A culpa é d’Os Simpsons: Os sentidos atribuídos à cidade do Rio de Janeiro sob os olhos da...

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1 A culpa é d’Os Simpsons Os sentidos atribuídos à cidade do Rio de Janeiro sob os olhos da hiper-ironia americana Ana Teresa Gotardo Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Dados de contato [email protected] | (21) 98562-3400 Rua Maria Amália, 591 apto 408 – Tijuca – Rio de Janeiro / RJ – CEP: 20510-130 Resumo Este trabalho objetiva realizar uma breve análise sobre os sentidos atribuídos à cidade do Rio de Janeiro e aos brasileiros através do episódio Blame it on Lisa, exibido em 2002, durante a 13ª temporada de Os Simpsons. Através de um humor que abusa da ironia, do sarcasmo e da crítica social, o desenho mostra uma cidade violenta, altamente sexualizada (também com diversas referências ao que chamam de “sexualidade ambígua”) e selvagem, imersa nos clichés do samba, carnaval, futebol e malandragem. É importante salientar que a animação foi produzida em uma época de grave crise social e financeira não apenas em nosso país, mas ao redor do mundo. Suas representações causaram diversas reações, sendo a mais comentada delas o fato de que o presidente do Brasil na ocasião, Fernando Henrique Cardoso, solicitou um pedido de desculpas formal por parte da produtora da série. As discussões sobre essas representações são feitas, hoje, sob a ótica de uma cidade que busca reinventar sua marca para atrair turistas, megaeventos e financiamentos / lucros diversos, e na expectativa do lançamento já anunciado de uma nova visita da família Simpson ao Brasil, por ocasião e temática da Copa do Mundo de 2014.

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Artigo de Ana Teresa Gotardo apresentado no

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    A culpa dOs Simpsons

    Os sentidos atribudos cidade do Rio de Janeiro

    sob os olhos da hiper-ironia americana

    Ana Teresa Gotardo

    Mestranda no Programa de Ps-Graduao em Comunicao da

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

    Dados de contato

    [email protected] | (21) 98562-3400

    Rua Maria Amlia, 591 apto 408 Tijuca Rio de Janeiro / RJ CEP: 20510-130

    Resumo

    Este trabalho objetiva realizar uma breve anlise sobre os sentidos atribudos

    cidade do Rio de Janeiro e aos brasileiros atravs do episdio Blame it on Lisa, exibido

    em 2002, durante a 13 temporada de Os Simpsons. Atravs de um humor que abusa da

    ironia, do sarcasmo e da crtica social, o desenho mostra uma cidade violenta, altamente

    sexualizada (tambm com diversas referncias ao que chamam de sexualidade

    ambgua) e selvagem, imersa nos clichs do samba, carnaval, futebol e malandragem.

    importante salientar que a animao foi produzida em uma poca de grave crise social e

    financeira no apenas em nosso pas, mas ao redor do mundo. Suas representaes

    causaram diversas reaes, sendo a mais comentada delas o fato de que o presidente do

    Brasil na ocasio, Fernando Henrique Cardoso, solicitou um pedido de desculpas formal

    por parte da produtora da srie. As discusses sobre essas representaes so feitas, hoje,

    sob a tica de uma cidade que busca reinventar sua marca para atrair turistas, megaeventos

    e financiamentos / lucros diversos, e na expectativa do lanamento j anunciado de uma

    nova visita da famlia Simpson ao Brasil, por ocasio e temtica da Copa do Mundo de

    2014.

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    Introduo

    No ar h quase 25 anos (mais precisamente desde 17 de dezembro de 1989,

    data de lanamento nos Estados Unidos), no h quem no conhea a srie de TV Os

    Simpsons. Trata-se de uma comdia criada por Matt Groening e produzida pela rede Fox

    Broadcasting Company que aborda as aventuras uma famlia mdia / disfuncional

    americana com ironia e irreverncia, vista atualmente em mais de 30 pases, de acordo

    com os dados do IMDB1. No Brasil, a srie foi veiculada durante muitos anos pela Rede

    Globo de Televiso e atualmente transmitida pela BandTV e pelo canal pago Fox.

    No dia 31 de maro de 2002, durante a 13 temporada da srie, foi exibido o

    episdio Blame it on Lisa (referncia ao filme Blame it on Rio, foi posteriormente

    traduzido no Brasil como O Feitio de Lisa), no qual a famlia Simpson vem ao Brasil.

