A Decadência e o Sagrado em Salambô de Gustave Flaubert

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  0 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Estudos da Linguagem Departamento de Teoria e História Literária Fábio Martinelli Casemiro A Decadência e o Sagrado A Decadência e o Sagrado A Decadência e o Sagrado A Decadência e o Sagrado; ; ; A crise sacrificial em A crise sacrificial em A crise sacrificial em A crise sacrificial em Salambô Salambô Salambô Salambô de Gustave Flaubert. de Gustave Flaubert. de Gustave Flaubert. de Gustave Flaubert. Trabalho de conclusão da disciplina Tópicos Sobre Críticas, oferecida ao curso de pós-graduação e ministrada pelo Prof. Dr. Luiz Carlos da Silva Dantas. Campinas Inverno 2006

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINASInstituto de Estudos da Linguagem

Departamento de Teoria e História Literária

Fábio Martinelli Casemiro

A Decadência e o Sagrado A Decadência e o Sagrado A Decadência e o Sagrado A Decadência e o Sagrado; ; ; ; 

A crise sacrificial em A crise sacrificial em A crise sacrificial em A crise sacrificial em Salambô Salambô Salambô Salambô de Gustave Flaubert.de Gustave Flaubert.de Gustave Flaubert.de Gustave Flaubert.

Trabalho de conclusão da disciplinaTópicos Sobre Críticas, oferecida ao curso

de pós-graduação e ministrada peloProf. Dr. Luiz Carlos da Silva Dantas.

Campinas

Inverno2006

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Salambô: entre o romance e o rito; entre o real e o símbolo.Salambô: entre o romance e o rito; entre o real e o símbolo.Salambô: entre o romance e o rito; entre o real e o símbolo.Salambô: entre o romance e o rito; entre o real e o símbolo.

Publicado em 1862, Salambô  de Gustave Flaubert nasce controverso.

Inspirado por suas experiências na África e no Oriente Médio, o autor parece

desejar transpor tanto os limites do romance quanto o do denominado Realismo.

Há em Salambô  uma força que parece romper com o modelo de narrativa

ficcional construído pelos romancistas ao longo do XIX (inclusive pelo próprio

Flaubert). Segundo Erich Auerbach, o romance romântico é um gênero literário

no qual a miscigenação entre o sublime e o grotesco, acaba por constituir uma

visão literária da vida real que atingirá o esplendor de seu acabamento estético

com o Realismo.

“Quando Stendhal e Balzac tomaram personagens quaisquer da vidatomaram personagens quaisquer da vidatomaram personagens quaisquer da vidatomaram personagens quaisquer da vida

cotidiana no seu condicionamento às circunstâncias históricas e ascotidiana no seu condicionamento às circunstâncias históricas e ascotidiana no seu condicionamento às circunstâncias históricas e ascotidiana no seu condicionamento às circunstâncias históricas e as

transformaram em objetos de represtransformaram em objetos de represtransformaram em objetos de represtransformaram em objetos de representação séria, problemática e atéentação séria, problemática e atéentação séria, problemática e atéentação séria, problemática e atétrágica, quebraram a regra clássica de diferenciação dos níveis,trágica, quebraram a regra clássica de diferenciação dos níveis,trágica, quebraram a regra clássica de diferenciação dos níveis,trágica, quebraram a regra clássica de diferenciação dos níveis, segundo a

qual a realidade quotidiana e prática só poderia ter seu lugar na literatura

no campo de uma espécie estilística baixa ou média, isto é, só de forma

grotescamente cômica ou como entretenimento agradável, leve, colorido

e elegante.”1 (Grifos Meus)

Há em Salambô uma consciência clara dessa ruptura com os paradigmas

clássicos de composição. Cuidadoso como um maestro, Flaubert deseja uma

nova orquestração da narrativa que desse conta de capturar o universo da

antiguidade com toda a sua força dramática: era necessário dispor de estratégias

formais diferentes das utilizadas pela mimesis realista. O desafio do autor era

compor uma sinfonia literária que avançasse ainda mais rumo aos abismos da

alma humana; que fosse ainda além das particularidades do bovarismo

1 AUERBACH, Erich. Mimesis . São Paulo, Editora Perspectiva, 2004. (Coleção Estudos), P. 500.  

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parisiense oitocentista: era necessário resgatar a força do épico e do trágico

amalgamados nos subsolos do romance real.

