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A CULTURA JUSNATURALISTA DE INSPIRAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL: Justiça Divina e Justiça Social
Renato Toller Bray∗
Marcelo Tadeu Pajola∗∗
Everaldo T. Quilici Gonzalez∗∗∗
Sumário: Introdução; 1. O despertar do processo de divulgação de idéias no Brasil
Colônia; 2. Tomás Antonio Gonzaga e o Tratado de Direito Natural: o despertar do
jusnaturalismo no Brasil; 3. Outras questões sobre a tradição jusnaturalista escolástica-
tomista no Brasil; 4. O jusnaturalismo escolástico de José Soriano de Souza; 5. O
neotomismo no Brasil; 6. André Franco Montoro: um neotomista NO Brasil;
Considerações Finais.
RESUMO
O trabalho teve como meta desenvolver uma pesquisa sobre a cultura jusnaturalista
escolástica tomista e neotomista à luz da História do Direito Brasileiro. Através do
método analítico histórico descobrimos que Tomás Antonio Gonzaga, autor do Tratado
de Direito Natural, inaugura com esta obra, no século XVIII, um estudo de cunho
jusfilosófico. No entanto, o desenvolvimento de uma cultura jusfilosófica propriamente
dita só veio a ocorrer a partir da criação dos cursos jurídicos no Brasil. Neste sentido, a
pesquisa conferiu maior destaque a dois pensadores de inspiração teológica do século
XIX: Avelar Brotero (São Paulo) e José S. de Souza (Recife). Concluímos que estes
pensadores fizeram forte oposição ao jusnaturalismo ilustrado ou racional. Suas idéias
eram contrárias ao liberalismo, sobretudo porque apostavam no poder de comando da
Igreja e do Rei. Eram religiosos e monarquistas; portanto, anti-republicanos. Colocavam
∗ Mestrando em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba, Núcleo de Filosofia e História das Idéias Jurídicas. Bolsista CAPES. ∗∗ Mestrando em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba, Núcleo de Filosofia e História das Idéias Jurídicas. ∗∗∗ Docente da Universidade Metodista de Piracicaba, Professor da Pós-graduação em Direito pelo Núcleo de Filosofia e História das Idéias Jurídicas. Doutor pela Universidade de São Paulo (USP).
1
Deus como sendo o autor do Direito e o homem como mero promulgador. Dessa forma,
inspirados em Santo Tomás de Aquino, a Justiça e o Direito Divino (lex aeterna)
fundamentam o Direito. Com a ascensão do positivismo cientificista de Tobias Barreto
e Silvio Romero, a tradição jusnaturalista de inspiração teológica foi rechaçada,
entrando em decadência. Contudo, esta tradição escolástica é resgatada com os
neotomistas (novos tomistas) brasileiros do século XX, a saber: Leonardo Van Acker,
Edgar Matta Machado, Tristão de Athayde, Alexandre Correia e André Franco
Montoro. A vinda de Jaques Maritain ao Brasil e as violações contra os direitos do
homem provocados pelo pós-guerra, fez ascender nas Academias de Direito no Brasil,
debates e estudos sobre o neotomismo, corrente que faz apelo à Justiça Social, ao bem
comum e à dignidade da pessoa humana, opondo-se ao arbítrio do Estado, bem como a
toda e qualquer forma de abuso do direito individual em detrimento dos direitos da
coletividade. Portanto, a oposição ao liberalismo foi revigorada pelos neotomistas
brasileiros no século XX, com uma diferença: agora o discurso é pela Justiça Social, ao
passo que as fundamentações em torno da Justiça Divina, deixaram de ter cabimento
entre os neotomistas do mundo contemporâneo. Do exposto, concluímos que o discurso
dos jusfilósofos de inspiração cristã assentado numa Justiça Divina passou a ser
incompatível com os acontecimentos científicos da idade contemporânea. O discurso
mudou. Hoje, entre os neotomistas, fala-se em Justiça Social, um tipo de Justiça que
tem como principal vetor o homem, embora guarde profunda relação com o projeto de
Deus, qual seja a concretização do bem comum e da fraternidade entre os homens.
Palavras-chave: JUSNATURALISMO - TOMISMO –NEOTOMISMO
ABSTRACT
The work had as goal to develop a research on the natural right culture scholastic tomist
and new tomist to the light of the History of the Brazilian Right. Through the historical
analytical method, we discover that Tomás Antonio Gonzaga, author of the Treated one
to Natural law, it inaugurates with this workmanship, in century XVIII, a study of legal
philosophy matrix. However, the development of a natural right culture properly said
only came to occur from the creation of the legal courses in Brazil. In this direction, the
2
research conferred greater has detached the two thinkers of theological inspiration of
century XIX: Avelar Brotero (São Paulo) and Jose S. de Souza (Recife). We conclude
that these thinkers had made fort opposition to the illustrated or rational natural right. Its
ideas were contrary to liberalism, over all because they bet in the power of command of
the Church and the King. They were religious and defenders of monarchy; therefore,
against republicans. They placed God as being the author of the Right. Of this form,
inspired in Santo Tomás de Aquino, justice and the Right The holy ghost (lex aeterna)
base the Right. With the ascension of the science positivism of Tobias Barreto and
Silvio Romero, the natural right tradition of theological inspiration was rejected,
entering in decay. However, this scholastic tradition is rescued with the new tomist
Brazilian of century XX, namely: Leonardo Van Acker, Edgar Matta Machado, Tristão
de Athayde, Alexander Correia and Andres Franco Montoro. The coming of Jaques
Maritain to Brazil and the breakings against the rights of the man provoked by the
postwar period, it made to ascend in the Academies of Right in Brazil, debates and
studies on the new tomism, chain that makes I appeal to Social Justice, to the common
good and the dignity of the person human being, opposing it the will of the State, as
well as the all and any form of abuse of the individual right in detriment of the rights of
the collective. Therefore, the opposition to liberalism was revigorated by the Brazilian
new tomist in century XX, with a difference: now the speech is for Social Justice, to the
step that the recitals around Divine Justice, they had left to have enters the new tomist
of the world contemporary. Of the displayed one, we conclude that the speech of the
legal philosophy of seated Christian inspiration in a Divine Justice started to be
incompatible with the scientific events of the age contemporary. The speech moved.
Today, between the new tomist, it is said in Social Justice, a type of Justice that has as
main vector the man, although it keeps deep relation with the project of God, which is
the concretion of the common good and the fraternity between the men.
