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Anais do X Seminário de Ciências Sociais - Tecendo diálogos sobre a pesquisa social Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais 22 a 26 de Outubro de 2012 12 A CULTURA AFRO E A PERCEPÇÃO DE RELIGIOSIDADE NO BRASIL ATUAL Richard de Freitas Gomes Acadêmico do curso de História - UEM - Maringá (2012) E-mail: [email protected] Resumo: A presença da cultura afro no Brasil remonta ao século XVI onde ocorre a partir da chegada de escravos para a lida nas lavouras de cana de açúcar. Compartilha também nesse período, a cultura cristã vinda através de colonizadores e Jesuítas. Essa comunicação visa observar alguns aspectos da cultura afro no Brasil em paralelo ao modelo religioso descrito como cultural para a sociedade brasileira. Nossa problemática se apoia na premissa de que a cultura afro, engloba valores antropológicos que se chocam com as estruturas religiosas trazidas da Europa para o Brasil, a partir do século XVI, nesse sentido, a cultura afro se apresentaria muito mais ampla impossibilitando a afirmação de que essas instituições pertencentes a um enquadramento cultural onde, valores em que o bem e o mau, a vida e a morte não partilham do mesmo universo. Em suma, tentaremos abordar de maneira científica que, as estruturas que tomamos como estruturas religiosas, não dariam conta de afirmar que os Candomblés são apenas uma religião, mas sim, um complexo cultural mais amplo. Para apoiar nossa discussão lançaremos mão de autores como Mircea Eliade o qual assume fundamental importância para uma delimitação inicial de alguns conceitos sobre o sagrado e o espaço; Paula Montero, a qual nos ajuda a compreender a organização do espaço religioso, Peter Burke nos fornece conceitos acerca da cultura e suas diferentes formas de hibridizações culturais, Lísias Negrão e Renato Ortiz nos contemplam com estudos sociológicos acerca das macumbas cariocas e paulistas; Reginaldo Prandi com descrições importantes que nos farão compreender a aplicabilidade de conceitos de vida e de morte e bem e mal, na cultura afro; e Pierre Verger o qual, contribuiu exponencialmente para o enriquecimento informativo acerca da cultura afro no Brasil e na própria África. Palavras-chave: Religiosidade afro; Cultura; Cristãs; Modelo religioso; Candomblé.

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A CULTURA AFRO E A PERCEPÇÃO DE RELIGIOSIDADE NO BRASIL ATUAL

Richard de Freitas Gomes

Acadêmico do curso de História - UEM - Maringá (2012)E-mail: [email protected]

Resumo: A presença da cultura afro no Brasil remonta ao século XVI onde ocorre a partir da chegada de escravos para a lida nas lavouras de cana de açúcar. Compartilha também nesse período, a cultura cristã vinda através de colonizadores e Jesuítas. Essa comunicação visa observar alguns aspectos da cultura afro no Brasil em paralelo ao modelo religioso descrito como cultural para a sociedade brasileira. Nossa problemática se apoia na premissa de que a cultura afro, engloba valores antropológicos que se chocam com as estruturas religiosas trazidas da Europa para o Brasil, a partir do século XVI, nesse sentido, a cultura afro se apresentaria muito mais ampla impossibilitando a afirmação de que essas instituições pertencentes a um enquadramento cultural onde, valores em que o bem e o mau, a vida e a morte não partilham do mesmo universo. Em suma, tentaremos abordar de maneira científica que, as estruturas que tomamos como estruturas religiosas, não dariam conta de afirmar que os Candomblés são apenas uma religião, mas sim, um complexo cultural mais amplo. Para apoiar nossa discussão lançaremos mão de autores como Mircea Eliade o qual assume fundamental importância para uma delimitação inicial de alguns conceitos sobre o sagrado e o espaço; Paula Montero, a qual nos ajuda a compreender a organização do espaço religioso, Peter Burke nos fornece conceitos acerca da cultura e suas diferentes formas de hibridizações culturais, Lísias Negrão e Renato Ortiz nos contemplam com estudos sociológicos acerca das macumbas cariocas e paulistas; Reginaldo Prandi com descrições importantes que nos farão compreender a aplicabilidade de conceitos de vida e de morte e bem e mal, na cultura afro; e Pierre Verger o qual, contribuiu exponencialmente para o enriquecimento informativo acerca da cultura afro no Brasil e na própria África.

