosophische Kultur: Berlim, Klaus Wagenbach, 1986.

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Simmel e a modernidade

sociólogo, do filósofo e do literato ou artista em geral que caracteriza a obra simmeliana. Por

enquanto, continuaremos com o sociólogo.

O fator estrutural mais importante da modernidade, para Simmel, é o advento da economia

monetária,3 cuja análise é marcada por uma ambigüidade fundamental: o dinheiro desempenha um

papel central tanto na constituição da liberdade quanto da tragédia modernas.

Simmel percebe a liberdade como um resultado da “mudança de constrangimentos”, ou seja,

ele não se dá num vácuo, mas num contexto de obrigações. Quando das mesmas nos libertamos,

temos a impressão da liberdade até que outras obrigações assumam o lugar das antigas. O papel do

dinheiro na constituição da liberdade especificamente moderna fica de todo evidente quando

pensamos, ainda no contexto feudal, na substituição progressiva e paulatina (11) das obrigações

pessoais em espécie por contraprestações monetárias. A monetarização da relação Senhor e Servo,

nesse contexto, implica não só a despersonalização da relação de dominação em si, mas também a

possibilidade de libertação da personalidade do servo enquanto tal da relação de obrigação.

A partir da generalização desse processo, com a consolidação da economia monetária,

podemos falar, do ponto de vista subjetivo, que o dinheiro permite uma margem importante de

liberdade pessoal na medida em que separa o desempenho, o qual pode ser comprado por dinheiro,

da personalidade, a qual permanece inalienável. A economia monetária, em conjunção com a

divisão social do trabalho, permite a essa personalidade libertada de constrangimentos éticos e

pessoais uma maior oportunidade de autodeterminação e desenvolvimento, posto que torna a teia de

dependências sociais m ais rarefeita e múltipla.

Como vimos, para Simmel, liberdade não pode ser pensada enfaticamente como algo

absoluto. Antes de tudo não podemos pensá-la como ausência de constrangimentos, mas, apenas,

como permuta de contingências. Nesse sentido, a economia monetária, permitindo uma

dependência em relação a muitos em contraposição a uma dependência em relação a poucos, age

como catalisadora de uma liberdade individual possível. Assim, o contrário da liberdade não seria a

mera existência de vínculos enquanto tais, mas dependência em relação a poucos, ou, no caso

limite, a um só. Para Simmel, a multiplicidade de vínculos e relações é a própria precondição

objetiva para o aparecimento da noção de indivíduo, da própria idéia, portanto, de que o indivíduo

pode assumir uma identidade própria apartada do social e, até mesmo, definida em oposição a ela,

como uma resistência contra a mesma. Voltaremos a esse ponto mais tarde.

3 Toda nossa discussão sobre a economia monetária será feita em referência a Georg Simmel. Philosophie des Geldes.

Frankfurt, Suhrkamp, 1989.

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Simmel e a modernidade

Nesse sentido, a liberdade possível seria definida como “liberdade de movimento”.

Liberdade seria uma forma de lidar com constrangimentos e obrigações, parecendo apontar, na

procura por uma fórmula ideal, para uma mistura “bem-temperada” entre aproximação e distância

em relação aos outros. Tal concepção permitiria criar objetiva e subjetivamente uma consciência da

independência individual em relação a terceiros, sem desvarios solipsistas.

(12) Vimos que a tragédia da cultura moderna é definida como separação e estranhamento

entre as esferas objetiva e subjetiva. A economia monetária, implicando a mediação das relações

humanas por meio do dinheiro, é o fundamento das duas. Vimos como ela cria a possibilidade

mesma da noção de subjetividade e de uma liberdade individual possível, e nos ateremos agora ao

seu outro lado. O mesmo processo reificador que substitui relações pessoais por relações

monetárias impessoais, conferindo o pano de fundo para a percepção e constituição da noção de

subjetividade, cria, também, aquilo que Simmel chama de objetividade. Toda a ambivalência da

modernidade ocidental parece estar contida nesse processo que, simultaneamente, forma o mundo

reificado e reificador das coisas e a possibilidade da constituição da personalidade.

