A d4nça do un1v3rso

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  • MARCELO CLEISER

    A DANA DO UNIVERSO

    Dos mitos de Criao ao Big Bang

  • Copyright 1997 by Marcelo Gleiser

    Projeto grfico:

    Ettore Bottini

    Capa:Ettore Bottini

    sobre detalhe de Noite Estrelada, de Vincent Van Gogh, 1889

    Ilustraes:

    Carlos Matuck

    Preparao:

    Carlos Alberto Inada

    ndice remissivo:

    Beatriz Miranda

    Reviso:

    Ana Maria BarbosaCeclia Ramos Isabel Jorge Cury

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip) (Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

    Gleiser, MarceloA dana do universo: dos mitos de Criao ao Big Bang /

    Marcelo Gleiser. So Paulo : Companhia das Letras, 1997.

    Bibliografia.ISBN 85-7164-677-5

    1. Cosmologia 2. Criao 3. Natureza 4. Origem 5. Religio e cincia I.Ttulo

    97-2810 CDD-113Indices para catlogo sistemtico:

    1.Cosmologia : Metafsica : Filosofia 1132.Natureza : Metafsica : Filosofia 1133.Universo : Origem : Metafsica : Filosofia 113

    Todos os direitos desta edio reservados EDITORA SCHWARCZ LTDA.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 72

    04532-002 So Paulo SPTelefone: (011) 866-0801

    Fax: (011) 866-0814

  • memria de meus pais

  • SUMRIO

    Agradecimentos ............................................................................. 9

    Prefcio ......................................................................................... 11

    PARTE 1: Origens 1 Mitos de criao ......................................................................... 172 Os gregos ................................................................................... 41

    PARTE 2: O despertar3 O Sol, a Igreja e a nova astronomia ........................................... 934 O hertico religioso .................................................................... 1355 O triunfo da razo ...................................................................... 163

    PARTE 3: A Era Clssica

    6 O mundo uma mquina complicada ....................................... 197

    PARTE 4: Tempos modernos7 O mundo do muito veloz ........................................................... 2518 O mundo do muito pequeno ...................................................... 278

    PARTE 5: Modelando o Universo9 Inventando universos ................................................................. 31510 Origens ..................................................................................... 359

    Eplogo: Danando com o Universo ............................................ 395

    Glossrio ....................................................................................... 399Notas ............................................................................................. 409Bibliografia e leitura adicional .................................................... 425ndice onomstico ......................................................................... 429

  • AGRADECIMENTOS

    Gostaria de expressar minha profunda gratido aos vrios amigos e colegas que encontraram tempo para ler e criticar o manuscritooriginal. O incentivo de Freeman Dyson foi fundamental, dando-me a coragem necessria para embarcar neste longo projeto. A influncia de Rocky Kolb como amigo, mentor (desculpe-me, Rocky, voc no to velho assim, mas...) e colaborador foi muito importante na realizao deste livro, e continua sendo em relao a minha carreira. Em Dartmouth, aprendi bastante com os comentrios e sugestes de Joseph Harris, Richard Kremer e Kari McCadam. Rodolfo Franconi, meu nico colega brasileiro em Dartmouth, teve a generosidade e a pacincia de ler e reler o manuscrito, corrigindo meu enferrujado portugus.

    Gostaria tambm de agradecer a Luiz Schwarcz pelo apoio, e a Carlos Alberto Inada pelo belssimo trabalho de reviso de texto. A meus filhos, Andrew, Eric e Tali, por me ensinarem a olhar para o mundo sempre com os olhos e o corao abertos: quem disse que o espao-tempo tem apenas quatro dimenses? A Wendy, por sua pacincia e compreenso durante os dois longos anos em que me ocupei deste projeto. Finalmente, gostaria de agradecer a meu pai por ter me ensinado a apreciar a beleza do mundo e das pessoas a minha volta.

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  • PREFCIO

    Dos cantos de rituais ancestrais at as equaes matemticas que descrevem flutuaes energticas primordiais, a humanidade sempre procurou modos de expressar seu fascnio pelo mistrio da Criao. De fato, todas as culturas de que temos registro, passadas e presentes, tentaram de alguma forma entender no s nossas origens, mas tambm a origem do mundo onde vivemos. Dos mitos de criao do mundo de culturas pr-cientficas s teorias cosmolgicas modernas, a questo de por que existe algo ao invs de nada, ou, em outras palavras, por que o mundo?, inspirou e inspira tanto o religioso como o ateu.

    Ao retraarmos os passos desse vasto projeto, exploraremos os vrios meios com que a imaginao humana confrontou e continua a confrontar o mistrio da criao; belas metforas e um riqussimo simbolismo cruzam as fronteiras entre cincia e religio, expressando uma profunda universalidade do pensamento humano. Entretanto, veremos que essa mesma universalidade demonstra a existncia de certas limitaes em nossa imaginao. O problema que tanto nossa percepo sensorial como os processos de pensamento que usamos para organizar o mundo nossa volta so restringidos por uma viso polarizada da realidade, que se baseia em opostos como dia-noite, frio-quente,

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  • macho-fmea etc. Devido a essas limitaes, podemos oferecer apenas um pequeno nmero de argumentos lgicos que visam dar sentido quilo que transcende essa polarizao, o Absoluto de onde tudo se origina, seja ele Deus, um mtico ovo csmico ou as leis da fsica.

    Embora cincia e religio abordem a questo da origem do Universo com enfoques e linguagens que tm pouco em comum, certas idiasforosamente reaparecem, mesmo que vestidas em roupas diferentes. Portanto, este livro comea com uma anlise dos mitos de criao de vrias culturas, e termina com uma discusso paralela de idias cientficas modernas sobre a origem do Universo. Ao apresentar uma classificao geral de mitos de criao e de teorias cosmolgicas baseada em como essa questo abordada por ambos, espero esclarecer tanto as semelhanas como as diferenas entre o enfoque religioso e o cientfico.

    Neste estudo dos mitos de criao e da cosmologia moderna, examinaremos de que forma a nossa compreenso da Natureza e do Universo como um todo desenvolveu-se de mos dadas com a evoluo da fsica, desde suas origens com os filsofos pr-socrticos da Grcia antiga, at a introduo da mecnica quntica e da teoria da relatividade durante as trs primeiras dcadas do sculo xx.

    Este livro tambm sobre as pessoas responsveis pelo desenvolvimento da nossa viso do Universo, viso esta que est sempre em constante evoluo. No s explicarei as idias desses vrios indivduos, mas tambm explorarei suas motivaes, sucessos e lutas travadas no desenrolar desse longo drama. Como veremos, a religio teve (e tem!) um papel crucial no processo criativo de vrios cientistas. Coprnico, o tmido cnego que ps o Sol novamente no centro do cosmo, era mais um conservador do que um heri das novas idias heliocntricas. Kepler, que nos ensinou que os planetas se movem ao redor do Sol em rbitas elpticas, misturava, de forma nica, misticismo e cincia. Galileu, o primeiro a apontar o telescpio para as estrelas, era um homem religioso (e muito ambicioso), que acreditava poder salvar sozi-

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  • nho a Igreja catlica de um embarao futuro. O universo de Newton era infinito, a manifestao do poder infinito de Deus. Einstein escreveu que a devoo cincia era a nica atividade verdadeiramente religiosa nos tempos modernos.

    Acredito que ao conhecer esses cientistas vamos entender melhor no s sua cincia, mas tambm os cientistas em geral; como eles pensam, sentem e que elementos subjetivos fazem parte de seu processo criativo. A noo, infelizmente bem generalizada, de que os cientistas so pessoas frias e insensveis, um grupo de excntricos que dedicam sua vida ao estudo de questes arcanas que ningum pode entender, profundamente equivocada. Como espero mostrar, a fsica muito mais do que a mera resoluo de equaes e interpretao de dados. At arrisco dizer que existe poesia na fsica, que a fsica uma expresso profundamente humana da nossa reverncia beleza da Natureza. Fsica , tambm, um processo de autodescoberta, de pr-cura, como me disse certa vez o psicanalista Hlio Pellegrino, que acontece quando tentamos transcender as limitaes da vida diria atravs da contemplao de questes de natureza mais profunda. Espero que, aps terminar este livro, voc concorde comigo.

    Este livro para todo indivduo, cientista ou no, que tenha curiosidade acerca do Universo em que vivemos. Embora aqui trate de cincia, histria da cincia e da relao entre cincia e religio, este livro no um tratado acadmico sobre esses assuntos. A idia aqui no ser exaustivo ou muito detalhado, pois isso iria contrariar minhas intenes, transformando este livro em algo que no . Dada a grande variedade de tpicos, vrios detalhes foram postos de lado, intencionalmente ou no. Para os leitores que queiram mais informao, ofereo uma lista para leitura adicional na bibliografia.

    Gosto de comparar o cientista que escreve sobre cincia para o pblico em geral com um tradutor tentando encontrar modos para descrever certas imagens e idias em uma nova lngua que talvez no seja to adequada quanto a lngua original, no caso a matemtica. Inevitavelmente, algo ser sempre perdido na tradu-

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  • o, certas idias e imagens tero seus significados obscurecidos ao serem expressas dentro de outra estrutura lingstica. Como soluo, freqentemente apelarei para sua imaginao, invocando imagens da vida diria que iro ajudar na elucidao de certos aspectos mais tcnicos. Assim como em msica no necessrio saber ler uma partitura para poder apreciar a beleza de uma sinfonia, em fsica tampouco se precisa saber resolver uma equao para apreciar a beleza de uma teoria. Minha esperana que a traduo seja boa o suficiente para que voc possa compartilhar da minha paixo pela cincia e por esse Universo que jamais deixar de nos surpreender e maravilhar.

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  • PARTE 1

    ORIGENS

  • 1MITOS DE CRIAO

    Muitos pensam que a pesquisa cientfica uma atividade puramente racional, na qual o objetivismo lgico o nico mecanismo capaz de gerar conhecimento. Como resultado, os cientistas so vistos como insensveis e limitados, um grupo de pessoas que corrompe a beleza da Natureza ao analis-la matematicamente. Essa generalizao, como a maioria das generalizaes, me parece profundamente injusta, j que ela no incorpora a motivao mais importante do cientista, o seu fascnio pela Natureza e seus mistrios. Que outro motivo justificaria a dedicao de toda uma vida ao estudo dos fenmenos naturais, seno uma profunda venerao pela sua beleza? A cincia vai muito alm da sua mera prtica. Por trs das frmulas complicadas, das tabelas de dados experimentais e da linguagem tcnica, encontra-se uma pessoa tentando transcender as barreiras imediatas da vida diria, guiada por um insacivel desejo de adquirir um nvel mais profundo de conhecimento e de realizao prpria. Sob esse prisma, o processo criativo cientfico no assim to diferente do processo criativo nas artes, isto , um veculo de autodescoberta que se manifesta ao tentarmos capturar a nossa essncia e lugar no Universo.

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  • primeira vista, pode parecer estranho que um livro escrito por um cientista sobre a evoluo do pensamento cosmolgico comece com um captulo sobre mitos de criao de culturas pr-cientficas. Existem duas justificativas para minha escolha.