Palavras-chave: Religiosidade afro; Cultura; Cristãs; Modelo religioso; Candomblé.

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INTRODUÇÃO

Objetivamos com essa comunicação, observar um possível grau de divergência cultural presente nas críticas que norteiam a ética ou a moral observada no exemplo que colocaremos mais adiante. Contudo, entendemos que para dar sustentação para nossa análise metodológica, Mircea Eliade assume fundamental importância para uma delimitação inicial de alguns conceitos sobre o sagrado e o espaço; Paula Montero, nos ajuda a compreender a organização do espaço religioso, Peter Burke nos fornece conceitos acerca da cultura e suas diferentes formas de hibridizações culturais, Lísias Negrão e Renato Ortiz nos contemplam com estudos sociológicos acerca das macumbas cariocas e paulistas; e Reginaldo Prandi com descrições importantes que nos farão compreender a aplicabilidade de conceitos de vida e de morte e bem e mal, na cultura afro; e Pierre Verger contribuiu exponencialmente para o enriquecimento informativo acerca da cultura afro no Brasil. De forma que nossa discussão poderá ser observada em duas partes, sendo que: na primeira parte objetivamos mostrar de maneira sucinta algumas considerações sobre o termo religião, sagrado, e o posicionamento do indivíduo em relação ao sagrado; em um segundo momento colocaremos, também de forma sintética, algumas constatações dos autores sobre a cultura afro.

DESENVOLVIMENTO

Quais elementos são necessários para afirmar o que é moralmente correto dentro do campo religioso? Emerson Giumbelli (2008), chama nossa atenção para uma abordagem apoiada na busca de respostas para a prevalência de religiões no espaço público e seu reconhecimento a partir de dispositivos jurídicos os quais, se aplicam a partir de uma legitimidade social, de forma que essa legitimidade somente foi possível com a laicidade de algumas formas de religião, ou seja, o autor chama à atenção para um fato em que o rompimento do Estado com a Igreja propiciou a legitimidade de algumas formas religiosas que até finais do século XIX, estariam a sombra da Igreja Católica no Brasil. Sendo assim, seria uma legitimação religiosa iniciada pelas instituições jurídicas e posteriormente assimiladas pela sociedade. Paula Montero (2006), concorda com Giumbelli, admitindo que algumas práticas religiosas a partir do rompimento do Estado com a Igreja, se modificaram e se adequaram a uma nova realidade, visto que almejavam a liberdade religiosa, ou seja, as religiões não-cristãs tiveram que passar por um processo intenso envolvendo modificações em sua forma de apresentação, para então se enquadrarem a um modelo religioso aceito e legitimado pela esfera tripartite - Estado, Família e Sociedade Civil. Pierre Bourdieu1, por sua vez, entende que as estruturas que definem o campo religioso estão ligadas a um mercado econômico de bens simbólicos, uma vez que o autor admite a existência de um grupo especializado na produção de bens religiosos e de um grupo que sustenta esse

1 Essa é uma reflexão obtida através do trabalho de Nivia Ivette Paz e Rogério Sávio Link. Bourdieu e o fazer teológico. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo.2007.