O ponto positivamente valorizado por Simmel nesse processo é o de que o dinheiro, ao

separar as esferas subjetiva e objetiva, contribui para o desenvolvimento de ambas, na medida em

que permite que cada qual siga uma lógica imanente. O dinheiro dispensa, por assim dizer, as

formas de solidariedade tradicional, nas quais a pessoa, o indivíduo enquanto tal, se comprometia.

O poder libertário da economia monetária reside, como vimos, no fato de uma personalidade jamais

estar em jogo nas transações monetárias. Essa distância é o que possibilita o desenvolvimento

individual. O elemento alienante do dinheiro, por outro lado, advém do “lado escuro” desse mesmo

fenômeno, visto que, com afastamento e o distanciamento de tudo que é pessoal, desaparece,

também, a possibilidade de expressão de qualquer qualidade específica não-econômica. O papel

universalizador do dinheiro como equivalente geral é de uma uniformização unilateralmente

dirigida “para baixo”, ou seja, com qualidades sendo transformadas em quantidade.

O desenvolvimento da cultura objetiva é proporcionado pela conjunção da economia

monetária e da divisão social do trabalho. Estes dois fenômenos fundantes e estruturais do mundo

moderno favorecem-se reciprocamente. O desenvolvimento de um implica crescimento e mais

necessidade do outro. O espaço que se abre entre as objetivações e os sujeitos, ou entre as coisas e

as pessoas, leva a que a noção de instrumento ganhe uma importância fundamental, ocupando todos

os espaços entre os sujeitos e os objetos. O dinheiro, o (13) meio por excelência, torna-se

indispensável para esta “criatura mediada” que se torna o homem. A confusão entre meio e fim

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Simmel e a modernidade

instaurada pelo dinheiro é necessária, na medida em que o fim a ser atingido, por ser mediado, exige

tal concentração no meio, que o mesmo se confunde com o próprio fim. Essa inversão tende, com o

desenvolvimento da cultura e com a tecnificação da vida, a qual implica sempre um numero

crescente de meios, a aumentar. O meio absoluto dinheiro tende a tornar-se o fim absoluto, o

modelo e grande regulador da vida prática.

Como a maior parte das pessoas passa a vida inteira na busca do dinheiro, cria-se a ilusão de

que sua posse produz a satisfação definitiva e a felicidade. Nesse contexto, adquire todo o sentido a

fórmula simmeliana do dinheiro como o Deus moderno. A idéia de Deus teria, para Simmel, sua

significação mais profunda no fato de que todas as contradições e multiplicidades do mundo

ganhariam unidade por referência à divindade onipotente e absoluta. Toda a paz e a segurança do

crente encontrariam explicação nesse fato. O dinheiro apresenta uma extraordinária afinidade

psicológica com essa idéia, porquanto produz a expressão e a equivalência de todos os valores,

unindo os contrários e os estranhos. É precisamente a busca apaixonada pelo dinheiro que produz o

ritmo nervoso e o estresse da vida moderna. A perseguição ao dinheiro exige, certamente, o

cálculo, o que pede uma “paixão fria” sem impulsividade.

Podemos agora precisar de que modo o dinheiro explica a tragédia da cultura moderna.

Vimos, pelo estudo do seu aspecto positivo, como o dinheiro e a divisão social do trabalho

permitem a separação entre cultura subjetiva e objetiva, possibilitando o desenvolvimento máximo

de cada uma delas: abrindo espaço para o autodesenvolvimento pessoal, por um lado, e permitindo

um aumento crescente da cultura objetiva, por outro, tanto na produção de mercadorias, quanto de

novas formas de vida.

