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A CULTURA E A EDUCAÇÃO ENTRE POVOS ILHÉUS: A DUALIDADE NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS Carvalho, Roseli Vaz – UTP [email protected] Bolsista do CNPq Cunha, Mariângela – UTP [email protected] Área de temática: Cultura, Currículo e Saberes Resumo O presente trabalho tem por objetivo revelar a situação atual da Educação de Jovens e Adultos - EJA na comunidade de ilhéus, Ilha Rasa, Paraná, a qual se encontra em um cenário de dualidade: dividida entre a possibilidade de melhorar a qualidade de vida por meio da educação, tendo o ilhéu como agente transformador e produtor de sua própria história, e entre o trabalho, provedor de sua existência e obstáculo ao processo educacional. A EJA é abordada sob a perspectiva histórica e social, com a leitura de seus valores sociais, trabalho e cultura. Para compreensão do espaço social, situamos a Ilha Rasa, sua história local e a descrição de alguns aspectos que revelam a percepção sobre a comunidade, o trabalho, a cultura, a escola e o professor. Para a pesquisa, de cunho etnográfico, utilizamos como técnicas a entrevista e o questionário, bem como a observação; diversas visitas à Ilha Rasa foram realizadas a fim de se compreender o universo a ser investigado; também, realizaram-se entrevistas com o professor da EJA e com alguns alunos e moradores que freqüentam essa modalidade de ensino. Constatamos que a cultura se solidifica nas formas de atividade prática e como processo de aprendizagem, transmitidas de geração a geração. A realidade social vivenciada os conduz a crer que a educação não é necessária e que não modificará a sua condição de vida. Os ilhéus são marginalizados, esquecidos tanto pelo Município quanto pelo Estado, cuja falta de atuação está evidente na realidade social observada, com atendimento precário nas áreas da saúde, saneamento básico, transporte, acesso aos bens sociais produzidos, e, principalmente, no que concerne à educação, forma da qual a população local poderia fazer uso para mudar sua compreensão da realidade e do mundo e, assim, reivindicar seus direitos de cidadão. Palavras-chave: Ilhéus; EJA; Educação; Cultura. Introdução

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A CULTURA E A EDUCAÇÃO ENTRE POVOS ILHÉUS: A

DUALIDADE NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Carvalho, Roseli Vaz – UTP [email protected]

Bolsista do CNPq

Cunha, Mariângela – UTP [email protected]

Área de temática: Cultura, Currículo e Saberes

Resumo O presente trabalho tem por objetivo revelar a situação atual da Educação de Jovens e Adultos − EJA na comunidade de ilhéus, Ilha Rasa, Paraná, a qual se encontra em um cenário de dualidade: dividida entre a possibilidade de melhorar a qualidade de vida por meio da educação, tendo o ilhéu como agente transformador e produtor de sua própria história, e entre o trabalho, provedor de sua existência e obstáculo ao processo educacional. A EJA é abordada sob a perspectiva histórica e social, com a leitura de seus valores sociais, trabalho e cultura. Para compreensão do espaço social, situamos a Ilha Rasa, sua história local e a descrição de alguns aspectos que revelam a percepção sobre a comunidade, o trabalho, a cultura, a escola e o professor. Para a pesquisa, de cunho etnográfico, utilizamos como técnicas a entrevista e o questionário, bem como a observação; diversas visitas à Ilha Rasa foram realizadas a fim de se compreender o universo a ser investigado; também, realizaram-se entrevistas com o professor da EJA e com alguns alunos e moradores que freqüentam essa modalidade de ensino. Constatamos que a cultura se solidifica nas formas de atividade prática e como processo de aprendizagem, transmitidas de geração a geração. A realidade social vivenciada os conduz a crer que a educação não é necessária e que não modificará a sua condição de vida. Os ilhéus são marginalizados, esquecidos tanto pelo Município quanto pelo Estado, cuja falta de atuação está evidente na realidade social observada, com atendimento precário nas áreas da saúde, saneamento básico, transporte, acesso aos bens sociais produzidos, e, principalmente, no que concerne à educação, forma da qual a população local poderia fazer uso para mudar sua compreensão da realidade e do mundo e, assim, reivindicar seus direitos de cidadão. Palavras-chave: Ilhéus; EJA; Educação; Cultura.

