Patrimônio Cultural - Educação Para o Patrimônio Cultural - Parte 1
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A DEGRADAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL: O CASO DA MANSÃO
MATARAZZO (1989-1996)
Lucas Santana Coelho Fonseca
Universidade Federal de Goiás
RESUMO: A questão patrimonial no Brasil ainda é alvo de inúmeros debates e críticas, sendo contestada por seu caráter restritivo e seus critérios preservacionistas. Assim, este artigo tem como objetivo analisar
o caso do tombamento e da demolição da Mansão Matarazzo, localizada na Avenida Paulista, número
1.230, no município de São Paulo, tomando como referência o levantamento de dados feito por arquivos e
processos de tombamento da esfera municipal, aliado a fontes impressas e estudiosos que debatem o
patrimônio, a memória e a preservação. Utiliza-se o caso em questão para extrair as relações de poder que
se estabelecem entre as classes dominantes e a imprensa, e como as redes familiares interpõem e
interferem no processo de patrimonialização no Brasil. Também serão levados em conta os motivos que
conduziram as autoridades públicas a entenderem o edifício e sua área externa como patrimônio cultural,
e as consequentes pressões causadas por parte daqueles que eram contrários à preservação do edifício, e
acabaram ruindo um exemplar ímpar da industrialização do país.
Palavras-Chave: Patrimônio Cultural, Mansão Matarazzo, Preservação.
ABSTRACT: The patrimonial issue in Brazil is still the subject of numerous debates and reviews, being
questioned by its restrictive character and its preservationist standard. Therefore, this article has the
objective to analyze the case of the tipping and destruction of the Matarazzo Mansion, located at Avenida
Paulista, number 1.230, in the city of São Paulo, taking as reference the data survey through files and
tipping processes of the municipal sphere, added to press sources from the past time and scholars who
discuss patrimony, memory and preservation. The case in question is used to extract the relations of
power that are established between the dominant classes and the information vehicles, and how the family
networks interpose and interfere in the patrimonialisation process in Brazil. The motives that led the
public authorities to understand the building and its external area as cultural heritage will be considered,
as well as the resulting pressure from those who were against preservation and eventually crumbling an
unique exemplar of the country's industrialization. Key words: Cultural Heritage, Matarazzo Mansion, Preservation.
Em 30 de abril de 2015 foi inaugurado mais um atrativo shopping center na
Avenida Paulista, número 1.230, no município de São Paulo, nomeado de Shopping
Cidade São Paulo. Contudo, antes da construção do empreendimento comercial, existiu
ali uma mansão que persistiu até 1996 e foi demolida após processos e estudos para seu
tombamento, marcando o fim de um dos poucos casarões que ainda restavam e que
remetia a uma figura marcante da industrialização paulista, a do Conde Francisco
Matarazzo.
A pesquisa em questão pretende compreender a questão patrimonial brasileira
sob uma perspectiva histórica, tendo em vista que a atuação da História no patrimônio
cultural é relativamente recente, e a disciplina carece de maior atuação no assunto.
Ademais, muito pouco foi discutido e aprofundado na academia sobre a Mansão
Matarazzo.
Para embasar o presente estudo, foram analisados os dois1 processos de
tombamento do órgão responsável pelo tombamento municipal, o Conselho Municipal
de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo
(CONPRESP). Há a pretensão de extrair informações pertinentes ao caso, como as
razões que levaram ao pedido de tombamento, a destruição de um símbolo da
industrialização brasileira, os atos ilegítimos por parte dos herdeiros e suas
consequentes razões contrárias à proteção de um, enquanto erguido, patrimônio cultural.
Os pedidos de tombamento da Mansão Matarazzo
No dia 10 de abril de 1989, em reunião extraordinária realizada pelo Conselho
Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de
São Paulo – CONPRESP, o imóvel localizado à Avenida Paulista, número 1.230,
conhecido como Mansão Matarazzo, teve seu processo de tombamento aberto, a nível
municipal, como uma tentativa – e, para aquele momento, talvez a última – de preservar
o bem após duas implosões no imóvel por parte dos proprietários. O motivo que levou à
tentativa de demolir a mansão é claro: antes da Prefeitura de São Paulo cogitar o
tombamento, o órgão responsável pela proteção e preservação dos bens culturais do
Estado de São Paulo, o CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico,
Arqueológico, Artístico e Turístico), em 1982, já havia iniciado uma pesquisa sobre 32
imóveis2, de possível valor cultural – incluindo a Mansão Matarazzo –, remanescentes
da Avenida Paulista.