O lado escuro ou trágico, como prefere Simmel, encontramos no fato de que, na realidade,

apenas a cultura objetiva se torna crescentemente cultivada e rica, seja em relação à técnica, ciência

ou arte, enquanto os indivíduos se tornam, paradoxalmente, cada vez mais pobres e pouco

cultivados. A resposta a esse aparente paradoxo é que a autodeterminação e auto-realização

pessoal, as quais se tornaram possíveis pelo advento da economia monetária, permanecem uma (14)

mera possibilidade.4 Na realidade, e aqui encontramos um ótimo exemplo do talento de Simmel

como observador das patologias do cotidiano, a sociedade do Deus-dinheiro possui duas figuras

cotidianas típicas: o cínico e o blasé. Ambas são fruto da redução de todos os valores da vida à

forma meio do dinheiro, mas diferem em aspectos importantes.

4 É extremamente interessante a aproximação entre essa idéia simmeliana e a tese de Jürgen Habermas sobre a

“fragmentação do mundo vivo”, como uma das duas principais “patologias” do mundo moderno. Ver Jürgen

Habermas. Die Theorie des kommunikativen Handelns, vol. 2. Suhkamp, 1987, p. 521.

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Simmel e a modernidade

Para o cínico, o fundamental é a indistinção dos valores, onde o único sentido do que é

altamente valorado é ser rebaixado e nivelado segundo um padrão comum. O cínico, a exemplo do

próprio dinheiro, não reconhece o valor ou especificidade de valores não-monetários, como

convicção, talento, beleza ou virtude. Estes perdem a sua especificidade e são monetarizados.

O blasé, diferentemente do cínico – o qual manifesta uma reação, ainda que perversa, em

relação à esfera de valores, posto que se compraz e retira satisfação do movimento nivelador da

mesma – , possui a sensibilidade valorativa embotada, incapaz de reação ou vontade. Para o blasé,

não é decisiva a desvalorização de valores que caracteriza o cínico, mas a indiferença em relação

aos mesmos, comprometendo a capacidade de sentimento e vontade.

O fato básico que une as duas figuras é a circunstância de tudo ser comparável e medido

segundo critérios monetários. Se para o cínico isso é motivo de prazer, para o blasé significa a

ausência da possibilidade de conferir qualquer estímulo à vida. Se o cínico está contente na sua

posição, busca o blasé, desesperadamente, estímulos para sua sensibilidade embotada. Nesse

contexto, Simmel percebe a tendência do desejo moderno por estímulos e impressões extremas e

por rápidas mudanças, como tentativas de evitar os perigos ou os sofrimentos inevitáveis da vida.

Como o caminho buscado é o do exagero quantitativo, o mesmo redunda inexoravelmente em uma

diversão passageira, que reproduz a situação anterior ad continuum. Esse círculo vicioso dificulta

crescentemente o problema inicial, produzindo uma insatisfação cada vez maior.

(15) A cultura do estímulo, da sua sede, reflete precisamente a prisão no meio, como se a

busca da satisfação se contentasse agora com um estágio anterior à produção valorativa

propriamente dita. A cultura monetária implica tal prisão nos meios, que até a tentativa de fuga

desse estado assume a mesma forma, na confusão entre o estímulo e o valor, o que leva à

concentração da procura no mero estímulo. A doença transmite a sua forma ao remédio.

Essa brilhante análise das conseqüências da economia monetária na consciência individual,

que enfatiza, ao contrário de Marx, não a produção, mas o nível do consumo e da circulação de

mercadorias, tem afinidades com a discussão, muitas vezes apenas implícita na sua obra, sobre a

personalidade moderna em Max Weber.5 As figuras do cínico e do blasé lembram o especialista

sem espírito e o sensualista sem coração, assinaladas por Weber como os tipos ideais produzidos

pela sociedade moderna. No entanto, a inspiração maior de Simmel, parece-me, nesse particular (ao

contrário de Weber que usa várias vezes a linguagem nietzschiana, seguindo no essencial,

5 Tentei trabalhar aspectos distintos dessa questão na obra weberiana em dois artigos: “A terapia weberiana da

modernidade”, Sociedade e Estado. Janeiro-junho, 1990, e “Homem, cidadão: ética e modernidade em Max Weber”,

Lua Nova, 33, 1994.