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grupo especializado que em troca, produz um sustento espiritual, esse sustento poderia ser entendido como uma espécie de catalizador para a legitimação da presença religiosa. Seja qual for o critério adotado para definir como legítima ou não uma determinada prática religiosa, uma coisa é possível de ser afirmada: toda religião necessita de estruturas - cultos, signos, magia, sagrado, doutrina, sacerdote e fiel. Iniciemos, portanto, nossa comunicação com um pequeno exemplo prático e muito comum observado dentro de algumas religiões de matriz afro para então, a partir dele desenvolver toda a nossa argumentação:

“Uma pessoa com problemas de natureza afetiva, uma mulher, por exemplo, chega à uma consulta dentro de um terreiro qualquer e põe-se a lamentar diante de uma entidade. Essa pessoa pede auxílio à entidade com o objetivo de trazer para si o amante que se encontra atualmente ao lado de outra. A entidade analisa e aceita o pedido lhe prometendo que dentro de alguns dias, mediante o cumprimento de oferendas por ela solicitada, ela teria o que havia pedido.” 2

Para Martins (2009), até o século XIX acreditava-se que a religião teria surgido a partir de um mentor ou mentores com datas e locais aproximados, porém, a partir do avanço no campo de pesquisa etnográfica, antropológica, histórica e arqueológica, na segunda metade do século XIX, observou-se um novo direcionamento nos estudos das religiões e com isso novas interpretações.

Entendemos que o termo “religião”, segundo Silva (2004), deriva da palavra latina religio e implicava inicialmente em um conjunto de regras, interdições e advertências sem fazer referência a rituais, divindades, mitos, signos ou qualquer manifestação que atualmente interpretamos como religiosa. Nesse sentido, podemos inferir que a religião é um produto da construção histórica e cultural, uma vez que ao chegar no ocidente adquiriu uma roupagem ligada a tradição Cristã.

Para Mircea Eliade (1999), autor romeno que melhor delineou conceitos acerca das religiões, a religião estaria ligada diretamente ao sentimento de sacralidade do indivíduo primitivo onde há um sagrado intrínseco na natureza humana, ou seja, o indivíduo em busca de se aproximar do sagrado, modifica seu espaço moldando-o de acordo com sua visão do sacro, ou nas palavras do autor:

A profunda nostalgia do homem religioso é habitar um “mundo divino”, ter uma casa semelhante à “casa dos deuses”, tal qual foi representada mais tarde nos templos e santuários. Em suma, essa nostalgia religiosa exprime o desejo de viver num Cosmos puro e santo, tal como era no começo, quando saiu das mãos do Criado (Eliade, 1999; p. 37).

O espaço sagrado também sofre alterações, uma vez que, para viver no Mundo é preciso

2 Esse é um exemplo inserido na problemática da comunicação e fictício, no entanto, está embasado em exemplificações observadas por nós em conversas mantidas com pessoas de credos distintos. A figura de Exu aparece aqui com o objetivo de mostrar um perfil controverso ou ambíguo o qual, trataremos mais adiante.

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fundá-lo e é a manifestação do sagrado que funda o mundo e permite a obtenção de um ponto fixo capaz de orientação na homogeneidade do profano a fim de se viver o real. Nesse sentido, o autor nos mostra que em várias religiões, o território só pertence ao homem religioso à medida que ele o consagra como tal, em outras palavras, quando o homem religioso repete o ato de criação executado pelo sagrado, tem-se, portanto, a fundação de um mundo pois, instalar-se em um território equivale a consagrá-lo.

Portanto, o homem imerso no sentimento religioso, busca viver permanentemente em sintonia com o sagrado imitando os deuses em sua obra criadora. Nesse sentido entendemos que o sentimento religioso é algo inerente ao indivíduo.

Para estruturar nossa argumentação precisamos ter em mente os conceitos de vida e de morte e bem e mal dentro da cultura afro e a cultura Cristã, uma vez que essas variáveis devem ser compreendidas dentro de seus respectivos espaços para melhor elucidarmos nossa problemática. Para isso lançaremos mão das observações de autores especializados nessas leituras.