    Trago este episdio para debate neste momento, tantos anos aps sua primeira veiculao,

    em virtude de um anncio2 feito pela produtora da animao, a Twentieth Century Fox

    Consumer Products, de que est em processo de produo um novo episdio temtico

    dOs Simpsons intitulado You Dont Have to Live Like a Referee, que ser transmitido em

    maro de 2014, inspirado na Copa do Mundo, e que trar novamente a famlia de

    Springfield para o Brasil. Desta forma, considero importante trazer luz as referncias

    da primeira visita, em virtude dos momentos histricos em que se inserem.

    Embora o Rio de Janeiro tenha uma vocao especial para abrigar

    megaeventos desde o incio do sculo XX, a cidade passou por sucessivas crises

    econmicas oriundas do governo federal, a escalada do desemprego, [...] e o aumento da

    violncia, estigma agravado pela dramatizao na mdia, diminuram a autoestima da

    cidade (Freitas, Fortuna, 2008, p.6) e a primeira visita da famlia foi realizada em meio

    a todos esses problemas. Agora, revisitamos este episdio em meio a uma visibilidade

    mundial da cidade associada realizao de diversos megaeventos, em especial da Copa

    do Mundo e das Olimpadas, tambm como forma de nos prepararmos para essas

    possveis novas representaes e novos sentidos atribudos cidade (se que existiro

    novos sentidos) aps o grande esforo conjunto dos governos municipal, estadual e

    federal, cidados e imprensa para reinventar e recuperar a imagem de "cidade

    maravilhosa" atribuda ao Rio de Janeiro, atravs de diversas aes de branding.

    1 Internet Movie Database. Disponvel em < http://www.imdb.com/> em 12 de janeiro de 2014. 2 Disponvel em em 12 de janeiro de 2014.

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    Embora a ironia e irreverncia sejam premissas em todos os episdios da

    srie, a forma como os autores representaram o Brasil, em 2002, foi tomada pelas

    autoridades e por grande parte dos brasileiros como ofensiva, errnea e abusiva, tanto que

    o episdio foi censurado pela rede nacional de televiso aberta durante muitos anos3. O

    presidente brasileiro poca, Fernando Henrique Cardoso, exigiu desculpas formais da

    Fox pelos supostos danos causados imagem do pas e da cidade do Rio de Janeiro. Isso

    porque o humor trabalhado pel'Os Simpsons ultrapassa as fronteiras do entretenimento e

    adentra questes relacionadas s esferas polticas e do poder governamental. Segundo

    Almeida (2011, p.108),

    (...) possvel deduzir que Os Simpsons, explorando a falta de

    confiana no poder e ridicularizando personalidades polticas, como foi

    o caso de Fernando Henrique Cardoso, passa a exercer um papel para

    alm do entretenimento, adentrando a esfera do poder. Nessa

    perspectiva, a ridicularizao de personagens polticas e da prpria

    sociedade brasileira, coloca o desenho em um lugar de destaque, mesmo

    que faa uso de caracterizaes sobre o Brasil e os brasileiros j usados

    em outros desenhos animados.

    O autor ainda comenta que as reaes brasileiras crtica apresentada pela

    animao renderam ainda mais comentrios em episdios das temporadas seguintes.

    Ainda segundo o autor (idem, p.112),

    No episdio Os Monlogos da Rainha, da 15 Temporada, transmitido em 2003, Homer diz que gostaria de voltar a Brasil, mas o problema dos macacos ficou pior. No mesmo ano de 2003, foi apresentado o episdio Krusty vai para Washington, da 14 Temporada, no qual o macaco Mr. Tenny veio do Brasil. O palhao

    Krusty enfatiza ainda que o tio do personagem brasileiro era macaco-

    chefe da Secretaria de Turismo do Rio de Janeiro.

    E, para completar as repercusses alm-episdio, ele foi indicado ao 55th

    Annual Writers Guild Awards Nominees Announced for Television and Radio.

    3 Para conhecer um pouco mais sobre a repercusso nacional e internacional do episdio, vide e . Acesso em 13 de janeiro de 2014. Para se ter uma ideia, foi necessrio explicar que turistas nunca foram atacados por macacos em Copacabana.

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    Este trabalho busca, ento, mostrar as representaes da cidade do Rio de

    Janeiro construdas pelo episdio Blame it on Lisa que apresenta, de um jeito

    simpsoniano, suas imagens e seus sentidos construdos poca.