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Simmel e a modernidade

entretanto, no que diz respeito à teoria da personalidade, J.W. Goethe), Friedrich Nietzsche. É de

inspiração nietzschiana são somente a referência aos “últimos homens” típicos da modernidade, que

buscam um prazerzinho de dia e outro à noite,6 mas, principalmente, no lugar central da categoria

da “distinção” (Vornehmheit).

A categoria da distinção é percebida a partir da radical oposição entre o poder nivelador do

dinheiro e a atitude estética. Para esta última importa apenas a forma, sendo ela indiferente à

quantificação. Apenas o singular e o específico podem estabelecer qualidades num mundo de

quantificações. As figuras do artista e do pensador tornam-se, assim, repositários da reação contra o

espírito moderno do cálculo e da redução de toda qualidade a quantidade. A personalidade

“distinta”, baseada na distância em relação a si, aos outros e às (16) coisas, é transformada no pólo

invertido da economia monetária e suas personalidades típicas. Nela, o essencial é a sensibilidade

ao único, ao singular e ao incomparável. A personalidade distinta é heróica na medida em que o

perigo de ser tragado pelo mundo das quantificações supõe uma luta sem tréguas. A distinção seria,

assim, a única saída contra as patologias do cotidiano instauradas pelo império do dinheiro.

O diagnóstico da modernidade simmeliana que esboçamos anteriormente, retirado

principalmente de sua obra máxima, A filosofia do dinheiro (Die Philosophie des Geldes), deve ser

acrescentado de sua rica ensaística, na realidade o seu estilo por excelência, para chegarmos a um

quadro mais geral da sua obra e da sua visão do mundo moderno. O estudo dos seus ensaios retrata

ainda com maior evidência a perspectiva múltipla, à qual já nos referimos anteriormente, que

caracteriza seu pensamento.

Paralelamente ao Simmel sociólogo, preocupado com os fatores estruturais do mundo

contemporâneo, como a economia monetária ou a divisão social do trabalho, temos o Simmel

filósofo e crítico da arte. Filósofo, posto que se interessa, mesmo na análise dos fenômenos mais

fugidios e fragmentários, por necessidades fundamentais do homem, as quais ele chama de

“conteúdo” das formas sociais. Crítico da arte porque, bem no sentido da definição do artista e do

crítico em Baudelaire,7 um dos fundadores da estética moderna, Simmel possui o talento de

perceber o eterno, invariável e essencial nos fenômenos aparentemente mais casuais e superficiais

da vida cotidiana. Essa perspectiva particular exige uma correspondente inversão na maneira de ver

os conceitos básicos da sociologia.

6 Annemarie Pieper. “Nietzsches erster Zarathustra”. Stuttgart, Ernst Klett Verlag, p.69/73, 1990.

7 Charles Baudelaire. “O pintor da vida moderna”. A modernidade de Baudelaire. Paz e Terra, 1988.

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Nesse sentido, Simmel substitui, de forma conseqüente, o conceito de sociedade

(Gesellschaft) pelo de sociação (Vergesellschaftung).8 A sociedade – vista globalmente – é possível

de ser pensada apenas como um conceito-limite, como resultado das formas de sociação, ou, o que é

o mesmo, da rede de relações sociais (17) recíprocas. A matéria das sociações são os “conteúdos” a

que nos referimos anteriormente, ou seja, as pulsões, interesses, finalidades, tendências, desejos,

etc. que se expressam nos indivíduos. Esses conteúdos são atualizados em “formas sociais” que são

as sociações concretas.9 O conceito de forma, e aqui é o lugar para se desfazer um mal-entendido

comum, não tem, em Simmel, o sentido de formalismo conceitual como se aplicou, por exemplo, ao

marxismo estruturalista francês da década de 1960. Formas sociais são as interações sociais

concretas que se constituem a partir de conteúdos determinados, seja na moda, na coqueteria, no

costume do adorno, etc.