Essa força na composição da trama, no modo pelo qual as estratégias

formais se entrelaçam sinuosamente aos conteúdos abordados, os cuidados coma composição das imagens, creio eu, foram os atrativos que enfeitiçaram toda

uma geração posterior ao realismo e que iria tomar como musa a sacerdotisa de

Tanit, Salambô. Se a prosa realista de Flaubert dá o acabamento final à

tecnologia do romance fundada pelos românticos; por outro lado, as

possibilidades temáticas formais de Salambô vão fecundar nos artistas do final

do XIX uma sensibilidade ainda mais requintada, tanto no que concerne ao usodas imagens, quanto na profundidade pela qual percorre os abismos da alma.

“Baudelaire e Flaubert são duas faces de um mesmo busto fincado

ali no meio do século entre romantismo e decadentismo, entre a época do

homem fatal e da mulher fatal, entre a época de Delacroix e de Moreau.”2 

É no romance Salambô  que iremos encontrar as primeiras e mais

expressivas representações do Oriente fabuloso e decadente, polvilhado por

cores e por aromas exóticos intensamente explorados pela literatura e pelas

artes plásticas do fin-de-siécle. Como carro chefe deste estetismo pronunciado,

vemos erigir na literatura francesa a personagem Salambô: “uma histérica que

se destempera numa hierática indolência”3

e que vai semear para as próximasgerações de literatos, um modelo de feminilidade que, na literatura, cunhou-se

de “a mulher fatal”4 ou ainda “a bela dama sem misericórdia”5.

2PRAZ, Mário. A Carne, a Morte e o Diabo na Literatura Romântica. Campinas, Editora da Unicamp,

1996. P.149. 3 Idem. P. 279.4

Idem. P.192.5

Idem. P. 179.

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“o tipo [de mulher fatal] que surge com Gautier e Flaubert, tem pleno

desenvolvimento com Swinburne, para chegar a Walter Pater, Wilde,

D’Annunzio, apenas para citar uns nomes mais representativos.”6 

O romance Salambô , entretanto, não atingiu o sucesso de público

comparável ao de Madame Bovary. Penso que as inovações adotadas por

Flaubert, apesar de terem inspirado muitos literatos de gerações posteriores,

acabou por não sensibilizar com tanta expressividade um público leitor já

bastante acostumado aos paradigmas do romance realista, famosos por descer

aos subterrâneos de suas intimidades mais cotidianas. A meu ver, entretanto, em

Salambô , Flaubert administra de maneira ainda mais requintada sua técnica de

investigação desses subterrâneos. A grande (r)evolução deste romance é a

incisão dessa técnica numa escala bem mais ampla, capaz de farejar a alma

humana para muito além da civilização parisiense da segunda metade do XIX:

hábil e audacioso, depois de explorar as vicissitudes cotidianas de

contemporâneos, como Madame Bovary, Flaubert lança-se ao oceano bravio das

investigações míticas e históricas. Profundíssimo conhecedor dos mecanismosda composição ficcional, mas sabedor da responsabilidade de se narrar um

momento tão importante da história da República Romana, o autor adequa ao

tema, a forma pela qual será expressa a narrativa. Na obra, encontra-se ainda o

sabor tão característico ao romance realista, não apenas pela utilização do

narrador onisciente, burilado por essa tradição, como também pela forte crítica

às relações sociais, que são atravessadas pela ganância, pela violência e porinteresses individuais.