    A histria se inicia quando a famlia Simpson recebe uma conta telefnica no

    valor de US$400,00 e Marge, me de famlia / dona de casa, comea a brigar com a

    companhia prestadora do servio, alegando que a conta estava incorreta, e tem o servio

    cortado. Lisa, sua filha genial de oito anos, aquela que a boazinha, de acordo com

    Marge, aquela que ns dois gostamos, segundo Homer, admite, ento, que fez a ligao.

    Quando questionada de seus motivos, diz que estava ajudando um rfo brasileiro

    chamado Ronaldo (em referncia a dois importantes jogadores de futebol, Ronaldo

    Fenmeno e Ronaldo Gacho) e imediatamente perdoada por Marge por dividir o

    dinheiro da famlia com um pobre rfo brasileiro como gesto de bondade e doura.

    Homer, pai negligente e desinteressando, por sua vez, fica estupefato: voc no sabe que

    os garotos do Brasil so pequenos Hitlers? Eu vi em um filme cujo nome no consigo me

    lembrar!4

    Lisa menciona, ento, que havia feito a ligao para o Brasil porque estava

    muito preocupada com o fato de o garoto no ter escrito uma carta para ela, como fazia

    todo ms, mas a chamada ficou muito cara porque, depois de informar que ele havia

    sumido, as freiras comearam a pression-la por mais doaes. Aps verem um vdeo

    enviado pelo garoto com os benefcios trazidos pela doao de Lisa um par de sapatos

    para mil sambas e uma porta para o orfanato, de forma que os macacos no pudessem

    mais mord-lo a famlia decide, com lgrimas nos olhos, ir ao Rio de Janeiro para

    procur-lo. Bart, irmo capeta, admite que gostaria de vir apenas por interesse em ver

    macacos.

    Embora o episdio se inicie com uma demonstrao de cidadania por parte

    da pessoa mais inteligente e politicamente engajada da famlia de Springfield, antes que

    pensemos que se trata de algum dilema ou lio de moral, Matheson (2004, p.115) nos

    esclarece a seguinte questo:

    Os Simpsons usa o humor para promover conceitos morais? Minha

    resposta esta: Os Simpsons no promove coisa alguma, porque seu

    humor opera apresentando posies para, logo em seguida, ironiz-las.

    Alm disso, esse processo to profundo que no podemos considerar

    4 Trata-se de uma referncia ao filme The boys from Brazil.

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    a srie como uma coisa meramente cnica; ela consegue ironizar seu

    prprio cinismo. Esse processo constante de ironizar o que chamo de

    hiper-ironismo.

    Apesar da presente ironia, para a concepo deste trabalho, partimos da ideia

    de que o desenho animado em questo transmitido em diferentes pases ao redor do

    mundo e que, portanto, torna-se um grande difusor de uma viso da cultura brasileira e

    de sentidos sobre a cidade do Rio de Janeiro, ainda que baseada em clichs (ou para

    refor-los). A partir desta viso, o desenho, atravs de seus discursos, vai construindo

    significados sobre o Brasil e sobre Rio de Janeiro, sobre o brasileiro e o carioca,

    construindo identidades culturais. Hall (2001, p.51) afirma que

    As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a nao, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses

    sentidos esto contidos nas estrias que so contadas sobre a nao,

    memrias que conectam seu presente com seu passado e imagens que

    dela so construdas.

    E, ainda que esta animao seja uma crtica sobre uma viso baseada em

    clichs, causou o impacto j mencionado acima (censura e interveno de autoridades

    federais, estaduais e municipais), o que me conduz s seguintes questes: ele pode ser

    transmitido atualmente graas s mudanas no discurso miditico, no que diz respeito

    violncia do Rio de Janeiro e recuperao da autoestima da cidade (Freitas, Fortuna,

    2008)? O que mostrado no desenho hoje parte de um passado superado e, por isso,

    pode agora ser entendido com humor? Acredito no poder responder neste momento a

    essas questes, mas elas ficaro mais claras aps o lanamento do episdio You Dont

    Have to Live Like a Referee, que mostrar se as imagens e representaes de nosso pas

    mudaram, aos olhos dos estrangeiros, ao longo desses 12 anos.