Keywords: NATURAL RIGHTS - TOMISM - NEW TOMISM
INTRODUÇÃO
Nas academias jurídicas do Brasil pouco se tem estudado sobre a cultura jusnaturalista
brasileira de inspiração cristã. Em função da precariedade de estudos desenvolvidos
nessa direção, fomos motivados à pesquisa e ao desenvolvimento do presente trabalho.
3
Para tanto, dividimo-no em seis partes. Na primeira, tratamos sobre o despertar do
processo de divulgação das idéias nos primórdios do Brasil Colonial. Na segunda,
abordamos o pensamento de Tomás Antonio Gonzaga e sua obra Tratado de Direito
Natural, momento em que foi tecida algumas considerações sobre o despertar do
jusnaturalismo no Brasil. Na terceira parte, cuidamos de outras questões relevantes
sobre a tradição jusnaturalista escolástica-tomista no Brasil. Na quarta, discorremos
sobre o jusnaturalismo escolástico de José Soriano de Souza. Na quinta, enfocamos a
corrente jusfilosófica neotomista no Brasil. E por último, tratamos de abordar o
pensamento jusfilosófico de André Franco Montoro. Como veremos a seguir, a cultura
jusfilosófica brasileira carregou durante muitos anos a tradição jusnaturalista de linha
tomista e neotomista. No Brasil, muitas obras sobre direito natural foram produzidas
sob a inspiração dos preceitos filosóficos de Santo Tomás de Aquino.
1 O DESPERTAR DO PROCESSO DE DIVULGAÇÃO DE IDÉIAS NO BRASIL
COLÔNIA
De acordo com Paim 1, o Brasil herdou a cultura jurídica e filosófica de Portugal. O
tomismo, e de uma forma geral a tradição escolástica, foram trazidos para o Brasil
através dos jesuítas, os quais detinham o monopólio do ensino na colônia. Os primeiros
letrados tiveram uma formação escolástica. Logo, o início do processo civilizatório
brasileiro foi marcado pela reprodução daquilo que se aprendia nos centros de ensino da
Metrópole. Portanto, no início do processo civilizatório brasileiro não houve espaço
para a criação de idéias originais, uma vez que as produções teóricas neste período
limitavam-se à propaganda missionária dos jesuítas. 2
“No mimetismo sacralizado que marcaria os primeiros séculos da colonização, não comporta registrar uma teoria jurídica secularizada, pois toda concepção sobre lei, direito e justiça restringia-se às diretrizes ético-religiosas da Igreja Católica, que refletia um jusnaturalismo tomista-escolástico”. (WOLKMER, 1998, p. 125) Por outro lado, no campo do Direito, é importante observar que as idéias jesuíticas eram
impulsionadas pelo ideário da Contra-Reforma, portanto, opostas ao jusnaturalismo que
surgia na Europa desde o Século XV.
2 TOMÁS ANTONIO GONZAGA E O TRATADO DE DIREITO NATURAL: O DESPERTAR DO JUSNATURALISMO NO BRASIL
1 PAIM, Antonio. História das idéias filosóficas no Brasil. 1ª edição. São Paulo: Grijalbo/Edusp, 1957. passim. 2 WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 125.
4
O Tratado de Direito Natural de Tomás Antonio Gonzaga (1744-1809) é apontado por
Machado Neto 3, na história das idéias jurídicas no Brasil, como o primeiro trabalho de
cunho jusfilosófico.
“Mesmo antes da independência política já é possível encontrar em nosso precário ambiente cultural uma expressão filosófico-jurídica na obra de Tomás Antonio Gonzaga. Antes disso, seria prematuro esperar que a situação colonial pudesse albergar em seu seio uma tão refinada expressão de vida intelectual”. (MACHADO NETO, 1969, p. 15)
Antonio Carlos Wolkmer 4, a respeito de Tomás Antonio Gonzaga, afirma que:
“Ao contrário do que se poderia esperar de um intelectual afinado com certas concepções iluministas, republicanas e liberais, seu Tratado de Direito Natural, ao refletir, sem muita originalidade de pensamento, pressupostos identificados com o jusnaturalismo de inspiração teológica, destinava-se claramente a não desagradar os meios culturais dominantes na Metrópole”. (1998, p. 125-126)
O jusnaturalismo de inspiração teológica, a que se refere Wolkmer 5, é tomista-
escolástico, de linha conservadora.
“Em seu Tratado de Direito Natural, escrito ainda no século XVIII e significativamente ofertado ao Marquês de Pombal, expressão prática da doutrina iluminística do despotismo esclarecido no governo de Portugal, Gonzaga sustenta ser Deus o princípio do Direito Natural, rechaçando, assim, a famosa tese de Grotius, segundo a qual a existência do Direito Natural, por fundar-se apenas na razão humana, prescinde da própria existência de Deus”. (MACHADO NETO, 1969, p. 16)
Com efeito, Deus é a primeira palavra da Introdução de Gonzaga ao seu Tratado, e as
provas da existência de Deus ocupam o capítulo I do Livro Primeiro da obra, aí sendo
ventilados os argumentos clássicos da causa incriada, do ser necessário, do
consentimento dos povos, da autoridade dos mais sábios e da existência da alma. 6
Quanto à existência do Direito Natural, também ela é objeto de demonstração
argumentativa mais ou menos abundante no seguinte capítulo do Tratado.
“Aí se esgrime a imprescindibilidade da lei para o homem, a possibilidade de Deus no-la dar, já que é nosso Criador, coisa que fez ao criar-nos inteligentes e, pois, capazes de conhecer o bem e o mal, o que nos faz aptos a nos governarmos por leis. Também Deus nos fez para a felicidade e a vontade do Criador é lei para as criaturas. O remorso é também alegado como prova de que há uma lei que governa as ações humanas, o que é,
3 NETO, A. L. Machado. História das idéias jurídicas no Brasil. São Paulo: Grijalbo, 1969, p. 15. 4 NETO, A L. Machado apud WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 125-126. 5 Ibid., p. 130. 6 Ibid., p. 17.
5
por sua vez, atestado também pela opinião universal”. (MACHADO NETO, 1969, p. 17)
No que tange aos princípios da filosofia prática, matéria enfocada no Tratado de Direito
Natural, Tomás Antonio Gonzaga 7 levantou as seguintes questões, a saber: o livre
arbítrio, a teoria geral das ações humanas e a imputação das ações. Quanto aos
princípios de Direito Natural, divide-os: um princípio diz respeito ao ser, o outro, diz
respeito ao conhecer.