A partir de Prandi (2000), entendemos que os iorubás e outros grupos africanos que sustentaram as bases de nossa cultura afro brasileira, creem que a vida e a morte se circunscrevem em um círculo aonde, o contato com a natureza coincide com o mundo no qual vivemos, esse mundo chama-se aiê, enquanto o outro mundo - o mundo dos espíritos, ancestrais, dos orixás, ou de outras divindades - coincide com o mundo para onde vão os mortos, esse local para os iorubás é chamado de orum. De forma que, quando alguém morre no aiê, seu espírito ou parte dele segue para o orum, de onde após algum tempo pode retornar ao aiê nascendo novamente.

Segundo o relato de Prandi, é possível compreender que o indivíduo a partir da cultura afro, mais precisamente iorubá a qual, o autor confere maior enfoque, não almeja qualquer prêmio no seu pós-vida, não existe o conceito de vida e de morte semelhante ao conceito de bem e de mal, inferno, purgatório ou céu, incorporado a partir da chegada de colonos europeus no século XVI ao Brasil, cultura essa desenvolvida a partir da sociedade ocidental Cristã-católica, que entende que o ser humano é formado de alma - espírito indivisível - e corpo material. Nas tradições iorubás, segundo Prandi, existe sim a ideia de corpo material, porém, esse corpo se decompõe após a morte se reintegrando a natureza enquanto o espírito aguarda o retorno para o mundo dos vivos ou o aiê.

Em suma, observando com olhar antropológico a partir do autor, para nós ocidentais - Brasil - imersos na cultura ética e moral do cristianismo de matriz europeia, é possível inferir que algumas propriedades são tomadas como inerentes e indissolúveis, como é o caso de alma e matéria, uma vez que somos compelidos a ter uma existência terrena exemplar com o propósito de garantirmos um local agradável no pós-morte, enquanto que para algumas culturas afro, aqui a cultura iorubá, essa divisão é inexistente, uma vez que o indivíduo não se sustenta na vida

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terrena em busca de um paraíso ou uma existência gratificada nos pós-morte, esse indivíduo não possui os mesmos valores éticos e morais comuns a sociedade Cristã-ocidental. Tal afirmação pode ser melhor verificada quando nos remetemos a obra intitulada Os Orixás - Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo - Pierre Verger (1981). Nas palavras de Arlete Soares, responsável pela citação ao autor no início de sua obra, [...] Pierre Fatumbi Verger, viveu durante dezessete anos em sucessivas viagens, desde 1948, pelas bandas ocidentais da África, em terras iorubás. Tornou-se babalaô em Kêto, por volta de 1950, e foi por essa época que recebeu de seu mestre Oluwo o nome de Fatumbi: "Aquele que nasceu de novo (pela graça) de Ifá".

O autor faz referência a diversos Orixás, um deles Ogum ou ÒGÚN - orixá da guerra tanto no Brasil como em terras iorubás - nas palavras de Verger:

Ogum, como personagem histórico, teria sido o filho mais velho de Odùduà, o fundador do Ifé. Era um temível guerreiro que brigava sem cessar contra os reinos vizinhos. Dessas expedições, ele trazia sempre um rico espólio e numerosos escravos. Guerreou contra a cidade de Ará e a destruiu. Saqueou e devastou muitos outros Estados e apossou-se da cidade de Ire, matou o rei, aí instalou seu próprio filho no trono e regressou glorioso, usando ele mesmo o título de Oníìré, “Rei de Ire”. (Verger, 1981; p. 44).

Com essa passagem, Pierre Verger nos mostra que historicamente um indivíduo com características que a princípio se chocam com a moral Cristã brasileira - o bem e o mau - ou invadir, roubar e pilhar, estão presentes na cultura dessa personagem. Evidencia portanto, que sua cultura não pode ser observada a partir dos mesmos valores antropológicos e morais adotados no Brasil. Por outro lado mostra também o respeito adquirido pelo indivíduo seja em vida como no pós-morte, visto que esse indivíduo ainda é relembrado na condição de um orixá até nos dias atuais, portanto, venerado e cultuado como tal.