Introdução

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A Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Brasil tem passado por profundas

modificações ao longo dos tempos, resultado da busca pelo reconhecimento do direito à

educação, independente da idade. Muitas dessas conquistas devem-se à organização da

sociedade civil, na qual diversos atores comprometidos com o fortalecimento da EJA se

lançam na efetivação de uma educação básica para todos, tentando superar e indicando

caminhos para as deficiências do poder público. Evidenciam que qualquer proposta de

superação das desigualdades não poderá advir de propostas que se afastem da universalização

da educação.

O presente artigo tem por objetivo questionar a situação atual da Educação de Jovens e

Adultos em uma comunidade de ilhéus, Ilha Rasa, Paraná, a qual se encontra em um cenário

de dualidade: dividida entre a possibilidade de melhorar a qualidade de vida por meio da

educação, tendo o ilhéu como agente transformador e produtor de sua própria história, e entre

o trabalho, provedor de sua existência e, ao mesmo tempo, obstáculo ao processo educacional.

Dessa forma, discutiremos a EJA sob a perspectiva histórica e social da população de

ilhéus, marcada pelo ritual cultural no qual se desenvolveu e está inserida, pela cultura,

trabalho e valores sociais diferenciados e cristalizados pelos antepassados, com situações que

evidenciam sua atividade prática e necessidades que servem de meio para a reprodução de

suas percepções sobre os objetos e o mundo.

Entendemos que a partir do processo de socialização, isto é, das relações e interações

que estabelecerá com o professor, com os colegas e com o conhecimento, o aluno será capaz

de constituir-se enquanto ser social, crítico, condições essas que propiciarão a elevação de sua

condição de vida, bem como de torná-lo o produtor de sua própria história e não

simplesmente um agente passivo dela.

Para a compreensão do espaço social, trazemos um pouco da história local,

identificando alguns fatos que deram origem ao seu surgimento e a sua permanência até os

dias atuais. Nesse contexto, focalizamos aspectos da vida diária que possibilitou-nos

compreender o processo educacional da população jovem e adulta; como os indivíduos

percebem o ambiente no qual vivem, o elo topofílico, isto é, as relações de identidade que

estabeleceram com o local; os dilemas enfrentados nesta dualidade, bem como as dificuldades

encontradas pelos professores para a manutenção e continuidade da EJA.

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Para a pesquisa, de cunho etnográfico, foram realizadas diversas visitas à Ilha Rasa a

fim de se compreender o universo a ser investigado; realizaram-se entrevistas com o professor

da EJA e com alguns alunos e moradores que frequentam essa modalidade de ensino.

Situando a Ilha Rasa

A Ilha Rasa situa-se na baía das Laranjeiras, entre a Mata Atlântica e diversas outras

ilhas que se encontram na Área de Proteção Ambiental – APA − de Guaraqueçaba. Está

localizada na divisa do Estado do Paraná com o Estado de São Paulo. É considerada

patrimônio natural do país, rodeada por mangues e com uma riquíssima diversidade biológica.

Com aproximadamente 600 habitantes, que povoam uma área de 10,5 km2 e com

altitude máxima de 40 metros, a Ilha Rasa está a 11 km de Guaraqueçaba e a 24 km de

Paranaguá, sendo constituída pelas vilas Almeida, Mariana, Ilha Rasa, Gamelas e Ponta do

Lanço. O mapa demonstra a localização exata da Ilha, possibilitando uma visualização ampla

de sua real situação geográfica.

A população que habita a Ilha Rasa é de pescadores artesanais, cuja única fonte de

renda provém da pesca artesanal realizada em canoa a remo1 ou baleeira2.

Figura 1: Canoas e Baleeira

Fonte: Mariângela Cunha, outubro de 2008.