Para Gonzaga 8, a origem da lei natural está na vontade de Deus, e ao conceituar o
Direito, depois de fazer a análise das várias acepções do vocábulo, o que revela ter ele
usado o método escolástico para tanto, considerou tratar-se de “uma coleção de leis
homogêneas, v.g. Direito Natural, a coleção de todas as leis que provém da natureza
civil, as de todas as que deram os legisladores, cada um em seu reino, e vulgarmente as
do Império Romano”.
Ao que se nota, o Direito foi definido dessa forma para servir de preparo didático nas
clássicas divisões, entre Direito das gentes e civil, divino e humano, civil e eclesiástico. 9 “No que concerne à justiça, há que assinalar sua curiosa inferência relativa a Deus e que qualifica Gonzaga como alguém que antecipa, a seu modo, a caracterização do valor jurídico da justiça como um valor literal de conduta, tese que a teoria egológica viria sustentar em nosso século a respeito de todos os valores jurídicos”. (MACHADO NETO, 1969, p. 17) Para Gonzaga 10:
“Em Deus rigorosamente não cabe justiça, pois para pormos um acto de perfeita justiça é necessário pormos dois sujeitos, um com obrigação de dar e outro com direito de pedir. E como não pode haver ente algum que não seja criado por Deus, não se deve neste admitir acto algum de perfeita justiça, pois que fora uma espécie de imperfeição pormos ao Criador obrigado aos mesmos entes que criou e de que é Senhor”.
Portanto, o despertar da Filosofia do Direito no Brasil começou com o Tratado de
Direito Natural de Tomás Antonio Gonzaga, que trouxe nesta obra elementos teóricos
escolástico-tomista, pois sustentava ser Deus o fundamento do Direito Natural. No
entanto, há uma questão curiosa no pensamento de Gonzaga: muito embora procure
refutar em sua obra as premissas do jusnaturalismo de Grotius, revela, por outro lado,
profundo conhecimento da teoria jusnaturalista que surgia, mencionando em sua obra os
7 Ibid., p.17. 8 GONZAGA, Tomás A. Tratado de Direito Natural. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1957, p. 513-514. 9 NETO, A L. Machado. op. cit. 1969, p. 18. 10 GONZAGA, Tomás A. op. cit. 1957, p. 234.
6
principais autores dessa corrente. Ao mesmo tempo, ofereceu o seu Tratado de Direito
Natural ao Marquês de Pombal, principal representante do iluminismo português, cujas
ações políticas elegeram por inimigos os próprios jesuítas. Existiria, pois, uma
contradição no pensamento de Gonzaga a ser examinada com mais profundidade?
3 OUTRAS QUESTÕES SOBRE A TRADIÇÃO JUSNATURALISTA
ESCOLÁSTICA-TOMISTA NO BRASIL
Podemos afirmar que o Brasil incorporou em sua cultura jurídica, elementos do
jusnaturalismo; inicialmente com o próprio Tratado de Direito Natural de Tomás
Antonio Gonzaga. Contudo, foi após a Independência do Brasil, com a edificação das
Faculdades de Direito de São Paulo e Olinda (posteriormente Recife) que as idéias
jusnaturalistas passaram a ser estudadas e difundidas.
Nestes dois núcleos de estudos das idéias jurídicas, os lentes das primeiras cátedras de
Direito Natural redigiram seus cursos em forma de livro-texto. Com base neste
procedimento, muitas obras jurídicas de Direito Natural foram produzidas no século
XIX por juristas brasileiros. 11
Dentre esses juristas convém aqui mencionar a figura de Avelar Brotero, lente do
primeiro ano do Curso Jurídico de São Paulo, que teve como obra prima o compêndio
intitulado de Princípios de Direito Natural. 12
Brotero 13, nesta obra, em certo momento, nega o racionalismo ilustrado e busca uma
solução conciliadora com base num jusnaturalismo teológico, ao afirmar que:
“Muitos Authores querem que o direito Natural derive seo nome por causa da promulgação, isto é, por ser promulgado pela razão natural do homem. O Compêndio porém não quer que elle derive seo nome da promulgação, mas sim de seu Author, isto é, Lei dictada pela natureza naturante, pela natureza do universo ou alma do universo, isto é, Deos”. (BROTERO, 1829, p. 77)
Por isso, de acordo com Miguel Reale 14, Brotero foi muito criticado por Reynaldo
Porchat, segundo o qual:
“Não tinha noção precisa da materia, e o seu trabalho é uma mistura de theorias, onde o que de mais notável ha a registrar é a confusão em que se obumbram. Sem discriminar
11 NETO, A L. Machado. Op. cit. 1969, p. 18. 12 VAMPRÉ, Spencer. Memória para a história da academia de São Paulo. Volume I. São Paulo: Saraiva, 1928, p. 400. 13 BROTERO, Avelar. Princípios de Direito Natural. Rio de Janeiro: Typographia Imperial e Nacional, 1829, p. 77. 14 PORCHAT, Reynaldo apud REALE, Miguel. REALE, Miguel. Horizontes do Direito e da História. São Paulo: Saraiva, 1956, p. 224.
7
idéias, entra o professor em uma exposição indigesta de conceitos da escola theologica e da escola racionalista ao mesmo tempo”. (1956, p. 224)
Mas quando falamos de jusnaturalismo no Brasil, usamos as espécies de jusnaturalismo
elencadas por A L. Machado Neto 15 na História das Idéias Jurídicas no Brasil, a saber:
ilustrado, escolástico, ultramontano e krausista.
A nós interessa saber se o jusnaturalismo escolástico-tomista ainda se faz presente nos
tempos de hoje, se há algum jusfilósofo que mantém essa corrente viva na academia,
que faz a defesa ou que ao menos demonstra certa empatia pelos fundamentos jurídicos
de Santo Tomás de Aquino. Para A L. Machado Neto 16:
“É certo que a tradição jusnaturalista não se esgota, no Brasil, com a obra de João Teodoro Xavier de Mattos, mas, ao contrário, ela se prolonga através de todo o nosso século até os dias atuais, por intermédio da obra dos pensadores tomistas do século XX como Alceu Amoroso Lima, Benjamim de Oliveira Filho, A B. Alves da Silva e tantos outros que fizeram chegar até o nosso século a tradição jusnaturalista em nosso meio”. (1969, p. 41-42)
4 O JUSNATURALISMO ESCOLÁSTICO DE JOSÉ SORIANO DE SOUZA
José Soriano de Souza, irmão de dois outros lentes da Faculdade do Recife, nasceu na
Paraíba em 1833 e faleceu no Recife em 1895. Formou-se em medicina pela Faculdade
do Rio de Janeiro e em filosofia por Louvain.