O estudo foi solicitado pelo então Secretário Extraordinário de Cultura do
Estado de São Paulo, João Carlos Gandra da Silva Martins, que originou um processo
para eventual tombamento da Mansão Matarazzo, e dos outros 31 imóveis, por parte da
esfera estadual. Com a abertura do processo para estudo, os imóveis foram tombados
provisoriamente. A família Matarazzo claramente não gostou. Infelizmente, o processo
1 Processos nº 1989-0.002.581-3 e nº 2010-0.038.283-0. 2 Da pesquisa, foram listadas as seguintes edificações na Avenida Paulista: nº 37, 91, 149, 227, 283, 393,
498, 510, 522, 542, 548, 709, 867, 1079, 1125, 1230, 1405, 1811, 1919, 1941, 2295, 2440, 2465, 2485,
Capela do Colégio São Luiz, 412, 486, 1048, 2424, 2277, 1373 e 329. Dentre estes imóveis, muitos deles
foram demolidos, ou descaracterizados, durante o estudo.
não teve aprovação e foi arquivado. Em março de 1989, foi proposto novamente pelo
CONDEPHAAT o estudo da moradia para eventual proteção. Logo, os herdeiros
estariam, mais uma vez, impedidos de realizar quaisquer alterações ou danos à
propriedade sem a consulta prévia ao órgão responsável pelo tombamento, até que o
Conselho Estadual determinasse favorável, ou não, ao tombamento definitivo. Todavia,
embora os relatores do processo tenham sido favoráveis à preservação, o Conselho se
opôs.
Destarte, a família acreditava que possuir um imóvel tombado apenas acarretaria
prejuízos: os órgãos preservacionistas aplicam uma série de restrições, como as
previstas pelo Decreto-Lei nº 25 de 1937, e o imóvel perde valor de venda no mercado.
Talvez essa seja a grande dificuldade atual do patrimônio cultural particular brasileiro:
existem poucas ações públicas que incentivem a população a preservar aquilo que, de
alguma forma, possua alguma das representatividades culturais previstas na
Constituição de 1988. No caso Matarazzo, a família, detentora de conhecimentos
jurídicos, não apenas optou pela oposição ao tombamento, como também pretendia
demolir o imóvel, para que ele perdesse seu valor cultural estimado e o ato
administrativo fosse cancelado. O que eles não esperavam era que a Prefeitura de São
Paulo entraria no conflito para tombar e desapropriar o imóvel.
Segundo Jorge Coli (1991)3, até a abertura do processo municipal, houve três
pedidos de tombamento da mansão. O primeiro deles, datado de 1975, partiu da
Sociedade Amigos da Lapa Baixa devido à comemoração aos 100 anos da imigração
italiana no Brasil. Logo, presume-se que a própria comunidade italiana já reconhecia o
casarão como símbolo cultural. Entretanto, o relator do processo fora o professor Carlos
Lemos que, na época, analisou o edifício apenas pelo lado estrutural e, por não se tratar
de obra de um brasileiro, alegou que o mesmo não poderia ser classificado como bem
cultural.
3 Jorge Coli é professor titular em História da Arte e da História da Cultura, no Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Unicamp, formado em História da Arte e Arqueologia, especializado em História
do Cinema e mestre em História da Arte pela Université de Provence Aix Marseille I, França, e doutor em
filosofia pela USP. Durante os anos de 1987 e 1993, foi Conselheiro do CONDEPHAAT.
Em um segundo momento, em 1976, o Conselheiro Aziz Ab’Saber4 propõe uma
nova análise à residência, devido ao incontrolável crescimento dos edifícios de grande
porte na Avenida Paulista, e, para ele, a Mansão Matarazzo, junto com seu parque,
diversificavam a paisagem, referenciavam a família Matarazzo, e ainda levava em
consideração os aspectos da memória cultural. Anos depois, em 1982, acrescentado ao
pedido de 1975, houve a solicitação do estudo das mansões pelo Secretário da Cultura,
gerando o processo pelo CONDEPHAAT anteriormente discutido. Por fim, o terceiro
pedido foi proposto pelo deputado Fábio Feldmann, mas, por razões desconhecidas, não
deram prosseguimento ao ato.
Antes de adentrarmos na discussão sobre os eventos do tombamento municipal,
cabe aqui indagar o porquê do CONDEPHAAT, por voto unânime, resolveu não tombar
o edifício, alegando ausência de valor cultural e, consequentemente, arquivando o
processo de tombamento. É de saber popular que a reciprocidade de interesses entre o
Estado e as famílias detentoras de grande valor monetário, especificamente nas relações
políticas, determinou grande parte das ações públicas que favorecessem as classes
econômicas mais elevadas. Assim, teriam estas relações interferido no parecer do
Conselho estadual, ou, de fato, aquele órgão não reconhecia a edificação como bem
histórico?
