A Decadência e o Sagrado em Salambô de Gustave Flaubert
-
Upload
fabio-martinelli-casemiro -
Category
Documents
-
view
237 -
download
0
Transcript of A Decadência e o Sagrado em Salambô de Gustave Flaubert
5/10/2018 A Decadência e o Sagrado em Salambô de Gustave Flaubert - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-decadencia-e-o-sagrado-em-salambo-de-gustave-flaubert 1/16
0
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINASInstituto de Estudos da Linguagem
Departamento de Teoria e História Literária
Fábio Martinelli Casemiro
A Decadência e o Sagrado A Decadência e o Sagrado A Decadência e o Sagrado A Decadência e o Sagrado; ; ; ;
A crise sacrificial em A crise sacrificial em A crise sacrificial em A crise sacrificial em Salambô Salambô Salambô Salambô de Gustave Flaubert.de Gustave Flaubert.de Gustave Flaubert.de Gustave Flaubert.
Trabalho de conclusão da disciplinaTópicos Sobre Críticas, oferecida ao curso
de pós-graduação e ministrada peloProf. Dr. Luiz Carlos da Silva Dantas.
Campinas
Inverno2006
5/10/2018 A Decadência e o Sagrado em Salambô de Gustave Flaubert - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-decadencia-e-o-sagrado-em-salambo-de-gustave-flaubert 2/16
1
Salambô: entre o romance e o rito; entre o real e o símbolo.Salambô: entre o romance e o rito; entre o real e o símbolo.Salambô: entre o romance e o rito; entre o real e o símbolo.Salambô: entre o romance e o rito; entre o real e o símbolo.
Publicado em 1862, Salambô de Gustave Flaubert nasce controverso.
Inspirado por suas experiências na África e no Oriente Médio, o autor parece
desejar transpor tanto os limites do romance quanto o do denominado Realismo.
Há em Salambô uma força que parece romper com o modelo de narrativa
ficcional construído pelos romancistas ao longo do XIX (inclusive pelo próprio
Flaubert). Segundo Erich Auerbach, o romance romântico é um gênero literário
no qual a miscigenação entre o sublime e o grotesco, acaba por constituir uma
visão literária da vida real que atingirá o esplendor de seu acabamento estético
com o Realismo.
“Quando Stendhal e Balzac tomaram personagens quaisquer da vidatomaram personagens quaisquer da vidatomaram personagens quaisquer da vidatomaram personagens quaisquer da vida
cotidiana no seu condicionamento às circunstâncias históricas e ascotidiana no seu condicionamento às circunstâncias históricas e ascotidiana no seu condicionamento às circunstâncias históricas e ascotidiana no seu condicionamento às circunstâncias históricas e as
transformaram em objetos de represtransformaram em objetos de represtransformaram em objetos de represtransformaram em objetos de representação séria, problemática e atéentação séria, problemática e atéentação séria, problemática e atéentação séria, problemática e atétrágica, quebraram a regra clássica de diferenciação dos níveis,trágica, quebraram a regra clássica de diferenciação dos níveis,trágica, quebraram a regra clássica de diferenciação dos níveis,trágica, quebraram a regra clássica de diferenciação dos níveis, segundo a
qual a realidade quotidiana e prática só poderia ter seu lugar na literatura
no campo de uma espécie estilística baixa ou média, isto é, só de forma
grotescamente cômica ou como entretenimento agradável, leve, colorido
e elegante.”1 (Grifos Meus)
Há em Salambô uma consciência clara dessa ruptura com os paradigmas
clássicos de composição. Cuidadoso como um maestro, Flaubert deseja uma
nova orquestração da narrativa que desse conta de capturar o universo da
antiguidade com toda a sua força dramática: era necessário dispor de estratégias
formais diferentes das utilizadas pela mimesis realista. O desafio do autor era
compor uma sinfonia literária que avançasse ainda mais rumo aos abismos da
alma humana; que fosse ainda além das particularidades do bovarismo
1 AUERBACH, Erich. Mimesis . São Paulo, Editora Perspectiva, 2004. (Coleção Estudos), P. 500.
5/10/2018 A Decadência e o Sagrado em Salambô de Gustave Flaubert - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-decadencia-e-o-sagrado-em-salambo-de-gustave-flaubert 3/16
2
parisiense oitocentista: era necessário resgatar a força do épico e do trágico
amalgamados nos subsolos do romance real.