Venceu Tobias Barreto em uma disputa pela cadeira de lente de filosofia do Gymnasio
Pernambucano e, quatro anos antes de seu falecimento, isto é, em 1891, foi nomeado
professor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito do Recife. 17
Suas principais obras são compêndios voltados ao ensino de filosofia e Filosofia do
Direito. As principais obras de filosofia são o Compêndio de Philosophia (1867) e as
Licções de Philosophia Elementar, Racional e Moral (1871); em matéria jusfilosófica,
escreveu sua obra prima Elementos de Philosophia do Direito editada em 1880.
Vale consignar que Soriano de Souza contribui para com a Faculdade do Recife com
apostilas de Direito Romano e de Direito Constitucional. 18
De acordo com Machado Neto 19, suas principais obras constam de compêndios
destinados ao ensino da filosofia moldados em estilo e pensamento escolástico.
15 NETO, A L. Machado. op. cit. 1969, p. 15-42. 16 Ibid., p. 41-42. 17 Ibid., p. 29. 18 Ibid., p. 29. 19 Ibid., p. 29.
8
“Soriano nos Elementos de Philosophia do Direito enfocava as verdades eternas e universais, verdades que eram enfatizadas por seus pensadores prediletos, Rosmini, Taparelli, Prisco, Tolomei, Romagnosi e Mamiani, todos da escola tradicional escolástica-tomista italiana. ‘Sul piano della filosophia Del diritto converrebbe, frattando, considerare lê opere di José Soriano de Souza, il cui tradizionalismo scolastico si modella sugl´insegnamenti dei già citati Rosmini e Taparelli, com frequenti riferimenti a Terenzio Momiani, Romagnosi, Tolomei, prisco, ecc., rivelando grande familiarità col pensiero italiano’”. (REALE, 1958, p. 51-67)
Soriano de Souza 20 via a filosofia contemporânea à sua época como um verdadeiro
embate disputado entre o naturalismo moderno e o sobrenaturalismo clássico ou
medieval.
“Naturalismo e sobrenaturalismo, razão independente e fé humilde tais são portanto os termos da magna questão debatida na sociedade moderna, desde que ao grito da independência religiosa do século XVI, seguiu-se o da independência filosófica, escrevendo o patriarca da moderna filosofia na primeira página de seu código a razão humana é por natureza independente. Desde então um espírito maligno e inimigo das crenças da humanidade parece querer destruir todas as cousas estabelecidas, assim na ordem política, como na moral e intelectual”. (DE SOUZA, 1871, p.2)
Na ordem política o naturalismo moderno nega a influência do fenômeno sobrenatural
nas instituições civis, uma vez que o poder é produto da vontade do povo e não mais de
Deus. O rei é instituído por vontade popular e não de Deus, e quanto ao Estado, este se
divorcia da Igreja. Soriano assistiu este movimento intelectual de perto. A luta existente
entre poder terreno e poder divino, e o naturalismo moderno preconizador da disputa
pelo poder terreno em nome da liberdade, inquietava a mente de José Soriano. 21
“A falta de respeito e amor à Pessoa sagrada dos Imperantes, os ungidos do Senhor, quando então o Estado não é mais como uma grande família; nem os súditos como filhos, nem os monarcas como pais, pois quando a inteligência duvida da autoridade, ou a reputa um produto seu, o coração interiormente nega-lhe respeito”. (DE SOUZA, 1871, p. 3)
Na ordem moral, o naturalismo moderno invoca uma moral independente de Deus e da
sua divina sanção; por outro lado, permite que o homem atue de acordo com a sua
consciência e livre arbítrio. José Soriano alega que a proclamação desses valores tem o
condão de provocar um relaxamento dos costumes. 22
“A redução do direito ao fato material consumado, a conversão da autoridade na soma dos números e fôrças materiais, o egoísmo nos corações, e enfim esse detestável
20 NETO, A L. Machado. Op. cit. 1969, p. 29. 21 NETO, A L. Machado. Op. cit. 1969, p. 29-30. 22 NETO, A L. Machado. Op. cit. 1969, p. 30.
9
cinismo com que na sociedade se sustentam as mais falsas e perniciosas doutrinas”. (DE SOUZA, 1871, p. 4)
Na ordem intelectual, a filosofia contemporânea à época de José Soriano tinha no centro
dos debates as disputas que levantavam a oposição entre razão e fé, e entre revelação e
filosofia. A razão, para um defensor do naturalismo moderno, é o único árbitro capaz de
distinguir o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, sendo inclusive tratada como fonte de
descoberta acerca das verdades religiosas; a razão humana, vista neste prisma, chega a
declarar a inutilidade da fé depositada em Jesus Cristo, a ponto dos arautos desse
naturalismo considerarem inútil toda a crença alicerçada em uma entidade sobrenatural. 23
Soriano também proclama a superioridade da religião sobre a filosofia.
“Não, a filosofia não pode ter o mesmo poder que a religião; aquela vem do homem e é obra de seu espírito; esta vem de Deus, e é obra de sua sabedoria e de seu amor. Não diremos que a filosofia é escrava da religião, porque aquela palavra é odiosa e violenta, mas porque não apelida-la serva afetuosa e humilde, discípula dócil e obediente da religião?”. (DE SOUZA, 1971, p. 5)
5 O NEOTOMISMO NO BRASIL
Tomás de Aquino deixou um grande legado para a Filosofia do Direito. O seu
pensamento foi aproveitado pela corrente jusnaturalista católica-neotomista em todo o
mundo ocidental. No Brasil podemos citar os nomes de Alexandre Correia, Leonardo
Van Acker, Edgard Mata Machado, Alceu Amoroso Lima, André Franco Montoro,
entre outros.
Ainda hoje o neotomismo é uma corrente filosófica forte e respeitada no campo da
Filosofia do Direito. Entre suas características principais, encontra-se as idéias de
reinterpretar o humanismo cristão através do personalismo de Emmanuel Mounier e da
leitura do humanismo integral de Jacques Maritain. Também se opõe ao arbítrio do
Estado, bem como ao liberalismo econômico, enquanto promotora de desigualdades
sociais, condenando o acúmulo da riqueza socialmente produzida. Igualmente, defende
o respeito à dignidade humana e a promoção do bem comum.