    Rio de Janeiro: cidade de sexo, violncia e vida selvagem

    importante salientar que, por estarmos tratando de um desenho animado,

    estamos lidando com um tipo especfico de linguagem. Os Simpsons so uma caricatura

    da famlia mdia / disfuncional americana, o desenho marcado pelo humor, pelo

    escracho, pela caricaturizao demasiada, por referncias a outros artefatos da cultura e,

    como j dito anteriormente, pela hiper-ironia. Veremos tambm diversas citaes a outros

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    filmes, sries, personagens, no apenas de forma a critic-los, mas tambm como forma

    de atribuir sentidos e veracidade a algumas passagens.

    Assim como Os Simpsons, podemos encontrar outros tantos desenhos,

    filmes, seriados etc., que exageram os traos, os problemas, as idiotices dirias. Mas,

    como poderemos ver ao longo deste trabalho, mesmo que a famlia americana seja tratada

    de uma forma pejorativa, sua cultura, seu modo de vida, ainda mostrado como superior

    ao brasileiro. Um exemplo o fato que culmina na vinda da famlia para o Brasil: esto

    procurando um menino desaparecido para o qual Lisa fez doaes em dinheiro (gestos

    considerados nobres).

    Aps decidirem vir para o Rio de Janeiro para procurar Ronaldo, a famlia

    embarca no voo da AeroBrasil (um pinga-pinga com direito a pernoite em uma casa mal-

    assombrada). Lisa l um livro chamado Who wants to be a brazilionaire?, referncia ao

    game show Who wants to be a milionaire, exibido desde 1999 na TV estadunidense,

    baseado no sistema de perguntas e respostas em opo de mltipla escolha (na verso

    brasileira, Show do Milho, exibido pelo SBT). O livro fornece as seguintes dicas de

    viagem: somente beba gua engarrafada; no entre em um txi no licenciado; eles

    tm inverno durante nosso vero. Ainda no avio, o comandante diz: Aqui quem fala

    o comandante. A temperatura local no Rio de Janeiro quente, quente, quente, com 100%

    de chance de paixo. O copiloto do avio reclama da piada, que repetida sempre, mas

    o comandante explica: foi graas a essa piada que voc se apaixonou por mim.

    A sexualidade algo que permeia todo o desenho, de diversas formas: no

    quarto do hotel, Bart comea a assistir um programa infantil cuja apresentadora5 (Figura

    1) veste um mai muito cavado , com ornamentos carnavalescos, e ensina seu pblico

    atravs de movimentos com os seios, enquanto suas ajudantes de palco deslizam

    sensualmente em letras gigantes, vestindo pequenos shorts; quando procuram Ronaldo

    numa academia de dana (Samba School), a academia tem como professor o esteretipo

    do Latin Lover que diz ter inventado a lambada e a Macarena e, agora, est criando uma

    nova dana chamada penetrada, que vai fazer sexo parecer uma igreja; caminhando

    pelas ruas, Lisa, Marge e Bart veem algo que seria um desfile de escola de samba e a me

    fica estupefata com o que chama de sexualidade ambgua. Marge no aceita a exposio

    de seus filhos ao sexo, desligando a TV durante o programa infantil, tirando Lisa da

    5 Ao ver a apresentadora loira de forte apelo sexual, vemos uma referncia clara figura de Xuxa. No entanto, poderamos encaix-la no perfil de diversas apresentadoras de programas infantis brasileiras.

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    Samba School e querendo sair do desfile da escola a todo custo. O professor de dana

    avisa a Marge: voc no pode proteg-la para sempre!. O sexo presente de tal maneira

    que no h como fugir.

    Figura 1. Apresentadora de programa infantil dana sensualmente.

    A msica acompanha a sexualidade presente no desenho. A primeira que

    ouvimos, ainda no avio, uma bossa nova, repetida quando os Simpsons saem do

    aeroporto do Galeo. Marge l no livro Who wants to be a brazilionaire? que voc pode

    chegar a qualquer lugar pegando uma linha de conga. Passam, ento, pessoas danando

    conga com uma placa indicando o sentido centro e os Simpsons entram nesta fila. Homer

    canta no ritmo: leve-me para o hotel / minhas mos esto na bunda de um homem / esse

    cara deve malhar (work out, no original, ainda pode ter conotao sexual). curioso,

    ainda, neste caso, como uma msica de outra cultura latino-americana (cubana) trazida

    para o Rio de Janeiro como meio de transporte, mostrando a confuso dos clichs, assim

    como Bart acredita que no Brasil se fala espanhol, ou a escola de samba que diz que

    inventou a Macarena.