Em um dos pareceres técnicos de 1987, chegaram a afirmar que, da Avenida
Paulista, “o que sobra acha-se comprometido profundamente pela perda do sentido de
conjunto” e que “poucos imóveis são merecedores de atenção” (Arquivo CONPRESP,
caixa n. 28, Processo nº. 1989-0.002.581-3). Entretanto, imóveis isolados ainda são
passíveis de proteção especial, assim como aqueles que, independentemente do seu
valor estético, apresentem valor simbólico; afinal, nem todo patrimônio é pautado pelo
seu caráter estilístico.
Analisa-se também que, embora o CONDEPHAAT não apresentasse interesse
em preservar aquele imóvel em questão – os parâmetros que regulamentam as esferas
(municipal, estadual e federal) de tombamento são distintos –, o órgão pecou,
principalmente, ao não punir os proprietários da Mansão após as duas tentativas de 4 Aziz Nacib Ab’Sáber, foi professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da
USP e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) de1993 a1995. Formou-se
em Geografia e História pela USP, onde tornou-se Doutor em Geografia (1956), livre-docente (1968) e
professor titular de Geografia Física (1968).
implosão enquanto o processo estava aberto. As razões que os levaram ao descaso ainda
não são claras. Segundo Coli (1991), a imprensa local denunciava as ações realizadas
pelo poder público, e pareciam estimular os atos criminosos contra a casa. Criou-se um
cenário onde a opinião pública era extremamente favorável à destruição do imóvel.
A grande mídia paulista – e que alcançava dimensão nacional – reforçava a ideia
de que o casarão não era caso de patrimônio histórico. Argumentavam que o edifício era
de autoria fascista, anti-moderno, sem beleza estética, alheio à cultura brasileira e, como
bem defende Martins (2009), as fontes da imprensa são capazes de recuperar as imagens
do passado, os hábitos e as mentalidades de uma determinada época. Com o
arquivamento do processo estadual, as atenções midiáticas voltaram-se à Prefeitura,
especialmente à Luiza Erundina, até então prefeita. Na Folha de São Paulo, por
exemplo, não era incomum encontrar opiniões de leitores que reprovavam as ações da
Prefeita, como se a mesma, filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT) na época, fosse
contra o avanço da modernidade, dando espaço a um museu ao invés de cinemas,
teatros, restaurantes ou escritórios. Percebem-se, também, ataques da imprensa à figura
de Erundina que utilizavam o caso do tombamento para atacar e desmerecer a sua
gestão.
Mas o que levou a população ao imaginário de que o edifício possuía
características fascistas? Seguramente, esse foi um dos argumentos mais debatidos
durante o processo de tombamento, resultando na crédula aversão à mansão e seus
antigos proprietários, e, para compreender suas causas, é preciso investigar a chegada da
família Matarazzo ao Brasil, bem como as alterações que a mansão sofreu desde sua
construção até o período do pedido para sua preservação.
O Conde Francisco e a residência Matarazzo na Avenida Paulista
O primeiro pedido de construção de uma residência no local da Mansão
Matarazzo ocorreu em 1896, efetivado por Francisco Matarazzo, italiano, dono de
indústrias, que havia se instalado em São Paulo em 1890. Todavia, o industrial chegou
ao Brasil como imigrante em 1881, vindo de Vinha de Castebalate – localizada na
província italiana de Salermo – para o município de Sorocaba, interior de São Paulo,
com cerca de setecentos mil réis, e implanta sua primeira fábrica: a Fábrica de Banha de
Sorocaba.
Já na capital paulista, em 1890, Matarazzo expande seus negócios rapidamente.
Com mais dois de seus nove irmãos, José e Luís, funda a ‘Matarazzo e Irmãos’ e, em
março do ano seguinte, sua própria companhia, a ‘Companhia Matarazzo S.A.’
(posteriormente ‘Francisco Matarazzo e Cia’), para a fabricação, refinação e compra e
venda de banha, de toucinho e fumo. Segundos arquivos do CONPRESP, o Conde, em
1906, era um homem de grande influência e poder monetário na cidade de São Paulo, e
já morava na residência da Avenida Paulista. Em 1911, as indústrias Matarazzo
cresceram ao ponto de seu proprietário deter um dos maiores patrimônios do Brasil –
nessa época, sua companhia recebeu a denominação de ‘Indústrias Reunidas F.
Matarazzo’ (IRFM) –, e contava com bens como a Fiação e Tecelagem Mariangela,
uma estamparia de tecidos em construção, o Moinho Matarazzo, um engenho de arroz, a
Fábrica de Banha de Itapetininga, depósitos, armazéns, cocheiras e outros imóveis em
seu nome. Em 1913 e 1914, os números cresceram com a Tecelagem Belenzinho, a
Amideria Belenzinho (que fabricava arroz, milho e mandioca), e uma fecularia.
