A CULTURA DO TRABALHO NA EXECUÇÃO DE PENA … · 2017-05-16 · Cultura é tudo aquilo que foi...

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A CULTURA DO TRABALHO NA EXECUÇÃO DE PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE MECANISMOS DE CONTROLE Marianny Alves 1 [email protected] Ynes da Silva Félix 2 [email protected] Resumo O trabalho realizado pelo condenado à uma pena privativa de liberdade durante o cumprimento da sentença imposta é assunto que dispõe de complexidade, em diversos aspectos, principalmente no que se refere a ter ou não um caráter obrigatório e também à sua função dentro de um processo dito (res)socializador. Embora haja discursos dentro e fora da academia que tendam a reforçar o caráter positivo da estreita relação entre trabalho e cumprimento de pena, ela pode e deve ser analisada sob outras perspectivas que permitam refleti-la de forma crítica e que talvez evidenciem um caráter não tão positivo ou não tão claro como os difundidos por aí. Assim, o estudo aqui proposto almeja discutir de que forma a cultura do trabalho atua no cumprimento de uma pena privativa de liberdade, abordando quais seriam suas funções, declaradas ou não. Nesse sentido, a pesquisa se propõe a apresentar a relação histórico-social entre trabalho e prisão, a debater os mecanismos de controle da execução penal e as possíveis consequências e intuitos dessa cultura do trabalho aplicada na privação de liberdade. Para tanto, o estudo se utiliza de pesquisa bibliográfica e documental, de método dedutivo, compatibilizando sua metodologia e fundamentação teórica aos estudos em criminologia crítica, a qual sustenta, incita e vê coerente tal problematização. No mais, ressalta-se que não há por intuito o esgotamento do tema ou a proposição de solução para problema levantado, mas, apenas, de suscitar discussão sobre a temática e, assim, demonstrar a necessidade de se repensar o sistema penal como um todo. Palavras-chave: Trabalho, Controle, Privação de Liberdade 1 Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Bolsista pelo Programa de Bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior – CAPES. 2 Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduada em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco. Professora titular do Curso de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Professora permanente do Curso de Mestrado em Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

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A CULTURA DO TRABALHO NA EXECUÇÃO DE PENA

PRIVATIVA DE LIBERDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE MECANISMOS

DE CONTROLE

Marianny Alves1

[email protected]

Ynes da Silva Félix2

[email protected]

Resumo

O trabalho realizado pelo condenado à uma pena privativa de liberdade durante o

cumprimento da sentença imposta é assunto que dispõe de complexidade, em diversos

aspectos, principalmente no que se refere a ter ou não um caráter obrigatório e também

à sua função dentro de um processo dito (res)socializador. Embora haja discursos dentro

e fora da academia que tendam a reforçar o caráter positivo da estreita relação entre

trabalho e cumprimento de pena, ela pode e deve ser analisada sob outras perspectivas

que permitam refleti-la de forma crítica e que talvez evidenciem um caráter não tão

positivo ou não tão claro como os difundidos por aí. Assim, o estudo aqui proposto

almeja discutir de que forma a cultura do trabalho atua no cumprimento de uma pena

privativa de liberdade, abordando quais seriam suas funções, declaradas ou não. Nesse

sentido, a pesquisa se propõe a apresentar a relação histórico-social entre trabalho e

prisão, a debater os mecanismos de controle da execução penal e as possíveis

consequências e intuitos dessa cultura do trabalho aplicada na privação de liberdade.

Para tanto, o estudo se utiliza de pesquisa bibliográfica e documental, de método

dedutivo, compatibilizando sua metodologia e fundamentação teórica aos estudos em

criminologia crítica, a qual sustenta, incita e vê coerente tal problematização. No mais,

ressalta-se que não há por intuito o esgotamento do tema ou a proposição de solução

para problema levantado, mas, apenas, de suscitar discussão sobre a temática e, assim,

demonstrar a necessidade de se repensar o sistema penal como um todo.

