A cultura do abacateiro no Algarve e a sua floração peculiar

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VOZ DO CAMPO | AGROCIÊNCIA | JANEIRO 2019 VOZ DO CAMPO | AGROCIÊNCIA | JANEIRO 2019 V VI A CULTURA DO ABACATEIRO NO ALGARVE E A SUA FLORAÇÃO PECULIAR Rosário Lopes 1* / João Duarte 1,2 / José Furtado 3 / Amílcar Duarte 1,2 * [email protected] 1 Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade do Algarve, Campus de Gambelas, 8005-139, Faro. 2 Centro para os Recursos Biológicos e Alimentos Mediterrânicos (MeditBio), Universidade do Algarve, Campus de Gambelas, 8005-139, Faro. 3 Tropical Concept, Quinta do Ludo, Cxp 54, 8135-021, Almancil, Faro Flor de ‘Hass’ na fase feminina, ao centro, com botões florais e flores fechadas Flores de ‘Hass’ na fase masculina e vários botões florais Ramo de abacateiro ‘Hass’ com várias inflorescências, apresentando várias dezenas de flores e botões florais Inflorescência de abacateiro ‘Bacon’ com uma flor aberta na fase feminina (em baixo) e outra na fase masculina (em cima) IMPORTÂNCIA DA CULTURA DO ABACATEIRO O abacateiro é uma cultura que tem vindo a crescer na região do Algarve, com uma área plantada que duplicou nos últimos 5 anos e atinge já mais de 1000 ha. Apresenta pouca incidência de pragas e doenças e, havendo uma boa produtividade, gera um elevado rendimento, devido ao elevado valor do fruto no mercado ainda em expansão. Encontra-se relativamente adaptado às condições edafoclimáticas do Algarve, pois, embora seja sensível à geada, existem meios de evitar ou minimizar os seus efeitos (sistemas antigeada com microaspersão ou ventiladores para desfazer a inversão térmica). Mesmo assim, o elevado entusiasmo com esta cultura está levando a que se plante pomares em zonas pouco apropriadas, o que poderá vir a alguns insucessos. FLORAÇÃO DICOGÂMICA E TIPOS FLORAIS DE ABACATEIRO Relativamente à floração, o abacateiro é uma espécie peculiar por possuir caraterísticas diferentes das outras fruteiras que nós conhecemos. Apesar de as suas flores serem hermafroditas, apresentam um comportamento incomum, abrindo como femininas (com estigma recetivo e anteras fechadas) e como masculinas (com anteras abertas e estigma não recetivo), em diferentes momentos. Este fenómeno é conhecido por “dicogamia”. Cada fase de abertura dura apenas cerca de meio dia. O período do dia em que se verificam essas etapas determina a classificação das cultivares em dois tipos. Algumas cultivares (tipo floral A) abrem pela manhã como funcionalmente femininas, fechando a seguir e reabrindo na tarde seguinte como funcionalmente masculinas. Outras cultivares (tipo floral B) abrem primeiro, à tarde, como funcionalmente femininas, fecham à noite e reabrem na manhã seguinte como funcionalmente masculinas. Em geral, em cada árvore, a abertura das flores é sincronizada, o que significa que, em cada momento, todas as flores abertas são funcionalmente masculinas ou femininas. O pólen de abacateiro é capaz de polinizar as suas próprias flores - autopolinização. Porém, o fenómeno da dicogamia descrito anteriormente reduz a probabilidade de isso ocorrer, minimizando a quantidade de pólen próprio disponível durante o período em que os órgãos femininos estão recetivos. Daí que, para garantir uma boa polinização e uma boa produção, é necessário ter no pomar cultivares dos dois grupos (A e B). Quando a cultivar principal é do grupo A, deve ter-se em conta a necessidade de plantar polinizadoras do grupo B. Estas cultivares podem representar um encargo adicional para o produtor, uma vez que os seus frutos têm um menor valor comercial, reduz a área plantada com a cultivar principal e dificulta a colheita. A CULTIVAR ‘HASSE SUAS POLINIZADORAS A cultivar ‘Hass’ (do tipo floral A) é a mais produzida mundialmente e o Algarve não é exceção, correspondendo a cerca de 80% de todos os abacates que são consumidos no mundo. As características do fruto fazem com que o seu valor no mercado seja superior aos de outras cultivares, devido à alta qualidade da sua polpa, rica em gorduras poli-insaturadas, com uma consistência amanteigada e isenta de fibras. O caroço é pequeno e a epiderme muda de cor quando amadurece, facilitando a perceção do momento ideal para consumo. Caracteriza-se por ter frutos pequenos, pesando