Essa força na composição da trama, no modo pelo qual as estratégias
formais se entrelaçam sinuosamente aos conteúdos abordados, os cuidados coma composição das imagens, creio eu, foram os atrativos que enfeitiçaram toda
uma geração posterior ao realismo e que iria tomar como musa a sacerdotisa de
Tanit, Salambô. Se a prosa realista de Flaubert dá o acabamento final à
tecnologia do romance fundada pelos românticos; por outro lado, as
possibilidades temáticas formais de Salambô vão fecundar nos artistas do final
do XIX uma sensibilidade ainda mais requintada, tanto no que concerne ao usodas imagens, quanto na profundidade pela qual percorre os abismos da alma.
“Baudelaire e Flaubert são duas faces de um mesmo busto fincado
ali no meio do século entre romantismo e decadentismo, entre a época do
homem fatal e da mulher fatal, entre a época de Delacroix e de Moreau.”2
É no romance Salambô que iremos encontrar as primeiras e mais
expressivas representações do Oriente fabuloso e decadente, polvilhado por
cores e por aromas exóticos intensamente explorados pela literatura e pelas
artes plásticas do fin-de-siécle. Como carro chefe deste estetismo pronunciado,
vemos erigir na literatura francesa a personagem Salambô: “uma histérica que
se destempera numa hierática indolência”3
e que vai semear para as próximasgerações de literatos, um modelo de feminilidade que, na literatura, cunhou-se
de “a mulher fatal”4 ou ainda “a bela dama sem misericórdia”5.
2PRAZ, Mário. A Carne, a Morte e o Diabo na Literatura Romântica. Campinas, Editora da Unicamp,
1996. P.149. 3 Idem. P. 279.4
Idem. P.192.5
Idem. P. 179.
5/10/2018 A Decadência e o Sagrado em Salambô de Gustave Flaubert - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-decadencia-e-o-sagrado-em-salambo-de-gustave-flaubert 4/16
3
“o tipo [de mulher fatal] que surge com Gautier e Flaubert, tem pleno
desenvolvimento com Swinburne, para chegar a Walter Pater, Wilde,
D’Annunzio, apenas para citar uns nomes mais representativos.”6
O romance Salambô , entretanto, não atingiu o sucesso de público
comparável ao de Madame Bovary. Penso que as inovações adotadas por
Flaubert, apesar de terem inspirado muitos literatos de gerações posteriores,
acabou por não sensibilizar com tanta expressividade um público leitor já
bastante acostumado aos paradigmas do romance realista, famosos por descer
aos subterrâneos de suas intimidades mais cotidianas. A meu ver, entretanto, em
Salambô , Flaubert administra de maneira ainda mais requintada sua técnica de
investigação desses subterrâneos. A grande (r)evolução deste romance é a
incisão dessa técnica numa escala bem mais ampla, capaz de farejar a alma
humana para muito além da civilização parisiense da segunda metade do XIX:
hábil e audacioso, depois de explorar as vicissitudes cotidianas de
contemporâneos, como Madame Bovary, Flaubert lança-se ao oceano bravio das
investigações míticas e históricas. Profundíssimo conhecedor dos mecanismosda composição ficcional, mas sabedor da responsabilidade de se narrar um
momento tão importante da história da República Romana, o autor adequa ao
tema, a forma pela qual será expressa a narrativa. Na obra, encontra-se ainda o
sabor tão característico ao romance realista, não apenas pela utilização do
narrador onisciente, burilado por essa tradição, como também pela forte crítica
às relações sociais, que são atravessadas pela ganância, pela violência e porinteresses individuais.
Essa obra, entretanto, não se detém nem ao modus-operandi realista, nem
tampouco à crítica social à moda do Naturalismo de Zola. Superando as demais
técnicas de composição características às escolas do XIX, Flaubert traz para
Salambô a dimensão do épico e do trágico. Resgata o épico porque narra a
história de uma civilização, de uma coletividade e não de um indivíduo ou de
6Idem. P. 188.