    Primeira, esses mitos encerram todas as respostas lgicas que podem ser dadas questo da origem do Universo, incluindo as que encontramos em teorias cosmolgicas modernas. Com isso no estou absolutamente dizendo que a cincia moderna est meramente redescobrindo a antiga sabedoria, mas que, quando nos deparamos com a questo da origem de todas as coisas, podemos discernir uma clara universalidade do pensamento humano. A linguagem diferente, os smbolos so diferentes, mas, na sua essncia, as idias so as mesmas.

    claro que existe uma grande diferena entre um enfoque religioso e um enfoque cientfico no estudo da origem do Universo. Teorias cientficas so supostamente testaveis e devem ser refutadas se elas no descrevem a realidade. Mesmo que no momento estejamos ainda longe de podermos testar modelos que descrevem a origem do Universo, um modelo matemtico s ser considerado seriamente pela comunidade cientfica se puder ser testado experimentalmente. Esse fato bsico traz vrias dificuldades aos modelos que tentam descrever a origem do Universo. Afinal, como podemos testar esses modelos? No momento, o mximo que podemos esperar que eles nos dem informaes sobre certas propriedades bsicas do Universo observado. Mesmo que isso esteja ainda longe de ser um teste da utilidade desses modelos, pelo menos j um comeo. Mais tarde, retornaremos a esses modelos e discutiremos em maiores detalhes suas promessas e dificuldades. Por ora, importante apenas que tenhamos em mente que mitos de criao e modelos cosmolgicos tm algo de fundamental em comum: ambos representam nossos esforos para compreender a existncia do Universo.

    A segunda razo para comear este livro com mitos de criao mais sutil. Esses mitos so essencialmente religiosos, uma expresso do fascnio com que as mais variadas culturas enca-

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  • ram o mistrio da Criao. Como discutirei em detalhe, precisamente esse mesmo fascnio que funciona como uma das motivaes principais do processo criativo cientfico. Acredito que esse fascnio seja muito mais primitivo do que o veculo particular escolhido para express-lo, seja atravs da religio organizada ou da cincia. Para a maioria dos cientistas o estudo da Natureza encarado como um desafio intelectual. Sua motivao para enfrentar esse desafio vem de uma profunda f na capacidade da razo humana de poder entender o mundo sua volta. A fsica se transforma em uma ferramenta desenhada para decifrar os enigmas da Natureza, a encarnao desse processo racional de descoberta. Como escreveu Richard Feynman, em seu maravilhoso livro Feynman lectures on physics,

    Imagine que o mundo seja algo como uma gigantesca partida de xadrez sendo disputada pelos deuses, e que ns fazemos parte da audincia. No sabemos quais so as regras do jogo; podemos apenas observar seu desenrolar. Em princpio, se observarmos por tempo suficiente, iremos descobrir algumas das regras. As regras do jogo o que chamamos de fsica fundamental.

    Podemos interpretar esse texto de dois modos diversos. Um dizer que a fsica apenas um modo racional de estudar a Natureza; outro dizer que a fsica mais do que um mero desafio intelectual, que a fsica a linguagem dos deuses.

    A maioria dos cientistas modernos opta pela primeira interpretao. Mas alguns no. Para estes, a busca do conhecimento cientfico possui elementos essencialmente msticos, uma espcie de conexo com uma fonte de inteligncia superior. Talvez isso venha a chocar muita gente, incluindo vrios cientistas. Contudo, se voltarmos um pouco no tempo, veremos que alguns dos cientistas responsveis pelo desenvolvimento de nossa viso do Universo eram profundamente religiosos. Acredito que o misticismo, se interpretado como a incorporao da nossa irresistvel atrao pelo desconhecido, tem um papel funda-

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  • mental no processo criativo de vrios cientistas tanto do passado como do presente. Negar esse fato fechar os olhos para a histria, e para um aspecto fundamental da cincia. Para que possamos entender as razes desse misticismo racional, inicialmente iremos focalizar nossa ateno nos mitos de criao de civilizaes pr-cientficas.

    A natureza dos mitos de Criao

    H milnios, muito antes de esse corpo de conhecimento que hoje chamamos de cincia existir, a relao dos seres humanos com o mundo era bem diferente. A Natureza era respeitada e idolatrada, sendo a nica responsvel pela sobrevivncia de nossa espcie, a qual vivia basicamente da caa e de uma agricultura bastante rudimentar. Na esperana de que catstrofes naturais tais como vulces, tempestades ou furaces no destrussem as suas casas e plantaes, ou matassem os animais e peixes, vrias culturas atriburam aspectos divinos Natureza. Os pormenores desse processo de deificao da Natureza variam de acordo com a localizao, clima ou com o grau de isolamento de um determinado grupo. Em certas culturas, vrios deuses controlavam (ou at personificavam) as diferentes manifestaes naturais, enquanto em outras a prpria Natureza era divina, a Deusa-Me. Rituais e oferendas procuravam conquistar a simpatia divina, garantindo assim a sobrevivncia do grupo. Atravs dessa relao com os deuses, os indivduos buscavam ordenar sua existncia, dando sentido a fenmenos misteriosos e ameaadores. Por outro lado, a relao com os deuses tinha tambm uma funo social, impondo valores morais e ticos que eram fundamentais para a coeso do grupo.

    Essa relao religiosa com a Natureza se estendia para alm das funes mais imediatas de bem-estar e segurana do grupo, abrangendo tambm necessidades de ordem mais metafsica. Um exemplo tpico a interpretao da morte em diferentes religies. Em certos casos, a morte apenas uma passagem para

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  • uma nova vida, uma ponte ligando uma existncia a outra, em um ciclo que se repete eternamente. Em outros, a morte representa uma ascenso a uma realidade absoluta, a promessa de uma merecida existncia eterna no Paraso, aps as vrias atribulaes e dificuldades da vida. Qualquer que seja a cultura, a busca pela compreenso da morte atravs da religio satisfaz a necessidade que temos de lidar com o que tantas vezes imprevisvel e inexplicvel. Para o crente, a f conforta e d a certeza de que sua prpria morte no o fim de tudo. J para o ctico, a prpria cincia pode oferecer algum conforto. Como escreveu o fsico americano Sheldon Glashow: talvez possamos, ao entendermos a cincia, encarar mais facilmente nossa prpria mortalidade e a da nossa espcie e planeta.2

    Outra situao em que a religio tem um papel muito importante na questo da origem do Universo. Essa talvez a pergunta mais fundamental que podemos fazer com relao nossa existncia. Tanto assim que neste livro vamos cham-la de A Pergunta. Afinal, estamos aqui porque o Universo oferece condies para que a vida inteligente possa evoluir, ao ponto de tornar possvel que (pelo menos) uma espcie, que habita um pequeno planeta orbitando em torno de uma pequena estrela situada em uma dentre bilhes de galxias no Universo, possa se perguntar sobre sua origem. Ao nos perguntarmos sobre a nossa origem, ou sobre a origem da vida, estamos implicitamente nos perguntando sobre a origem do Universo, a origem das origens. Portanto, no nenhuma surpresa que a cosmologia exera tanto fascnio atualmente. Devido sua natureza, a cincia tem de oferecer respostas universais, independentes de pontos de vista religiosos ou morais. Ao se questionar sobre a origem do Universo, os cosmlogos atuam, ao menos na percepo popular, como criadores de mitos universais, capazes de transpor barreiras de credo e raa.

    Quando refletimos sobre a origem do Universo, imediatamente percebemos que devemos nos defrontar com problemas bem fundamentais. Como podemos compreender qual a origem de tudo? Se assumirmos que algo criou tudo, camos

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  • em uma regresso infinita; quem criou o algo que criou o tudo? Como podemos entender o que existia antes de tudo existir? Se dissermos que nada existia antes de tudo, estamos assumindo a existncia de nada, o que implicitamente assume a existncia de um tudo que lhe contrrio. Nada j muito, como na histria de Alice no Pas das Maravilhas, em que o Rei Vermelho pergunta a Alice: O que voc est vendo?, e Alice responde: Nada. O rei, impressionadssimo, comenta:Mas que timos olhos voc tem!.3 Quando tentamos entender o Universo como um todo, somos limitados pela nossa perspectiva interna, como um peixe inteligente que tenta descrever o oceano como um todo. Isso verdade tanto em religio como em cincia. Em cincia, o problema particularmente agudo em cosmologia quntica, onde a mecnica quntica aplicada na descrio da origem do Universo.4

    Na mecnica quntica tradicional, o observador tem um papel privilegiado, sua presena sendo de alguma forma responsvel pelos resultados de um dado experimento. Para que possamos aplicar a mecnica quntica ao Universo como um todo, o papel do observador tem de ser modificado, basicamente porque ningum estava l para tirar medidas. E aqui nos defrontamos com uma barreira aparentemente intransponvel, que tem suas origens no modo como pensamos e nos comportamos em sociedade: o problema da polarizao entre pares de opostos imbuda na nossa percepo da realidade. Quando tentamos organizar o mundo nossa volta, a distino entre opostos fundamental. Nossa existncia e aes so rotineiramente baseadas em pares de opostos, como dia e noite, frio e quente, culpado e inocente, feio e bonito, morto e vivo, rico e pobre. Sem essa distino nossos valores no fariam sentido, nossa agricultura no funcionaria, e nossa espcie provavelmente no sobreviveria. O problema que pagamos um preo por sermos assim. Perguntas que transcendem a distino entre opostos ficam sem resposta. Pelo menos, sem uma resposta que possamos chamar de lgica. Mas isso no significa que deixamos de fazer essas perguntas. Ao contrrio, o fascinante que, em todas

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  • as culturas de que temos conhecimento, A Pergunta foi feita. A necessidade de entendermos nossa origem e a origem de todo o Universo, ou seja, o problema da Criao, inerente ao ser humano, transpondo barreiras temporais e geogrficas. Ela estava presente h milnios, quando nos abrigvamos em cavernas durante tempestades, e ela est presente agora, quando encontramos tempo para refletir sobre nossa existncia.

    Uma vez que nos perguntamos sobre a origem do Universo, encontrar uma resposta se torna muito tentador. O caminho que cada indivduo escolhe depende, sem dvida, de quem est fazendo a pergunta. Uma pessoa religiosa vai procurar respostas dentro do contexto de alguma religio, que poder ser tanto uma religio organizada como uma verso mais pessoal. O ateu tentar, talvez, achar uma resposta dentro de um contexto cientfico. Religiosas ou no, certamente a maioria das pessoas ter alguma resposta. O veculo encontrado por vrias culturas foi o mito. Mitos so histrias que procuram viabilizar ou reafirmar sistemas de valores, que no s do sentido nossa existncia como tambm servem de instrumento no estudo de uma determinada cultura.

    Um exemplo trgico o mito da supremacia ariana, usado pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial como plataforma de coeso na Alemanha. Outro exemplo o mito segundo o qual aquele que se interessa por cincia tem de ser diferente, ou pelo menos levemente desajustado na arte da comunicao social. Ou que mulheres no devem se interessar por cincia porque isso coisa de homem. Como conseqncia desse mito, cientistas so muitas vezes rotulados de frios ou calculistas, quando na verdade a dedicao cincia uma atividade profundamente humana, cheia de paixo e reverncia pela beleza da Natureza. E, infelizmente, mulheres cientistas ainda so uma minoria absoluta em vrios pases. Uma das razes que me levaram a escrever este livro precisamente meu desejo de refutar esses mitos.