em média 200 a 250g, o que garante maior valor de comercialização. A árvore é compatível com vários porta-enxertos, adaptados a solos diversos e é muito produtiva. Propagada por enxertia, em porta-enxertos clonais ou seminais, começa a produzir a partir do terceiro ano, entrando em plena produção entre o quarto e o quinto e com uma expectativa de vida média da árvore de 15 anos. A escolha da(s) cultivar(es) polinizadora(s), a sua proporção e a sua distribuição não reúnem consenso entre vários autores. Alguns referem que pode haver sobreposição de flores abertas femininas e masculinas na mesma cultivar, o que dispensaria a presença de polinizadoras, embora o pólen da cultivar ‘Hass’ apresente uma menor capacidade de fertilização do que o pólen de ‘Bacon’ e ‘Fuerte’, polinizadoras mais usadas nos primeiros pomares instalados no Algarve. Uma boa polinizadora deve apresentar não apenas uma sobreposição no período da floração, mas também nos estágios sexuais com a cultivar polinizada. A ‘Bacon’ continua a ser amplamente utilizada, porque o fruto tem maior valor comercial, é a que tem maior coincidência de época de floração com a ‘Hass’ e abre as flores como masculinas durante o período em que as do ‘Hass’ abrem como femininas, garantindo assim a disponibilidade de pólen que, ainda assim, terá que ser transferido por agentes polinizadores, sendo para tal necessário instalar colmeias na periferia ou dentro do pomar. Nos últimos anos têm vindo a ser utilizadas outras polinizadoras como ‘Zutano’ e ‘Ettinger’. A ‘Zutano’, que floresce primeiro, poliniza a ‘Hass’ no início da sua floração, enquanto a ‘Ettinger’ a poliniza na fase descendente da floração. Esta última tem-se afirmado como boa dadora de pólen para ‘Hass’, superior a outras cultivares, tendo sido demonstrado que os frutos polinizados com ‘Ettinger’ sobrevivem melhor até à maturação do que os resultantes de polinização com pólen de flores “Hass”. A polinização cruzada, neste caso, torna-se um fator importante para maximizar a produtividade. FLORAÇÃO DO ABACATEIRO NO ALGARVE Havendo já um bom conhecimento da cultura relativamente aos fatores de produção, nomeadamente as suas necessidades hídricas e nutricionais, entendemos que seria pertinente estudar na nossa região o seu comportamento floral, no sentido de fornecer ao setor ferramentas que possam contribuir para uma maior rentabilidade. O efeito da temperatura na abertura das flores não é necessariamente igual em todas as cultivares. Como resultado das diferenças para cada cultivar e da importância de obter floração complementar entre a cultivar principal e a(s) polinizadora(s) escolhida(s), é benéfico monitorizar os padrões de floração de um conjunto de cultivares, para determinar a melhor sobreposição. Num ciclo térmico com máximas de 25 °C e mínimas de 20 °C, as flores comportam-se de forma muito semelhante ao padrão típico descrito na bibliografia e que referimos anteriormente. Sob condições mais frias, com máximas de 20 °C e mínimas de 10 °C, a abertura das flores pode ser atrasada e prolongada. Na primavera de 2018 o período de floração foi retardado relativamente à média de anos anteriores, tendo-se registado em maio temperaturas semelhantes às habitualmente registadas em abril. Após observações exaustivas ao longo do dia e em diferentes dias, confrontadas com os dados de temperatura e HR, concluiu-se que a cultivar ‘Bacon’ é a que apresenta maior compatibilidade ou complementaridade com a cultivar ‘Hass’ (mais flores na fase masculina quando as de ‘Hass’ estão na fase feminina). As cultivares ‘Ettinger’ e ‘Zutano’ foram mais sensíveis às oscilações térmicas, mas, mesmo assim, também se revelaram compatíveis. Na maior parte dos dias o comportamento floral foi o espectável, mas pontualmente registaram-se anomalias como flores abertas durante todo o dia na mesma fase ou árvores com umas flores abertas na fase feminina e outras na fase masculina, em simultâneo. Os dados até agora obtidos revelam que nas condições do Algarve a dicogamia do abacateiro nem sempre se manifesta da mesma forma e que são necessários mais estudos para caracterizar a floração desta espécie e para determinar que técnicas devem ser aplicadas para assegurar uma boa polinização e uma elevada produtividade dos pomares.