Os habitantes vivem distantes das oportunidades oferecidas pelo modo de vida urbano,

ou seja, não têm acesso a serviços básicos como bancos, farmácias, lojas, supermercados,

1 Canoa a remo – canoa construída com uma única tora de madeira, tendo diversos tamanhos. 2 Baleeira – barco típico da região litorânea do Paraná, construído com madeira compensado, que transportam

até 10 pessoas.

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padarias, restaurantes e outros meios que ofereçam a comodidade e o contato com a realidade

da vida contemporânea.

Nesse cenário mágico ou, poderíamos afirmar, de “irrealidade”, os moradores são

desprovidos de transporte público marítimo, fato que dificulta a locomoção, bem como o

contato frequente com a cidade de Guaraqueçaba. Existe precariedade de assistência médica e

odontológica, oferecida esporadicamente pelo serviço público ou por médicos voluntários. A

água potável vem do continente por meio de dutos submersos e o sistema de tratamento de

esgoto é realizado em fossas artesanais3 que se localizam diretamente no solo, possibilitando a

contaminação de lençóis freáticos e dos frutos do mar; a energia elétrica chega à ilha por meio

de uma comunidade ribeirinha − Maçarapoã, próxima ao continente. Outra dificuldade

encontrada na Ilha é a coleta e o tratamento do lixo. O Projeto Baía Limpa4, mantido pelo

Estado, foi desativado, o que favorece o acúmulo e o tratamento inadequado, por parte dos

moradores, desses materiais orgânicos e inorgânicos. A figura 2 mostra o panorama da Ilha

Rasa.

Figura 2: Vila de Ilha Rasa

Fonte: Mariângela Cunha, outubro de 2008.

Com base nas observações e conversas realizadas com os moradores e professores da

Ilha Rasa, observamos que a atuação do Estado, por meio de políticas públicas, e de algumas

entidades governamentais pouco contribuíram para transformar a realidade dos habitantes da

Ilha. A atuação resume-se a projetos educativos e formativos que visam preservar a fauna

local, não revertendo para mudanças significativas na qualidade de vida da população.

3 Fossas artesanais – caixote de cimento ou madeira para acomodação e tratamento de resíduos. 4 Projeto Baia Limpa – projeto subsidiado pelo Governo do Estado que remunerava famílias, com um salário

mínimo ao mês, para a coleta de todo lixo na ilha, que era retirado por um barco.

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As observações realizadas possibilitaram-nos constatar que essa população é isolada, o

atendimento ofertado tanto pelo Estado quanto pelo município realiza-se de forma precária, o

que pode ser constatado pelas iniciativas de projetos que foram desenvolvidos que visavam

interesses próprios e acabaram por se extinguir, não havendo real preocupação em transformar

as condições de vida da população. Isto nos leva a constatar a marginalização em que se

encontra a educação entre os povos ilhéus, que, por estarem distantes do continente, parecem

não pertencer a esse mundo.

Conhecendo a Escola na Ilha Rasa

Localizada na vila da Ponta do Lanço, a Escola Rural Municipal de Gabriel Ramos

da Silva oferta o Ensino Fundamental, Ensino Médio e EJA. No ensino fundamental, as

turmas de 1ª a 4ª séries são classes multisseriadas, que ocorrem no período vespertino em

função da distância de deslocamento dos alunos, que vêm de outras ilhas, perfazendo o trajeto

a pé ou de canoa ou baleeira. O ensino de 5ª a 8ª séries do ensino regular teve início há cinco

anos, ocasionando grande defasagem entre a idade/série, pois os alunos que tiveram seus

estudos interrompidos na 4a série antes do início do ensino fundamental completo não

conseguiram dar sequência ao processo de escolaridade. Esses alunos frequentam a escola

atualmente na modalidade EJA.

A EJA, que iniciou suas atividades há seis anos, é realizada no período noturno, com

aproximadamente 40 alunos, jovens e adultos, que se dividem entre o ensino fundamental e o

ensino médio, que terá início neste ano de 2009.

A escola é composta por quatro salas de aula e uma cozinha. A preservação do prédio

é realizada pelos próprios moradores. Os desenhos que decoram a parte externa da escola,

conforme figura 4, foram realizados pelos alunos, assim como as salas de aula, ricas em

cartazes e trabalhos produzidos pelos alunos. A figura 5 mostra o trajeto percorrido (pé) pelos

alunos para chegar à escola.