    Chegando ao hotel, e voltando s relaes da msica com a sexualidade no

    episdio, ao assistir um programa de TV infantil, Bart v bailarinas danando

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    sensualmente uma bossa nova. Proibidos por Marge, ele e Homer encontram um chapu

    de frutas e um de frigobar, colocam-nos e comeam a danar e cantar uma verso da

    Chiquita Banana, produtor estadunidense de bananas, e remetendo figura de Carmem

    Miranda, pelo chapu.

    Quando Homer e Bart saem para procurar Ronaldo na praia, so obrigados

    por um salva-vidas a usar uma sunga muito pequena, segundo o homem, por se tratar de

    um cdigo de vestimenta (Figura 2). Homer, canta, ento, uma pardia da msica I Go to

    Rio, de Peter Allen (importante salientar que essa msica tambm possui uma verso

    francesa chamada Je vais Rio, de Claude Franois). Como so estadunidenses usando

    uma sunga muito pequena, a sexualidade, neste caso, uma inverso: as mulheres fazem

    de tudo (como jogar areia e uma gua-viva no rosto) para no v-lo passando e danando.

    Figura 2: Homer e o cdigo de vestimenta brasileiro para a praia. Espero que ela esteja indo para um lugar melhor, diz o personagem.

    Tambm a sexualidade associada msica se apresenta quando Marge, Lisa

    e Bart encontram o carnaval (uma escola de samba que desfila na rua). Eles correm do

    que veem (bebidas e sexualidade), mas um homem que desfila diz: voc no pode correr

    do carnaval, porque at mesmo correr uma forma de dana. Por fim, a dana os domina

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    e eles no resistem: comeam a danar mesmo contra a vontade, mas, logo depois,

    comeam a se divertir. Ao verem em um carro alegrico o que chamam de a stripper do

    programa infantil, d-se incio a uma bossa nova, temtica do programa Teleboobies.

    Outra questo muito presente na animao a da violncia. Lembramos que,

    no ano de 2002, o Brasil vivia mergulhado em uma crise social e econmica gerada por

    fatores como desemprego, crise dos Tigres Asiticos e do Plano Real e a violncia na

    cidade do Rio de Janeiro aumentava em ndices alarmantes.

    A famlia Simpson vai procurar Ronaldo no orfanado localizado em uma

    favela (tida, neste caso, como um local de abandono no apenas social, mas tambm do

    corpo, daqueles que deveriam ser cuidados, as crianas). A primeira crtica

    maquiagem feita pelo governo para esconder o fato de que estavam em um lugar muito

    pobre. Aps Marge dizer que o local uma vizinhana agradvel, Lisa explica que so

    favelas pintadas com cores vivas pelo governo para que os turistas no se sentissem

    ofendidos. Homer comenta: veja os ratos, parecem pequenos Skittles6! (Figura 3).

    Figura 3. Homer diz que os ratos parecem Skittles.

    6 Skittles so chocolates tipo Confetti ou M&Ms

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    Ao chegarem no orfanato onde Ronaldo vivia, vemos que seu nome

    Orfanato dos Anjos Imundos, escrito em portugus, mas com a verso em ingls abaixo,

    entre parnteses. Posteriormente, podemos ver que esses anjos imundos roubam Bart e

    Homer enquanto eles so distrados por uma feirante (Figura 4). Enfim, trata-se de uma

    forma tambm violenta de abordar problemas sociais existentes em nosso pas, afinal, cria

    sentidos sobre uma violncia gerada desde a infncia pelas favelas, verdades que apontam

    para o fato de que os anjos que l crescem so imundos, ladres, alm de abordar a

    malandragem da feirante, que abusa da boa-f dos personagens para distra-los.

    Figura 4. Crianas roubam Bart e Homer enquanto eles procuram Ronaldo.

    Podemos ver, atravs dessas passagens, a diferena entre a criana brasileira

    e a criana norte-americana: enquanto Lisa faz doaes para um amigo rfo que no

    conhece e Bart se mobiliza para ajudar a encontr-lo, as crianas brasileiras so anjos

    imundos que roubam.

    Alm destes episdios, temos tambm o sequestro de Homer. Embora o livro

    Who wants to be a Brazilionaire seja claro ao orientar que no se deve entrar em um txi

    no licenciado, Homer o faz e acaba sequestrado. Seu cativeiro fica na Amaznia (Figura

    5). A cena de chegada ao local Homer no barco, com a cabea coberta com um saco que

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    cheira a canela, ao som da trilha de Miami Vice (srie policial exibida entre 1984 e 1989).