5/10/2018 A Decadência e o Sagrado em Salambô de Gustave Flaubert - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-decadencia-e-o-sagrado-em-salambo-de-gustave-flaubert 5/16
4
um herói romanesco: torna-se, entretanto, um anti-épico já que, a priori, o leitor
sabe que a obra trata da história de uma civilização que se construiu como rival
da República Romana (e pelas armas dessa República encontrará seu fim). O
trágico, por sua vez, é resgatado em toda a sua expressão dramática a partir da(re)construção de um complexo universo simbólico, tomando mitos e rituais não
apenas como ilustrações da narrativa, mas como mecanismos-chave para a
compreensão da trama. Em Salambô o leitor se depara com uma civilização
cambaleante e que dilacera suas próprias carnes (assim como o personagem
Matô é dilacerado) na vã tentativa de resgatar seus ideais políticos, militares,
éticos e religiosos. Segundo o antropólogo e crítico literário René Girard:
“Os trágicos apresentam personagens às voltas com uma mecânica da
violência tão implacável, que se torna impossível o menor julgamento de
valor, ou qualquer distinção, simplista ou sutil, entre os ‘bons’ e os ‘maus’.
É exatamente por esta razão que a maioria de nossas interpretações
modernas mostra uma infidelidade e uma indigência extraordinárias;
elas nunca chegam a escapar completamente do ‘maniqueísmo’, que
triunfa já com o drama romântico e que desde então vem se
exacerbando.”7
Cônscio dessa indigência do romance contemporâneo frente às questões
do universo mítico e religioso da antiguidade, Flaubert compõe uma obra na
qual as estratégias formais articulam-se perfeitamente tanto à religiosidade dos
antigos, como ao espírito crítico do homem contemporâneo, que é seu leitor. Aperda desses valores, antes amalgamados em seus ritos e sacrifícios, levará os
cartagineses a experimentarem a decadência de sua civilização, a implosão de
sua cultura. A destruição dessa civilização é somente sugerida, nas entrelinhas,
pelo narrador: o fim de Cartago é anunciado, ritualisticamente, pela morte de
Salambô.
7GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo, Editora Universidade Estadual Paulista; 1990.
P.65.
5/10/2018 A Decadência e o Sagrado em Salambô de Gustave Flaubert - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-decadencia-e-o-sagrado-em-salambo-de-gustave-flaubert 6/16
5
A violência e o sagrado A violência e o sagrado A violência e o sagrado A violência e o sagrado em em em em René Girard René Girard René Girard René Girard ....
A presença do religioso na origem de todas as sociedades humanas é
indubitável e fundamental. De todas as instituições sociais, o religioso é a
única à qual a ciência nunca conseguiu atribuir um objeto real, uma
verdadeira função. Afirmamos, portanto, que o religioso possui como
objeto o mecanismo da vítima expiatória; sua função é perpetuar ou
renovar os efeitos desse mecanismo, ou seja, manter a violência fora da
comunidade.8
Como podemos perceber no trecho acima, o antropólogo e críticoliterário René Girard baseia sua compreensão das relações sociais a partir do
funcionamento daquilo que denominou o mecanismo mimético . Para Girard, é a
partir da desconstrução do simbólico, do ritualístico que podemos observar esse
mecanismo em seu pleno funcionamento e, por isso, toma o sagrado como o
local privilegiado para investigar estas questões.
Audacioso e por vezes viperino na defesa das fronteiras conceituais quedemarca, avança suas análises também em direção à literatura e às tragédias
(clássicas e shakespeareanas) por compreendê-las enquanto arcabouço de
representações míticas; da mesma forma, demarca bunkers e estabelece
diálogos com as demais áreas comunicantes como a psicanálise, a antropologia e
a filosofia.
O mecanismo mimético nas palavras do próprio Girard, é o processo “que
inclui o desejo mimético e a rivalidade mimética, a crise mimética e a sua
resolução pelo bode expiatório”9. Para o autor, o ser humano organiza-se, tanto
no plano individual como no social, por meio de mediações: sua capacidade de
desejar algo ou mesmo de rejeitar é fundamentalmente relacional. Essa
contigüidade frente ao outro possibilita que ele venha a desejar aquilo que esse
8GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo, Editora Universidade Estadual Paulista; 1990.