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Figura 4: Escola da Ilha Rasa Figura 5: Trajeto para chegar a Escola

Fonte: Mariângela Cunha, outubro de 2008 Fonte: Mariângela cunha, outubro de 2008.

O município de Guaraqueçaba é responsável pelas escolas rurais localizadas na ilhas

da Baía das Laranjeiras, e a escola da Ilha Rasa é administrada pela Escola

Municipal/Estadual Marcílio Dias. Verifica-se na escola uma dualidade administrativa, sendo

o ensino de 1ª a 4ª de responsabilidade do município e de 5ª a 8ª série do Estado.

O material didático para a escola é escolhido por pedagogos do município e do Estado,

e uma das muitas dificuldades enfrentadas pela escola é que chegam de forma precária, os

exemplares não vêm em quantidade suficiente para todos os alunos.

O público a ser atendido pela EJA é bastante heterogêneo, há defasagem de

idade/série, e diferenças de ritmos de aprendizagem e comportamentais em sala de aula,

fatores que contribuem para a necessidade de tratamento diferenciado no processo de ensino e

aprendizagem.

Nesse cenário, constatamos a ausência do município e também do Estado para

possibilitar a educação de qualidade para os alunos, considerando que, tendo por base o

Parecer CEB 11/2000m aprovado em 10 de maio de 2000, a EJA perde a função de suprir,

compensatória, passando a ser direcionada por três novas funções: a função reparadora –

significa a restauração do direito à educação, à escola de qualidade, e o reconhecimento da

igualdade ontológica; a função equalizadora – corresponde a mais igualdade, restabelecendo

sua trajetória escolar de forma a possibilitar oportunidades na sociedade; e a função

qualificadora − corresponde à necessidade de atualizações e formação contínua,

possibilitando novas interações no mundo do trabalho, na vida social, com mais igualdade e

de acesso e posse aos bens sociais (SOARES, 2002, p. 13).

Entendemos que o Parecer é claro quando revela as funções da EJA, no entanto, não

constatamos o cumprimento de tais funções na educação proporcionada pelo Estado à Ilha

Rasa. A realidade que se verifica pode ser exemplificada por Soares (2002), quando relata os

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modelos de pares opostos e duais conceituados no país, embora vistos de forma equivocada,

aos quais se acrescentariam alfabetos e analfabetos, letrados e iletrados, que continuam sem

acesso à escrita e a leitura; outros a tem de forma precária, não podendo fazer uso nem

funcionalmente no cotidiano (SOARES, 2002, p. 28). Podemos, com ousadia, dizer que

visualizamos dois Brasis: o Brasil que incorpora a Ilha Rasa, marginalizado em todos os

aspectos (política, economia, educação, infra-estrutura, saúde), e o Brasil continente, do

mundo em permanente evolução e transformação.

Nesse contexto, fez-se necessário conhecermos um pouco sobre o professor que atua

na EJA, para que possamos conhecer algumas particularidades de sua formação, como é sua

prática pedagógica e que dificuldade encontra no cotidiano escolar. Tomamos por base as

entrevistas realizadas.

O Professor da EJA

A Educação de Jovens e Adultos na Ilha Rasa é realizada por dois professores. O

professor A, tem 26 anos, é nativo de Ilha Rasa e realizou sua formação por meio do ensino a

distância em Normal Superior, oferecido em Guaraqueçaba aos finais de semana.

Sua trajetória na EJA iniciou por indicação e hoje sente-se feliz lecionando para

alunos jovens e adultos. Sua figura é muito respeitada e admirada, servindo de exemplo a

todos os moradores do local.

O professor B é graduado em Jornalismo pela Universidade Positivo e optou por

permanecer durante a semana na Ilha Rasa lecionando Educação Física e EJA para os alunos

de 5ª a 8ª séries.

A idade mínima para ingresso nessa modalidade de ensino é de 16 anos. Não existe

uma separação de conteúdos com base no processo de aprendizagem em que se encontra o

aluno, isto é, todos recebem o mesmo conteúdo independentemente da série em que foram

interrompidos os estudos.