    Esses exemplos mostram que o poder de um mito no est em ele ser falso ou verdadeiro, mas em ser efetivo. Isso no pode

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  • ser mais verdade do que quando nos deparamos com os mitos de Criao (ou cosmognicos do grego kosmogonos), que abordam o problema da origem do Universo. claro que, quando diferentes culturas tentam formular uma explicao para a origem de tudo, elas tm de usar uma linguagem essencialmente metafrica, baseada em smbolos que tm significado dentro da cultura geradora do mito. Metforas tambm so comuns em cincia, especialmente a cincia que explora fenmenos alheios nossa percepo sensorial, como por exemplo no mundo do muito pequeno e do muito rpido, o domnio da fsica atmica e subatmica.

    Isso explica por que mitos de determinadas culturas podem parecer completamente sem sentido em outras. De fato, um erro bastante comum usarmos valores ou smbolos da nossa cultura na interpretao de mitos de outras culturas. Outro erro grave interpretar um mito cientificamente, ou tentar prover mitos com um contedo cientfico. Os mitos tm que ser entendidos dentro do contexto cultural do qual fazem parte. Por exemplo, o mito assrio Uma outra verso da criao do homem (c. 800 a. C.) comea com cinco deuses, Anu, Enlil, Shamash, Ea e Anunnaki, discutindo a criao do mundo enquanto esto sentados no cu. Se no sabemos qual o significado dessas divindades para o povo assrio, a imagem de cinco deuses conversando no cu pode nos parecer bastante simplista. Porm, uma vez entendido o que cada deus representa, o mito passa a fazer muito mais sentido. Anu simboliza o poder do cu ou do ar, Enlil o poder da terra, Shamash o Sol ou fogo, Ea a gua, e Anunnaki o destino. Para os assrios, a Criao ocorreu quando os quatro elementos e o tempo se combinaram para dar forma ao mundo e vida. Sua religio baseada em rituais que celebram o poder da Natureza, sendo a misso dos devotos a manuteno e o incremento do poder e da fertilidade da Terra, uma lio que ns todos devemos encarar muito seriamente hoje em dia.

    Devido ao seu profundo significado, os mitos de criao nos fornecem um retrato fundamental de como determinada cultura percebe e organiza a realidade sua volta. Em breve, te-

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  • remos oportunidade de analisar alguns exemplos, escolhidos pelo modo como o problema da Criao abordado. A idia aqui no oferecer uma anlise detalhada dos vrios mitos usando mtodos da antropologia cultural, algo que prefiro deixar para os antroplogos, mas apenas discutir as vrias possibilidades criadas pelas diferentes culturas para lidar com A Pergunta. Dentro desse foco mais restrito, veremos que os vrios mitos de criao pr-cientficos exibem todas as respostas possveis Pergunta. Em outras palavras, depois de despojados de sua rica (e muitas vezes belssima) simbologia, os mitos podem ser classificados de acordo com o modo como explicam a Criao (ou sua ausncia!). Na parte final do livro, onde discutiremos as teorias da cosmologia moderna, vamos encontrar alguns traos dessas idias antigas, memrias distantes talvez, que de alguma forma permaneceram vivas nos confins de nosso inconsciente, demonstrando uma profunda universalidade da criatividade humana.

    Uma classificao dos mitos de Criao

    Conforme vimos antes, a restrio fundamental que devemos enfrentar quando tentamos entender a origem de tudo a limitao imposta pela nossa percepo bipolar da realidade; o processo ou entidade responsvel pela Criao tem necessariamente que criar ambos os opostos, estando portanto alm dessa dicotomia. A soluo encontrada para esse problema pelas vrias culturas essencialmente religiosa. Em geral, todas as culturas assumem a existncia de uma realidade absoluta, ou simplesmente de um Absoluto, que no s abrange como transcende todos os opostos. Esse Absoluto o elemento central na estrutura de todas as religies, dando assim um carter religioso aos mitos de criao. O Absoluto, ento, incorpora em si a sntese de todos os opostos, existindo por si s, independente da existncia do Universo. Ele no tem uma origem, j que est alm de relaes de causa e efeito. Esse Absoluto pode ser

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  • Deus, ou o domnio de vrios deuses, ou o Caos Primordial, ou mesmo o Vazio, o No-Ser.

    Por outro lado, vivemos na nossa realidade polarizada, de onde tentamos compreender a essncia do Absoluto. A ponte que estabelece a relao entre o Absoluto e a realidade o mito de criao. Em outras palavras, atravs de seus mitos as religies proclamam sua realidade, relacionando o compreensvel ao incompreensvel. O processo de criao do Universo envolve sempre a distino entre os opostos, a desintegrao da unio existente no Absoluto que gera a polarizao inerente realidade.

    Quais so, ento, as respostas dadas pelas vrias culturas Pergunta? O simbolismo utilizado por uma cultura na narrao de seus mitos nunca to expressivo quanto nos seus mitos de criao. Um belo exemplo vem dos ndios Hopi, dos Estados Unidos. Nele existem duas personagens principais, Taiowa (o Criador, representando o Ser) e Tokpela (o espao infinito, representando o No-Ser).

    O primeiro mundo foi Tokpela. Mas antes, se diz, existia apenas o Criador, Taiowa. Todo o resto era espao infinito. No existia um comeo ou um fim, o tempo no existia, tampouco formas materiais ou vida. Simplesmente um vazio incomensurvel, com seu princpio e fim, tempo, formas e vida existindo na mente de Taiowa, o Criador. Ento Ele, o infinito, concebeu o finito: primeiro Ele criou Sotuknang, dizendo-lhe: Eu o criei, o primeiro poder e instrumento em forma humana. Eu sou seu tio. V adiante e perfile os vrios universos em ordem, para que eles possam trabalhar juntos, de acordo com meu plano. Sotuknang seguiu as instrues de Taiowa; do espao infinito ele conjurou o que se manifestaria como substncia slida, e comeou a moldar as formas concretas do mundo.

    Nesse mito, o Infinito cria o finito, dando forma concreta matria. Claramente, Taiowa representa o Absoluto a que nos referimos antes, que onipresente (est presente simultaneamente em todos os lugares), onisciente (tem conhecimento de

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  • tudo) e onipotente (tem poder infinito). O Universo criado pela ao de um Ser Positivo, em um determinado momento; ou seja, a Criao ocorre em um momento especfico, implicando que o Universo tem uma idade finita.

    J em outros mitos, o papel do tempo na Criao muito diferente. O Universo no foi criado em um momento especfico, mas existiu e existir para sempre, isto , o Universo tem uma idade infinita. Por exemplo, na religio hindu, na qual o tempo tem uma natureza circular, a Criao repetida eternamente, num ciclo de criao e destruio simbolizado pela dana rtmica do deus Xiva:

    Na noite do Brama (a essncia de todas as coisas, a realidade absoluta, infinita e incompreensvel), a Natureza inerte e no pode danar at que Xiva assim o deseje. O deus se ala de seu estupor e, atravs de sua dana, envia ondas pulsando com o som do despertar, e a matria tambm dana, aparecendo gloriosamente sua volta. Danando, Ele sustenta seus infinitos fenmenos, e, quando o tempo se esgota, ainda danando, Ele destri todas as formas e nomes por meio do fogo e se pe de novo a descansar

    A dana de Xiva simboliza tudo que cclico no Universo, incluindo sua prpria evoluo. Atravs de sua dana, o deus cria o Universo e seu contedo material, mantendo-o durante sua existncia e finalmente destruindo-o quando chega o tempo apropriado. Esse ciclo se repete por toda a eternidade, sem um comeo ou um fim. Para os hindus, nossa existncia se manifesta atravs da tenso dinmica entre os opostos, vida e morte, criao e destruio. A dana do deus simboliza no s a natureza rtmica do tempo, como tambm a natureza efmera da vida, ajudando os devotos a encarar sua prpria mortalidade.

    Como neste livro examinaremos a evoluo do pensamento cosmolgico e o papel do que chamo de misticismo racional no processo criativo cientfico, nosso estudo dos mitos de criao se restringir s idias bsicas sobre Criao, que podemos identi-

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  • ficar por trs da rica simbologia usada nos mitos. Portanto, de agora em diante vamos nos concentrar mais nas respostas oferecidas pelos vrios mitos de criao ao problema da Criao, deixando de lado os detalhes das culturas que os geraram. A classificao dos mitos de criao que ofereo a seguir baseada em vrias antologias que podem ser achadas na literatura. Para os leitores mais curiosos, cito alguns exemplos na bibliografia.

    Os mitos de criao podem ser separados em dois grupos principais, de acordo com a resposta dada questo do Incio. Enquanto alguns mitos supem que o Universo teve um incio, ou seja, um momento a partir do qual o Universo passou a existir, como no exemplo dos ndios Hopi, outros supem que o Universo existiu desde sempre, como no exemplo da dana do deus Xiva. No primeiro caso, o Universo tem uma idade finita, enquanto no segundo o Universo tem uma idade infinita. Imagino que voc poderia argumentar que, no caso do Universo cclico, cada ciclo comea com uma Criao. Isso verdade para aquele ciclo em particular, mas como existe um nmero infinito de ciclos, no podemos falar de um Incio, mas sim de infinitos incios, todos igualmente importantes. O tempo efetivamente circular, sem comeo nem fim, permitindo portanto uma fcil distino entre esse tipo de mito e aqueles que supem um Incio nico.

    A fim de organizar melhor nossas idias, vamos chamar os mitos que supem um (e apenas um) momento da Criao de mitos com Criao. J os mitos em que o Universo eterno, ou criado e destrudo infinitas vezes, chamemos de mitos sem Criao. Dentro de cada um desses grupos existem subgrupos, definidos de acordo com o processo responsvel pela existncia do Universo. No diagrama a seguir, apresento uma classificao dos mitos cosmognicos.

    Os mitos com Criao podem ser subdivididos em trs grupos, de acordo com o agente que efetua a Criao. O Universo pode ser criado a partir da ao de um Ser Positivo, que pode ser um deus, uma deusa ou vrios deuses. O Universo pode tambm aparecer a partir do Vazio absoluto, o Ser Negativo ou o

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  • FIGURA 1.1: Uma classificao dos mitos cosmognicos.

    No-Ser, sem a interveno de uma entidade divina. Ou, finalmente, o Universo surge atravs da tenso entre Ordem e Caos, ambos partes do Absoluto inicial. Aqui, as potencialidades de Ser e No-Ser coexistem simultaneamente, sem que exista ainda uma separao entre os opostos. Essa tenso por fim gerar a matria, que, por meio de um processo contnuo de diferenciao, toma as vrias formas que se manifestam no mundo natural. Nos trs casos, podemos visualizar o tempo como uma reta que tem sua origem no ponto t = 0, o instante inicial.

    Os mitos sem Criao podem ser subdivididos em dois grupos. Como no existe um momento definido de criao, as nicas possibilidades so um Universo que existe e existir para toda a eternidade, ou um Universo que continuamente criado e destrudo, em um ciclo que se repete para sempre. No primeiro caso, podemos visualizar o tempo como uma li-

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  • FIGURA 1.2: Representao pictrica do tempo em vrios mitos.

    nha reta que se origina num ponto infinitamente distante de onde estamos agora. Portanto, todos os pontos na linha reta so equivalentes, e o que definimos como o incio do tempo passa a ser uma escolha subjetiva. Ns que escolhemos quando comeamos a contar a passagem do tempo. No segundo caso, podemos visualizar o tempo como um crculo que sempre retorna ao seu ponto de partida. Novamente, no existe nenhum ponto especial que possamos identificar como o incio do tempo.