Em outra obra, A Lendas Africanas dos Orixás, também de Pierre Verger (1997), o autor argumenta a partir da narrativa de um Babalaô, as condições que levaram alguns indivíduos a assumir a postura de orixá:

Um babalaô me contou: "Antigamente, os orixás eram homens. Homens que se tomaram orixás por causa de seus poderes. Homens que se tomaram orixás por causa de sua sabedoria. Eles eram respeitados por causa da sua força, Eles eram venerados por causa de suas virtudes. Nós adoramos sua memória e os altos feitos que realizaram. Foi assim que estes homens tomaram-se orixás. Os homens eram numerosos sobre a Terra. Antigamente, como hoje, Muitos deles não eram valentes nem sábios. A memória destes não se perpetuou. Eles foram completamente esquecidos; Não se tornaram orixás. Em cada vila, um culto se estabeleceu Sobre a lembrança de um ancestral de prestígio E lendas foram transmitidas de geração em geração, para render-lhes homenagem". ( Verger, 1997; p. 10).

A narrativa fala por si só, o que cabe ressaltar aqui são os fatores que levaram alguns

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ao estado de merecimento de cultos, nesse sentido temos alguns mais outros menos conhecidos dentro dos rituais afro, mas a ancestralidade do indivíduo é um fator de extrema importância no que sugere respeito e devoção de seus entes e familiares que contribuíram para perpetuar historicamente a imagem do ancestral, uma vez que o processo se pauta na oralidade histórica e valores atribuídos a indivíduos de acordo com seus feitos no passado. Alguns indivíduos, em vida, se tornam ilustres - são os eguns - a eles são prestados cultos em sua memória, sacrifícios podem lhes ser ofertados como se faz com os orixás - deuses que representam às forças da natureza e vivem no orum - esses eguns representam os ancestrais de uma determinada comunidade ou família, representam as raízes e identidades do coletivo, segundo Prandi. Teríamos, portanto, duas identidades: os orixás que são reconhecidos e legitimados por um coletivo, e paralelamente os eguns, com semelhantes atribuições, porém, com reconhecimento mais reduzido, restrito ao seio familiar.

O bem e o mal não se separam, segundo Prandi (2007), tanto para os Candomblés como para às Umbandas. Porém a Umbanda durante a sua formação almejava uma religião ética aos moldes da religião ocidental Cristã3, isso acabaria por se tornar um transtorno pois, ela abarcaria de um lado a direita4 - lado que compreende os orixás e guias espirituais como caboclos, pretos velhos, crianças, boiadeiros, baianos, marinheiros, ciganos, mineiros, encantados, sereias e povo do oriente - em oposição a esquerda - trabalhos voltados para transes com exus e pombagiras - essa divisão nos permite observar dois campos éticos bastante distintos. No entanto, no passado, os cultos voltados para a esquerda eram bastante velados, de forma que apenas participantes internos tinham acesso, nos dias atuais esses cultos ganharam espaço nos trabalhos umbandistas e passaram a ser abertos.

Temos, portanto, de um lado a caridade aos moldes cristãos kardecistas, a direita, enquanto do outro a representação do mal a esquerda. Note-se que essa interpretação de mal, pode ser observada a partir de diversos ângulos, optamos por ressaltar a exemplificação de Prandi (2007), por ser a visão que melhor se projetou para nossa problemática.