Essa obra, entretanto, não se detém nem ao modus-operandi realista, nem

tampouco à crítica social à moda do Naturalismo de Zola. Superando as demais

técnicas de composição características às escolas do XIX, Flaubert traz para 

Salambô  a dimensão do épico e do trágico. Resgata o épico porque narra a

história de uma civilização, de uma coletividade e não de um indivíduo ou de

6Idem. P. 188.

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um herói romanesco: torna-se, entretanto, um anti-épico já que, a priori, o leitor

sabe que a obra trata da história de uma civilização que se construiu como rival  

da República Romana (e pelas armas dessa República encontrará seu fim). O

trágico, por sua vez, é resgatado em toda a sua expressão dramática a partir da(re)construção de um complexo universo simbólico, tomando mitos e rituais não

apenas como ilustrações da narrativa, mas como mecanismos-chave para a

compreensão da trama. Em Salambô  o leitor se depara com uma civilização

cambaleante e que dilacera suas próprias carnes (assim como o personagem

Matô é dilacerado) na vã tentativa de resgatar seus ideais políticos, militares,

éticos e religiosos. Segundo o antropólogo e crítico literário René Girard:

“Os trágicos apresentam personagens às voltas com uma mecânica da

violência tão implacável, que se torna impossível o menor julgamento de

valor, ou qualquer distinção, simplista ou sutil, entre os ‘bons’ e os ‘maus’.

É exatamente por esta razão que a maioria de nossas interpretações

modernas mostra uma infidelidade e uma indigência extraordinárias;

elas nunca chegam a escapar completamente do ‘maniqueísmo’, que

triunfa já com o drama romântico e que desde então vem se

exacerbando.”7 

Cônscio dessa indigência do romance contemporâneo frente às questões

do universo mítico e religioso da antiguidade, Flaubert compõe uma obra na

qual as estratégias formais articulam-se perfeitamente tanto à religiosidade dos

antigos, como ao espírito crítico do homem contemporâneo, que é seu leitor. Aperda desses valores, antes amalgamados em seus ritos e sacrifícios, levará os

cartagineses a experimentarem a decadência de sua civilização, a implosão de

sua cultura. A destruição dessa civilização é somente sugerida, nas entrelinhas,

pelo narrador: o fim de Cartago é anunciado, ritualisticamente, pela morte de

Salambô.

7GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo, Editora Universidade Estadual Paulista; 1990.

P.65.

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A violência e o sagrado A violência e o sagrado A violência e o sagrado A violência e o sagrado em em em em René Girard René Girard René Girard René Girard ....

A presença do religioso na origem de todas as sociedades humanas é

indubitável e fundamental. De todas as instituições sociais, o religioso é a

única à qual a ciência nunca conseguiu atribuir um objeto real, uma

verdadeira função. Afirmamos, portanto, que o religioso possui como

objeto o mecanismo da vítima  expiatória; sua função é perpetuar ou

renovar os efeitos desse mecanismo, ou seja, manter a violência fora da

comunidade.8 

Como podemos perceber no trecho acima, o antropólogo e críticoliterário René Girard baseia sua compreensão das relações sociais a partir do

funcionamento daquilo que denominou o mecanismo mimético . Para Girard, é a

partir da desconstrução do simbólico, do ritualístico que podemos observar esse

mecanismo em seu pleno funcionamento e, por isso, toma o sagrado como o

local privilegiado para investigar estas questões.

Audacioso e por vezes viperino na defesa das fronteiras conceituais quedemarca, avança suas análises também em direção à literatura e às tragédias

(clássicas e shakespeareanas) por compreendê-las enquanto arcabouço de

representações míticas; da mesma forma, demarca bunkers e estabelece

diálogos com as demais áreas comunicantes como a psicanálise, a antropologia e

a filosofia.