O horário das aulas compreende o período das 17h30min às 21h30min, mas o tempo

não é usado integralmente em função de que muitos alunos trabalham com a pesca e iniciam

seu dia muito cedo. À noite, exaustos, necessitam de que o professor seja flexível quanto ao

horário, limitando-o até 18h30min. Neste período, o professor consegue a atenção dos alunos

para as atividades de ensino e aprendizagem em sala de aula.

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As disciplinas são trabalhadas por módulos: cada disciplina compreende um módulo,

que é trabalhado por um período entre três e quatro meses, perpassando, dessa forma, todas as

disciplinas contidas no currículo da EJA. Ao término de cada módulo, é realizada uma prova

para verificação do grau de aproveitamento do aluno.

Os conteúdos são repassados pelo Estado, mas o professor seleciona-os de acordo com

o nível dos alunos, decidindo o que realmente é essencial abordar em suas aulas. Quanto aos

livros didáticos, o professor A relata que não utiliza todos os livros indicados, achando-os

simples demais. Seleciona-os, tendo como critério o nível e a realidade dos alunos,

priorizando questões relativas ao universo vivido, realizando complementações com a

utilização de livros de seu período escolar.

Nesse contexto, o professor A traz para discussão em sala de aula questões relativas à

importância da educação, elencando os seguintes fatores, a saber: 1) a necessidade de ser

autocrítico, questionador, para que possa formar opiniões; 2) procurar uma formação que vá

além da atividade prática diária; 3) a importância de ser um trabalhador consciente de seus

direitos e deveres. Para atingir essas metas, trabalha questões referentes à democracia, à

comunidade social, evidenciando que o mundo está em frequente transformação, que o

homem faz parte da sociedade e tudo está interligado.

A dificuldade encontrada pelo professor para a realização do processo de

complementação de conteúdos é a falta de recursos, uma vez que a escola na Ilha dispõe

somente de mimeógrafo, não possui biblioteca e nem internet, necessitando que os materiais

sejam xerocados em Guaraqueçaba, com recursos financeiros próprios.

O professor A relata que a incidência de analfabetismo na Ilha se concentra na faixa

etária adulta; em um processo de convencê-los a retornar a escola, o professor enfatiza que

por meio da escola e da educação eles podem tornar-se mais conscientes e críticos e que

existe muita coisa para se conhecer além da Ilha Rasa. Enfatiza, ainda, quanto à reprovação,

que ocorre em virtude das faltas ou abandono do curso pelos alunos.

Verificou-se, ainda, que a Escola não possui Projeto Político-Pedagógico para a EJA, e

que segue a normativa do CEEBJA da forma como vem da sede.

As dificuldades encontradas para a realização do processo ensino-aprendizagem são

muitas, os professores não contam com recursos técnicos para elaboração e estruturação de

suas aulas, fatores que poderiam ajudá-los a incentivar a presença dos jovens e adultos na

escola, proporcionando-lhes a instigação de conhecer outras formas de cultura,

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conhecimentos, curiosidades sobre a realidade a que não estão expostos. As Diretrizes

Curriculares da Educação de Jovens e Adultos do Estado do Paraná enfatiza que:

Como modalidade educacional que atende a educandos-trabalhadores, tem como finalidade e objetivos o compromisso com a formação humana e com o acesso à cultura geral, de modo que os educandos aprimorem sua consciência crítica e adotem atitudes éticas e compromisso político, para o desenvolvimento da sua autonomia intelectual. (DCEJA- PR, 2006, p. 27)

Assim, como proporcionar tais atitudes se a escola encontra-se em um mundo à parte,

fora do contexto de prioridade e importância para o Estado, e não dispõe de recursos mínimos

para sua efetivação?

Ainda em relação às Diretrizes Curriculares da EJA – PR, a proposta metodológica das

práticas pedagógicas tem o trabalho sob três eixos articuladores, a saber: cultura, trabalho e

tempo. Deteremo-nos ao que ela diz especificamente sobre a cultura, visto que o tema é fator

condicionante na forma como essa população organiza a sua vida.