[...] o culto dos exus e pombagiras, identificados popularmente, especialmente pelos religiosos oponentes, como figuras diabólicas — culto tratado durante muito tempo com discrição e segredo — veio recentemente a ocupar na umbanda lugar aberto e de realce. Era tudo de que precisava um certo pentecostalismo: agora o diabo estava ali bem à mão, nos terreiros adversários, visível e palpável [...] Pastores da Igreja Universal do Reino de Deus, em cerimônias fartamente veiculadas pela televisão, submetem desertores da umbanda e do candomblé, em estado de transe, a rituais de exorcismo, que têm por fim humilhar e escorraçar

3 Prandi, 2007; p. 18.

4 A termologia “direita” e “esquerda” está presente ao longo da obra de Lapassade, Georges; Luz, Marco. O Segredo da Macumba. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972. Assume o propósito de diferenciar alguns orixás dentro das casas religiosas de forma que, a direita estaria voltada para a prática do bem, enquanto a esquerda estaria direcionada a praticar o mau.

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as entidades espirituais afro-brasileiras incorporadas, que eles consideram manifestações do demônio, num ataque sem trégua ao candomblé e à umbanda e a seus deuses e entidades. (Prandi, 2007; pp. 18-19).

O caráter atribuído a exu - o mau - segundo Pierre Verger (1981), pode assumir um perfil semelhante ao caráter do homem, uma vez que o autor chama nossa atenção para o arquétipo de exu no sentido de enfatizar que seus valores estariam inerentes aos valores da sociedade, visto que vivemos em uma sociedade ambivalente, segundo a nomeação dada pelo autor, onde proliferam indivíduos de caráter dúbio - pessoas com inclinações para o bem e para o mal simultaneamente - ou nas palavras do autor:

[...] Pessoas que têm a arte de inspirar confiança e dela abusar, mas que apresentam, em contrapartida, a faculdade de inteligente compreensão dos problemas dos outros e a de dar ponderados conselhos, com tanto mais zelo quanto maior a recompensa esperada. As cogitações intelectuais enganadoras e as intrigas políticas lhes convêm particularmente e são, para elas, garantias de sucesso na vida. (Verger, 1981; p. 42).

Essa argumentação começa a tomar forma quando recordamo-nos do passado onde, a cultura afro havia sido suprimida no Brasil, restringia-se quando possível, às senzalas e a cultos isolados e escondidos dos senhores (PARÉS, 2006; p. 181) .

Como saída para perpetuar suas tradições, escravos tomaram para si a roupagem das figuras dos santos católicos para camuflar seus cultos de adoração aos deuses e com isso procuravam permanecer no anonimato. No entanto, ocorre que existiu uma figura que não se encaixava aos moldes éticos e morais cristãos, devido ao seu caráter ambivalente - exu. Para melhor caracterizar o perfil desse orixá, recorremos novamente a Verger:

[...] O lado malfazejo de Exu é evidenciado nas seguintes histórias: Uma delas, bastante conhecida e da qual existem numerosas variações, conta como ele semeou discórdia entre dois amigos que estavam trabalhando em campos vizinhos. Ele colocou um boné vermelho de um lado e branco do outro e passou ao longo de um caminho que separava os dois campos. Ao fim de alguns instantes, um dos amigos fez alusão a um homem de boné vermelho; o outro retrucou que o boné era branco e o primeiro voltou a insistir, mantendo a sua afirmação; o segundo permaneceu firme na retificação. Como ambos eram de boa fé, apegavam-se a seus pontos de vista, sustentando-os com ardor e, logo depois, com cólera. Acabaram lutando corpo a corpo e mataram-se um ao outro. (Verger, 1981; p. 40).

Essa é apenas uma das diversas lendas atribuídas a esse orixá, Caroso e Rodrigues (1998), chamam nossa atenção para o perfil dessa divindade, de forma que a ele é consagrado a provocar e curar doenças, promover a desordem e estabelecer a ordem. Seu caráter trickster, colaborou para que no passado, a religião Cristã o associasse ao diabo ou ao demônio católico, devido o destaque para seus aspectos negativos, ou seja, pela capacidade de proporcionar ganhos para uns e perdas para outros.