    Alguns exemplos

    A seguir, ilustrarei essa classificao dos mitos cosmognicos com alguns exemplos, comeando pelos mitos com Criao. Essa seleo de mitos bastante pessoal, inspirada principalmente por sua beleza e relevncia para meu argumento. Os mitos que assumem a existncia de um incio so, sem dvida, os mais comuns, em especial aqueles que invocam um Ser Positivo no

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  • papel do Criador. Para o mundo ocidental, o mito de criao mais conhecido encontrado no Gnesis 1:1-5 (c. 400 a. C):

    No princpio Deus criou o cu e a terra. A terra, porm, estava informe e vazia, e as trevas cobriam a face do abismo, e o Esprito de Deus movia-se sobre as guas. E Deus disse: Exista a luz. E a luz existiu. E Deus viu que a luz era boa; e separou a luz das trevas. E chamou luz dia, e s trevas noite. E fez-se tarde e manh: o primeiro dia*

    Deus, o Absoluto, exerce Seu^infinito poder criativo atravs de palavras que do existncia ao Universo e ao seu contedo (Exista a luz. E a luz existiu). O processo de criao se efetua por meio da separao entre opostos, em particular entre luz e trevas, a mais primitiva polarizao da nossa realidade. Essa separao permite ento a definio do Dia e da Noite, marcando o incio da passagem do tempo. Devido ao carter verbal do processo de criao, alguns autores chamam esse tipo de Ser Positivo de Deus Pensador. Criao , de certa forma, um ato racional, expresso atravs de palavras. A mesma idia aparece em vrios outros mitos, como, por exemplo, no mito assrio j discutido e no mito maiaPopol Vuh.

    Outro exemplo de Ser Positivo o Deus Organizador, em que a divindade (ou divindades) exerce o papel de controlador da oposio primordial entre Ordem e Caos. O Caos representa o Mal, a desordem, e simbolizado em vrios mitos por monstros como serpentes ou drages, ou simplesmente deuses malficos que lutam contra outros deuses em batalhas csmicas relatadas muitas vezes em textos picos, como no caso do Enu-ma elis dos babilnios. Neste, a batalha entre duas geraes de deuses, pais e filhos, com os filhos saindo vencedores no final. A Terra surge do corpo mutilado da Deusa-Me. Em outros mitos, o Caos representado de modo mais abstrato, fazendo inicial-

    ________________

    (*) Extrado da Bblia sagrada, 47a ed. So Paulo: Edies Paulinas, 1990.

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  • mente parte do Absoluto, junto com a Ordem. Encontramos um belssimo exemplo no poema Metamorfoses, do romano Ovdio (43 a. C.-18 d. C), escrito por volta do ano 8 d. C, uma rara expresso de interesse por essas questes vinda da literatura romana.

    Antes de o oceano existir, ou a terra, ou o firmamento, A Natureza era toda igual, sem forma. Caos era chamada, Com a matria bruta, inerte, tomos discordantesGuerreando em total confuso:No existia o Sol para iluminar o Universo;No existia a Lua, com seus crescentes que lentamente se

    [preenchem; Nenhuma terra equilibrava-se no ar.

    Nenhum mar expandia-se na beira de longnquas praias. Terra, sem dvida, existia, e ar e oceano tambm, Mas terra onde nenhum homem pode andar, e gua onde Nenhum homem pode nadar, e ar que nenhum homem pode

    [respirar;Ar sem luz, substncia em constante mudana, Sempre em guerra:No mesmo corpo, quente lutava contra frio. Molhado contra seco, duro contra macio. O que era pesado coexistia com o que era leve.

    At que Deus, ou a Natureza generosa, Resolveu todas as disputas, e separou oCu da Terra, a gua da terra firme, o arDa estratosfera mais elevada, uma liberao.E as coisas evoluram, achando seus lugares a partirDa cega confuso inicial.O fogo, esse elemento etreo, Ocupou seu lugar no firmamento, sobre o ar; sob ambos, a terra, Com suas propores mais grosseiras, afundou; e a gua

    Se colocou acima, e em torno, da terra.

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  • Esse Deus, que do Caos

    Trouxe ordem ao Universo, dando-lhe

    Diviso, subdiviso, quem quer que ele seja,

    Ele moldou a terra na forma de um grande globo,

    Simtrica em todos os lados, e fez com que as guas se

    Espalhassem e elevassem, sob a ao dos ventos uivantes [...] 6

    Caos aqui no representa destruio ou desordem, mas sim a potencialidade de coexistncia de todos os opostos, sem que sua existncia individual possa se manifestar:[...] terra, sem dvida, existia, [...], mas terra onde nenhum homem pode andar [...]. No mesmo corpo, quente lutava contra frio, molhado contra seco, duro contra macio [...]. E ento Deus, cuja origem permanece inexplicvel, aparece e organiza o Caos, separando os opostos e arranjando os elementos bsicos (o fogo, o ar, a terra e a gua) em seus devidos lugares, de acordo com a doutrina aristotlica (ver o prximo captulo).

    Dentro ainda do subgrupo caracterizado pelo Ser Positivo, alguns mitos usam Deus como um arteso, como no mito dos ndios Hopi j citado, ou no segundo mito do Gnesis, no qual Deus forma Ado a partir da terra e lhe d vida ao soprar em seus pulmes. Outros usam a metfora da procriao, que reaparece em vrias verses: a Me Deusa, que literalmente d luz a Terra, ou que d luz outros deuses, que constrem a Terra; ou um Deus que cria uma companheira ou que usa sua parte feminina interna para criar o mundo. Um tipo final de mito com um Ser Positivo usa um sacrifcio divino no processo de criao. Deus, o Absoluto, morre, dando ento vida Criao, o relativo. Um exemplo pode ser encontrado em uma das vrias verses do mito chins de Pan Ku (sculo m):

    A criao do mundo no terminou at que Pan Ku morreu. Somente sua morte pde aperfeioar o Universo: de seu crnio surgiu a abbada do firmamento, e de sua pele a terra que cobre os campos; de seus ossos vieram as pedras, de seu sangue, os rios e os oceanos; de seu cabelo veio toda a vegetao. Sua

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  • respirao se transformou em vento, sua voz, em trovo; seu olho direito se transformou na Lua, seu olho esquerdo, no Sol. De sua saliva e suor veio a chuva. E dos vermes que cobriam seu corpo surgiu a humanidade.

    Um segundo tipo de mito com Criao assume que nada existia antes da criao do Universo. No existia um Deus ou deuses, mas sim puro vazio, o Ser Negativo ou o No-Ser. A Criao surge do nada, sem nenhuma justificativa de como esse processo foi possvel. Um exemplo vem do hindusmo, no Chandogya Upanisad, m, 19:

    No incio esse [Universo] no existia. De repente, ele passou a existir, transformando-se em um ovo. Depois de um ano incubando, o ovo chocou. Uma metade da casca era de prata, a outra, de ouro. A metade de prata transformou-se na Terra; a de ouro, no Firmamento. A membrana da clara transformou-se nas montanhas; a membrana mais fina, em torno da gema, em nuvens e neblina. As veias viraram rios; o fluido que pulsava nas veias,oceano. E ento nasceu Aditya, o Sol. Gritos de saudao foram ouvidos, partindo de tudo que vivia e de todos os objetos do desejo. E desde ento, a cada nascer do Sol, juntamente com o ressurgimento de tudo que vive e de todos os objetos do desejo,gritos de saudao so novamente ouvidos.

    O tema do ovo csmico muito comum em mitos de criao. Numa das verses do mito de Pan Ku, ele prprio surge de um ovo. Um aspecto interessante desse mito que o ovo aparece do nada, e a criao acontece espontaneamente, atravs da dissociao do ovo csmico, sem a interveno de um ser divino. O ovo nesse mito tem o mesmo papel que Pan Ku no mito relatado acima, ou seja, o de fonte de todas as coisas. Entretanto, no encontramos a idia de sacrifcio divino como fonte da Criao, mas apenas o modelo bastante familiar de um ovo chocando. No sabemos de onde vem o ovo; ele passou a existir, transformando-se em um Universo que tambm passou a existir,

    34

  • como se fosse o resultado da flutuao do Ser proveniente do No-Ser primordial. Outro exemplo de criao a partir do nada vem dos ndios Maori da Nova Zelndia:

    Do nada a procriao,

    Do nada o crescimento,

    Do nada a abundncia,

    O poder de aumentar o sopro vital;

    Ele organizou o espao vazio,

    E produziu a atmosfera acima,

    A atmosfera que flutua sobre a Terra;

    O grande firma mento organizou a madrugada,

    E a Lua apareceu;

    A atmosfera acima organizou o calor,

    E o Sol apareceu:

    Eles foram jogados para cima,

    Para serem os olhos principais do Cu:

    E ento o firmamento transformou-se em luz,

    A madrugada, o nascer do dia, o meio-dia.

    O brilho do dia vindo dos cus.

    Novamente, no existe um Ser responsvel pela criao do mundo, que aparece do nada, resultado de uma inexorvel necessidade de existir.

    O ltimo tipo de mito com Criao representa a Criao como resultado da tenso entre Ser e No-Ser, ambos originalmente coexistindo no Caos primordial. Entretanto, ao contrrio da cosmogonia de Ovdio, aqui no encontraremos um Deus como responsvel pela Criao; o processo criativo ocorre medida que a ordem surge do Caos, a partir da interao dinmica entre tenses opostas. Usando uma linguagem cientfica moderna, podemos dizer que, nesse tipo de mito, a complexidade observada na Natureza emerge de um estado original de desordem por meio de uma manifestao espontnea de auto-organizao. Essa idia claramente expressa em um mito taosta anterior a 200 a.C:

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  • No princpio era o Caos. Do Caos veio apura luz que construiu o Cu. As partes mais concentradas juntaram-se para formar a Terra. Cu e Terra deram vida s 10 mil criaes [Natureza], o comeo, que contm em si o crescimento, usando sempre o Cu e a Terra como seu modelo. As razes do Yang e do Yin os princpios do masculino e do feminino tambm comearam no Cu e na Terra. Yang e Yin se misturaram, os cinco elementos surgiram dessa mistura e o homem foi formado. [...] Quando Yin e Yang diminuem ou aumentam seu poder, o calor ou o frio so produzidos. O Sol e a Lua trocam suas luzes. Isso tambm produz o passar do ano e as cinco direes opostas do Cu: leste, oeste, sul,norte e o ponto central. Portanto, Cu e Terra reproduzem a forma do homem. Yang fornece e Yin recebe.

    Os opostos so representados por Yin e Yang, com Yin representando passividade, escurido e fraqueza, e Yang representando atividade, brilho e fora. A Criao resulta da complementaridade dinmica entre os opostos, da tenso que surge da necessidade de ambos existirem no mesmo Universo.