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VOZ DO CAMPO | AGROCIÊNCIA | JANEIRO 2019 VOZ DO CAMPO | AGROCIÊNCIA | JANEIRO 2019V VI

A CULTURA

DO ABACATEIRO

NO ALGARVE

E A SUA FLORAÇÃO

PECULIARRosário Lopes 1*/ João Duarte 1,2/ José Furtado3/ Amílcar Duarte1,2

*[email protected] Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade do Algarve, Campus deGambelas, 8005-139, Faro.2 Centro para os Recursos Biológicos e Alimentos Mediterrânicos (MeditBio),Universidade do Algarve, Campus de Gambelas, 8005-139, Faro.3 Tropical Concept, Quinta do Ludo, Cxp 54, 8135-021, Almancil, Faro

Flor de ‘Hass’ na fase feminina, ao centro, com botões florais e flores fechadas

Flores de ‘Hass’ na fase masculina e vários botões florais

Ramo de abacateiro ‘Hass’ com várias inflorescências, apresentando várias dezenas de flores e botões florais

Inflorescência de abacateiro ‘Bacon’ com uma flor aberta na fase feminina(em baixo) e outra na fase masculina (em cima)

IMPORTÂNCIA DA CULTURA DO ABACATEIROO abacateiro é uma cultura que tem vindo a crescer na região do

Algarve, com uma área plantada que duplicou nos últimos 5 anos eatinge já mais de 1000 ha. Apresenta pouca incidência de pragas edoenças e, havendo uma boa produtividade, gera um elevadorendimento, devido ao elevado valor do fruto no mercado aindaem expansão. Encontra-se relativamente adaptado às condiçõesedafoclimáticas do Algarve, pois, embora seja sensível à geada,existem meios de evitar ou minimizar os seus efeitos (sistemasantigeada com microaspersão ou ventiladores para desfazer ainversão térmica). Mesmo assim, o elevado entusiasmo com estacultura está levando a que se plante pomares em zonas poucoapropriadas, o que poderá vir a alguns insucessos.

FLORAÇÃO DICOGÂMICA E TIPOS FLORAIS

DE ABACATEIRORelativamente à floração, o abacateiro é uma espécie peculiar

por possuir caraterísticas diferentes das outras fruteiras que nósconhecemos. Apesar de as suas flores serem hermafroditas,apresentam um comportamento incomum, abrindo como femininas(com estigma recetivo e anteras fechadas) e como masculinas(com anteras abertas e estigma não recetivo), em diferentesmomentos. Este fenómeno é conhecido por “dicogamia”. Cadafase de abertura dura apenas cerca de meio dia. O período do diaem que se verificam essas etapas determina a classificação dascultivares em dois tipos. Algumas cultivares (tipo floral A) abrempela manhã como funcionalmente femininas, fechando a seguir ereabrindo na tarde seguinte como funcionalmente masculinas.Outras cultivares (tipo floral B) abrem primeiro, à tarde, comofuncionalmente femininas, fecham à noite e reabrem na manhãseguinte como funcionalmente masculinas. Em geral, em cadaárvore, a abertura das flores é sincronizada, o que significa que,em cada momento, todas as flores abertas são funcionalmentemasculinas ou femininas.

O pólen de abacateiro é capaz de polinizar as suas próprias flores- autopolinização. Porém, o fenómeno da dicogamia descritoanteriormente reduz a probabilidade de isso ocorrer, minimizandoa quantidade de pólen próprio disponível durante o período emque os órgãos femininos estão recetivos. Daí que, para garantiruma boa polinização e uma boa produção, é necessário ter nopomar cultivares dos dois grupos (A e B). Quando a cultivarprincipal é do grupo A, deve ter-se em conta a necessidade de

plantar polinizadoras do grupo B. Estas cultivares podem representarum encargo adicional para o produtor, uma vez que os seus frutostêm um menor valor comercial, reduz a área plantada com a cultivarprincipal e dificulta a colheita.

A CULTIVAR ‘HASS’ E SUAS POLINIZADORASA cultivar ‘Hass’ (do tipo floral A) é a mais produzida mundialmente

e o Algarve não é exceção, correspondendo a cerca de 80% detodos os abacates que são consumidos no mundo. As característicasdo fruto fazem com que o seu valor no mercado seja superior aosde outras cultivares, devido à alta qualidade da sua polpa, rica emgorduras poli-insaturadas, com uma consistência amanteigada eisenta de fibras. O caroço é pequeno e a epiderme muda de corquando amadurece, facilitando a perceção do momento ideal paraconsumo. Caracteriza-se por ter frutos pequenos, pesando em média200 a 250g, o que garante maior valor de comercialização.