Palavras-chave: Trabalho, Controle, Privação de Liberdade

1 Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Especialista em Direitos

Humanos pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Graduada em Direito pela Universidade

Estadual de Mato Grosso do Sul. Bolsista pelo Programa de Bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento

de Nível Superior – CAPES. 2 Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito pela

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduada em Direito pela Universidade Católica Dom

Bosco. Professora titular do Curso de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Professora

permanente do Curso de Mestrado em Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

INTRODUÇÃO

O estudo a seguir exposto pretende uma reflexão quanto ao trabalho realizado

durante a execução de uma pena privativa de liberdade ser realmente um objetivo

atrelado à ressocialização do indivíduo ou se provém dele outras intenções que não são

evidenciadas. Assim, intui-se discutir de que forma a cultura do trabalho atua nos

estabelecimentos penais de regime fechado.

Para tanto, o texto foi divido em três tópicos distintos. No primeiro, tratar-se-á

da cultura do trabalho, de forma a esclarecer com qual conceito o estudo pretende lidar,

uma vez que os termos “cultura” e “trabalho” por si só renderiam inesgotáveis debates

apenas quanto a sua conceituação. Será exposto, ainda, a relação entre os dois conceitos,

que se pretende demonstrar necessária.

No segundo item, pretende-se apresentar historicamente em que contexto

surgiu a pena privativa de liberdade e às instituições a ela relacionada, demonstrando a

estreita relação entre prisão e trabalho, a partir da modernidade.

No terceiro e último tópico, tem-se a pretensão de problematizar as intenções

do trabalho dentro das prisões como um fator meramente contributivo para

(res)socialização do condenado.

No mais, o trabalho se justifica a fim de instigar olhares críticos acerca da

temática, uma vez que as discussões jurídicas não podem se restringir à mera

verificação de positivação e obediência da norma.

1. NOTAS SOBRE CULTURA DO TRABALHO

Conceituar cultura não é tarefa fácil, pois, embora seu uso seja corriqueiro,

trata-se de termo dinâmico, historicamente construído. Por vezes, a palavra cultura é

utilizada de forma equivocada, dando a ela um significado superficial e neutro, que

pode ser inserido a qualquer contexto. Ao se analisar a trajetória histórica do uso e da

atribuição de significado à palavra, é possível verificar que conceituar cultura é, na

maioria das vezes, uma tentativa de explicar quais são os equívocos das mais diversas

teorias na tarefa de defini-la. (CUCHE, 1999)

Assim, embora a conceituação seja, por vezes, um processo mais de

desconstrução do que de construção, este trabalho pretende levar em consideração uma

das concepções marxistas do que seja cultura, sob uma perspectiva específica: a ideia de

que a cultura é processo pelo qual o indivíduo acumula as experiências que vai sendo

capaz de realizar, discerne entre elas, objetivando-as de forma favorável (VIEIRA

PINTO, 1979). Ou melhor:

Cultura é tudo aquilo que foi criado, construído, apreendido, conquistado

pelo homem no curso de toda a sua História, em contraposição ao que a

natureza lhe deu, compreendida aí a história natural do homem como espécie

animal [...] Mas o momento em que o homem se separou do reino animal – e

isto aconteceu quando o homem segurou pela primeira vez os instrumentos

primitivos de pedra e de madeira – naquele momento começou a criação e

acumulação de cultura, isto é, do conhecimento e da capacidade de todos os

tipos para enfrentar e subjugar a natureza (TROTSKI, 1981, p.51).

Posto isso, é preciso alertar para o fato de que a relação entre cultura e trabalho

é indissociável, uma vez que a concepção ampla de trabalho é entendida como cultura,

sendo que o trabalho produz – ou deveria produzir - cultura e a cultura influencia

diretamente na atividade do trabalho.

Assim, ao verificar a transformação do mundo do trabalho ao longo da história,

o sentido que se deve atribuir ao trabalho, então, está necessariamente atrelado a uma

carga cultural. Nessa perspectiva é que se defende que, na tentativa de um conceito que

contemple a temática proposta, o trabalho não pode ser visto de forma isolada, mas

como um reflexo do contexto no qual se insere e com o qual está em constante

interação.