    O sequestrador diz: admire a Amaznia! Mas rpido, porque ns a estamos destruindo.

    Figura 5. Homer sequestrado e levado para cativeiro na Amaznia.

    Ao descobrir que Homer fora sequestrado, Marge no sabe como agir e Bart

    sugere que esperem uma ligao. Mas ela resolve ir at uma delegacia, onde pergunta no

    apenas por Homer, mas tambm por Ronaldo. A imagem da polcia brasileira decadente,

    incompetente, despreparada (Figura 6). O policial sugere, ainda, que no h marido ou

    criana desaparecidos, mas sim, que Marge sente uma atrao por ele. Enquanto falam,

    entra um homem na delegacia gritando que havia sido baleado (Ive been shot). O policial

    diz: estou lisonjeado, mas no jogo deste lado, mais uma vez colocando a sexualidade

    ambgua em destaque.

    Enquanto isso, na Amaznia, Homer tenta levantar US$50 mil para pagar seu

    resgate. Alm de entrar em contato com a famlia, que consegue arrecadar com todas as

    suas economias (e tambm as do vov, pai de Homer) apenas US$1.200,00, Homer entra

    em contato com seu chefe, Sr. Burns, que oferece adiantar o valor de seu salrio, proposta

    a qual Homer recusa veementemente. Liga, ento, para Moe, que pede o mesmo valor

    emprestado antes que Homer possa dizer qualquer coisa. Por fim, pede US$ 100 mil para

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    seu vizinho Flanders, que diz no ter o dinheiro, mas que rezar para que ele o consiga.

    Quem d o dinheiro para o pagamento do sequestro Ronaldo, que fica rico graas aos

    sapatos que comprou com as doaes de Lisa, j que tinha se tornado personagem

    Flamenco Flamingo do programa Teleboobies. E, segundo o garoto, como no tem pais,

    seu salrio no era roubado.

    Figura 6. Posto decadente, policial incompetente e que entende todas as falas de forma sexualizada.

    O local escolhido para o pagamento do sequestro o bondinho do Po de

    Acar, cone turstico do Rio de Janeiro. Homer despede-se dos sequestradores com um

    lbum de recordaes, mostrando amizade e simpatia aos brasileiros atravs do

    desenvolvimento da Sndrome de Estocolmo os sequestradores tambm se tornam

    amigos de Homer, rindo das lembranas dos momentos de cativeiro. Quando Marge joga

    a mala de dinheiro, os sequestradores comentam: nosso dinheiro mesmo gay,

    referindo-se ao excesso de notas nas cores rosa e roxo. Quando Homer pula para o

    bondinho onde est sua famlia, o cabo se quebra e os bandidos comentam: deveramos

    ter escolhido um lugar mais seguro para a troca. Mas foi a escolha de Homer. Como dizer

    no para essa carinha? Por fim, depois da queda do carro, Bart engolido por uma cobra

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    gigante e diz para que ningum se preocupe, pois carnaval e comea a sambar

    (Figura 7).

    Figura 6. Bart samba aps ser engolido por uma cobra gigante aos ps do Po de Acar.

    Esse final remete a um outro conceito presente em todo episdio: a vida no

    Rio de Janeiro selvagem, em seu sentido estrito de viver na selva. A primeira referncia

    feita logo no incio, quando Ronaldo diz que, com a doao de Lisa, comprou uma porta

    para o orfanato, e agora os macacos no poderiam mais peg-lo ento o garoto foge um

    bando que o persegue. Em outro momento, Marge e Lisa chegam a uma banca com

    souvenires: peles e pulseiras que so animais vivos (raposas e cobras). Homer

    sequestrado no Rio de Janeiro e levado para a o meio da floresta Amaznica. Com

    relao a esta ideia, bom lembrarmos que, na modernidade, esses conceitos relacionados

    de presena de animais e florestas so vistos como um atraso, pois a vida boa a

    cercada de tecnologia, como a dos americanos.

    Outras referncias cidade e sua cultura so feitas a todo momento. Os

    cones tursticos da cidade so exibidos em quase todos os lugares: o Cristo Redentor, na

    chegada da famlia ao Brasil (eles veem o Corcovado ainda do aeroporto do Galeo), a

    vista da Baa de Guanabara, com o Po de Acar e o bondinho ao fundo, a partir da

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    janela do hotel; as favelas coloridas, pintadas para no ofender os turistas, e at os ratos

    tm diferentes cores; a praia de Copacabana, corao e alma da cidade, tendo ao fundo

    o Po de Acar; uma feira livre; um desfile de escola de samba (o carnaval) e at mesmo

    os quadros que decoram o hotel e o quarto em que ficam hospedados so paisagens da

    cidade.