A árvore é compatível com vários porta-enxertos, adaptados asolos diversos e é muito produtiva. Propagada por enxertia, emporta-enxertos clonais ou seminais, começa a produzir a partir doterceiro ano, entrando em plena produção entre o quarto e o quintoe com uma expectativa de vida média da árvore de 15 anos.

A escolha da(s) cultivar(es) polinizadora(s), a sua proporção e asua distribuição não reúnem consenso entre vários autores. Algunsreferem que pode haver sobreposição de flores abertas femininas emasculinas na mesma cultivar, o que dispensaria a presença de

polinizadoras, embora o pólen da cultivar ‘Hass’ apresente umamenor capacidade de fertilização do que o pólen de ‘Bacon’ e‘Fuerte’, polinizadoras mais usadas nos primeiros pomaresinstalados no Algarve. Uma boa polinizadora deve apresentar nãoapenas uma sobreposição no período da floração, mas também nosestágios sexuais com a cultivar polinizada. A ‘Bacon’ continua aser amplamente utilizada, porque o fruto tem maior valor comercial,é a que tem maior coincidência de época de floração com a ‘Hass’e abre as flores como masculinas durante o período em que as do‘Hass’ abrem como femininas, garantindo assim a disponibilidadede pólen que, ainda assim, terá que ser transferido por agentespolinizadores, sendo para tal necessário instalar colmeias naperiferia ou dentro do pomar. Nos últimos anos têm vindo a serutilizadas outras polinizadoras como ‘Zutano’ e ‘Ettinger’. A‘Zutano’, que floresce primeiro, poliniza a ‘Hass’ no início da suafloração, enquanto a ‘Ettinger’ a poliniza na fase descendente dafloração. Esta última tem-se afirmado como boa dadora de pólenpara ‘Hass’, superior a outras cultivares, tendo sido demonstradoque os frutos polinizados com ‘Ettinger’ sobrevivem melhor até àmaturação do que os resultantes de polinização com pólen deflores “Hass”. A polinização cruzada, neste caso, torna-se um fatorimportante para maximizar a produtividade.

FLORAÇÃO DO ABACATEIRO NO ALGARVEHavendo já um bom conhecimento da cultura relativamente aos

fatores de produção, nomeadamente as suas necessidades hídricase nutricionais, entendemos que seria pertinente estudar na nossaregião o seu comportamento floral, no sentido de fornecer aosetor ferramentas que possam contribuir para uma maiorrentabilidade. O efeito da temperatura na abertura das flores não énecessariamente igual em todas as cultivares. Como resultado dasdiferenças para cada cultivar e da importância de obter floraçãocomplementar entre a cultivar principal e a(s) polinizadora(s)escolhida(s), é benéfico monitorizar os padrões de floração de umconjunto de cultivares, para determinar a melhor sobreposição.Num ciclo térmico com máximas de 25 °C e mínimas de 20 °C, asflores comportam-se de forma muito semelhante ao padrão típicodescrito na bibliografia e que referimos anteriormente. Sobcondições mais frias, com máximas de 20 °C e mínimas de 10 °C, a

abertura das flores pode ser atrasada e prolongada. Na primaverade 2018 o período de floração foi retardado relativamente à médiade anos anteriores, tendo-se registado em maio temperaturassemelhantes às habitualmente registadas em abril.

Após observações exaustivas ao longo do dia e em diferentesdias, confrontadas com os dados de temperatura e HR, concluiu-seque a cultivar ‘Bacon’ é a que apresenta maior compatibilidade oucomplementaridade com a cultivar ‘Hass’ (mais flores na fasemasculina quando as de ‘Hass’ estão na fase feminina). As cultivares‘Ettinger’ e ‘Zutano’ foram mais sensíveis às oscilações térmicas,mas, mesmo assim, também se revelaram compatíveis. Na maiorparte dos dias o comportamento floral foi o espectável, maspontualmente registaram-se anomalias como flores abertas durantetodo o dia na mesma fase ou árvores com umas flores abertas nafase feminina e outras na fase masculina, em simultâneo.

Os dados até agora obtidos revelam que nas condições doAlgarve a dicogamia do abacateiro nem sempre se manifesta damesma forma e que são necessários mais estudos para caracterizara floração desta espécie e para determinar que técnicas devem seraplicadas para assegurar uma boa polinização e uma elevadaprodutividade dos pomares.