O mecanismo mimético nas palavras do próprio Girard, é o processo “que

inclui o desejo mimético e a rivalidade mimética, a crise mimética e a sua

resolução pelo bode expiatório”9. Para o autor, o ser humano organiza-se, tanto

no plano individual como no social, por meio de mediações: sua capacidade de

desejar algo ou mesmo de rejeitar é fundamentalmente relacional. Essa

contigüidade frente ao outro possibilita que ele venha a desejar aquilo que esse

8GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo, Editora Universidade Estadual Paulista; 1990.

P.121.9

Girard, René. “O Mecanismo Mimético”. IN: Um Longo Princípio do começo ao fim. Rio de Janeiro,

TOPBOOKS, 2000. P. 84.

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outro deseja ou ainda odiar, por imitação, aquilo que o outro odeia. Segundo o

autor, o desejo e a rivalidade mimética são faces de uma mesma moeda e por

isso são, comumente, intercambiáveis em grande parte das situações. Esse

princípio de imitação criador de rivalidades, comporta-se, portanto, como ummecanismo de destruição em massa para qualquer comunidade: a rivalidade

mimética, e que conhecemos vulgarmente sob o título de vendeta , pode alastrar-

se pelas comunidade primitivas e contemporâneas como rastilho de pólvora,

incendiando toda uma cultura.

A sociedade ocidental contemporânea possui, como sabemos, um sistema

de regulação dessa violência que podemos denominar de Sistema Penal:

“O sistema penal, a justiça civilizada pressupõe a vingança

sistematizando-a. Diz-se sobre a vingança pessoal porque supõe-se assim

uma vingança pública, mas que nunca é explicitada.”10 

O estudo das comunidades primitivas, entretanto, revelou para Girard

que o controle dessa violência desenfreada nessas comunidades, inscrevia-se nãopor meio da cura (como pretende nosso sistema penal), mas pelo caráter

preventivo, a partir da atuação do sagrado que, em todas as mais diferentes

civilizações, lançava mão da vítima expiatória; “a vítima sacrificial”11. O próprio

autor contesta a noção de bode expiatório , já que a expressão caracteriza a

vítima como alguém ou algo capaz de expiar a culpa ou a responsabilidade dos

agentes da violência:

“não é o culpado que mais interessa, mas as vítimas não vingadas; é delas

que vem o perigo mais imediato. É preciso oferecer a estas vítimas uma

satisfação rigorosamente avaliada, apaziguando seu desejo de vingança

sem despertá-lo em outra parte. Não se trata de legislar sobre o bem ou o

10 GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo, Editora Universidade Estadual Paulista; 1990.P. 28.11

Idem. P.16.

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mal, nem de fazer respeitar uma justiça abstrata, mas de preservar a

segurança do grupo eliminando a vingança, ...”12 

Para o autor de A Violência e o Sagrado , há um longo processo históricoque revela as transformações dos mecanismos de contenção da violência

mimética, desde as sociedades primitivas até o nosso sistema penal. Suas análises

sobre as transformações dos sacrifícios rituais ao longo da Idade Antiga, fizeram

com que Girard se debruçasse sobre o papel e o funcionamento das tragédias

gregas. Por meio destas, a sociedade helênica podia experimentar a purificação

proporcionada pelo sacrifício vitimário sem, entretanto, efetivar nenhum

derramamento de sangue humano ou animal: era a catarse a responsável por

essa purificação. Na literatura, como nas artes em geral, o mecanismo catártico

é responsável pela mobilização dos mecanismos miméticos do leitor.

“O debate trágico é um debate sem solução. Há sempre, de ambas as

partes, os mesmo desejos, os mesmo argumentos, o mesmo peso:

Gleishgewicht [Equilíbrio], como diz Hölderlin. A tragédia é o equilíbriode uma balança: não a da justiça mas a da violência. Nada do que se

encontra em um dos pratos deixa de aparecer imediatamente no outro; os

mesmo insultos são trocados; as mesmas acusações voam entre os

adversários, como a bola de tênis. Se o conflito eterniza-se, é por não

haver diferença alguma entre os adversários.”