P.121.9
Girard, René. “O Mecanismo Mimético”. IN: Um Longo Princípio do começo ao fim. Rio de Janeiro,
TOPBOOKS, 2000. P. 84.
5/10/2018 A Decadência e o Sagrado em Salambô de Gustave Flaubert - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-decadencia-e-o-sagrado-em-salambo-de-gustave-flaubert 7/16
6
outro deseja ou ainda odiar, por imitação, aquilo que o outro odeia. Segundo o
autor, o desejo e a rivalidade mimética são faces de uma mesma moeda e por
isso são, comumente, intercambiáveis em grande parte das situações. Esse
princípio de imitação criador de rivalidades, comporta-se, portanto, como ummecanismo de destruição em massa para qualquer comunidade: a rivalidade
mimética, e que conhecemos vulgarmente sob o título de vendeta , pode alastrar-
se pelas comunidade primitivas e contemporâneas como rastilho de pólvora,
incendiando toda uma cultura.
A sociedade ocidental contemporânea possui, como sabemos, um sistema
de regulação dessa violência que podemos denominar de Sistema Penal:
“O sistema penal, a justiça civilizada pressupõe a vingança
sistematizando-a. Diz-se sobre a vingança pessoal porque supõe-se assim
uma vingança pública, mas que nunca é explicitada.”10
O estudo das comunidades primitivas, entretanto, revelou para Girard
que o controle dessa violência desenfreada nessas comunidades, inscrevia-se nãopor meio da cura (como pretende nosso sistema penal), mas pelo caráter
preventivo, a partir da atuação do sagrado que, em todas as mais diferentes
civilizações, lançava mão da vítima expiatória; “a vítima sacrificial”11. O próprio
autor contesta a noção de bode expiatório , já que a expressão caracteriza a
vítima como alguém ou algo capaz de expiar a culpa ou a responsabilidade dos
agentes da violência:
“não é o culpado que mais interessa, mas as vítimas não vingadas; é delas
que vem o perigo mais imediato. É preciso oferecer a estas vítimas uma
satisfação rigorosamente avaliada, apaziguando seu desejo de vingança
sem despertá-lo em outra parte. Não se trata de legislar sobre o bem ou o
10 GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo, Editora Universidade Estadual Paulista; 1990.P. 28.11
Idem. P.16.
5/10/2018 A Decadência e o Sagrado em Salambô de Gustave Flaubert - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-decadencia-e-o-sagrado-em-salambo-de-gustave-flaubert 8/16
7
mal, nem de fazer respeitar uma justiça abstrata, mas de preservar a
segurança do grupo eliminando a vingança, ...”12
Para o autor de A Violência e o Sagrado , há um longo processo históricoque revela as transformações dos mecanismos de contenção da violência
mimética, desde as sociedades primitivas até o nosso sistema penal. Suas análises
sobre as transformações dos sacrifícios rituais ao longo da Idade Antiga, fizeram
com que Girard se debruçasse sobre o papel e o funcionamento das tragédias
gregas. Por meio destas, a sociedade helênica podia experimentar a purificação
proporcionada pelo sacrifício vitimário sem, entretanto, efetivar nenhum
derramamento de sangue humano ou animal: era a catarse a responsável por
essa purificação. Na literatura, como nas artes em geral, o mecanismo catártico
é responsável pela mobilização dos mecanismos miméticos do leitor.
“O debate trágico é um debate sem solução. Há sempre, de ambas as
partes, os mesmo desejos, os mesmo argumentos, o mesmo peso:
Gleishgewicht [Equilíbrio], como diz Hölderlin. A tragédia é o equilíbriode uma balança: não a da justiça mas a da violência. Nada do que se
encontra em um dos pratos deixa de aparecer imediatamente no outro; os
mesmo insultos são trocados; as mesmas acusações voam entre os
adversários, como a bola de tênis. Se o conflito eterniza-se, é por não
haver diferença alguma entre os adversários.”