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Lísias Negrão (1996), nos fornece um panorama geral acerca da presença dessa entidade na Umbanda:

Os exus e suas mulheres, as pombas-giras, aceitam qualquer pedido de seus clientes, independentemente de preocupações de ordem moral, desde que pagos para isso [...] Não são propriamente o diabo, apesar da catequese católica ter feito essa identificação, já que sua iconografia africana o representa com chifres, tridente de ferro e com falo evidente, além de ter no fogo o seu símbolo. [...] são vistos como espíritos de mortos, “eguns” ou “quiumbas”, que em vida foram assassinos, ladrões, etc. Ficaram vagando até serem recolhidos por Lúcifer, que os colocou a seu serviço. [...] tratam sobretudo do relacionamento sexual, arranjam namorados, amantes e esposos e fazem as “amarrações” de pessoas amadas, mesmo que casadas com outros. (Negrão, 1996; pp. 82-87).

Através de Negrão conseguimos observar um resumo das qualidades ofertadas a essa entidade ambígua - exu - e conseguimos perceber também que a sua moral e ética contribuíram para a promoção de uma imagem negativa acerca de sua pertença nas religiões de matriz afro.

CONSIDERAÇÕES

Com o propósito de responder a nossa problemática acerca de uma possível divergência de valores morais envolvendo as religiões de natureza afro, elencamos essa argumentação, embora parecendo um tanto quanto desfragmentada - uma colcha de retalhos - entendemos que seria possível tecer algumas possíveis considerações sobre essa temática e amarrar os argumentos para justificar nossos objetivos.

A cultura modifica-se e adequa-se de acordo com o meio no qual ela está se articulando. Elementos novos são agregados enquanto antigas práticas acabam por se perder na linha do tempo e do espaço. Peter Burke (2003), anunciava essas ideias quando, sugeriu conceitos que exploram às hibridizações culturais, tais como: apropriação cultural, empréstimo cultural, acomodação e aculturação, dentre outros conceitos. Porém, entendemos que o conceito de acomodação proposto por Burke, é o modelo que melhor se projeta em nossa problemática, ao mesmo tempo que por um lado ressoa como apaziguador de conflitos, por outro lado acabaria por se mostrar negativo ao que tange a perpetuação cultural. Esse conceito proposto por Burke acabaria por responder parte dos percalços percorridos pelas religiões de matriz afro, no Brasil, visto que esse modelo conceitual engloba uma aceitação de uma das partes em prol de um melhor enquadramento social, nesse caso, teríamos as religiões de matriz afro acomodando-se aos moldes da sociedade para se fazer ouvir. Essa acomodação não seria necessariamente um problema, uma vez que visa abarcar o maior número de adeptos, porém, a que preço?

Como pudemos constatar, no passado, houve retaliações por parte do Estado - policiais invadiam casas de cultos religiosos afro e prendiam dirigentes e participantes, sacerdotes e

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filhos de santo - a Igreja não tardou a perseguir todas as condutas que se mostrassem não-cristãs e sobretudo a propagar imagens negativas acerca das práticas afro no Brasil do século XX, isso viria a forçar, tanto por parte do Estado como por parte das instituições, mudanças em seu quadro doutrinário, visando a liberdade religiosas. Isso se constata a partir de Montero, Negrão, Ortiz, dentre tantos outros autores que nos revelam tais práticas no século passado. No entanto, o que se observa quanto produto dessa acomodação, por parte das religiões afro é o afastamento da cultura, iniciado primeiramente pela Umbanda e nos dias atuais comuns pelos Candomblés, de forma que a língua, os ritos e os signos acabam por se perder dando lugar a novas práticas híbridas. Essa constatação no entanto, já havia sido melhor explorada por Ortiz em A morte Branca do Feiticeiro Negro (1978), quando o autor trata a ideia do continuum religioso5, nesse método o autor já observava um gradiente aonde, nos extremos apareceriam as religiões mais ocidentalizadas e as menos ocidentalizadas.