Essa simetria de composição das tragédias, comum tanto a Ésquilo como

a Sófocles e a Eurípedes é a chave de descerra os portões dos mitos gregos, onde

podemos encontrar a violência mimética e seu antídoto pelo sacrifício vitimário.

Se não há como julgar seus personagens a partir de uma escala maniqueísta é

porque, assim como nos mitos fundadores das tragédias, a preocupação do autor

não é evidenciar o culpado, mas sim apresentar a violência mimética em todo

12Idem. P. 34.

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seu horror, (e nas tragédias podemos tomá-la pelo destino ) para que aquele que

a assiste, purifique-se pela catarse.

“Quanto mais a rivalidade trágica é prolongada. Mais ela favorece amimese violenta, multiplicando os efeitos de espelho entre os

adversários”13 

Numa comunidade antiga como a Cartago das guerras púnicas, os ritos

sacrificiais alertavam a comunidade para essa violência infectante, epidêmica.

Os sacrifícios apontavam para o perigo das indiferenciações, da diluição das

hierarquias sociais, da perda de um degree capaz de redimensionar a rivalidade

mimética, convertendo-a no mecanismo positivo que é a mediação externa (a

admiração que a criança sente pelo pai, que o fiel sente por seu deus e que o

soldado sente por seu superior).

13Idem. P. 65.

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Salambô e o Deus Selvagem Salambô e o Deus Selvagem Salambô e o Deus Selvagem Salambô e o Deus Selvagem 

“After us the savage god”

 W. B. Yeats.

“Acredita-se que um deus reclama as vítimas: em princípio, somente ele

se deleita com a fumaça dos holocaustos, vem dele a exigência da carne

amontoada sobre os altares. É para apaziguar sua cólera que os sacrifícios

são multiplicados.”14 

“Entrementes, um fogo de aloés, de cedro e de loureiro ardia entre

as pernas do colosso. As pontas de suas longas asas mergulhavam nas

labaredas; os ungüentos que lhe tinham passado corriam como suor por

seus membros de bronze. Em torno da laje redonda onde estavam

apoiados os seus pés, as crianças, envoltas em véus negros, formavam um

círculo imóvel; e os braços do deus desmesuradamente longos,

permitiam que suas mãos chegassem até elas, como se para pegar essa

coroa e levá-la para o céu.

Os Ricos, os Anciãos, as mulheres, uma multidão de gente se

comprimia por trás dos sacerdotes e sobre os terraços das casas. As

grandes estrelas pintadas não giravam mais: os tabernáculos haviam sido

colocados no chão; e a fumaça dos defumadores subia

perpendicularmente, como árvores gigantescas que estendem para o céu

seus ramos azulados.

Muitas pessoas desmaiaram; outras se mantinham hirtas e

petrificadas no seu êxtase. Uma infinita agonia pesava sobre os corações.

Os últimos clamores aos poucos extinguiram-se — e o povo de Cartago

ofegava, absorvido pela excitação do seu terror.”15 

Os principais personagens que compõe a trama de Salambô são: a virgem

Salambô (sacerdotisa da Lua, Tanit), Shahabarin (Sacerdote de Tanit), Hamílcar

14GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo, Editora Universidade Estadual Paulista; 1990.

P.18.15

FLAUBERT, Gustave. Salambô. Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 2005 (Coleção Excelsior). PP. 201 a

202.

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(Magistrado, general Cartaginês, sacerdote de Moloch e pai de Salambô),

Narr’Havas rei dos núbios (mercenário contratado de Cartago), Matô (soldado

líbio, mercenário de Cartago) e Spendius (escravo liberto no início da trama). A

história é composta por 15 capítulos sendo o primeiro “O Festim” e o último“Matô”. Essa organização adotada por Flaubert nos mostra algo bastante

importante; tanto o início quanto o final da obra narram episódios festivos para

Cartago: o primeiro a comemoração dos mercenários pela batalha vitoriosa

contra Roma; o último como o sacrifício de Matô e que restauraria a

prosperidade à Cartago.