Essa simetria de composição das tragédias, comum tanto a Ésquilo como
a Sófocles e a Eurípedes é a chave de descerra os portões dos mitos gregos, onde
podemos encontrar a violência mimética e seu antídoto pelo sacrifício vitimário.
Se não há como julgar seus personagens a partir de uma escala maniqueísta é
porque, assim como nos mitos fundadores das tragédias, a preocupação do autor
não é evidenciar o culpado, mas sim apresentar a violência mimética em todo
12Idem. P. 34.
5/10/2018 A Decadência e o Sagrado em Salambô de Gustave Flaubert - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-decadencia-e-o-sagrado-em-salambo-de-gustave-flaubert 9/16
8
seu horror, (e nas tragédias podemos tomá-la pelo destino ) para que aquele que
a assiste, purifique-se pela catarse.
“Quanto mais a rivalidade trágica é prolongada. Mais ela favorece amimese violenta, multiplicando os efeitos de espelho entre os
adversários”13
Numa comunidade antiga como a Cartago das guerras púnicas, os ritos
sacrificiais alertavam a comunidade para essa violência infectante, epidêmica.
Os sacrifícios apontavam para o perigo das indiferenciações, da diluição das
hierarquias sociais, da perda de um degree capaz de redimensionar a rivalidade
mimética, convertendo-a no mecanismo positivo que é a mediação externa (a
admiração que a criança sente pelo pai, que o fiel sente por seu deus e que o
soldado sente por seu superior).
13Idem. P. 65.
5/10/2018 A Decadência e o Sagrado em Salambô de Gustave Flaubert - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-decadencia-e-o-sagrado-em-salambo-de-gustave-flaubert 10/16
9
Salambô e o Deus Selvagem Salambô e o Deus Selvagem Salambô e o Deus Selvagem Salambô e o Deus Selvagem
“After us the savage god”
W. B. Yeats.
“Acredita-se que um deus reclama as vítimas: em princípio, somente ele
se deleita com a fumaça dos holocaustos, vem dele a exigência da carne
amontoada sobre os altares. É para apaziguar sua cólera que os sacrifícios
são multiplicados.”14
“Entrementes, um fogo de aloés, de cedro e de loureiro ardia entre
as pernas do colosso. As pontas de suas longas asas mergulhavam nas
labaredas; os ungüentos que lhe tinham passado corriam como suor por
seus membros de bronze. Em torno da laje redonda onde estavam
apoiados os seus pés, as crianças, envoltas em véus negros, formavam um
círculo imóvel; e os braços do deus desmesuradamente longos,
permitiam que suas mãos chegassem até elas, como se para pegar essa
coroa e levá-la para o céu.
Os Ricos, os Anciãos, as mulheres, uma multidão de gente se
comprimia por trás dos sacerdotes e sobre os terraços das casas. As
grandes estrelas pintadas não giravam mais: os tabernáculos haviam sido
colocados no chão; e a fumaça dos defumadores subia
perpendicularmente, como árvores gigantescas que estendem para o céu
seus ramos azulados.
Muitas pessoas desmaiaram; outras se mantinham hirtas e
petrificadas no seu êxtase. Uma infinita agonia pesava sobre os corações.
Os últimos clamores aos poucos extinguiram-se — e o povo de Cartago
ofegava, absorvido pela excitação do seu terror.”15
Os principais personagens que compõe a trama de Salambô são: a virgem
Salambô (sacerdotisa da Lua, Tanit), Shahabarin (Sacerdote de Tanit), Hamílcar
14GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo, Editora Universidade Estadual Paulista; 1990.
P.18.15
FLAUBERT, Gustave. Salambô. Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 2005 (Coleção Excelsior). PP. 201 a
202.
5/10/2018 A Decadência e o Sagrado em Salambô de Gustave Flaubert - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-decadencia-e-o-sagrado-em-salambo-de-gustave-flaubert 11/16
10
(Magistrado, general Cartaginês, sacerdote de Moloch e pai de Salambô),
Narr’Havas rei dos núbios (mercenário contratado de Cartago), Matô (soldado
líbio, mercenário de Cartago) e Spendius (escravo liberto no início da trama). A
história é composta por 15 capítulos sendo o primeiro “O Festim” e o último“Matô”. Essa organização adotada por Flaubert nos mostra algo bastante
importante; tanto o início quanto o final da obra narram episódios festivos para
Cartago: o primeiro a comemoração dos mercenários pela batalha vitoriosa
contra Roma; o último como o sacrifício de Matô e que restauraria a
prosperidade à Cartago.