Tal premissa justifica a intenção do texto em tratar da cultura do trabalho e não

apenas do trabalho em si, uma vez que se tem a intenção de observa-lo como uma

prática cultural justificada pelo contexto histórico-social que o rodeia, cuja relação

dialética é inevitável. Dessa forma, a cultura do trabalho será considerada dentro de um

contexto de modo de produção capitalista, logo, a partir da Idade Moderna.

Isso posto, há que se determinar que o trabalho aqui não será visto de forma

restrita - e nem deveria – como se costuma considera-lo no meio jurídico, objeto do

direito do trabalho:

[...] um trabalho humano, dedicado à produção de bens de serviços, dos quais

obtém quem trabalha o necessário para sua subsistência e da sua família;

prestado por conta alheia, com o que os frutos atribuem-se originariamente à

pessoa distinta do trabalhador, que recebe em troca um remuneração, em

virtude do caráter produtivo do próprio trabalho; e prestado em virtude uma

decisão de quem trabalha que, embora socioeconomicamente condicionada

por numerosos fatores, continua sendo voluntária. (OLEA, 1997, p.105)

Embora o clássico e renomado autor trabalhe com um conceito aquém daquele

trazido pela maioria das doutrinas trabalhistas, nota-se que a definição atende às

necessidades metodológicas do ramo do direito do trabalho, não levando em

consideração seu aspecto cultural e, de forma peculiar, seu potencial emancipatório, o

que não caberia num estudo sobre a cultura do trabalho.

É relevante mencionar, que, a história do homem pode ser conhecida a partir da

história do desenvolvimento do trabalho. Nesse sentido, a afirmação pode ser

compreendida a partir da contextualização de que, de acordo com a concepção marxista,

o trabalho diz respeito a um processo de transformação da natureza, com a finalidade de

satisfação humana, que também transforma o indivíduo que o exerce, podendo ser este

um trabalho manual ou intelectual. (ENGELS, 2004)

Isso significa que o trabalho, aquém das relações analisadas pela ciência

jurídica, é condição fundamental da vida humana, uma vez que o homem cria a prática

do trabalho – o que o coloca numa posição necessária de prática cultural - e o trabalho

modifica o homem e suas práticas, numa relação dialética. Ademais, é preciso delimitar

que a cultura do trabalho é um produto das condições históricas de um povo, num

espaço e num tempo determinado.

Cultura do trabalho diz respeito aos elementos materiais (instrumentos,

métodos, técnicas, etc.) e simbólicos (atitudes, ideias, crenças, hábitos,

representações, costumes, saberes) partilhados pelos grupos humanos —

considerados em suas especificidades de classe, gênero, etnia, religiosidade e

geração. Determinada em última instância pelas relações de produção, nos

remete a objetivos e formas sobre o dispêndio da força de trabalho, maneiras

de pensar, sentir e se relacionar com o trabalho. (TIRIBA, 2008, p.85)

A partir de tal consideração, pode-se dizer que os grupos humanos trabalham

de acordo com determinada cultura e essa prática também produz uma cultura. A cultura

do trabalho se relaciona com o papel de sistemas simbólicos na vida social,

considerando os valores morais atribuídos a prática do trabalho.

Ocorre, contudo, que essa cultura do trabalho, após a Revolução Industrial, ao

menos nos países ocidentais, está subordinada à uma à cultura capitalista, somada à

outras culturas não interligadas não diretamente relacionadas ao modo de produção.