Na análise dessas interações sociais, Simmel é guiado por uma profunda consciência da

especificidade histórica da sua época: a modernidade. Nesse sentido, o advento da economia

monetária não seria apenas uma nova forma de produzir mercadorias, mas um fenômeno que

projeta sua sombra, para o bem e para o mal, pela sua ambigüidade constitutiva que examinamos

anteriormente, sobre todas as relações sociais, até as mais íntimas, onde dificilmente poderíamos

supor a sua presença. O dinheiro como que “carimba” com sua marca todos os fatos de nossa

época. Esse fato guia a curiosidade concentrada de Simmel: saber como os homens e suas relações

mudam sob o efeito do dinheiro. Que novas direções de conduta? Que novo tipo de vida o dinheiro

constitui?

O texto sobre “As grandes cidades e a vida espiritual” (Die Grosstaedte und das

Geistesleben) confere um bom exemplo do que afirmamos antes.10

Inicialmente, esse produto da

economia monetária por excelência, as grandes cidades, é visto como catalisador dos efeitos do

dinheiro sobre a vida social, oferecendo, desse modo, uma espécie de palco, onde seus efeitos

podem ser melhor observados. O dinheiro confere às grandes cidades suas duas características mais

marcantes: o intelectualismo e a calculabilidade, por um lado, em oposição às relações baseadas no

sentimento e na pessoalidade típicas (18) das pequenas cidades, é produto da necessidade de

medidas objetivas para comparar desempenhos, produzir previsibilidades e regularidades, sem as

quais seriam impossíveis a economia monetária e a manutenção dos serviços em uma metrópole. A

8 Sigo, ao evitar a tradução literal desse termo, a sugestão de Evaristo de Morais Filho na introdução ao volume

dedicado a Simmel da Ed. Ática, 1983. 9 Werner Jung. Simmel zur Einfuehrung. Junius, Hamburgo, 1990.

10 Georg Simmel. “Die Grosstaedte und das Geistesleben”, Das Individuum und die Freiheit. Berlim, Klaus

Wagenbach, 1984. Existe uma tradução brasileira da Ed. Ática sob o título As metrópoles e a vida mental.

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Simmel e a modernidade

ênfase na pontualidade, previsibilidade, exatidão e competição impregna o ser do citadino, de tal

forma que lhe confere um ritmo próprio, nervoso, ansioso, repressivo com relação seus instintos e

necessidades.

A indiferença nasce, parte como produto da calculabilidade que embota emoções, parte

como produto do efeito nivelador do dinheiro. Vimos como essa circunstância acarreta perda da

sensibilidade para nuances e uma concentração no mero estímulo. Na grande cidade, essa tendência

atinge proporções endêmicas. A quantidade de estímulos, produzindo cansaço dos nervos expostos

constantemente a fortes apelos, produz precisamente a incapacidade de reação que caracteriza,

como vimos, a personalidade blasé.

A distância e a reserva que a calculabilidade e a indiferença produzem na vida citadina são,

simultaneamente, a possibilidade de garantia de uma liberdade individual inimaginável em outros

contextos. Nesse sentido, a grande cidade reproduz a ambigüidade típica da vida sob o signo do

dinheiro. Cria tanto a possibilidade da individualidade como os obstáculos para que ela se realize.