Considerando que o Brasil herdou a cultura jurídica e filosófica de Portugal, podemos
afirmar que o tomismo foi introduzido no Brasil através dos jesuítas, que detinham o
monopólio do ensino na colônia. Portanto, os primeiros letrados tiveram uma formação
escolástica, já que o início do processo civilizatório brasileiro foi marcado pela
23 NETO, A L. Machado. Op. cit. 1969, p. 30.
10
reprodução daquilo que se aprendia nos centros de ensino na Metrópole. O Brasil, por
tal razão, herdou uma tradição jusnaturalista escolástica-tomista.
Fato interessante é que o tomismo nos faz pensar em questões que, embora sejam
consideradas superadas por alguns, na verdade ainda continuam presentes em nossa
realidade social. Entendemos que há certas indagações jusfilosóficas que jamais serão
superadas, pois sempre estarão presente em qualquer tipo de sociedade, contexto
histórico e espaço geográfico. Questões do tipo “existe o indivíduo para a sociedade, ou
a sociedade para o indivíduo? Existem princípios universais e imutáveis, ou os
princípios variam de acordo com as exigências históricas?” continuam sendo objeto de
especulação nos centros de produção cultural jusfilosófica. Por isso, o tomismo perdura
até hoje, defendido por exaltados humanistas seguindo rumos diversos 24.
Ora, os estudos jurídico-filosóficos e históricos devem estar a serviço da interpretação
critica da realidade atual, bem como dos assuntos de maior polêmica da atualidade. De
fato, concordamos com Oliveira Filho 25, quando afirma que “a mesma questão se
renova”.
A cultura jusnaturalista tomista, de tradição secular, parte da idéia de que a finalidade
do Direito é assegurar à coletividade o bem de todos, sendo certo que, se encararmos o
fenômeno jurídico neste aspecto e se aplicarmos esta concepção aos problemas que nos
inquietam na atualidade, o bem comum não será concretizado enquanto o Direito estiver
a serviço dos “donos do poder”, dos conglomerados econômicos e do capital
especulativo internacional. Com efeito, a realização do bem comum, traduzida na
distribuição eqüitativa das riquezas socialmente produzidas e na justa aplicação das leis,
não se concretizará enquanto o direito individual for pleiteado para fins de satisfazer as
pretensões e os interesses egoístas. Os ideais do iluminismo e do liberalismo clássico
sacralizaram o indivíduo e a propriedade privada, justificando não só o uso da mesma,
mas, sobretudo, seu abuso, o que representa um problema para os direitos da
coletividade. Tal concepção e radicalização têm promovido a exclusão social de
gerações e ensejado movimentos sociais reivindicatórios, a exemplo do movimento dos
“sem-terras” e “sem tetos”.
6 ANDRÉ FRANCO MONTORO: UM NEOTOMISTA NO BRASIL
24 JAIME, Jorge. História da filosofia no Brasil. Vol. II. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 103. 25 FILHO, Benjamin de Oliveira. Introdução à ciência do direito. 4ª edição, editora Konfino, Rio de Janeiro, 1967, p. 340.
11
André Franco Montoro foi um importante pensador humanista de inspiração cristã que,
ao lado de outros, também contribuiu com a cultura jusnaturalista tomista brasileira. Em
seu discurso jurídico, dizia que a política neoliberal, que tem suas raízes na filosofia
liberal clássica, não deve prosperar num Estado de Direito 26, por ser incompatível com
a promoção do bem comum e por atentar contra a dignidade da pessoa humana, já que é
fonte de promoção da exclusão social e inimiga dos direitos sociais. É por isso que para
os neotomistas os ideais de justiça social, de bem comum e função social, continuam a
balançar os setores mais reacionários da sociedade, setores estes que fazem apologia à
política neoliberal.
Franco Montoro, além de político, foi professor de Filosofia do Direito. Entendia que
era possível conciliar a Ética com o Direito, e este com a Política. Aos juristas, bem
como aos operadores do Direito, recomendava a busca incessante pela concretização do
respeito que é devido à pessoa humana, observada uma exigência fundamental de
justiça. Foi um dos maiores representantes do pensamento sócio-jurídico católico de
linha neotomista. Seu discurso cristão abordava o bem comum, a justiça social, a
solidariedade, o desenvolvimento social e a humanização do Direito.
Embora fosse considerado, por muitos, como um homem idealista, Montoro 27 tinha os
pés-no-chão, tendo em vista que não desprezava a realidade social, e isto está bem
demonstrado em sua obra clássica Introdução à Ciência do Direito, a saber:
“A justiça é o valor que deve iluminar todo o campo do direito. Não se trata de contrapor a realidade a um modelo idealista e absoluto que fica longe numa caverna platônica. É na planície em que vivemos, no processo histórico-social da luta entre liberdade e opressão, minorias dominadoras e maiorias sacrificadas, manifestações de violência ou movimentos de solidariedade, que se há de exercer, com espírito crítico e independente, a tarefa de construção dos homens do direito.” (MONTORO, 1995, p. )
Montoro era um homem preocupado com a formação dos operadores do Direito, e
censurava aqueles que limitavam o ensino jurídico ao conhecimento pretensamente
neutro da norma. 28
É certo que todos os juízes tem passagem pelas faculdades de direito; também é certo
que são instruídos para serem escravos da lei, e isto se explica já que o nosso modelo de
ensino jurídico atual prioriza a dogmática jurídica, e coloca em segundo plano, a
26 O Estado de Direito, de acordo com Montoro, deveria ser chamado de Estado de Justiça, já que sua tarefa é promovê-la. 27 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 23ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 8. 28 Ibid., p. 8.
12
promoção de estudos de Filosofia do Direito, História do Direito, Ética e de Sociologia
Jurídica. Infelizmente, a maioria das Faculdades de Direito, fornecem aos alunos um
estudo da legalidade pela legalidade, tornando-os, em sua maioria, cépticos,
conformados e desprovidos de sensibilidade social.