    Temos tambm citaes ao futebol, no apenas atravs do nome do rfo

    desaparecido (Ronaldo), mas tambm, quando a famlia chega ao hotel, todos so timos

    jogadores: a recepcionista joga com os ps a chave do quarto, o auxiliar cabeceia as

    bagagens e grita gol; Homer diz: Olhe, Marge! Sou brasileiro e tenta jogar futebol

    com sua mala, mas no consegue.

    Ainda encontramos a produo de outros sentidos para as identidades

    brasileiras, como na churrascaria, onde os garons esto pilchados ao melhor estilo

    gacho, e h tambm um garom de sexualidade ambgua; as pessoas que enganam

    Homer (no txi e na feira livre), caracterstica malandragem do brasileiro e do carioca;

    o fcil relacionamento, inclusive entre Homer e seus sequestradores, parte da ideia do

    brasileiro como um povo receptivo e amigvel; os brasileiros que admitem estar

    destruindo a floresta amaznica, tambm uma verdade americana baseada em

    interesses socioeconmicos da regio (essa discusso sobre a suposta

    internacionalizao da floresta Amaznica extremamente complexa e no cabe na

    discusso deste artigo, portanto, trago apenas como referncia do pensamento

    estadunidense sobre o Brasil, a despeito das reais queimadas e extraes ilegais

    realizadas). Enfim, todo desenho apresenta, inventa, constitui sentidos e verdades sobre

    a cidade do Rio de Janeiro, sobre o Brasil, e sobre ns, brasileiros, cariocas ou no.

    Concluses

    No desenho, podemos encontrar diversos esteretipos dos tipos brasileiros,

    tal como os descritos por Freitas (1997), como personalismo (sociedade baseada em

    relaes pessoais; busca de proximidade e afeto nas relaes; paternalismo);

    malandragem (flexibilidade e adaptabilidade como meio de navegao social; jeitinho);

    sensualismo (gosto pelo sensual e pelo extico nas relaes sociais). Essas representaes

    so feitas das mais diversas formas, sutis ou no, ao longo de todo o episdio. Segundo

    Dorfman e Mattelart (1978), em Para ler o Pato Donald,

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    (...) Disney [em nosso caso, a Fox] no descobriu essa caricatura, mas

    explora-a ao mximo, englobando todos esses lugares-comuns sociais,

    enraizados nas vises do mundo das classes dominantes nacionais e

    internacionais, dentro de um sistema que afiana sua coerncia. (p.63)

    Um pouco mais adiante, os autores ainda dizem que a ameaa no ser o

    porta-voz do american way of life, o modo de vida do norte-americano, mas (...)

    representa[r] o american dream of life(...) (p.127, grifo dos autores). Ao analisarmos o

    desenho, percebemos que a representao feita do povo brasileiro e da sua cultura a de

    um povo e de uma cultura, de uma forma geral, inferior norte-americana. Assim, ao

    apresentar um povo com graves problemas sociais criminalidade, apelo sexual infantil

    e onde tudo se acaba em samba que so atribudos imagem de uma nao, os Estados

    Unidos podem enaltecer a sua cultura, pois, como afirma Hall (2001, p.51), as diferenas

    entre as naes residem nas formas diferentes pelas quais elas so imaginadas, o Brasil

    o outro da cultura americana, tal como o oriente, a frica, etc. Marcando a posio

    de outro, os EUA tambm marcam sua posio como correto e melhor.

    Assim, podemos ver o episdio Blame it on Lisa como criador e mantenedor

    de identidades sobre o Brasil e o brasileiro; no que a Fox tenha inventado essas

    identidades, mas baseia-se em esteretipos construdos ao longo dos anos, nos clichs

    vastamente difundidos e na prpria experincia e cultura de seus criadores para

    disseminar amplamente pela TV, Internet, revistas, entre outros meios de comunicao,

    essas identidades, que vo, de certa forma, ensinando ao mundo sobre nosso pas e

    nossa cultura.