O filósofo da vida (Lebensphilosophe), Simmel, que se ocupa com as questões fundamentais

do ser humano, parece ser apenas o contraponto do sociólogo “formalista” – no sentido precisado

anteriormente – , na medida em que, nas suas análises das “patologias do cotidiano”, procura

vincular as necessidades humanas elementares a certas formas de interação social, de modo a

explicar a vida em sociedade. É isso que acontece no seu ensaio sobre a moda.11

Esta é vista como

um compromisso entre duas necessidades contraditórias do homem: a tendência ao geral e ao igual,

significando dedicação ao todo social; e a tendência ao específico, implicando uma tentativa de

fundar uma individualidade apartada do todo social.

A peculiaridade da forma social “moda” seria justamente atender, simultaneamente, a essas

duas necessidades. A necessidade de (19) apoio social é atendida na medida em que a moda é

imitação e na “imitação o grupo carrega o indivíduo”.12

A necessidade de singularidade, por sua

vez, é atendida, posto que a moda é diferenciação e retira sua eficácia precisamente da possibilidade

de distinguir entre indivíduos e classes. Já no fato de que toda moda é uma moda de classes,

aproximando alguns de modo a distingui-los de outros, encontra-se essa mistura entre imitação e

especificidade.

Que a economia monetária seja o pano de fundo de todas as experiências da modernidade

também fica patente no estudo da moda. A classe média e todos os indivíduos ansiosos por

ascensão social encontram na moda o ritmo do seu próprio movimento psíquico. Isso é retratado

11

Georg Simmel. “Zur Psychologie der Mode. Soziologische Studie”, Schriften zur Soziologie. Suhrkamp, 1983. 12

Ebenda, p. 132.

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por uma operosidade febril que é característica da economia monetária e por sua conseqüente ênfase

no fugidio, passageiro, o que explica a velocidade das modas modernas em todas as esferas.

Mas não somente na moda encontramos essa ação de necessidades humanas contraditórias.

Toda a ensaística e a obra de Simmel parecem servir à finalidade de representar a natureza

contraditória essencial do ser humano, apenas radicalizada na modernidade. Assim, se temos na

moda o conflito entre o individual e o comum, o diferente e o igual e o passageiro e o eterno, temos

na coqueteria o conflito entre o ter e o não-ter, na psicologia da discreção a luta entre proximidade e

distância, etc.

Como no exemplo da moda, também a coqueteria se adequa ao halo com o qual a economia

monetária cerca todos os fenômenos da modernidade. A coqueteria, 13

na sua definição de meio

caminho entre entrega e recusa, espelha a fascinação que as mercadorias em geral exercem sobre

nós, instaurando uma “qualidade de vitrine” em todas as coisas. Como a mulher coquete, as

mercadorias na vitrine nos seduzem sem nos permitir o acesso à sua essência. A discreção14

assume

um caráter moderno radical, na medida em que o mero (20) “conhecimento” assume o lugar do

ideal de amizade antigo baseado na forte ligação entre duas pessoas em todos os aspectos da vida.

É um dado da vida moderna a distância e a ligação interpessoal, tendo como base um interesse

específico. Esses exemplos, que poderiam ser multiplicados, apontam para aquela característica de

descobrir o eterno e o estrutural no passageiro e momentâneo, demonstrando a radical modernidade

do pensamento simmeliano singularmente adequado à compreensão da realidade fragmentária de

nossos dias.15

13

Georg Simmel. “Die Koketterie”, Georg Simmel: philosophische Kultur. Berlim, Wagenbach, 1986. 14

Georg Simmel. “Psycologie der Diskretion”, Schriften zur Soziologie. Suhrkamp, 1983. 15

Uma discussão interessante na literatura secundária mais recente sobre Simmel refere-se ao seu lugar no atual debate

sobre o assim chamado “pós-modernismo”. A fragmentação da experiência como desafio especificamente

contemporâneo, percepção que Simmel partilha com Walter Benjamim e Charles Baudelaire, aproxima-o dos temas

provenientes dessa corrente. Ver David Frisby. Fragmente der Moderne. Daedalus, 1989. Assim como, mais

recentemente, Deena e Michel Weinstein: Postmodern(nized) Simmel. Nova York, Routledge, 1993.