(TIRIBA, 2008)

A afirmação exige, por sua vez, a complementação de que a cultura do trabalho

está por todo lado interagindo com a economia, sendo subordinada ao processo de

valorização do capital, o que a remete a uma dependência à lógica do mercado. Ao ser

inserida em um contexto capitalista que supervaloriza a mercadoria, o trabalho tende a

ser valorizado a partir daquilo que produz de forma a gerar lucro. (TIRIBA, 2008)

Embora na concepção marxista o trabalho seja um processo de criação que

altera a natureza e que altera o indivíduo, em algumas circunstâncias esse trabalho pode

vir a ser fator alienador do próprio indivíduo, dos outros e dos produtos de seu trabalho

na forma de mercadoria. Isso porque, quando o trabalho tem o intuito apenas de

satisfazer a necessidade de outro indivíduo, não atingindo aquele que o pratica, não é

prática criadora, logo, não interfere na construção do sujeito ou da cultura.

Esse tipo de trabalho, ao contrário do que se, é fator neutralizador do sujeito,

que, ao invés de proporcionar o desenvolvimento do indivíduo e de suas

potencialidades, passa a atuar no sentido de desumaniza-lo, considerando que a prática

do trabalho é humanizadora.

A partir da teoria marxista, essa desumanização pode ser explicada partindo da

premissa de que a cultura é aquilo que diferencia o humano dos outros animais. Quando

o indivíduo produz um objeto que pertence a um terceiro e não a ele mesmo, tal produto

não pode ser considerado resultado de sua capacidade criativa. Quando o trabalhador

perde a consciência da sua atividade de trabalho, estará atuando apenas para satisfazer

suas necessidades vitais, torna-se novamente um animal, não mais produzindo cultura.

(MÉSZÁROS, 2006)

Isso posto, justifica-se que essa ideia de trabalho que não se fundamenta num

processo criativo (trabalho alienado), então, está sendo abordada neste estudo para

demonstrar que o trabalho realizado dentro do sistema capitalista de produção,

refletindo uma cultura do trabalho peculiar ao contexto no qual se insere, não é prática

emancipatória, sendo, ao contrário, meio para neutralização dos sujeitos e manutenção

do acúmulo de capital.

Cabe ainda esclarecer, contudo, que, isso não significa que não haja trabalho

humanizador dentro do sistema capitalista, é que a relação entre lucro e emancipação

dos sujeitos é inversamente proporcional. Logo, a partir da perpetuação desse modelo de

produção, tende-se a enquadrar os trabalhadores ao modelo imposto, excluindo

socialmente àquele que a ele não se submete. (MELOSSI; PAVARINI, 2010)

2. SURGIMENTO DA PRISÃO E SUA RELAÇÃO COM O TRABALHO

Embora a pena de privação de liberdade seja algo relativamente recente na

história, sendo incorporada ao rol de penas somente a partir da Idade Moderna, o

encarceramento como método acautelatório foi recurso utilizado desde os tempos mais

remotos. Dos registros que se tem da Antiguidade, percebe-se que era comum que o

acusado por determinada prática ilegal ficasse preso aguardando julgamento, mas, a

prisão não era considerada uma pena em si, apenas uma maneira de assegurar a

posterior aplicação da pena. (MARQUES, 2008)

O trabalho, embora também pareça recente, já se relacionava com os meios de

punição há tempos. Na Antiguidade já se aplicava sentenças de condenações à

escravidão e durante alguns séculos as práticas de trabalho forçado foram comuns na

história das penas. No século XVI, por exemplo, com o processo de exploração dos

mares e das terras viabilizado pelo desenvolvimento dos meios de navegação, a pena de

galé foi muito difundida entre as punições. (CASTRO, 2014)

Contudo, embora a privação de liberdade e o trabalho como punição não sejam

fatores tão recentes na história, sua estreita relação se dá em contexto peculiar, haja

vista a intenção de demonstrar o surgimento da privação de liberdade como pena

necessariamente atrelada ao trabalho, dentro e fora dos estabelecimentos penais. Até

meados do século XVIII a materialização das punições, em regra, ocorria por meio dos

suplícios. (SLONIAK, 2015)

Embora muitos autores relatem de forma clássica que a privação de liberdade

como pena em si tenha surgido a partir de um critério de avanço do direito, que teria

percebido a situação e a necessidade de trata-la forma mais humanitária, Foucault

(2006) alega que a opção por abolir as penas cruéis que resultavam à morte por penas de

privação de liberdade se deve pela necessidade de utilização dos corpos que antes eram

descartados, mas que a partir de então teriam uma utilidade.