    No entanto, temos tambm que entender Os Simpsons como uma srie que

    utiliza da hiper-ironia como forma de humor e seus episdios so reconhecidos pela farta

    crtica no apenas aos outros, mas tambm a si mesmos, a esse modo de vida americano

    que se entende superior. Alm disso, contextualizar o episdio em seu momento histrico

    fundamental para compreender a mudana pela qual passou a cidade do Rio de Janeiro,

    considerando seus preparativos e seu trabalho de branding visando atrair turistas, recursos

    financeiros e megaeventos, especialmente Copa do Mundo e Olimpadas.

    Por outro lado, como nos coloca Jaguaribe (2011, p.2),

  • 16

    O acmulo de capital simblico das cidades depende, evidentemente,

    de uma gama de fatores entre os quais as expresses culturais

    sedimentadas pelo legado histrico, a fora econmica e poltica da

    cidade, o investimento e presena do estado, a dimenso global que a

    metrpole possui e tambm a ao do empreendimento capitalista que

    reinventa as cidades como arenas de consumo e espetculo.

    Portanto, a partir desse trabalho, espera-se que a prxima visita da famlia

    Simpson nossa cidade se coloque de uma forma diferente, consonante com o estmulo

    ao consumo turstico do pas pois, apesar deste legado histrico em muitos momentos

    depor contra, o investimento na imagem da cidade maravilhosa tem sido intenso e

    contnuo.

    Como profissional de Relaes Pblicas, estou inserida neste contexto que

    engloba produo discursiva e de identidades dentro dessas arenas de consumo. O

    comunicador busca articular mensagens, construir verdades, sendo sempre parte

    integrante do processo. Por meio dessa construo, o RP orienta comportamentos,

    constri a imagem positiva da organizao (ou cidade, ou estado, ou pas), com a

    finalidade de promov-la, inseri-la na lgica de mercado, atrelar ideias a ela. Nesse

    processo, as Relaes Pblicas so constituidoras de verdades e realidades,

    diagnosticando problemas, planejando solues passveis de contribuir para governar

    visando produtividade, ao consumo, mobilizao social, ao turismo. necessrio

    compreender essas relaes e a grande responsabilidade que temos ao delimitar o campo

    de ao dos outros, ao produzir verdades, pensando a prtica profissional de forma

    responsvel.

    Termino esse artigo com a citao de Canclini (2010, p. 18-19): Faz-se

    necessrio que ns, pesquisadores, realizemos anlises cuidadosas da remodelao dos

    espaos pblicos e dos dispositivos que se perdem ou se recriam para o reconhecimento

    ou proscrio das mltiplas vozes presentes em cada sociedade.

  • 17

    Referncias Bibliogrficas

    ALMEIDA, Alessandro de. Dimenses polticas e sociais de um entretenimento

    audiovisual lucrativo: Os Simpsons e as produes imagticas sobre o Brasil. 2011. Tese

    (Doutorado em Histria) Universidade Federal de Uberlndia, Uberlndia-MG, 2011.

    Disponvel em em 13 de janeiro de

    2014.

    CANCLINI, Nstor Garca. Consumidores e cidados: conflitos multiculturais da

    globalizao. 3ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2010.

    DORFMAN, Ariel; MATTELART, Armand. Para ler o Pato Donald comunicao de

    massa e colonialismo. 2ed. Trad. lvaro Moya. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

    FREITAS, Alexandre Borges de. Traos brasileiros para uma anlise organizacional. In:

    MOTTA, F.C.P.; CALDAS, M.P.(orgs.). Cultura organizacional e cultura brasileira. So

    Paulo: Atlas, 1997. p.39-54.

    FREITAS, Ricardo Ferreira; FORTUNA, Vania Oliveira. O Rio de Janeiro continua

    lindo, o Rio de Janeiro continua sendo o grande palco brasileiro de megaeventos. In:

    VIII NUPECOM ENCONTRO DOS NCLEOS DE PESQUISAS EM

    COMUNICAO, do XXXI Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao. Natal,

    Rio Grande do Norte, setembro de 2008. Disponvel em <

    http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2008/resumos/R3-0714-1.pdf> em 15 de

    janeiro de 2014.

    HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. 5ed. Trad. Tomaz Tadeu da

    Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

    JAGUARIBE, Beatriz. Imaginando a Cidade Maravilhosa: modernidade, espetculo e

    espaos urbanos. In: XX ENCONTRO DA COMPS, Universidade Federal do Rio

    Grande do Sul, Porto Alegre, de 14 a 17 de junho de 2011. Disponvel em <

    http://www.compos.org.br/data/biblioteca_1694.doc> em 15 de janeiro de 2014.