Inicialmente observamos um exemplo bastante comum e vivenciado por nós em discussões que envolvem as religiões de matriz afro. A partir desse exemplo configuramos argumentos que nortearam essa temática. O sagrado, estrutura religiosa, legitimação da função religiosa, para então abordarmos alguns aspectos culturais próprios da cultura afro. O que entendemos com tais argumentações refere-se ao tocante onde, a cultura afro possuí características próprias e inerentes a sua tradição e seu quotidiano. Seus valores jamais devem ser computados ou nivelados aos valores atribuídos ao modelo religioso ocidental Cristão, visto que são completamente diferentes. Seria portanto, uma prática anacrônica atribuir valores estruturais cristãos a essa ou aquela cultura.

O indivíduo de natureza iorubá, por exemplo, nasce e vive sem uma expectativa de salvação pós-morte e portanto, para esse indivíduo valores antropológicos comuns a sociedade ocidental cristianizada, não assume o mesmo peso, visto que, matar, pilhar e escravizar, eram práticas comuns no passado, mais precisamente no que se pontuam nas lendas dos orixás e na ancestralidade dos indivíduos.

Quando nos remetemos a questão de ancestralidade dos indivíduos, assumimos aqui que indivíduos morrem e se tornam figuras passíveis de cultos devido a sua importância quando vivos - não queremos entrar em discussão sobre os critérios que o tornam ou não merecedor de cultos - gostaríamos apenas de ressaltar que indivíduos que um dia estiveram em vida e a partir da cultura afro, em seu pós-morte, se tornaram entidades que aos olhos de seus adeptos e ancestrais merecem cultos. Nesse sentido entra a figura de exu. Uma entidade, como afirmada anteriormente, bastante ambígua que teve sua imagem associada ao demônio cristão devido o seu caráter entendido de maneira negativa no mundo ocidental.

5 Essa é uma termologia utilizada inicialmente por Procópio Camargo que tem por objetivo classificar e enquadrar as religiões em um gradiente, de forma que nas extremidades estariam as religiões mais e menos africanizadas. No entanto esse entendimento está inserido na obra já citada de Renato Ortiz (1978).

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Renato Ortiz (1978), mostra-nos que houve por parte dos cultos afro, uma tentativa de embranquecimento dessa imagem, uma vez que, sacerdotes passaram a incorporar a doutrinação espírita kardecista aos cultos afro, mais precisamente nas Umbandas paulistas e cariocas, elevando a condição de entidades pagãs - exus pagãos - para a condição de exus-batizados, esses ao se converterem para a direita, já estariam, segundo o autor, livre de todos os malefícios que antes lhes eram impostos e, já não se comportavam mais de maneira primitiva, com efeito, já não falavam mais palavrões, não praticavam os atos que antes lhes eram inerentes, não bebiam e não fumavam, essa era a condição. Essa tentativa de domesticação e doutrinação dessas entidades, narrada pelo autor, aparentemente serviram para abrandar as interpretações externas, visto que dificilmente, segundo Negrão (1996), se encontra uma casa aonde o guia principal é um exu, embora moralizado, o que prevalece portanto, a imagem moralizante kardecista aonde, essas entidades assumem novamente a imagem ambígua e original - da porta da casa para dentro - fazem tanto o bem quanto o mau, são desprovidos de moral sendo portanto, amorais.

Em um quadro geral, embora bastante amplo que necessita de um maior aprofundamento, porém, podemos entender que as estruturas religiosas que as religiões brasileiras possuem, são insuficientes para entender e englobar os conceitos e valores culturais afro, dessa forma algumas imagens prevalecem moralmente inferiores.

REFERÊNCIAS

CAROSO, Carlos; RODRIGUES, Núbia. Candomblés de caboclos no Litoral Norte da Bahia: A virada para a banda das esquerdas. Trabalho apresentado no simpósio de pesquisa conjunta PQ01 "As "outras" religiões afro-brasileiras". VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina. São Paulo, 22 a 25 de setembro de 1998.

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