Em termos gerais, os mercenários contratados por Cartago, logo após ofestim, dão conta de que os magistrados cartagineses não efetivarão as

promessas feitas às vésperas das batalhas. A ganância hipócrita das lideranças

cartaginesas (que a um só tempo eram sacerdotes, magistrados e generais) e a

insaciável ambição dos mercenários levam os dois grupos rivais à guerra: à

frente dos exércitos púnicos temos Hamílcar e Hanon; diante dos mercenários

seguem Matô, Spendius e Narr’Havas. Como conclusão, vemos a vitória dos

cartagineses e o sacrifício ritual do soldado Matô.

Mas a força do romance vai ainda além das questões épico-militares que

indicam a sinopse acima. Flaubert entrelaça os fatores políticos, religiosos,

econômicos e culturais em sua trama de modo a nos proporcionar a catártica

sensação de que podemos enxergar através dos olhos dos povos antigos. A

concepção de mecanismo mimético de Girard, penso, fornecem importantes

elementos para que venhamos a entender essa força da escrita de Flaubert.

O mecanismo mimético e a vontade de irrompê-lo mediante ao sacrifício

vitimário é marcante ao longo de toda a obra. Podemos entender a Cartago de

Salambô  como uma civilização em decadência por não conseguir implantar

mais qualquer sacrifício que seja capaz de expurgar de vez por todas a violência

mimética que se instaura como sangria desatada; como a vendeta que reclama o

troco.

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“Os gêmeos são impuros da mesma forma que o guerreiro ávido

por carnificinas, o culpado de incesto ou a mulher que menstrua. É àÉ àÉ àÉ à

violência que todas as formas de impureza devem ser relacionadas. Esteviolência que todas as formas de impureza devem ser relacionadas. Esteviolência que todas as formas de impureza devem ser relacionadas. Esteviolência que todas as formas de impureza devem ser relacionadas. Este

fato nos escapa por não percebermos a assimilação primitiva entre ofato nos escapa por não percebermos a assimilação primitiva entre ofato nos escapa por não percebermos a assimilação primitiva entre ofato nos escapa por não percebermos a assimilação primitiva entre o

desaparecimento das diferenças e a violência;desaparecimento das diferenças e a violência;desaparecimento das diferenças e a violência;desaparecimento das diferenças e a violência; mas basta examinar o tipo

de calamidade que o pensamento primitivo associa à presença de gêmeos

para se convencer de que esta assimilação é lógica. Os gêmeos ameaçam

provocar temíveis epidemias, doenças que provocam a esterilidade das

mulheres e dos animais. É tamÉ tamÉ tamÉ também mencionada de forma ainda maisbém mencionada de forma ainda maisbém mencionada de forma ainda maisbém mencionada de forma ainda mais

significativa, a discórdia entre os próximos, a degradação fatal do ritual esignificativa, a discórdia entre os próximos, a degradação fatal do ritual esignificativa, a discórdia entre os próximos, a degradação fatal do ritual esignificativa, a discórdia entre os próximos, a degradação fatal do ritual e

a transgressão das proibições; em outros termos a crise sacrificiala transgressão das proibições; em outros termos a crise sacrificiala transgressão das proibições; em outros termos a crise sacrificiala transgressão das proibições; em outros termos a crise sacrificial.”16 

(Grifos meus)

A violência impera no romance por que nele seus personagens se movem

num jogo de espelhos que, aliás, convergem-se em um único ponto: Salambô.

Salambô tensiona em si todos os fios dos mecanismos miméticos que

compõe a trama com uma inocência perversa e sensual. Não é coincidência a

textura trágica que Flaubert confere à personagem: aí reside o fascínio de

mulher fatal que ela proporcionou a autores decadentes como Wilde.