E mais, o fim dos suplícios poderiam até poderiam ser justificados pelo

processo de humanização, mas não porque a sociedade passou a ver os condenados

como humanos, por isso detentores de dignidade, mas porque os demais membros da

sociedade precisavam parecer e se sentir humanos. De fato, as penas aplicadas até o

início da modernidade afrontavam não só a humanidade do condenado, mas também de

quem aplicada ou de que permitia tal castigo. (FOUCAULT, 2006)

Isso posto, vale suscitar a discussão relatando que ao final da Idade Média,

quando o feudalismo chegava ao fim e iniciava-se aquilo que mais tarde resultaria no

modelo capitalista, surgiu uma população numerosa que não se enquadrava no novo

modelo de produção, assim, uma das soluções encontradas para o aumento

descontrolado da mendicidade foi o cárcere.

É preciso lembrar que a extinção das relações de feudo desencadeou um êxodo

rural e, somado ao início da revolução industrial, grande parte da população estava sem

alternativa de trabalho. Nesse contexto, o cárcere foi criado como uma instituição

corretora de relevante valor social, que resgataria os ociosos das ruas para ensinar-lhes

algum tipo de trabalho pertinente ao novo contexto social. (MELOSSI; PAVARINI,

2010).

Mais do que arrecadar mão de obra barata, a expansão industrial, o

desenvolvimento da navegação e o fortalecimento da burguesia montavam um contexto

no qual cada vez mais o direito, principalmente o penal, estaria voltado para a proteção

dos bens de produção. Nesse período, então, é possível verificar não só a tentativa de

enquadrar os indivíduos no novo modo de produção, mas também a implementação de

um regime de intolerância aos crimes patrimoniais, o que levaria mais pessoas ao

cárcere. (FOUCAULT, 2006)

Nesse sentido, a prisão como pena pretendia desestimular a vadiagem e

transformar os apenados em trabalhadores compatíveis com novo modelo. Ante ao

grande número de ociosos, a prisão também se tratou de um meio para limpar a cidade e

controlar crimes de baixa periculosidade. (MELOSSI; PAVARINI, 2010)

Observa-se, dessa forma, que não foi por acaso que a partir da instituição dos

meios de produção capitalistas surgiram na Inglaterra as houses of correcion ou

bridwells, que acolhiam os mendigos, uma vez criminalizada a mendicância, e os

pequenos infratores.

[...] O objetivo da instituição, que era dirigida com mão de ferro, era reformar

os internos através do trabalho obrigatório e da disciplina. Além disso, ele

deveria desencorajar outras pessoas a seguirem o caminho da vagabundagem

e do ócio, e assegurar o próprio auto-sustento através do trabalho, a sua

principal meta. O trabalho que ali se fazia era, em grande parte, no ramo

têxtil, como o exigia a época. A experiência deve ter sido coroada de sucesso,

pois, em pouco tempo, houses of correction, chamadas indistintamente de

brideweels, surgiram em diversas partes da Inglaterra. (MELOSSI;

PAVARINI, 2010, p.36)

A política adotada na Inglaterra que viabilizava tais instituições era Poor Law,

que disciplinava normativamente esse sistema pré-capitalista, e quanto aos ociosos,

buscava a (res)socialização do infrator por meio do trabalho. Mais tarde, no auge da

Revolução Industrial, o excesso de população ociosa chegou a números tão altos que

requeriam medidas cada vez mais incisivas.

De fato, neste momento histórico, o grande criminoso era aquele que se

recusava a trabalhar, nunca havia sido tão visível que a pobreza era um crime. Aliás,

desde a promulgação da Poor Law era facultado ao juiz enviar para a prisão comum,

junto aos criminosos de maior periculosidade, os que recusassem qualquer trabalho, se

fosse capaz de fazê-lo (MELOSSI; PAVARINI, 2010).