    Agora examinaremos brevemente os mitos sem Criao. J discutimos um exemplo dessa categoria, o Universo pulsante do hindusmo, no qual a Criao surge e ressurge ciclicamente atravs da dana rtmica do deus Xiva. Um exemplo de um Universo eterno, sem criao, encontrado no jainismo, uma religio originria da ndia, aparentemente fundada por Maavira, um contemporneo de Buda, do sculo vi a. C. A verso que apresentamos atribuda a Jinasena, um jainista que viveu por volta do ano 900 d. C. A idia da Criao rejeitada por completo, por meio de uma seqncia de argumentos lgicos extremamente lcidos e, acrescento, bastante antipticos.

    Alguns homens tolos declaram que o Criador fez o mundo.

    A doutrina que diz que o mundo foi criado errnea e deve

    [ser rejeitada.

    Se Deus criou o mundo, onde estava Ele antes da criao?

    Se voc argumenta que Ele era ento transcendente, e que [portanto no precisava de suporte fsico, onde est Ele agora?

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  • Nenhum ser tem a habilidade de fazer este mundo Pois como pode um deus imaterial criar algo material?

    Como pde Deus criar o mundo sem nenhum material bsico? Se voc argumenta que Ele criou o material antes, e depois o

    [mundo, voc entrar em um processo de regresso infinita. Se voc declarar que esse material apareceu espontaneamente,

    [voc entra em outra falcia, Pois nesse caso o Universo como um todo poderia ser seu

    [prprio criador.

    Se Deus criou o mundo como um ato de seu prprio desejo, [sem nenhum -material, Ento tudo

    vem de Seu capricho e nada mais e quem vai[acreditar numa bobagem dessas?

    Se Ele perfeito e completo, como Ele pode ter o desejo de criar[algo? Se, por outro lado,

    Deus no perfeito, Ele jamais poderia[criar um Universo melhor do que um simples arteso.

    Se Ele perfeito, qual a vantagem que Ele teria em criar o[Universo?

    Se voc argumenta que Ele criou sem motivo, por que essa Sua natureza, ento Deus no tem objetivos. Se Ele criou o Universo como forma de diverso, ento isso [uma brincadeira de crianas tolas,que em geral acaba mal.

    Portanto, a doutrina que diz que Deus criou o mundo no faz[nenhum sentido Homens de bem

    devem combater os que crem na divina[criao, enlouquecidos por essa doutrina malfica.

    Saiba que o mundo, assim como o tempo, no foi criado, no[tendo princpio nem fim, E baseado

    nos Princpios, vida e Natureza. Eterno e indestrutvel, o Universo sobrevive sob a compulso de

    [sua prpria natureza, Dividido em trs sees inferno, terra e fIrmamento.

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  • O Universo eterno e indestrutvel, sendo mantido e mudando de acordo com princpios naturais. Atravs dessa rejeio frontal de processos de criao ou destruio, os jainistas tentavam liberar a alma do eterno ciclo de transmigrao tpico do hindusmo, na esperana de que ela alcanasse um estado de inatividade onisciente.

    Lemos exemplos dos vrios tipos de mitos de criao, de acordo com a classificao apresentada na pgina 29. Acredito que esses cinco subgrupos encerram as possveis respostas dadas pelos mitos de criao ao problema da origem do Universo. No entanto, existe uma ltima alternativa, que admitir que o problema da origem de todas as coisas no acessvel compreenso humana, e que, portanto, permanecer para sempre um mistrio: j que pensamos porque existimos, intil tentarmos usar o pensamento para compreender a origem, de nossa prpria existncia. Aqui est um claro exemplo achado no hindusmo, no Rigveda x, escrito por volta do sculo XII a. C:

    Antes de o Ser ou o No-Ser existirem

    Ou a atmosfera, ou o firmamento, ou o que esta ainda alm,

    O que fazia parte do qu? Onde? Sob a proteo de quem?

    O que era a gua, as profundezas, o insondvel?

    Nem morte ou imortalidade existiam,

    Nenhum sinal da noite ou do dia

    Apenas o Um respirava, sem ar, sustentado por sua prpria

    [energia.

    Nada mais existia ento.

    No princpio a escurido existia submersa em escurido Tudo isso era apenas gua latente, em estado embrionrio. Quem quer que ele seja, o Um, ao passar a existir, Escondido no Vazio, Foi gerado pelo poder do calor. No princpio esse Um evoluiu.

    Transformando-se em desejo, a primeira semente da mente. Aqueles que so sbios, ao buscar seus coraes, Encontraram o Ser no No-Ser. Existia o abaixo? Existia o acima?

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  • [...]

    Quem realmente sabe? Quem pode declar-lo? E assim nasceu, [e se transformou em uma emanao. Dessa emanao os deuses, mais tarde, apareceram. Quem sabe de onde tudo surgiu? [...]

    Apenas aquele que preside no mais elevado dos cus sabe. Apenas ele sabe, ou talvez nem ele saiba!

    Existe um ser responsvel pela Criao, mas o mito completamente reticente com relao sua natureza ou essncia. Os deuses inferiores no entendem o propsito da Criao, e mesmo o Um todo-poderoso talvez no o compreenda. No existe uma resposta clara, j que a verdadeira natureza da Criao incompreensvel.

    Conclumos aqui nossa breve explorao de culturas pr-cientficas e seus esforos para compreender o mistrio da Criao. Em seguida, iremos traar a emergncia e evoluo da cincia ocidental, desde suas origens com os filsofos pr-socrticos at a fsica do sculo xx. Durante essa jornada, enfatizarei como o estudo cientfico da Natureza progressivamente mudou no s a nossa concepo do que o Universo ou de como este surgiu, mas tambm as nossas noes de espao, tempo e matria. O desenvolvimento gradual de um enfoque racional, usado por cientistas para confrontar os mistrios da Natureza, criou uma nova viso de mundo, oferecendo uma alternativa ao que antes era domnio exclusivo da religio.

    medida que um nmero maior de fenmenos naturais passou a ser compreendido cientificamente, a religio lenta e forosamente passou a se preocupar mais com o mundo espiritual do que com o mundo natural. Essa diviso de guas entre cincia e religio se deu de forma bem dramtica, conforme veremos adiante. Na verdade, esse drama continua a se desenrolar ainda hoje, devido aplicao errnea tanto de cincia em debates teolgicos como de religio em debates cientficos.

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  • Durante a narrativa dessa histria, discutiremos no s a cincia como tambm as motivaes e crenas, tantas vezes esquecidas, de alguns dos maiores cientistas de todos os tempos, incluindo Galileu, Newton e Einstein. Se eu for bem-sucedido, ao terminar este livro voc considerar a imagem estereotipada do cientista como o frio racionalista (se j no a considera agora!) completamente absurda. Se eu for muito bem-sucedido, ao terminar este livro, a cincia vaisignificar algo muito diferente do mero estudo e explorao dos fenmenos naturais. Voc ver a cincia como o foco de aspiraes profundamente humanas, produto da necessidade que temos de explicar nossa origem e destino, inspirados por este vasto e misterioso Universo.

    O debate entre cincia e religio restringe-se na maior parte das vezes discusso de sua mtua compatibilidade: ser possvel que uma pessoa possa questionar o mundo cientificamente e ainda assim ser religiosa? Acredito que a resposta um bvio sim, contanto que seja claro para essa pessoa que ambas no devem interferir entre si de modo errado, ou seja, que existem limites tanto para a cincia como para a religio. Cientistas no devem abusar da cincia, aplicando-a a situaes claramente especulativas, e, apesar disso, sentirem-se justificados em declarar que resolveram ou que podem resolver questes de natureza teolgica.Telogos no devem tentar interpretar textos sagrados cientificamente, porque estes no foram escritos com esse objetivo. Para mim, o que realmente fascinante que tanto a cincia como a religio expressam nossa reverncia e fascnio pela Natureza. Sua complementaridade se manifesta na motivao essencialmente religiosa dos maiores cientistas de todos os tempos. A reverncia que tanto os inspirou, e que me inspira a ser um cientista hoje, em essncia a mesma que inspirou os criadores de mitos de outrora. Quando, nos confins silenciosos de nossos escritrios, nos deparamos com algumas das questes mais fundamentais sobre o Universo, podemos ouvir, mesmo que sufocados pelo som montono dos computadores, o canto de nossos antepassados ecoando no tempo, convidando-nos para danar.

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  • 2Os GREGOS

    A verdadeira constituio das coisas gosta de ocultar-se.

    Herclito de feso, c. 500 a. C.

    Na dedicatria de seu livro O progresso da sabedoria (1605) a Jaime I, sir Francis Bacon declara que de todas as pessoas ainda vivas que conheci, sua Majestade o melhor exemplo de um homem que representa a opinio de Plato, de que todo conhecimento apenas memria. Embora Plato tenha provavelmente escrito essas linhas como uma alegoria sua crena na imortalidade da alma, e Bacon, como parte de um astuto plano para obter certos favores do rei (que, por sinal, funcionou muito bem), podemos nos referir a elas como uma alegoria enorme importncia que o pensamento grego exerceu e exerce no desenvolvimento da cultura ocidental.

    Aps derrotar os persas em uma srie de conflitos durante as primeiras dcadas do sculo v a. C, a civilizao grega viveu um sculo e meio de grande esplendor, inspirada pela liderana de Pricles, que governou Atenas por 32 anos, de 461 a 429- Nem

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  • mesmo as amargas disputas entre Atenas, Esparta e outros Estados, que acabaram resultando na Guerra do Peloponeso, entre 431 e 404, conseguiram ofuscar o incrvel nvel de sofisticao atingido durante esse perodo. Nas palavras de H. G.Wells, [...] durante esse perodo o pensamento e o impulso criativo e artstico dos gregos ascenderam a nveis que os transformaram numa fonte de luz para o resto da Histria.2Que essa luz tenha continuado a brilhar atravs dos tempos, sobrevivendo a sculos de intolerncia religiosa e muitas guerras, a prova concreta de coragem intelectual daqueles que acreditam que a busca do conhecimento o antdoto contra a cegueira causada pela represso e pelo medo.

    As primeiras chamas a iluminarem o caminho surgiram dos poemas picos atribudos ao legendrio poeta cego Homero, a Ilada e a Odissia, que datam provavelmente do sculo viu a. C. Na poca, povoados gregos espalhavam-se pela costa mediterrnea desde o Sul da Itlia e a Siclia at o mar Negro e a sia Menor, hoje Turquia. Esses picos, juntamente com os jogos olmpicos, ofereciam uma referncia comum que unia os pequenos vilarejos, muitas vezes separados uns dos outros pelo oceano, por montanhas e mesmo pela raa. Baseados nas conquistas gregas na poca da Guerra de Tria (sculo xn a. C), os poemas serviam como vnculo no s lingstico, mas tambm cultural e histrico, entre os vrios povoados, fornecendo uma identidade homognea que representava a civilizao grega de ento. Segundo os poemas homricos, o Universo tinha a forma de uma casca de ostra (como o escudo do heri Aquiles), cercada por um rio-oceano, sem dvida inspirado em idias semelhantes vindas dos babilnios. Na Odissia, o cu estrelado descrito como sendo feito de bronze ou ferro, sustentado por pilares. Encontramos tambm vrias referncias a constelaes, como por exemplo rion e as Pleiades, e s fases da Lua.