Montoro tinha a preocupação em fornecer aos seus alunos uma visão humanista e
humanizadora do fenômeno jurídico, e usando das palavras de Eduardo Couture,
professava em aula aos seus discípulos: “Teu dever é lutar pelo Direito, mas, no dia em
que encontrares o direito em conflito com a justiça, luta pela justiça!”. 29
A preocupação para com a justiça, enquanto fundamento do Direito, também era objeto
de estudo de Montoro. Aceitava com reservas a filosofia perennnis, embora não negasse
que há princípios eternos, universais e imutáveis que sempre estarão presentes em
qualquer tipo de sociedade, espaço geográfico e contexto histórico próprio.
A idéia de que não se deve prejudicar o próximo ou de que se deve fazer o bem,
segundo Montoro, será sempre uma constante nas relações humanas. Tais princípios,
tratados como Primeiros Princípios, representam o fundamento do Direito, “pois norma
que não possua um conteúdo ético, não é Direito” 30.
Os Primeiros Princípios são tratados como Direito Natural. Entretanto, Montoro não
admite que todas as normas tenham a mesma validade absoluta universal, como quer
entender os que professam pela doutrina racionalista ou do Direito Natural abstrato.
Para Montoro 31:
“A história mostra, não um direito igual e imutável em todos os povos, mas instituições e regras jurídicas diferentes, acompanhando as diversidades de condições de tempo e de lugar. Até mesmo quando se trata de regulamentar um mesmo princípio – como garantir aos cidadãos meios de defesa contra o arbítrio da autoridade, ou ao Estado o poder de punir, cobrar impostos ou desapropiar – as normas e processos adotados apresentam variação multiforme [...] Além disso, essa doutrina é inaceitável do ponto de vista filosófico. Primeiro, porque desconhece o verdadeiro caráter da natureza humana, que é na realidade profundamente variável. Segundo, porque adota métodos aprioristas e dedutivos, no estudo de matéria que só pode ser conhecida por observação da experiência (...) o direito natural, em lugar de ser um corpo restrito de princípios, a serem utilizados como fundamento no trabalho da elaboração jurídica, passa a constituir um Código completo de regras, que servem de modelo ao direito positivo”.
A doutrina racionalista do Direito Natural acaba confundindo Direito Natural com o
Direito Positivo. E isto é combatido por Montoro, já que o próprio Santo Tomás de
29 Ibid., p. 8. 30 Ibid., p. 272. 31 Ibid., p. 272.
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Aquino entendia que “O Direito, até mesmo o Natural, não pode ser imutável, por que
a natureza humana também não é: natura hominis est mutabilis.”
André Franco Montoro graduou-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São
Bento, sendo aluno do lente belga Dr. Leonardo Van Acker. Dizia Van Acker, que a
vocação de Montoro não era de advogado, mas de filósofo. 32
E Lucy Franco Montoro 33 diz o motivo pelo qual seu marido tinha vocação para a
filosofia: “Talvez porque André percebesse rapidamente o cerne das questões, o
raciocínio que levava aos valores individuais de cada um e da sociedade no múltiplo e
complexo processo da vida individual e social”.
Montoro se destacava em sala de aula devido à sua rápida compreensão dos postulados
do primeiro grupo de filósofos estudados na São Bento: Tales de Mileto, Pitágoras,
Sócrates, Santo Tomás de Aquino. 34
Essa compreensão rápida e profunda, separando o essencial do acidental, fez do André
um grande professor e um grande orador. Ele conseguiu falar às pessoas e dizer o que
elas gostariam de ouvir, respeitando o valor individual de cada um”. 35
O método escolástico de Abelardo, tão usado por Santo Tomás de Aquino no século
XIII, método este que tinha a preocupação pela busca do significado, alcance e sentido
das palavras, encontra-se presente na jusfilosofia de Montoro, tendo em vista que este
filósofo do Direito brasileiro tinha a preocupação na investigação dos sentidos do
vocábulo Direito, quer o nominal, quer o significado real.
“Conceituar o direito é defini-lo. E há duas espécies de definição: nominal, que consiste em dizer o que uma palavra ou nome significa, e real, que consiste em dizer o que uma coisa ou realidade é. [...] Em obediência à recomendação lógica, é o que vamos fazer em relação ao direito. Estudaremos, primeiramente, a significação da palavra. Examinaremos, em seguida, a realidade ou realidades que constituem o direito. O estudo das palavras e da linguagem em geral é da maior importância. Quando um vocábulo é empregado durante várias gerações para designar uma realidade, ele se apresenta cheio de conteúdo e significação. O nome é a experiência acumulada e constitui, de certa forma, o limiar da ciência”. (MONTORO, 1995, p. 30)
Na Introdução à Ciência do Direito, Montoro 36 faz um estudo sobre a origem dos
vocábulos direito e jurídico, encontrando suas raízes em quatro idiomas antigos, a saber
no sânscrito, védico, grego e no latim. Directum significa aquilo que é conforme à régua
32 MONTORO, L. Franco Montoro: democrata e estadista. In: Lafayette Pozzoli; Carlos Aurélio Mota de Souza. (Org.). Ensaios em homenagem a Franco Montoro. Humanismo e Política. São Paulo, 2000, p. 16. 33 Ibid., p. 16. 34 Ibid., p. 16. 35 Ibid., p. 16. 36 Ibid., p. 31-32.
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ou aquilo que é reto. Jus significa direito. Jussum, particípio passado do verbo jubere,
significa mandar ou ordenar. Justum, aquilo que é justo ou conforme à justiça. Yú, do
sânscrito, jugo, jungido ou ligado. Yós, do védico, representa bom, santo, divino, de
onde parece terem sido originadas as expressões Zeus, no grego, e Jovis ou Júpiter, no
latim. E finalmente Diké, que significa indicar.
No entanto, Montoro 37 não se contentava apenas em demonstrar o sentido nominal de
um nome ou sua origem, mas entendia ser necessário buscar o seu significado real; e
usando daquele método, identificou as cinco realidades fundamentais do fenômeno
jurídico, encontrando uma pluralidade de significados, o que o levou a conceber o
Direito como norma, faculdade, justo, ciência e fato social.