“...a serpente caiu e, passando o corpo pela nuca de Salambô, deixou

prender a cabeça e a cauda, como um colar partido cujas pontas

arrastassem pelo chão. A virgem enrolou-a em seu corpo, passando-a por

baixo dos braços e por entre os joelhos; depois perdendo-a pelamandíbula, aproximou de seus dentes a pequena boca triangular e,

semicerrando os olhos, inclinava-se para traz sob os raios da lua. A luz

branca parecia envolvê-la numa névoa de prata; o rastro de seus pés

úmidos brilhava nas lajes, estrelas palpitavam nas profundezas das águas.

A serpente apertou contra o corpo da jovem os seus anéis negros

estriados de amarelo.”17 

16 GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo, Editora Universidade Estadual Paulista; 1990.PP. 78 e 79.17

FLAUBERT, Gustave. Salambô. Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 2005 (Coleção Excelsior). P.146.

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Salambô é sagrada e traiçoeira como a píton; o narrador atrela a

personagem à serpente sugerindo, inclusive, uma espécie de sintonia mágica,

como se fossem uma só. Logo no primeiro capítulo quando os mercenáriosinvadem o templo de Tanit, são contidos pela sensualidade e pelo longo e

hipnótico discurso de Salambô que concluiu oferecendo vinho numa taça de

ouro ao soldado Matô. Naquele momento, a relação de rivalidade entre ele e

Narr’Havas está desperta: simbolicamente, neste primeiro contato entre Matô,

Salambô e Narr’Havas, quando o primeiro busca o rei dos núbios para

responder-lhe a agressão, acaba por perder de vista tanto o rei dos núbiosquanto a virgem Salambô; a cena se transforma como se findasse, bruscamente,

toda algazarra que a horda de bárbaros provocava. O objeto de desejo

desaparece quando desaparece o rival: já no princípio do romance podemos

observar a atuação do “desejo triangular”18 mobilizando a violência motora ao

romance. Matô e Narr’havas são rivais porque são idênticos, dessa identidade,

segundo Girard, emana o desejo e a violência miméticas. É por Salambô que

ambos travam um guerra inteira, Narr’Havas não é menos ardiloso do que Matô

é obsecado. O desejo de Salambô oscila entre obter o zainfe (manto da deusa

Tanit) roubado por Matô, ou a ele entregar-se. Ela vai até o acampamento dos

mercenários e toma, de Matô, o manto da deusa sem consumar com o soldado

nenhuma carícia sexual. Como um joguete na mão do sacerdote eunuco

Sahabarin (que pela pitonisa de Tanit nutre um sentimento ambíguo), ela

apresenta-se diante de Matô, menos para salvar os ritos da República

Cartaginesa do que para poder brincar com os sentimentos miméticos do líbio.

No acampamento inimigo, o general Hamílcar, seu pai, observa a filha na tenda

do comandante inimigo e acaba tomando o acampamento dos mercenários de

assalto. Sahabarin parecia estar consciente da missão que incumbiu a Salambô:

18 GIRARD, René. “O Desejo Triangular”. IN: Mensonge Romantique et Verité Romanesque. BernardGrasset. Tradução do Capítulo de Dr. Luiz Carlos da Silva Dantas.

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seria o regresso do manto de Tanit que motivaria o brio cartaginês, ou seria a

certeza de que a visita inesperada de Salambô a Matô atiçaria ainda mais a

rivalidade mimética entre Hamílcar e Matô e entre os “aliados” Matô e

Narr’Havas? Shahabarin, descrito como sacerdote sábio e erudito conheceperfeitamente o gerador de desejos e violências miméticas que Salambô

representa. Como resultado dessa engrenagem mimética de desejo e violência,

Hamílcar oferece Salambô ao rival de Matô; a virgem acata a decisão do pai,

mas, como um pêndulo mimético, oscila, até o final da obra entre o ódio e o

desejo por Matô. Flaubert, entretanto, não permitirá, em nenhum momento,

que a união carnal entre Salambô e os mercenários rivais venha a se consumar:Salambô está no romance para evidenciar o histérico jogo de espelhos da

sedução, assim como a serpente que, conhecendo o fascínio que exerce,

contenta-se apenas em armar o bote; eis, como definiu Mário Praz, a histérica 

em hierática indolência .