Em termos gerais, os mercenários contratados por Cartago, logo após ofestim, dão conta de que os magistrados cartagineses não efetivarão as
promessas feitas às vésperas das batalhas. A ganância hipócrita das lideranças
cartaginesas (que a um só tempo eram sacerdotes, magistrados e generais) e a
insaciável ambição dos mercenários levam os dois grupos rivais à guerra: à
frente dos exércitos púnicos temos Hamílcar e Hanon; diante dos mercenários
seguem Matô, Spendius e Narr’Havas. Como conclusão, vemos a vitória dos
cartagineses e o sacrifício ritual do soldado Matô.
Mas a força do romance vai ainda além das questões épico-militares que
indicam a sinopse acima. Flaubert entrelaça os fatores políticos, religiosos,
econômicos e culturais em sua trama de modo a nos proporcionar a catártica
sensação de que podemos enxergar através dos olhos dos povos antigos. A
concepção de mecanismo mimético de Girard, penso, fornecem importantes
elementos para que venhamos a entender essa força da escrita de Flaubert.
O mecanismo mimético e a vontade de irrompê-lo mediante ao sacrifício
vitimário é marcante ao longo de toda a obra. Podemos entender a Cartago de
Salambô como uma civilização em decadência por não conseguir implantar
mais qualquer sacrifício que seja capaz de expurgar de vez por todas a violência
mimética que se instaura como sangria desatada; como a vendeta que reclama o
troco.
5/10/2018 A Decadência e o Sagrado em Salambô de Gustave Flaubert - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-decadencia-e-o-sagrado-em-salambo-de-gustave-flaubert 12/16
11
“Os gêmeos são impuros da mesma forma que o guerreiro ávido
por carnificinas, o culpado de incesto ou a mulher que menstrua. É àÉ àÉ àÉ à
violência que todas as formas de impureza devem ser relacionadas. Esteviolência que todas as formas de impureza devem ser relacionadas. Esteviolência que todas as formas de impureza devem ser relacionadas. Esteviolência que todas as formas de impureza devem ser relacionadas. Este
fato nos escapa por não percebermos a assimilação primitiva entre ofato nos escapa por não percebermos a assimilação primitiva entre ofato nos escapa por não percebermos a assimilação primitiva entre ofato nos escapa por não percebermos a assimilação primitiva entre o
desaparecimento das diferenças e a violência;desaparecimento das diferenças e a violência;desaparecimento das diferenças e a violência;desaparecimento das diferenças e a violência; mas basta examinar o tipo
de calamidade que o pensamento primitivo associa à presença de gêmeos
para se convencer de que esta assimilação é lógica. Os gêmeos ameaçam
provocar temíveis epidemias, doenças que provocam a esterilidade das
mulheres e dos animais. É tamÉ tamÉ tamÉ também mencionada de forma ainda maisbém mencionada de forma ainda maisbém mencionada de forma ainda maisbém mencionada de forma ainda mais
significativa, a discórdia entre os próximos, a degradação fatal do ritual esignificativa, a discórdia entre os próximos, a degradação fatal do ritual esignificativa, a discórdia entre os próximos, a degradação fatal do ritual esignificativa, a discórdia entre os próximos, a degradação fatal do ritual e
a transgressão das proibições; em outros termos a crise sacrificiala transgressão das proibições; em outros termos a crise sacrificiala transgressão das proibições; em outros termos a crise sacrificiala transgressão das proibições; em outros termos a crise sacrificial.”16
(Grifos meus)
A violência impera no romance por que nele seus personagens se movem
num jogo de espelhos que, aliás, convergem-se em um único ponto: Salambô.
Salambô tensiona em si todos os fios dos mecanismos miméticos que
compõe a trama com uma inocência perversa e sensual. Não é coincidência a
textura trágica que Flaubert confere à personagem: aí reside o fascínio de
mulher fatal que ela proporcionou a autores decadentes como Wilde.