Ante à situação, a Inglaterra instituiu a New Poor Law, designando que as

instituições continuariam a recolher tal público, mas que sua função estaria voltada para

o adestramento dos condenados para que pudesse, de forma mais eficaz, se submeter à

disciplina e condições de trabalho que o mercado oferecia: as fábricas. (MELOSSI;

PAVARINI, 2010)

Não que arrebanhar força de trabalho fosse o único motivo do surgimento da

pena privativa de liberdade, é claro, mas foi um fator de relevância. Aliás, cabe informar

que uma das funções das casas de correção era auxiliar na regulamentação dos salários,

uma vez que a Revolução Industrial almejava mão de obra barata.

[...] Uma série de estatutos promulgados entre os séculos XIV e XVI

estabelecia um taxa máxima de salário acima da qual não era lícito ir (o que

implicava sanção penal); na era possível nenhuma contratação de trabalho,

muito menos coletiva; e até se chegou a determinar que o trabalhador

aceitasse a primeira oferta de trabalho que lhe fizessem. Ou seja, o

trabalhador era obrigado a aceitar qualquer trabalho, nas condições

estabelecidas por quem lhe fazia a oferta. O trabalho forçado nas houses of

correcion ou workhouses era direcionado, portanto, para dobrar a resistência

da força de trabalho e fazê-la aceitar as condições que permitissem o máximo

grau de extração de mais-valia. (MELOSSI; PAVARINI, 2010, p.37-38)

Não é difícil deduzir que nada mais restava aos pobres e desempregados que

não concordavam com o excesso de trabalho nas fábricas e os baixos salários, a não ser

a criminalidade. Para quem era pobre e não se submetia à ilegalidade, a única alternativa

era trabalhar sob as condições estabelecidas, “pois quem não trabalhasse livre e mal

remunerado, trabalharia preso e sem remuneração alguma ou, então, por muito pouco”

(GUIMARÃES, 2007, p.129).

Estas instituições, de viés laico, seriam as primeiras a instituírem a privação de

liberdade como pena em si e não apenas como método acautelatório. Defende Melossi e

Pavarini (2010) que as características dessas casas de correção já são muito próximas do

modelo carcerário utilizados no século XIX, uma vez que já demonstrava à que classe

era destinada, sua função adestradora e a organização similar às fábricas.

Posto isso, o que se deve evidenciar do surgimento da privação de liberdade

como pena em si e sua relação com o trabalho é que esse mecanismo de dominação dos

indivíduos pela cultura do trabalho ainda prevalece. Embora já não seja mais necessário

recrutar mão de obra barata, ainda é preciso adestrar indivíduos para que se insiram no

mercado de trabalho, o que garante a manutenção de um sistema e não a independência

do indivíduo, o que será discutido no próximo tópico.

3. O TRABALHO E A PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE NA

CONTEMPORANEIDADE

À partir da argumentação de que as prisões teriam surgido em um contexto de

ascensão do modo de produção capitalista, com intuito de aproveitamento dos corpos e

de enquadramento da população ociosa ao novo modelo de produção (FOUCAULT,

2006), alguns poderiam argumentar que a discussão não é pertinente, uma vez que este

não é mais o papel das condenações à privação de liberdade, já que a cultura do

trabalho, como um todo, e não só nos cárceres, estariam em prol da adequação do

trabalhador aos meios de produção.

Ocorre, entretanto, que apenas ao encarcerado o trabalho é imposto, de forma

regulamentada em legislação, como dever, sendo que existe uma população para a qual

o cárcere é destinado. Isso significa dizer que a privação de liberdade tem uma função

própria dentro do sistema capitalista e que a cultura do trabalho atua como mecanismo

de legitimação desses intuitos não evidenciados (BARATA, 2011), o que será melhor

esclarecido.

De antemão, é preciso evidenciar que, ao ser condenado a uma pena privativa

de liberdade, de acordo com o disposto no artigo 38 do Código Penal (1940), o preso

mantém todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade. Nesse sentido, a ele é

assegurado todos os outros direitos dos quais dispõe enquanto cidadão, inclusive o

direito ao trabalho, ênfase dada neste estudo.