    Essas imagens simplistas do cosmo certamente no se comparam ao nvel de sofisticao atingido pelos astrnomos babilnios, que mil anos antes j haviam compilado tabelas detalhadas dos movimentos dos planetas. Por exemplo, as pedras de Ammi-

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  • zaduga (c. 1580 a. C.) cobrem o nascimento e o ocaso do planeta Vnus por um perodo de mais de vinte anos.3 Essas tabelas serviam como calendrios, usados tanto na organizao de atividades sociais importantes para a sobrevivncia do grupo como o plantio e ascolheitas como em cerimnias religiosas e previses astrolgicas.

    Embora os babilnios tenham alcanado uma grande sofisticao em astronomia, seu Universo, ainda povoado e controlado por deuses, no era to diferente do de Homero. O mito de criao babilnio narrado no Enuma elis, Quando acima, descreve a origem do Universo e a subseqente organizao do mundo como resultado do trabalho de vrios deuses. Os babilnios no estavam interessados em tentar entender as causas dos movimentos celestes, j que explicaes mticas eram perfeitamente satisfatrias. Essa situao iria mudar, ao menos temporariamente, dois sculos aps Homero, durante o perodo pr-socrtico da filosofia grega. Durante esse perodo, os deuses foram (praticamente) exilados do Universo, e explicaes das causas responsveis por fenmenos naturais foram procuradas dentro da prpria Natureza, baseadas em argumentos fundamentados em um raciocnio direcionado ao mundo material em vez do mito.

    Os Inicos

    Durante o sculo vi a. C, o comrcio entre os vrios Estados gregos cresceu em importncia, e a riqueza gerada levou a uma melhoria das cidades e das condies de vida. O centro das atividades era em Mileto, uma cidade-Estado situada na parte sul da Inia, hoje a costa mediterrnea da Turquia. Foi em Mileto que a primeira escola de filosofia pr-socrtica floresceu. Sua origem marca o incio da grande aventura intelectual que levaria, 2 mil anos depois, ao nascimento da cincia moderna. De acordo com Aristteles, Tales de Mileto foi o fundador da filosofia ocidental. Segundo o cronografo Apolodoro (sculo n a. C), Tales nasceu em

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  • 624 a. C; j o grande historiador grego Digenes Larcio (sculo m d. C.) escreveu que Tales morreu durante a qinquagsima oitava Olimpada (548-545), com a idade de 78 anos.5

    A reputao de Tales era legendria. Usando seu conhecimento astronmico e meteorolgico (provavelmente herdado dos babilnios), ele previu uma excelente colheita de azeitonas com um ano de antecedncia. Sendo um homem prtico, conseguiu dinheiro para alugar todas as prensas de azeite de oliva da regio e, quando chegou o vero, os produtores de azeite de oliva tiveram que pagar a Tales pelo uso das prensas, que acabou fazendo uma fortuna.

    Supostamente, Tales tambm previu um eclipse solar que ocorreu no dia 28 de maio de 585 a.C, que efetivamente causou o fim da guerra entre os ldios e os persas. Quando lhe perguntaram o que era difcil, Tales respondeu: Conhecer a si prprio. Quando lhe perguntaram o que era fcil, respondeu: Dar conselhos. No toa que era considerado um dos Sete Homens Sbios da Grcia antiga. No entanto, nem sempre ele era prtico. Um dia, perdido em especulaes abstratas, Tales caiu dentro de um poo. Esse acidente aparentemente feriu os sentimentos de uma jovem escrava que estava em frente ao poo, a qual comentou, de modo sarcstico, que Tales estava to preocupado com os cus que nem conseguia ver as coisas que estavam a seus ps.

    Existe muita polmica em relao veracidade dessas e de outras histrias sobre Tales. Nada escrito por ele chegou at ns, um problema comum no estudo da filosofia pr-socrtica. A evidncia que temos vem de textos secundrios, por sua vez baseados em escassos fragmentos preservados por autores que muitas vezes escreveram sculos aps a morte desses filsofos, desde Plato, no sculo iv a. C, at Simplcio, no sculo vi d. C. Um exemplo relevante a discusso tendenciosa de certas idias pr-socrticas encontrada nos textos de Aristteles, Metafsica e De caelo, Sobre os cus. Mesmo reconhecendo que Aristteles no escrevia imparcialmente sobre os pr-socrticos, somos obrigados a usar esses textos como uma das principais fontes de estudo. Ao explorarmos as idias desses filsofos, devemos sempre ter em mente essas limitaes.

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  • A questo de central importncia para os filsofos inicos era a composio do cosmo. Qual a substncia que compe o Universo? A resposta de Tales que tudo gua. provvel que, parte a possvel influncia das culturas do Oriente Mdio, ao escolher a gua como substncia fundamental da Natureza, Tales tinha se inspirado em suas qualidades nicas de mutao; a gua continuamente reciclada dos cus para a terra e oceanos, transformando-se de lquida para vapor, representando, assim, a dinmica intrnseca dos processos naturais. Mais ainda, assim como ns e a maioria das formas de vida dependemos da gua para existir, o prprio Universo exibia a mesma dependncia, j que tambm era considerado por Tales como um organismo vivo.

    Essa viso orgnica do cosmo representa um esforo de unificao dos mecanismos responsveis pelos processos naturais e nossa prpria fisiologia. Quando disse que todas as coisas esto cheias de deuses, ou que o magnetismo se deve existncia de almas dentro de certos minerais, Tales no estava invocando deuses para explicar suas observaes, mas adivinhando intuitivamente que muitos dos fenmenos naturais so causados por tendncias ou efeitos inerentes aos prprios objetos. De fato, a palavra alma deve ser compreendidaaqui como uma espcie de princpio vital, por intermdio do qual todas as coisas so animadas, e no no seu sentido religioso moderno. Mesmo que essas idias paream simples para ns, sua importncia histrica crucial. Com suas perguntas, Tales inaugurou um novo perodo na histria do conhecimento, em que a Natureza passou a ser provncia da razo, e no de deuses ou causas sobrenaturais. Ao tentar explicar os vrios mecanismos complexos da Natureza atravs de um princpio unificador originado dentro da prpria Natureza, Tales se posicionou a parte do passado, fundando a tradio filosfica ocidental.

    Aps Tales encontramos Anaximandro, tambm de Mileto, aproximadamente catorze anos mais jovem. Anaximandro levou as idias de Tales a um nvel de sofisticao mais elevado, postulando que o Universo era eterno e infinito em extenso e seu centro era ocupado pela Terra qual atribuiu uma forma cilndrica. Ele

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  • at declarou que a razo entre o dimetro e o raio do cilindro era um tero. A Terra era circundada por uma grande roda csmica, cheia de fogo, e o Sol, um furo na superfcie dessa roda, que deixava o fogo escapar. medida que a roda girava, o Sol tambm girava, explicando o movimento do Sol em torno da Terra. Eclipses se deviam ao bloqueio total ou parcial do furo. A mesma explicao era dada para as fases da Lua, que tambm era um furo em outra roda csmica. Finalmente, as estrelas eram pequenos furos em uma terceira roda csmica, que Anaximandro curiosamente colocou mais perto da Terra do que a Luaou o Sol.

    Mesmo que essas imagens possam parecer bizarras, elas representam o primeiro modelo mecnico do Universo. Nas palavras de Arthur Koestler, a barca do deus Sol substituda pelos mecanismos internos de um relgio.6 A substncia fundamental do Universo no era a gua ou qualquer outra substncia familiar, mas algo intangvel, o Ilimitado, de onde provm todos os cus e os mundos neles contidos.* Note o uso do plural: j que o Universo de Anaximandro era eterno e infinito em extenso, um nmero infinito de mundos existiram antes do nosso. Aps sua existncia, dissolveram-se na matria primordial antes que outros aparecessem. Essa imagem dinmica de um Universo infinitamente velho, onde a matria aparece e desaparece continuamente, lembra-nos o mito hindu em que o processo de criao e destruio representado pela dana do deus Xiva, discutido no captulo 1. Entretanto, note que aqui no existe um Criador, nenhum Deus ou deuses responsveis pelo eterno ciclo de criao e destruio. Para Anaximandro, o Universo dana sozinho.

    O discpulo mais famoso de Anaximandro foi Anaxmenes de Mileto. Seguindo o esprito da escola inica, Anaxmenes tambm postulou a existncia de uma substncia fundamental na Natureza. Desafiando seus mestres, ele acreditava que o ar,

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    (*) As citaes dos fragmentos dos pr-socrticos seguem a traduo de Carlos Alberto Louro Fonseca, Beatriz Rodrigues Barbosa e Maria Adelaide Pegado (G. S. Kirk e J. E. Raven. Os filsofos pr-socrticos. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1982).

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  • medida que sua densidade mudava, compunha todas as coisas. Quando rarefeito, o ar se tornava fogo; mais denso, o ar se tornava vento e subseqentemente gua, terra e pedra. Aparentemente, deve-se tambm a Anaxmenes a idia de que as estrelas so fixas, presas a uma esfera cristalina que gira em torno da Terra. Sendo transparentes, as esferas cristalinas so uma explicao bem mais plausvel para os movimentos celestes do que as rodas furadas de Anaximandro, que ningum podia ver. (Em sua defesa, Anaximandro dizia que suas rodas csmicas estavam sempre cercadas por densa neblina.) A idia de esferas cristalinas reaparecer, em vrias reencarnaes, durante os 2 mil anos seguintes da histria da astronomia.

    Os milsios (outro nome para o trio de filsofos de Mileto) no eram os nicos interessados em estudar o Universo. Conforme veremos em breve, outros pensadores gregos mantinham pontos de vista bem diferentes a respeito de como entender a natureza essencial das coisas. E a Grcia no estava sozinha. Ao mesmo tempo que os gregos plantavam as sementes da filosofia ocidental, Sidarta Gautama, o Buda, pregava na ndia que para atingir o nirvana devemos nos liberar da ambio e dos prazeres sensuais, enquanto na China Lao-Tseu transcendia nossa representao polarizada da realidade atravs da unio mstica do Tao, e Confucio estabelecia princpios morais de vida e liderana na sociedade. O sculo vi a. C. foi um ponto de transio na histria da humanidade. como se algo estivesse flutuando no ar, com o poder mgico de excitar as faculdades racionais das pessoas em nveis sem precedentes, uma brisa de despertar que se espalhou pelo planeta, convidando a mente a confrontar os mecanismos internos da alma e da Natureza.

    O ltimo dos inicos de importncia para ns Herclito de feso, que floresceu por volta de 500 a. C. Embora Mileto tenha sido destruda pelos persas em 494 a. C, as idias de Tales e de seus discpulos chegaram at feso, localizada justo ao norte. Alguns fragmentos dos escritos de Herclito foram mencionados por outros autores, incluindo Plato e Aristteles. Devido a seu estilo baseado em charadas de difcil compreenso, Her-

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  • clito era conhecido como o Obscuro. Seu sarcasmo e suas constantes crticas a outros filsofos lhe valeram poucos amigos ou discpulos. No final de sua vida, Heraclito se tornou um eremita, completamente isolado do mundo. Segundo uma lenda, ao ficar doente, com uma inflamao da pele, Heraclito foi at a vila mais prxima para procurar auxlio mdico. No entanto, ao invs de explicar seus sintomas de forma compreensvel, Heraclito comeou a discursar com frases enigmticas que os mdicos no conseguiam entender. Desanimado, Heraclito enterrou-se sob uma montanha de estrume, esperando que o calor fizesse com que sua inflamao evaporasse. Seu tratamento no funcionou e ele morreu, sujo e solitrio, aos sessenta anos.