“...a serpente caiu e, passando o corpo pela nuca de Salambô, deixou
prender a cabeça e a cauda, como um colar partido cujas pontas
arrastassem pelo chão. A virgem enrolou-a em seu corpo, passando-a por
baixo dos braços e por entre os joelhos; depois perdendo-a pelamandíbula, aproximou de seus dentes a pequena boca triangular e,
semicerrando os olhos, inclinava-se para traz sob os raios da lua. A luz
branca parecia envolvê-la numa névoa de prata; o rastro de seus pés
úmidos brilhava nas lajes, estrelas palpitavam nas profundezas das águas.
A serpente apertou contra o corpo da jovem os seus anéis negros
estriados de amarelo.”17
16 GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo, Editora Universidade Estadual Paulista; 1990.PP. 78 e 79.17
FLAUBERT, Gustave. Salambô. Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 2005 (Coleção Excelsior). P.146.
5/10/2018 A Decadência e o Sagrado em Salambô de Gustave Flaubert - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-decadencia-e-o-sagrado-em-salambo-de-gustave-flaubert 13/16
12
Salambô é sagrada e traiçoeira como a píton; o narrador atrela a
personagem à serpente sugerindo, inclusive, uma espécie de sintonia mágica,
como se fossem uma só. Logo no primeiro capítulo quando os mercenáriosinvadem o templo de Tanit, são contidos pela sensualidade e pelo longo e
hipnótico discurso de Salambô que concluiu oferecendo vinho numa taça de
ouro ao soldado Matô. Naquele momento, a relação de rivalidade entre ele e
Narr’Havas está desperta: simbolicamente, neste primeiro contato entre Matô,
Salambô e Narr’Havas, quando o primeiro busca o rei dos núbios para
responder-lhe a agressão, acaba por perder de vista tanto o rei dos núbiosquanto a virgem Salambô; a cena se transforma como se findasse, bruscamente,
toda algazarra que a horda de bárbaros provocava. O objeto de desejo
desaparece quando desaparece o rival: já no princípio do romance podemos
observar a atuação do “desejo triangular”18 mobilizando a violência motora ao
romance. Matô e Narr’havas são rivais porque são idênticos, dessa identidade,
segundo Girard, emana o desejo e a violência miméticas. É por Salambô que
ambos travam um guerra inteira, Narr’Havas não é menos ardiloso do que Matô
é obsecado. O desejo de Salambô oscila entre obter o zainfe (manto da deusa
Tanit) roubado por Matô, ou a ele entregar-se. Ela vai até o acampamento dos
mercenários e toma, de Matô, o manto da deusa sem consumar com o soldado
nenhuma carícia sexual. Como um joguete na mão do sacerdote eunuco
Sahabarin (que pela pitonisa de Tanit nutre um sentimento ambíguo), ela
apresenta-se diante de Matô, menos para salvar os ritos da República
Cartaginesa do que para poder brincar com os sentimentos miméticos do líbio.
No acampamento inimigo, o general Hamílcar, seu pai, observa a filha na tenda
do comandante inimigo e acaba tomando o acampamento dos mercenários de
assalto. Sahabarin parecia estar consciente da missão que incumbiu a Salambô:
18 GIRARD, René. “O Desejo Triangular”. IN: Mensonge Romantique et Verité Romanesque. BernardGrasset. Tradução do Capítulo de Dr. Luiz Carlos da Silva Dantas.
5/10/2018 A Decadência e o Sagrado em Salambô de Gustave Flaubert - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-decadencia-e-o-sagrado-em-salambo-de-gustave-flaubert 14/16
13
seria o regresso do manto de Tanit que motivaria o brio cartaginês, ou seria a
certeza de que a visita inesperada de Salambô a Matô atiçaria ainda mais a
rivalidade mimética entre Hamílcar e Matô e entre os “aliados” Matô e
Narr’Havas? Shahabarin, descrito como sacerdote sábio e erudito conheceperfeitamente o gerador de desejos e violências miméticas que Salambô
representa. Como resultado dessa engrenagem mimética de desejo e violência,
Hamílcar oferece Salambô ao rival de Matô; a virgem acata a decisão do pai,
mas, como um pêndulo mimético, oscila, até o final da obra entre o ódio e o
desejo por Matô. Flaubert, entretanto, não permitirá, em nenhum momento,
que a união carnal entre Salambô e os mercenários rivais venha a se consumar:Salambô está no romance para evidenciar o histérico jogo de espelhos da
sedução, assim como a serpente que, conhecendo o fascínio que exerce,
contenta-se apenas em armar o bote; eis, como definiu Mário Praz, a histérica
em hierática indolência .