De pronto, já é possível colocar em dúvida esse acesso aos outros direitos

verificando que, embora exerça atividade laboral, em nenhuma situação suas relações de

trabalho se submeterão à CLT, norma essa expressa na Lei de Execução Penal (1984),

em seu artigo 28, § 2º: “o trabalho do preso não está sujeito ao regime da Consolidação

das Leis do Trabalho”.

Nesse mesmo sentido, embora o trabalho seja reconhecido como um direito de

aspecto facultativo, porque depende da intenção de cada um dele dispor, compondo o

rol de direitos sociais dispostos no artigo 6º da Constituição Federal (1988), ao

condenado ele se apresenta de outra forma. Isto porque, embora o condenado também

enfrente problemas com a falta de trabalho para todos que o deseja, ao se negar a

trabalhar, o interno incorre em falta grave, sendo punido, por vezes, não alcançando os

critérios subjetivos para progressão de regime.

Tal afirmação, ao que se espanta, não provém da verificação da não

observância das leis que regulam a execução penal, como de costume se fundamenta a

maioria das críticas à execução penal, mas, ao contrário, tem previsão legal explícita:

Art. 39. Constituem deveres do condenado:

I - comportamento disciplinado e cumprimento fiel da sentença;

[...]

V - execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas;

VI - submissão à sanção disciplinar imposta;

[...]

Art. 28. O trabalho do condenado, como dever social e condição de

dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva.

[...]

Art. 31. O condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao

trabalho na medida de suas aptidões e capacidade.

[...]

Art. 50. Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que:

VI - inobservar os deveres previstos nos incisos II e V, do artigo 39, desta

Lei. (grifo nosso) (BRASIL, 1984)

Essa constatação tende a demonstrar o caráter obrigatório do trabalho dentro

dos estabelecimentos penais, na intenção de reforçar que a estreita relação entre cárcere

e trabalho ainda se mantém viva. Talvez não mais se sustente na premissa de

recrutamento de mão de obra barata, uma vez que já há um grupo que ocupa tal função,

mas ainda mantém o intuito de enquadramento do trabalhador ao modelo de produção.

Há que se observar, ainda, que, ao contrário dos discursos utilizados para

justificar a aplicação das penas - aqueles pautados na retribuição, na prevenção e na

(res)socialização, uma vez que ainda se deposita no trabalho o encargo da regeneração -

o trabalho no cárcere não possui um viés emancipatório. Isso porque qualquer atividade

dentro da prisão obedece minuciosamente às regras de comportamento dotadas de

disciplina. (FOUCAULT, 2006)

Conforme argumentou Thompson (1976), a sociedade intra muros, no entanto,

não é uma miniatura da sociedade extra muros. Esta tem como premissa o aprendizado

de conviver em liberdade, enquanto aquela ensina os indivíduos a se adaptarem a um

regime totalitário. Ao se enquadrarem na disciplina do cárcere, os internos estariam

automaticamente se distanciando da possibilidade de reintegração social.

A característica mais marcante da penitenciária, olhada como um sistema

social, é que ela representa uma tentativa para a criação e manutenção de um

grupamento humano submetido a um regime de controle total, ou quase total.

As regulações minuciosas, estendendo-se a toda a área da vida individual, a

vigilância constante, a concentração de poder nas mãos de uns poucos, o

abismo entre os que mandam e os que obedecem, a impossibilidade de

simbiose de posição entre os membros das duas classes – tudo concorre para

identificar o regime prisional como um regime totalitário. (grifos do autor)

(THOMPSON, 1976, p.51)

Para o autor, as prisões seriam ineficazes porque são sociedades peculiares,

totalitárias, dotadas de relações de poder, sendo impossível a reintegração social

daquele que se submete a ela. A dessocialização, segundo ele, acontece não porque as

prisões não tenham o objetivo de (res)socializar, mas porque as condições de vida lá

dentro e a execução de seu planejamento não permite tal intuito.