“Não podemos nos limitar ao estudo do vocábulo. Devemos passar do plano das palavras para o das realidades. Consideremos as seguintes expressões: 1. O direito não permite o duelo; 2. O Estado tem o direito de legislar; 3. a educação é direito da criança; 4. cabe ao direito estudar a criminalidade; 5. o direito constitui um setor da vida social. [...] Se atentarmos para a significação do vocábulo direito, nessas diversas expressões, verificaremos que, em cada uma, ele significa coisa diferente. Assim, no primeiro caso direito significa a norma, a lei, a regra social obrigatória. Na Segunda expressão direito significa a faculdade, o poder, a prerrogativa que o Estado tem de criar leis. Na terceira expressão direito significa o que é devido por justiça. Na Quarta expressão direito significa ciência, ou, mais exatamente, a ciência do direito. Na última expressão direito é considerado como fenômeno da vida coletiva. Ao lado dos fatos econômicos, artísticos, culturais, esportivos, etc., também o direito é um fato social”. (1995, p. 33)
A concepção tradicional do Direito Natural, particularmente a doutrina tomista, foi
objeto de crítica por Miguel Reale. 38
“Os preceitos apontados como cardeais ou primeiros apresentam-se vazios de conteúdo, como aquele que manda dar a cada um o que é seu, deixando em aberto a determinação do devido a cada qual como próprio segundo proporções estabelecidas pela natureza das coisas. Se toda gente convém em dar a cada um o que é seu, a dificuldade começa tão logo se procure saber precisamente o que é devido a cada um. Na realidade, na concepção ora examinada, ou se perde de vista a experiência concreta, da qual se pretende inicialmente partir para atingirem por indução e abstração conceitos e valores universais de juridicidade, ou então, passam a predominar as determinações ulteriores, pouco significando os limites abstratos admitidos como intransponíveis. Parece-nos, em suma, que o normativismo ético, por sua carência de sentido histórico concreto e por sua distinção abstrata entre o juridicamente lícito e o ilícito, só determinável com referência a uma ordem moral pré-constituída, não logra compreender a realidade jurídica na totalidade autêntica de seus elementos. De certa maneira, o elemento axiológico da norma permanece fora do processo, no qual o fato se ordena
37 Ibid., p. 33-36. 38 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 433.
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normativamente em virtude de valores real e concretamente vividos”. (REALE, 1986, p. 433) Franco Montoro não concorda com Miguel Reale 39 afirmando que: “É certo que os princípios do direito natural, sendo princípios são necessariamente gerais e têm conteúdo limitado a certos preceitos fundamentais. É, aliás, princípio lógico que a compreensão de um conceito é tanto menor quanto maior for sua extensão. Mas não é exato que eles sejam vazios de conteúdo”. (MONTORO, 1995, p. 267)
Dabin fez um notável estudo sobre a filosofia da ordem jurídica positiva, e nesta
pesquisa, examinou o conteúdo do Direito Natural, através da análise de seus preceitos.
Montoro extraiu uma breve síntese do pensamento deste jusfilósofo belga para rebater a
crítica de Miguel Reale.
“O conceito de natureza humana não é um conceito vazio porque é comum a todos os homens. Seus traços fundamentais podem ser estabelecidos com segurança. O homem é por natureza solidário e depende da comunidade de homens para seu desenvolvimento material e espiritual. Além da solidariedade humana geral, existem as mais restritas, que se dá na família e na sociedade politicamente organizada. Estes tipos de solidariedade são extraídas da realidade concreta. Portanto, são fatos que se dão na história. A história e a experiência nos mostram que o homem tem esta tendência natural de união. Logo, os preceitos de direito natural são extraídos da realidade concreta observável”. (DABIN apud MONTORO, 1995, p. 268)
Há três preceitos de Direito Natural: interindividual, político e familiar. O primeiro
preceito acredita que o homem é ser racional e se difere dos animais. Por tal razão, os
homens devem respeito uns em relação aos outros. Ademais, há em todo o homem um
sentimento de justiça. O segundo versa sobre o dever natural de respeito que deve ter as
autoridades públicas em relação aos cidadãos; direito à vida e à honra; direito de atuar
para o bem comum e não em benefício individual; dever de encaminhar uma
distribuição eqüitativa dos benefícios e encargos sociais; dever de atribuir as funções
públicas aos mais capazes. O terceiro preceito diz respeito ao plano familiar. Obrigação
de cuidar, alimentar e educar a prole; o dever de respeito e obediência dos filhos em
relação aos pais. 40
Esses preceitos devem ser determinados concretamente, em cada sociedade, pela
consideração objetiva das condições historicamente contingentes e variáveis. 41 Para
compreendermos a dimensão histórica daqueles preceitos de Direito Natural, necessária
39 MONTORO, A. F. op. cit. 1995, p. 267. 40 Ibid., p. 268. 41 Ibid., p. 269.
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se faz a distinção entre “regras de Direito Natural” e “regras conforme ao Direito
Natural”. As primeiras são incontestáveis e gerais na medida em que são exigências da
natureza humana. As segundas, correspondem à natureza particular e concreta de
determinado grupo de homens. 42
“Ora, não é para a natureza humana genérica que o direito deve formular suas regras, mas para homens concretos, vivendo em determinado momento histórico. [...] Essa realidade é profundamente variável: O direito, até mesmo o natural, não pode ser imutável, por que a natureza humana também não é; natura hominis est mutabilis, diz S. Tomás de Aquino. Por isso, essa matéria deve ser reconhecida principalmente pela experiência.” (MONTORO, 1995, p. 270)
Dabin, citado por Montoro, um dos grandes mestres do neotomismo contemporâneo,
acrescenta que é incontestável que o método adequado exige que se tome como ponto
de partida, em toda investigação de filosofia jurídica, não o Direito em si, mas o fato
histórico, concreto e tangível do Direito Positivo, tal como ele aparece à observação. 43
De acordo com Montoro, o próprio Miguel Reale 44 reconhece, em sua Filosofia do
Direito, que com essa concepção “abre-se um campo vastíssimo deixado às
determinações do Poder, o que dá à concepção tomista do Direito uma reconhecida
plasticidade”.
“Não é válida, também, a crítica de que falta à doutrina tradicional do direito natural e, especialmente, ao tomismo o sentido histórico concreto. A afirmação de princípios fundamentais e permanentes não dispensa a consideração histórica da realidade social. Mas, ao contrário, exige essa consideração e lhe dá a base necessária e os critérios fundamentais. Sem a aceitação, explícita ou implícita, do princípio de que se deve dar a cada um o que é seu, e respeitar, assim a dignidade de cada homem, nenhum passo poderá ser dado na vida concreta do direito. [...] Da mesma forma que o sistema solar, é a partir dessa realidade humana fundamental que se irradiam as leis, os costumes, a jurisprudência e as demais fontes formais do direito.” (MONTORO, 1995, p. 269)
Ainda, Montoro não aceita a crítica de Miguel Reale no que tange à afirmação de que o
elemento axiológico da norma permanece fora da realidade jurídica.