    Embora exista pouco consenso entre os especialistas sobre a verdadeira natureza do pensamento de Heraclito, o aspecto mais importante de seus ensinamentos baseia-se na doutrina de que tudo est em mudana e nada permanece parado, como escreveu Plato no Crtilo.8 Em uma de suas citaes mais conhecidas, Heraclito diz que no se poderia penetrar duas vezes no mesmo rio. Ele estendeu essa idia desde a Natureza at o comportamento humano, sempre enfatizando a importncia da tenso e complementaridade entre opostos como a fora motriz por trs do dinamismo do mundo nossa volta.Princpio e fim, na circunferncia de um crculo, so idnticos (fragmento 103);9 o mesmo em ns vivo e morto, desperto e dormindo, novo e velho; pois estes, tombados alm, so aqueles e aqueles de novo, tombados alm, so estes (fragmento 88); [os homens] no compreendem como o divergente consigo mesmo concorda; harmonia de tenses contrrias, como de arco e lira (fragmento 51). Portanto, de acordo com Heraclito, o equilbrio atingido atravs da necessria complementaridade entre os opostos a qual ele chamou de Logos, como o arco, que deve ser envergado para trs de modo a poder arremessar a flecha para a frente. Com alguma liberdade, podemos identificar traos do pensamento taosta em Heraclito, embora devamos ter cuidado ao interpretar esses fragmentos fora de contexto.

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  • Para Herclito, a substncia bsica era o fogo, possivelmente devido ao seu poder de transformar as coisas, de p-las em movimento. Entretanto, o foco principal de sua filosofia eram as transformaes criadas pela tenso entre os opostos, enquanto para seus colegas inicos as transformaes observadas na Natureza eram uma manifestao secundria da substncia bsica. Esse ponto de vista discordava do de Tales e seus discpulos. O universo de Herclito era eterno, e em constante estado de fluxo; Este mundo, o mesmo de todos os seres, nenhum deus, nenhum homem o fez, mas era, e ser um fogo sempre vivo, acendendo-se em medidas e apagando-se em medidas (fragmento 30). Os objetos celestes eram pratos contendo fogo, sendo o Sol o mais quente e brilhante. Eclipses ocorriam medida que o prato contendo o Sol girava, cobrindo sua luz. O mesmo acontecia com as fases da Lua. No particularmente claro se Herclito de fato levava essas idias a srio. sua viso da Natureza como uma entidade dinmica, sempre em transformao, que ter um papel fundamental no desenvolvimento futuro do pensamento grego.

    Os eleticos

    Enquanto Herclito estava ocupado ensinando que tudo est em perptua mutao, idias completamente antagnicas estavam sendo desenvolvidas na cidade de Elia, no Sul da Itlia. Parmnides (c. 515-450 a. C.) acreditava que toda mutao ilusria; j que mudana implica transformao, algo que no pode mudar. Ele considerava a nfase dada pelos milsios aos processos transformativos que ocorrem no mundo natural como sendo no s desnecessria, mas tambm incorreta. Segundo Parmnides, a realidade imutvel, esttica, e sua essncia est incorporada na individualidade divina de Eon, ou Ser, que permeia todo o Universo. Esse Ser onipresente, j que qualquer descontinuidade em sua presena seria equivalente existncia de seu oposto, o No-Ser. Uma imagem que vem mente a de um lago, cuja superfcie perfeitamente calma se estende em todas as direes.

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  • Um verdadeiro racionalista, Parmnides trouxe uma dose de lucidez s idias dos inicos, que, segundo os eleticos, eram baseadas em pura especulao. Enquanto os inicos baseavam seus argumentos em observaes empricas de fenmenos naturais, de fora para dentro, o enfoque de Parmnides era de dentro para fora. Na elaborao de suas idias sobre a essncia da realidade, ele utilizou argumentos lgicos para concluir que a resposta no se encontrava na perptua mutao, mas sim na ausncia de mutao, na plenitude esttica do Ser. Parmnides escreveu que o Ser absoluto nem jamais era nem ser, pois agora todo junto, uno, contnuo (fragmento 8). Portanto, Eon no pde ser criado por algo porque isso implica a existncia de outro Ser. Do mesmo modo, Eon no pde ser criado a partir do nada, pois isso implica a existncia do No-Ser. Eon simplesmente .

    Como ento os eleticos tentaram reconciliar sua doutrina monstica da imutabilidade com o fato bvio de que a Natureza exibe tantas transformaes? Surpreendentemente, eles no tentaram nenhuma reconciliao. Pelo contrrio, tentaram provar que o movimento ou a mutao so de fato impossveis, uma iluso dos sentidos. Talvez as melhores ilustraes dessas idias sejam os paradoxos de Zeno, um discpulo de Parmnides. Seu mtodo conhecido como regresso infinita. A origem desse nome ser esclarecida em breve. Como exemplo, examinaremos seu paradoxo mais famoso, o da corrida entre Aquiles e a tartaruga. O que Zeno deseja mostrar que, em uma corrida entre os dois, se a tartagura comear na frente, Aquiles jamais conseguir ultrapass-la. Como para vencer a corrida Aquiles tem de se mover, se ele no ultrapassar a tartaruga fica provado que, pelo menos em teoria, o movimento impossvel.

    Vamos examinar a prova de Zeno: quando o veloz Aquiles cobrir a distncia original entre ele e a tartaruga, ela ter avanado um pouco mais adiante. Quando Aquiles cobrir essa nova distncia, a tartaruga ter avanado novamente um pouco mais, e assim por diante, ad infinitum. Segundo esse argumento, Aquiles s alcanaria a tartarugadepois de um perodo de tempo infinito! O maior heri do exrcito de Agamenon durante a Guerra de Tria no pode vencer uma tartaruga em uma corrida.10

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  • Essa concluso inquietante de incio nos deixa perplexos. Como um argumento racional aparentemente to lgico pode contrariar por completo os nossos sentidos? A simplicidade dos argumentos de Zeno deve ter provocado srias dores de cabea em seus adversrios. Felizmente, os argumentos esto errados; mesmo que matematicamente possamos dividir a distncia entre Aquiles e a tartaruga em segmentos cada vez menores, para descrever o movimento devemos tambm dividir o tempo em segmentos cada vez menores. a razo entre distncia e tempo, a velocidade, que relevante aqui. E, se voc dividir um nmero pequeno por outro nmero pequeno, o resultado no necessariamente um nmero pequeno. Por exemplo, 4/2 = 2, mas tambm 2/1 = 2 e 0, 2/0, 1 = 2 etc. Como a velocidade de Aquiles muito maior do que a da tartaruga, ele cobrir uma distncia maior no mesmo intervalo de tempo, e vencer a corrida sem dificuldade. O movimento s uma iluso no mundo abstrato dos eleticos.

    A fsica moderna e a cincia em geral devem muito aos eleticos. Uma das funes mais importantes da fsica a busca de leis universais que sejam capazes de descrever fenmenos naturais observados tanto no dia-a-dia como no laboratrio. Ao chamarmos essas leis de universais, estamos implicitamente supondo que elas so vlidas no s em qualquer parte do Universo, mas tambm em qualquer momento de sua histria. Essa suposio baseia-se na nossa crena de que a Natureza, em um nvel mais profundo de anlise, de fato imutvel, e que, portanto, as leis que concebemos para descrever seu funcionamento so tambm imutveis. Como o Eon de Parmnides,essas leis existem aqui e agora, independentemente de qualquer mudana ou processos naturais tornados possveis a partir delas. De fato, justamente por causa dessa imutabilidade d, as leis da fsica que o estudo racional da Natureza possvel. Um filsofo eletico provavelmente diria que, ao concebermos as leis da fsica, estamos desvelando a essncia do Ser Absoluto. Decerto, seramos convidados a discutir as vrias facetas de Eon, cercados pelas muralhas fortificadas de

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  • Elia. E, quem sabe, poderamos at desafiar Zeno para uma corrida...

    Os pitagricos

    Pitgoras , talvez, o mais legendrio filsofo da Antigidade. Cercado de mistrio, considerado por seus discpulos e seguidores como um semideus capaz de promover milagres, falar com demnios e at descer ao Hades (e voltar para contar a histria), Pitgoras e sua seita forjaram uma profunda sntese entre filosofia e religio, entre o racional e o mstico, que sem dvida uma das maiores faanhas do conhecimento humano. Sua filosofia religiosa influenciou e moldou o pensamento de alguns dos maiores filsofos e cientistas da histria, incluindo Plato e Kepler. Alguns autores consideram Pitgoras o fundador da cincia, enquanto outros, levados pela enorme repercusso do seu pensamento em vrias reas do conhecimento, consideram Pitgoras o fundador da cultura europia em sua vertente mediterrnea ocidental.12 Sem dvida, o legado intelectual de Pitgoras ter um papel muito importante no restante deste livro.

    Pitgoras nasceu entre 585 e 565 a. C, na ilha de Samos, localizada no mar Egeu, perto da costa, entre Mileto e feso. Filho de joalheiro, Pitgoras desde cedo deve ter percebido a importncia das formas e propores geomtricas, e sua associao com a simetria e a beleza. Acredita-se que ele estudou com Anaxi-mandro, e que portanto conhecia a idia inica de uma substncia primria responsvel por tudo que existe no cosmo. Ele viajou por toda a Grcia, sia e Egito, e deve ter absorvido os ensinamentos das vrias religies orientais, assim como o conhecimento matemtico dos babilnios. Em 530 a. C., fundou uma seita religiosa na cidade de Crotona, no Sul da Itlia. Essa seita rapidamente se tornou uma fora dominante na regio, tanto na esfera poltica como na espiritual. Devido aos seus ensinamentos antidemocrticos, essa supremacia local foi tragicamente

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  • encerrada por volta do ano de 495 a. C. Pitgoras teve de se mudar para Metaponto e a maioria de seus seguidores foi exilada ou morta. A essa altura, contudo, a voz do Mestre j havia se espalhado por vrias colnias em torno de Crotona, chegando at Atenas no sculo iv a. C.

    Para que possamos entender a incrvel reputao de Pitgoras, devemos examinar suas idias isentando-as de noes modernas que condenem como absurda qualquer relao entre misticismo e cincia. Para os pitagricos no havia uma distino entre ambos, um servindo de inspirao para a outra e vice-versa. Essa unio era baseada na noo de que tudo nmero, uma idia que de certa forma substitua a busca inica de uma substncia fundamental pela busca de relaes numricas entre todos os aspectos da Natureza e da vida. Em contraste com os inicos, essa busca no era apenas racional, mas tambm mstica. Se todas as coisas possuem forma, e formas podem ser descritas por nmeros, ento os nmeros se tornam a essncia do conhecimento, a porta para um nvel superior de sabedoria. E, como a busca do conhecimento era considerada a nica rota para a apreenso da natureza divina, os nmeros, nas mos dos pitagricos, se transformaram em uma ponte entre a razo humana e a mente divina.