A cultura, entendida como prática de significação, não é estática e não se reduz à transmissão de significados fixos, mas é produção, criação e trabalho, sob uma perspectiva que favoreça a compreensão do mundo social, tornando-o inteligível e dando-lhe um sentido. (DCEJA – PR, 2006, p. 35)

Como proporcionar tal compreensão do mundo social, como torná-lo inteligível, se os

moradores da Ilha não estão inseridos no circuito de relações e atendimento do Estado, se o

mundo no qual habitam está isolado das transformações que ocorrem no mundo

contemporâneo? Como a escola cumprirá seu papel na socialização do conhecimento, de

ampliar a leitura de mundo, de responder aos desafios impostos pela realidade de seus

habitantes, de possibilitar uma sociedade igualitária, se o acesso aos bens construídos

socialmente e simbólicos estão distantes de sua esfera de possibilidades?

A Dualidade: Entre a Preservação da Cultura e a Educação

A Educação de Jovens e Adultos, definida como uma modalidade básica, e direito de

todo cidadão, vem ao encontro das necessidades de muitos jovens e adultos que se afastaram

da escola por fatores sociais, econômicos e políticos, e que buscam completar o processo de

escolarização em virtude da dinâmica social. Tem por principio reconhecer o conhecimento

prévio do aluno construído ao longo da trajetória de vida, fazendo o elo entre o senso comum

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e o conhecimento científico, rompendo, assim, este paradigma, para que possam construir a

consciência crítica, tornando-se sujeitos ativos na sociedade em que se encontram.

Acabar com as desigualdades sociais, residentes e consolidadas na extremidade mais

baixa da escala social, não é tarefa fácil; há a necessidade de políticas públicas que se

solidifiquem no atendimento e superação dos problemas que envolvem a condição humana

em seu aspecto existencial e social. Na base desses aspectos, encontra-se a educação, por

meio da qual os sujeitos poderão transitar na sociedade atual, grafocêntrica, fazendo uso da

leitura e da escrita em todas as situações, práticas, simbólicas, discursivas, na compreensão do

real e no exercício da cidadania.

Para que essa educação se consolide, é relevante que tenha bases sólidas, que seja

apoiada com políticas públicas de atendimento, com qualificação profissional, com recursos

didáticos e técnicos, com atendimento às dificuldades que se apresentam. Somente sob tais

condições, poder-se-á pensar em termos de efetivação da educação, como a redução dos

índices de analfabetismo e a conclusão da escolaridade.

Entretanto, não entendamos essas colocações como únicas, elas consistem a base para

se pensar em igualdade entre os sujeitos. É necessário ir além, adentrar nas condições em que

se encontra grande parte da população: os excluídos, os marginalizados.

Diante da presente reflexão e de tudo que relatamos, poderemos entender a complexa

realidade da educação e retomaremos a dualidade encontrada na Ilha Rasa, na qual a educação

é relegada a um segundo plano, pelos moradores adultos, em prol de uma cultura cristalizada.

Por sobreviver da pesca artesanal, a população local transmite a seus descendentes –

por meio da oralidade e da atividade prática –, o ritual diário da profissão. Desde pequenas as

crianças são conduzidas por seus pais a realizarem tarefas que compreendem esse trabalho, a

exemplo de pescar em canoas, limpar os peixes, fazer redes e conservar o seu bem maior, que

é a embarcação. Nesse contexto, em cujo universo social se resume a Ilha, prevalece à

reprodução cultural, uma vez que para os pais é imperativo que os filhos aprendam esse

oficio. Eis a sua expectativa social: a continuidade de uma tradição transmitida de geração a

geração e que tem possibilitado a sobrevivência desse grupo de pessoas.