Nesse sentido, assim como Foucault (2006), Thompson (1976) defende que a

prisão, ao contrário do que perpetua no discurso (res)socializador, é uma tentativa de

neutralização total do sujeito, de forma que ele perca sua identidade e se submeta ao

regime imposto. Importa salientar que o alcance subjetivo do que seja “estar apto ao

convívio social” está intimamente ligado a verificação de que o sujeito já teve sua

identidade neutralizada e já se encontra apto a se submeter ao mercado de trabalho.

(GUIMARÃES, 2007)

O trabalho, dentro desse sistema de regeneração das prisões, trata-se de um

mecanismo de controle sobre os corpos e de manutenção dos estratos sociais (Foucault,

2006). Quanto à primeira afirmação, porque, como dito, situa-se, entre outros, como

método de docilização/adestramento dos indivíduos; da segunda, porque garante que a

população ali inserida se mantenha trabalhando de forma assalariada, naqueles

empregos considerados hierarquicamente inferiores, equilibrando o mercado.

(BARATA, 2011)

De fato, à cultura do trabalho que se mantém sob a cultura capitalista em muito

influencia as atividades internas das prisões, contradizendo todos os discursos oficiais

de que ao interno é imputado o trabalho para possibilitar que sua regeneração e

independência. Estar apto a conviver em sociedade, em tese, deveria estar associado à

emancipação do indivíduo, o que requer a prática do trabalho na sua concepção plena,

criadora e produtiva.

[...] a tendência democrática não pode significar apenas que um operário

manual se torne qualificado, mas que cada "cidadão" possa tornar-se

governante e que a sociedade o ponha, ainda que abstratamente, nas

condições gerais de fazê-lo: a democracia política tende a fazer coincidir

governantes e governados (no sentido de governo com o consentimento dos

governados), assegurando a cada governado o aprendizado gratuito das

capacidades e da preparação técnica geral necessária a esta finalidade.

(GRAMSCI, 1982, p. 137).

No mais, importa dizer que, embora as discussões tenham se pautado na

tentativa de demonstrar que a cultura do trabalho que prevalece no sistema capitalista,

em especial, no cárcere, seja incompatível com o que se espera do trabalho

emancipatório, não se teve o intuito de desestimular a prática do trabalho nos

estabelecimentos penais, mas repensá-los.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À guisa de considerações finais e não propriamente de conclusões, o estudo

demonstrou que o trabalho deve ser entendido aquém de um conceito meramente

jurídico ao se propor um estudo sobre a cultura do trabalho. E que, à partir do conceito

adotado, a cultura do trabalho foi considerada a partir de um contexto capitalista, que

objetiva a instrução dos indivíduos ao trabalho assalariado.

O texto demonstrou o contexto de surgimento das prisões e sua relação com

trabalho, de forma a desmistificar o discurso de que as prisões surgiram meramente

como um avanço de humanidade em relação as penas anteriormente aplicadas. A

argumentação se justificou na tentativa de demonstrar que o surgimento explica de certa

forma os ideais que rodeiam a ideia de trabalho e prisão.

No mais, estudo suscitou discussão sobre como o trabalho é considerado para o

condenado à privação de liberdade e de que forma a cultura do trabalho é utilizada no

cumprimento dessa pena, qual seja: um mecanismo de controle, não à título de

instrumento emancipatório, que possibilite transformação.

Há que se observar, ainda, que a cultura do trabalho tem a intenção de

estratificar (garantia de desigualdade quanto a que tipo de trabalho pertence a cada

classe) e demonstrar que quem não se enquadra nos moldes do trabalho assalariado não

é incluído na sociedade capitalista.

Por fim, resta argumentar que o estudo não teve a intenção de esgotar o tema

ou mesmo de propor alterações no sistema de execução penal, mas de suscitar reflexões

sobre um sistema que se propõe possibilitar uma emancipação, mas que

contraditoriamente não atua para tal

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