“É claro que o direito de cada época não coincide com a justiça, mas é um esforço para alcançá-la. Os elementos axiológicos, representados pelos valores bem comum, justiça, dignidade humana, estão presentes em todos os momentos e fases da vida do direito, como critério e guia das decisões. Na elaboração da lei, o bem comum é inspiração e a justificativa necessária de todos os projetos e pareceres e discussões. Constitui, aliás, exigência dos Regimentos das Câmaras e Assembléias Legislativas que os projetos de lei sejam sempre acompanhados de sua justificação. São, ainda, a justiça, o bem
42 Ibid., p. 269. 43 DABIN, Jean apud MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 23ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 270. 44 REALE, M. op. cit. 1996, p. 433
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comum, a dignidade da pessoa humana, valores que devem estar sempre presentes no trabalho de interpretação e aplicação de qualquer norma. Na aplicação da lei o Juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, determina o art. 5º do Código Civil. [...] Aliás, a doutrina clássica do direito natural, em seu desenvolvimento histórico, revela uma atitude de constante presença na vida social e jurídica de cada época. E é em função dessa experiência que ele se afirma e se desenvolve. Estariam, por acaso fora da vida real de direito, as invocações aos princípios de justiça, dignidade humana, lei natural e outros, feitos por Antígona ao se recusar a cumprir a ordem iníqua do Rei Creon? Por Santo Ambrósio, Arcebispo de Milão, ao proibir ao Imperador Teodósio a entrada na sua Diocese, após o massacre de Tessalônica? Por Vitória, ao apor-se aos conquistadores do Novo Mundo, em sua pretensão de tratar as populações nativas como animais capturados? Por Leão XIII, ao condenar na Encíclica Rerum Novarum, em 1891, a exploração do trabalho humano como simples instrumento de lucro? Por Pio XI, ao repelir na carta Mit Brenneder Sorge em 1938 as medidas racistas e violentas impostas pelo Nazismo, poderoso e triunfante? Por João XXIII e Paulo VI, ao reclamar a urgência de reformas estruturais na sociedade atual, para que a humanidade supere o subdesenvolvimento em termos de justiça?” (MONTORO, 1995, p. 270-271)
Portanto, de acordo com Montoro, os princípios de Direito Natural não são vazios de
conteúdo, a doutrina tomista tem sentido histórico concreto e o elemento axiológico da
norma permanece dentro do processo ou da realidade jurídica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O pensamento jurídico brasileiro, como demonstrado e pesquisado, foi fortemente
influenciado pela cultura escolástica-tomista. No campo do Direito, essa corrente
filosófica praticamente predominou em nosso panorama jurídico, sobretudo após a
abertura dos cursos jurídicos no Brasil. No entanto, o positivismo científico trouxe ao
pensamento brasileiro a influência das idéias de Augusto Comte; consequentemente, a
visão cientificista positivista se ocupou da tarefa de rejeitar toda idéia metafísica acerca
da existência de um Direito Natural de origem divina. O germanismo de Tobias Barreto,
no mesmo sentido, com sua idéia de que o direito é um fato cultural, também teceu
severas críticas ao pensamento de inspiração teológica. No mesmo espírito, temos na
história das idéias filosóficas no Brasil, a presença de Silvio Romero, que também
contribuiu para rechaçar a afirmação de um Direito de origem divina.
Ocorre que, em nossa cultura jurídica, sobretudo após a chamada “Questão Social”, o
pensamento de Santo Tomás de Aquino foi eleito por seus correligionários como um
instrumento hábil para o combate das idéias jusnaturalistas de linha racional – corrente
que trazia em sua essência os valores do liberalismo, de afirmação da razão humana e
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do indivíduo. Talvez por isso o liberalismo jamais tenha se implantado em nosso país de
forma plena.
Na atualidade, por exemplo, quando se constata o predomínio de uma ordem econômica
e política neoliberal, o neotomismo parece reconquistar seu espaço, na medida em que
se propõe a estabelecer a mesma oposição ideológica, política e jusfilosófica que o
tomismo exercia em relação ao liberalismo clássico. Nesse sentido o neotomismo parece
encarnar as palavras de René Marcic, quando dizia que “A história da Filosofia do
Direito é o movimento dialético entre o Direito Natural e o Direito Positivo”. 45
Portanto, se os escoláticos tomistas do Império acreditavam na existência de um Direito
de origem divina, os neotomistas, na República, notadamente após a Questão Social da
Igreja, passaram a acreditar não mais num Direito divino, mas num Direito de origem
laica. Logo, o discurso dos jusfilósofos de inspiração cristã - assentado numa Justiça
Divina - passou a ser incompatível com os acontecimentos científicos da idade
contemporânea. O discurso mudou. Hoje, entre os neotomistas, fala-se em Justiça
Social, um tipo de Justiça que tem como principal vetor o homem, embora guarde
profunda relação com o projeto de Deus, qual seja a concretização do bem comum e da
fraternidade entre os homens.
REFERÊNCIAS
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Imperial e Nacional, 1829.
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GONZAGA, Tomás A. Tratado de Direito Natural. Rio de Janeiro: MEC/INL,
1957.
JAIME, Jorge. História da filosofia no Brasil. Vol. II. Petrópolies: Vozes, 2000.
45 MARCIC. René. Geschichte der Rechtsphilosophie. Friburgo: Brisgau, 1971, pg. 73.
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MARCIC, René. Geschichte der Rechtsphilosophie. Friburgo: Brisgau, 1971.
MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 23ª Edição. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
MONTORO, L. Franco Montoro: democrata e estadista. In: Lafayette Pozzoli;
Carlos Aurélio Mota de Souza. (Org.). Ensaios em homenagem a Franco
Montoro. Humanismo e Política. São Paulo, 2000.
NETO, A. L. Machado. História das idéias jurídicas no Brasil. São Paulo:
Grijalbo, 1969.
PAIM, Antonio. História das idéias filosóficas no Brasil. 1ª edição. São Paulo:
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6, nov/dicembre 1958. in: sobre la cultura giuridica italiana in brasile.
VAMPRÉ, Spencer. Memória para a história da academia de São Paulo. Volume
I. São Paulo: Saraiva, 1928.
WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro:
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