    O objetivo principal dos pitagricos era atingir um estado catrtico, de completa purificao da alma, atravs da intoxicao do esprito pela beleza dos nmeros. Eles acreditavam que a contemplao abstrata dos nmeros e de suas relaes matemticas tinha o poder de levar o estudioso a um estado de elevada espiritualidade, que transcendia as limitaes da vida diria. Para chegar a esse estgio, os membros da fraternidade (que, alis, inclua homens e mulheres em p de igualdade) tinham de seguir uma srie de regras que impunham restries sociais e at dietticas, como por exemplo a proibio de comer gros e carne, de se aproximar de aougueiros ou caadores, e seguir preceitos de total lealdade e discrio. medida que os discpulos ascendiam em direo ao conhecimento supremo, eles participavam de rituais de iniciao que exploravam no s os

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  • segredos mgicos da matemtica, mas tambm seu uso como instrumento til no estudo do mundo natural.

    De onde vem essa revolucionria associao entre a matemtica e o divino? Uma das primeiras descobertas dos pitagricos, em geral atribuda ao prprio Pitgoras, foi a relao entre intervalos musicais e propores numricas simples. Os intervalos bsicos da msica grega podem ser expressos como razes entre os nmeros inteiros 1, 2, 3 e 4. O tom de uma lira (ou, para ns, de um violo), quando ferimos uma corda apertando-a na metade de seu comprimento, uma oitava mais alto do que o tom da corda soando livremente; se ferimos a corda apertando-a a 2/3 do seu comprimento, o tom uma quinta mais alto; a 3/4, uma quarta mais alto. Com isso, os pitagricos mostraram que era possvel construir toda a escala musical com base em razes simples entre nmeros inteiros; nmeros, e razes simples entre eles, explicavam por que certos sons eram agradveis aos ouvidos, enquanto outros eram desagradveis.13 A matemtica passa a ser associada esttica, os nmeros, beleza.

    Essa descoberta tem uma enorme importncia histrica: pela primeira vez a matemtica usada para descrever uma experincia sensorial, ou seja, como veculo de estudo da mente humana. Em inmeros rituais do passado e do presente, a msica sempre foi utilizada para induzir estados de transe capazes de abrir as portas da percepo espiritual. Para os pitagricos, a explicao para esse poder mgico da msica estava nos nmeros. A sensao de harmonia no se devia simplesmente a sons agradveis aos ouvidos, e sim a nmeros danando de acordo com relaes matemticas.

    Os nmeros tambm eram representados por formas geomtricas. Por exemplo, o nmero 4 era um quadrado (imagine os quatro vrtices de um quadrado), enquanto o nmero 6 era associado a um tringulo (imagine os trs vrtices de um tringulo e adicione um ponto no meio da linha que une os trs vrtices). A adio de nmeros quadrados produz nmeros quadrados ou retangulares, como em 4 + 4 = 8, e a srie de nmeros

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  • quadrados obtida adicionando nmeros mpares sucessivamente, 1 + 3 = 4 + 5 = 9 + 7=16 + 9 = 25, e assim por diante.

    Essas relaes entre nmeros e formas geomtricas levaram descoberta do famoso teorema de Pitagoras: a soma dos quadrados dos catetos de um tringulo retngulo igual ao quadrado da hipotenusa. Curiosamente, parece que Pitagoras no foi o responsvel pela inveno desse teorema.14

    Para os pitagricos o nmero 10 era considerado mgico. Eles o chamavam de tetraktys (nome derivado do nmero 4), j que podia ser obtido ao somarmos os quatro primeiros nmeros, 1 + 2 + 3 + 4=10. Note que esses so precisamente os nmeros envolvidos nas escalas musicais, o que, para os pitagricos, no era nenhuma coincidncia; apenas o nmero sacro capaz de descrever a verdadeira natureza da harmonia. E aqui os pitagricos do um passo gigantesco em direo ao desenvolvimento das idias que podemos chamar de precursoras da cincia moderna: eles estenderam sua noo abstrata da harmonia dos fenmenos que ocorrem na escala humana aos fenmenos na. escala celeste.15 Segundo os pitagricos, o Sol e os planetas, com sua beleza majestosa, devem satisfazer s mesmas leis harmnicas que induzem a comunho dos humanos com o divino atravs da msica. Eles acreditavam que as distncias entre os planetas devem obedecer s mesmas razes entre nmeros inteiros satisfeitas pelas notas da escala musical.Ao girar em torno da Terra em suas rbitas, o Sol e os planetas gerariam uma melodia csmica, o sistema solar se transformando em um gigantesco instrumento que ressonaria a msica divina, a harmonia das esferas celestes.

    Aparentemente, apenas o Mestre era capaz de ouvir a msica celeste. Isso, no entanto, no representava um problema para os pitagricos, que respondiam orgulhosos que o que acontece com os homens o que acontece com o ferreiro, to acostumado com o constante bater de seu martelo que nem mais capaz de ouvi-lo.16 Como nascemos ouvindo a msica das esferas, somos incapazes de ouvi-la. Sejamos ou no surdos para as harmonias celestes, o que crucial aqui que os pitagricos iniciaram uma nova tradio no pensamento ocidental, a busca de

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  • relaes matemticas que descrevem fenmenos naturais. Essa busca representa a essncia das cincias fsicas.

    Infelizmente, a motivao mstica que inspirou os pitagricos a ascender a nveis de espiritualidade mais elevados causou tambm uma certa resistncia s suas idias, que foram rotuladas por muitos como mera superstio. No entanto, ao longo da histria do conhecimento, encontramos vrios indivduos que compartilharam com os pitagricos seu fascnio mstico pelos nmeros e pelo seu poder de inspirar ordem no funcionamento aparentemente catico da natureza, uma das manifestaes da noo que introduzi no captulo 1 como racionalismo mstico. O legado pitagrico inspirou, direta ou indiretamente, alguns dos maiores gigantes que moldaram nossa viso moderna do Universo. Ao avaliarmos a importncia histrica das idias pitagricas, devemos sempre separar as motivaes individuais dos cientistas, que podem exibir vrios elementos do pensamento pitagrico, dos resultados finais de sua pesquisa.

    A contribuio dos pitagricos para a astronomia no se limitou extenso da harmonia musical ao movimento dos planetas. Astrnomos pitagricos sugeriram que no s a Terra se move, como tambm no o centro do Universo. O primeiro passo nessa direo foi dado por Filolau de Crotona, que por volta de 450 a. C. quase foi morto durante um ataque contra os pitagricos, o qual praticamente extinguiu sua influncia no Sul da Itlia. Achando refgio perto de Corntia, na Grcia, ele fundou um pequeno grupo de pitagricos.

    De acordo com Filolau, a Terra gira em torno de um fogo central, o forno do Universo. Esse fogo central o responsvel por todo o vigor e a energia do cosmo, gerando inclusive o calor do Sol. O Sol simplesmente redistribui esse calor entre as outras luminrias celestes. O fogo central era invisvel, j que estava sempre situado em oposio ao lado habitado da Terra, conforme mostra o diagrama a seguir. Note que o mesmo acontece com a Lua, que sempre nos mostra a mesma face. Entre a Terra e o fogo central, Filolau props um outro corpo celeste, o antichthon, ou contra-Terra. Esse corpo tambm invisvel ao

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  • olho humano, estando sempre situado em posio diametralmente oposta ao lado habitado da Terra. Depois da Terra vinham a Lua e o Sol, seguidos pelos cinco planetas conhecidos ento (Mercrio, Vnus, Marte, Jpiter e Saturno), e pela esfera cristalina que carregava as estrelas fixas.

    muito provvel que Filolau tenha tido razes de ordem prticapara propor esse sistema. Para um observador situado na Terra, o Sol e os planetas parecem ter dois tipos de movimento completamente diferentes; um deles o movimento dirio em torno da Terra, que tambm exibido pelas estrelas. Mas, em contraste com as estrelas, que permanecem fixas em suas posies relativas, o Sol e os planetas exibem outro tipo de movimento, girando com perodos diferentes em torno do zodaco, o cinturo dividido nas doze constelaes familiares dos horscopos. Enquanto o Sol leva aproximadamente 365 dias para completar uma revoluo, no caso dos planetas os perodos variam de 88

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  • dias para Mercrio at 29 anos para Saturno. Ao fazer com que a Terra girasse diariamente em torno do fogo central, Filolau conseguiu separar esses dois movimentos; da mesma maneira que uma criana girando em um carrossel v o parque girando na direo oposta, a rotao da Terra fazia com que o cu inteiro girasse na direo oposta. Isso explica o movimento dirio do cu. Claramente, o mesmo resultado final poderia ter sido obtido supondo que a Terra gira em torno de seu eixo, como um pio. Mas essa idia vai demorar um pouco mais para surgir.

    De acordo com o historiador da cincia Theodor Gomperz, em nenhuma outra tradio intelectual encontraremos uma imagem do Universo ao mesmo tempo to delicada e sublime.17 Tudo revolve em torno do fogo central, a cidadela de Zeus, uma expresso do profundo senso de simetria e da admirao dos gregos por um Universo regido pelo poder divino. A incluso da contra-Terra gerou e ainda gera discusses nos crculos acadmicos. Aristteles, com muito sarcasmo, escreveu que a nica motivao de Filolau para incluir a contra-Terra foi fazer com que o nmero de objetos celestes chegasse a 10, o nmero mgico para os pitagricos. Outros argumentaram que a contra-Terra foi criada para explicar o grande nmero de eclipses lunares, j que ela periodicamente lanava sua sombra sobre a superfcie lunar. Deixando os debates de lado, o que importante para ns que o universo de Filolau foi o primeiro passo srio na direo de um modelo heliocntrico do cosmo.

    Os atomistas

    Se pararmos agora para recapitular as idias principais das trs escolas pr-socrticas discutidas at aqui, veremos rapidamente que elas esto em srio conflito. De um lado temos os inicos, propondo que em sua essncia a Natureza pode ser reduzida a um nico princpio material, seja ele a gua, para Tales, o ilimitado, para Anaximandro, ou o ar, para Anaxmenes. Herclito vai

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  • ainda mais alm, propondo que a mutao o princpio fundamental, sendo uma conseqncia do perptuo conflito entre opostos em busca de um equilbrio final que, por definio, inalcanvel. Para ele, o fogo, esse mediador de transformaes, a substncia primria. Do outro lado temos os eleaticos, propondo que qualquer mudana mera iluso sensorial, que o que fundamental, Eon, o Ser Absoluto, esttico e onipresente, no pode mudar. Ignorando ambas as escolas, os pitagricos festejam a harmonias divina dos nmeros, imersos em seu abstrato misticismo matemtico. claro que a questo de maior importncia para os filsofos da metade do sculo v a. C. era o problema da mutao. Qual o caminho, portanto, que um jovem e ambicioso filsofo da poca deveria escolher? Ao invs de optar por esse ou aquele partido, talvez a melhor sada fosse tentar de alguma forma conciliar essas idias conflitantes dentro de um esquema filosfico mais flexvel. Essa precisamente a brilhante ttica escolhida por Leucipo e Demcrito, os fundadores da escola atomista.

    No se sabe muito bem quando Leucipo nasceu, nem se conhecem mais deta