Como afirma Girard, no trecho destacado no início deste capítulo, são os

eventos simétricos que aterrorizam os antigos porque, sabem da contaminação

pela rivalidade mimética. Se o mecanismo da vítima sacrificial é o responsável

pela instituição da cultura de uma civilização, sua crise, por conseguinte, leva a

comunidade ao extermínio de sua cultura: essa sociedade se mostra incapaz de

(re)estabelecer o degree, a hierarquia vital à sua manutenção. Nesse contexto é

que podemos compreender porque os cartagineses buscam a explicação de suas

derrotas nos sacrifícios não oferecidos aos deuses e, por isso, temos uma obra

repleta de sacrifícios aterrorizantes realizados, principalmente, pelos

cartagineses: leões e homens crucificados ao longo das estradas, o linchamento

de Matô pela população (e a extração de seu coração pelo deus Moloch) e o

sacrifício de inúmeras crianças púnicas para saciar a ira do deus Melcarte-Tírio.

Essas crianças atendem perfeitamente à função de vítimas sacrificiais que

arrebatariam o mecanismo mimético: “Quanto mais aguda for a crise, mais a

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vítima deve ser ‘preciosa’ ”19. Cônscio da importância dos mecanismos religiosos

para a contenção da violência, logo após o término do rito aterrorizante,

assistimos, na trama de Flaubert, a chegada da chuva redentora que mataria a

sede da cidade sitiada pelo ex-escravo Spendius.O aparente clima de satisfação ao final do romance não irá imperar: além

das últimas páginas de Salambô , sabemos que as guerras púnicas terminaram

com a destruição de Cartago pela República Romana. O romance, ao narrar a

crise sacrificial cartaginesa, se apresenta como uma espécie de vaticínio do

narrador.

Flaubert encerra a obra com a morte de Salambô e a justifica pelo fato davirgem haver tocado o sagrado manto de Tanit, a ela proibido. Aníbal Barca,

futuro general cartaginês, filho de Hamílcar e irmão de Salambô, havia sido

trocado por seu pai poucos momentos antes do início do sacrifício das crianças

cartaginesas a Melcarte-Tírio. Essa degenerescência dos rituais cartagineses

desorganizou o sistema religioso daquela civilização. Uma vez libertada a

violência do interior do mito, ela consome a cultura que o continha: essa é a voz

da tragédia que podemos ouvir em Salambô de Flaubert.

19GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo, Editora Universidade Estadual Paulista; 1990.

P.31

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Bibliografia 

AUERBACH, Erich. Mimesis . São Paulo, Editora Perspectiva, 2004. (Coleção

Estudos).

FLAUBERT, Gustave. Salambô . Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 2005 (Coleção

Excelsior).

GIRARD, René. A Violência e o Sagrado . São Paulo, Editora Universidade

Estadual Paulista; 1990.

_____________. “O Desejo Triangular”. IN: Mensonge Romantique et Verité 

Romanesque . Bernard Grasset. Tradução (Capítulo I); Prof. Dr. Luiz Carlos

da Silva Dantas.

_____________. “O Mecanismo Mimético” IN: Um Longo Princípio do Começo ao 

Fim. Rio de Janeiro, Editora TOPBOOKS, 2000.

PRAZ, Mário. A Carne, a Morte e o Diabo na Literatura Romântica . Campinas,

Editora da Unicamp, 1996.