Para Brandão (2007), a reprodução cultural é muito clara quando envolve o imaginário

de uma dada sociedade, destacando que,

Cada tipo de grupo humano cria e desenvolve situações, recursos e métodos empregados para ensinar às crianças, aos adolescentes, e também aos jovens e

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mesmo aos adultos, o saber, a crença e os gestos que os tornarão um dia o modelo de homem ou de mulher que o imaginário de cada sociedade – ou mesmo de cada grupo mais específico, dentro dela – idealiza, projeta e procura realizar. (BRANDÃO, 2007, p. 22)

Nessa comunidade de ilhéus, os adultos, por serem portadores do conhecimento

empírico, atuam como tutores nas relações realizadas entre a criança e a natureza,

estabelecendo-se, assim, situações de aprendizagem. A realidade social arraigada pelos

antepassados coloca a escola na contramão, ou seja, como competidora, agente de mudança

de paradigmas, com possibilidades de oferecer uma escolha aos jovens e aos adultos – que por

ela se deixam conduzir –, de um futuro diferente, com novos horizontes, mudanças na forma

de ser e conceber a realidade na qual estão inseridos.

Não obstante, na visão cultural da comunidade, a escola perde sua importância,

considerando-se que as meninas deixam de frequentá-la para casar e os meninos precisam

desde cedo aprender as técnicas da pesca para trazer a contribuição financeira de que a renda

familiar necessita. Além disso, existe a conscientização por parte dos moradores, adultos e

analfabetos de que a escola não trará mudanças significativas em suas vidas, não poderá

transformar a realidade que os cerca, pois as oportunidades de trabalho comportadas pelo

espaço social da Ilha não requerem conhecimentos científicos, principalmente para a

execução das atividades diárias. Os adultos percebem a escola como um mundo à parte,

distante de suas realidades, isto é, existe um distanciamento entre o que é ensinado e o

cotidiano.

Verifica-se, ainda, que a dificuldade em retornar à escola reside em alguns aspectos

relacionados à auto-estima. Os adultos consideram-se velhos demais, com a vista cansada,

eles têm dificuldades de concentração, memória fraca (para os estudos), além dos problemas

de saúde (coluna e hérnia nas cadeiras). Além disso, constata-se que a resistência em relação à

escola ocorre também porque os moradores acreditam que, pelo fato de serem pescadores,

estudar e frequentar à escola é sinônimo de perda de tempo e de dinheiro.

O cotidiano na comunidade os conduz para a vida de anzóis e mar. A oportunidade de

exercer outra atividade profissional praticamente inexiste, “[...] os meios de subsistência

constituem aos próprios olhos daqueles que as exercem, uma coisa para a qual a pessoa se

resolve por falta de coisa melhor.” (BOURDIEU, 1979, p. 84).

Portadores de uma identidade construída na base de suas relações sociais, esses

sujeitos são pescadores e sentem-se, portanto, acostumados ao tipo de vida que levam,

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incapazes de modificá-la, estando alienados à cultura. A pesca, para eles, é uma atividade

rotineira, natural, constituidora de sua existência. A alienação pode estar relacionada à recente

implantação do ensino fundamental completo na escola local, que ainda não fecundou suas

sementes e, consequentemente, não possibilitou a visualização de novos horizontes, nem a

consciência de que, por meio da educação, outros caminhos poderão ser seguidos.

Tal visão leva a pontuar que a atividade humana é necessariamente mediada, o que

define a relação indireta que se estabelece com a realidade: a perspectiva vigotskyana revela

que o contato que temos com o mundo físico e social não é direto, é limitado por aquilo que

significamos desse mundo, cuja significação também limitada pelas nossas experiências, pela

nossa história.

Há, no entanto, o reconhecimento da importância da educação, por meio da qual o

conhecimento oferecido pela escola possibilitaria conquistar um emprego melhor, ser mais

inteligente, melhorar a vida dos filhos, fazer cursos e “alguma coisa da vida”. Entretanto,

contraditoriamente, essa relevância não se aplica para os adultos, como se definissem que sua

hora já passou, que não existe mais possibilidades de mudanças, aceitando o fardo como

dado, passado.