Como afirma Girard, no trecho destacado no início deste capítulo, são os
eventos simétricos que aterrorizam os antigos porque, sabem da contaminação
pela rivalidade mimética. Se o mecanismo da vítima sacrificial é o responsável
pela instituição da cultura de uma civilização, sua crise, por conseguinte, leva a
comunidade ao extermínio de sua cultura: essa sociedade se mostra incapaz de
(re)estabelecer o degree, a hierarquia vital à sua manutenção. Nesse contexto é
que podemos compreender porque os cartagineses buscam a explicação de suas
derrotas nos sacrifícios não oferecidos aos deuses e, por isso, temos uma obra
repleta de sacrifícios aterrorizantes realizados, principalmente, pelos
cartagineses: leões e homens crucificados ao longo das estradas, o linchamento
de Matô pela população (e a extração de seu coração pelo deus Moloch) e o
sacrifício de inúmeras crianças púnicas para saciar a ira do deus Melcarte-Tírio.
Essas crianças atendem perfeitamente à função de vítimas sacrificiais que
arrebatariam o mecanismo mimético: “Quanto mais aguda for a crise, mais a
5/10/2018 A Decadência e o Sagrado em Salambô de Gustave Flaubert - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-decadencia-e-o-sagrado-em-salambo-de-gustave-flaubert 15/16
14
vítima deve ser ‘preciosa’ ”19. Cônscio da importância dos mecanismos religiosos
para a contenção da violência, logo após o término do rito aterrorizante,
assistimos, na trama de Flaubert, a chegada da chuva redentora que mataria a
sede da cidade sitiada pelo ex-escravo Spendius.O aparente clima de satisfação ao final do romance não irá imperar: além
das últimas páginas de Salambô , sabemos que as guerras púnicas terminaram
com a destruição de Cartago pela República Romana. O romance, ao narrar a
crise sacrificial cartaginesa, se apresenta como uma espécie de vaticínio do
narrador.
Flaubert encerra a obra com a morte de Salambô e a justifica pelo fato davirgem haver tocado o sagrado manto de Tanit, a ela proibido. Aníbal Barca,
futuro general cartaginês, filho de Hamílcar e irmão de Salambô, havia sido
trocado por seu pai poucos momentos antes do início do sacrifício das crianças
cartaginesas a Melcarte-Tírio. Essa degenerescência dos rituais cartagineses
desorganizou o sistema religioso daquela civilização. Uma vez libertada a
violência do interior do mito, ela consome a cultura que o continha: essa é a voz
da tragédia que podemos ouvir em Salambô de Flaubert.
19GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo, Editora Universidade Estadual Paulista; 1990.
P.31
5/10/2018 A Decadência e o Sagrado em Salambô de Gustave Flaubert - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/a-decadencia-e-o-sagrado-em-salambo-de-gustave-flaubert 16/16
15
Bibliografia
AUERBACH, Erich. Mimesis . São Paulo, Editora Perspectiva, 2004. (Coleção
Estudos).
FLAUBERT, Gustave. Salambô . Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 2005 (Coleção
Excelsior).
GIRARD, René. A Violência e o Sagrado . São Paulo, Editora Universidade
Estadual Paulista; 1990.
_____________. “O Desejo Triangular”. IN: Mensonge Romantique et Verité
Romanesque . Bernard Grasset. Tradução (Capítulo I); Prof. Dr. Luiz Carlos
da Silva Dantas.
_____________. “O Mecanismo Mimético” IN: Um Longo Princípio do Começo ao
Fim. Rio de Janeiro, Editora TOPBOOKS, 2000.
PRAZ, Mário. A Carne, a Morte e o Diabo na Literatura Romântica . Campinas,
Editora da Unicamp, 1996.