No contexto histórico da Ilha Rasa, no qual prevalece a cultura como fonte de

conhecimento e de aprendizagem, insere-se a Educação de Jovens e Adultos, que apresenta

grandes dificuldades em atuar devido a seu forte arraigamento. A população da Ilha está

carregada do contexto social por meio do qual se desenvolveu e está inserida – com culturas,

trabalho e valores sociais diferenciados, com significações que evidenciam sua atividade e

necessidades, as quais servem de meio para a reprodução de suas percepções sobre os objetos

e o mundo. Assim, a percepção sobre o mundo e os objetos é baseada em sua atividade

prática, ou seja, é relacionada com a experiência prática que possui, a qual serve,

absolutamente, de parâmetro para avaliar e classificar esses objetos.

Constata-se que, para modificar a realidade presente, faz-se relevante transformarem-

se as condições sociais de vida da população local, o que possibilitará o contato com outras

realidades e com o mundo, com novas formas de cultura, valores e conhecimentos, para que

assim se possa realizar a efetivação do processo de escolarização. Verificar-se-á que, na

medida em que começam a receber e participar dos processos de ensino-aprendizagem, e

adquirindo conhecimentos científicos, irão desenvolver operações teóricas do pensamento

lógico-verbal discursivo, formando novos conceitos que se distanciam da prática concreta.

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Começam a comparar os conceitos cotidianos com os conceitos científicos, incluindo os

primeiros em categorias já conhecidas, determinando-os depois em outros conceitos ainda

mais gerais conforme se apropriam do conhecimento (VIGOTSKY, 1998).

Essas transformações ultrapassam os limites da atividade prática concreta, da

impressão imediata, da reprodução da experiência pessoal, e adquirem novas formas com base

no domínio dos conhecimentos adquiridos, mudando de forma significativa o caráter reflexivo

sobre a realidade, no qual a atividade cognitiva vai se incluindo em um sistema mais amplo

das experiências universais, formadas ao longo da história social e refletidas na linguagem.

Para Vigotsky (2006),

[...] os modos de generalização, típicos do pensamento de pessoas que vivem em uma sociedade na qual suas atividades são dominadas por funções práticas rudimentares, diferem dos modos de generalização dos indivíduos formalmente educados. Os processos de abstração e generalização não são invariáveis em todos os estágios do desenvolvimento socioeconômico e cultural. Pelo contrário, tais processos são produto do ambiente cultural (VIGOTSKY, 2006, p.52).

O pensamento vigotskyano concebe a linguagem como um processo social,

instrumento importante na formação de conceitos e na compreensão do real. A linguagem está

ligada ao pensamento, sendo intermediária em toda a percepção humana, cumprindo

diferentes funções enquanto prática social contextualizada, ou seja, organiza, analisa e

sintetiza todas as informações que refletem o mundo exterior, e esse processo só é possível

pela educação.

Constata-se, portanto, de forma preliminar, que existe o esforço do grupo docente em

proporcionar novas significações visando o retrocesso do senso comum como forma de

verdade absoluta; os docentes enfatizam a necessidade da educação para que os sujeitos

possam fazer escolhas e visualizar outras perspectivas de melhoria na qualidade de vida, e,

ainda, procuram estimular nos alunos a reflexão crítica, instigando-os ao debate e à opinião.

No entanto, como são nativos da ilha pouco conhecem sobre a realidade fora do contexto em

que estão inscritos; portanto, enquanto não houver mudanças significativas em sua realidade

social, não haverá avanços significativos, e eles continuarão a decifrar o mundo baseados na

percepção da experiência prática.

De acordo com Gramsci, a escola conduz “[...] o jovem até os umbrais da escolha

profissional, formando-os entrementes como pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou

de controlar quem dirige.” (GRAMSCI, 1968, p. 136)

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REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. O desencantamento do mundo. São Paulo: Perspectiva, 1979. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. 49. ed. São Paulo: Brasiliense, 2007. GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. 9. ed. São Paulo: Civilização Brasileira, 1995. SOARES, Leôncio Jose Gomes. Educação de Jovens e Adultos. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. PARANÁ. SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO. Diretrizes curriculares da Educação de Jovens e Adultos. Curitiba, 2006. VIGOTSKY, Lev Semenovich. A Formação Social da Mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1998. VIGOTSKY, Lev Semenovich; LURIA, Alexander Romanovich; LEONTIEV, Alex N. Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem. São Paulo: Ícone, 2006.