Já em 1920, no auge da expansão das IRFM, o conde contava com novas
fábricas no bairro de Água Branca, entre elas unidades fabris de:
sabão, velas, estearina, oleína, glicerina e pregos de São Caetano, [...]
refinação de açúcar da Mooca e a Fábrica de Óleo Sol Levante que
funcionava junto à Tecelagem Mariangela. Pouco tempo depois, outras
fábricas foram instaladas, como a de giz, soda cáustica, graxa e estilaria de
álcool. (Arquivo CONPRESP, caixa n. 28, Processo nº. 1989-0.002.581-3)
Entre as fábricas de Água Branca, construiu-se uma ferrovia interna que
permitia, através de vagões, maior facilidade de transportar as mercadorias. Nesse
período, Matarazzo já era o homem mais rico de São Paulo, e sua Mansão era motivo de
respeito junto a população. Em 1926, com Mussolini no poder, na Itália, seu título de
Conde tornou-se hereditário5.
A partir daí, até seu falecimento em 10 de fevereiro de 1937, o Conde possuía
mais de 200 fábricas espalhadas pelo país, além de um banco, uma frota de navios, um
terminal no porto de Santos e duas locomotivas que serviam para transporte de
5 Francisco Matarazzo adquiriu o título de Conde em 1917 quando, junto à sua família (com exceção de
seu filho Ermelino, que tomou conta dos negócios do pai em São Paulo, e falecera anos depois), viajou à
Itália para prestar assistência durante a 1ª Guerra Mundial.
mercadorias. Tornou-se o maior industrial brasileiro, e um dos principais responsáveis
pelo vasto crescimento da indústria brasileira.
Entretanto, embora um homem de grande prestígio, o Conde Matarazzo causava
desconfiança na elite brasileira, especialmente por apoiar – financeiramente e
ideologicamente – o fascismo italiano, liderado por Mussolini. Após sua morte, um de
seus herdeiros – e o responsável pela maior parte das ações do pai –, Francisco
Matarazzo Jr., seguiu a mesma linha ideológica e deu continuidade à maior parte das
IRFM, e alguns imóveis como a Mansão da Avenida Paulista e a Chácara do Tatuapé.
Foi com o Conde Francisco Matarazzo Jr., em 1941, que a última grande
reforma (que determinou as feições finais do edifício) da mansão aconteceu, alterando o
estilo arquitetônico da fachada, tanto no pavimento inferior, quanto no superior. Esta
última obra foi realizada por Marcello Piacentini, o arquiteto de maior influência na
Itália do período fascista. Embora muito se refute tudo aquilo que remeta às práticas
fascistas, “a arquitetura italiana, naquele momento, é fascinante e única” (COLI, 1991,
p. 88). Entretanto, a arquitetura de Piacentini não fugiu às comparações ao regime
totalitário, e, anos mais tarde, quando as primeiras discussões sobre o tombamento da
mansão surgiram, as alegações eram de que ela nada contribuía para a cultura brasileira.
Outro ponto levantado por aqueles que iam contra Piacentini, era a de que o mesmo
fosse anti-moderno. São Paulo, na década de 1940, já tinha como premissa a
modernidade; e queriam que isso fosse representado pela arquitetura. Já o arquiteto
italiano, por sua vez, possuía estreitas relações com a arquitetura tradicional de seu país
de origem e, na própria Itália, era rejeitado pelos modernistas (não pelo caráter
ideológico, mas sim pelo arquitetônico).
Os aspectos físicos da mansão permaneceram os mesmos até sua demolição
completa, em 1996, sofrendo apenas manutenções estruturais. O Conde Francisco
Matarazzo Jr., ao falecer em 27 de março de 1977, já havia expandido ainda mais as
IRFM, e deixou, como sua sucessora, a primogênita Maria Pia Esmeralda. Em seu
testamento, o Conde escreveu:
Minha intenção, que também foi de meu pai, de concentrar nas mãos de um
só de meus descendentes o controle das empresas do Grupo Matarazzo [...]
deverá ser compreendida pelos outros não como uma forma de presentar a
quem receberá maior quantidade de ações e cotas, mas como um pesado
encargo que lhe passo, pela enorme responsabilidade que arcará frente às
gerações passadas, presentes e futuras da família e também perante a Nação,
de dar continuidade a esta imensa obra de nossa família. (Arquivo
CONPRESP, caixa n. 28, Processo nº. 1989-0.002.581-3)
Portanto, coube também à Maria Pia a responsabilidade pela Mansão Matarazzo,
e foi ela, aliada a alguns familiares, quem fez forte oposição ao tombamento do imóvel.
Figura 1: Mansão Matarazzo, 1990.
Fonte: Mônica Zerattini/Estadão.6
Além do espaço construído, o terreno da propriedade ainda contava com uma
extensa área verde, que também foi pautada tanto no tombamento municipal, quanto no
estadual. Em 1990, o jardim da Mansão Matarazzo era destaque na Avenida Paulista, e
contrastava com os elevados edifícios que marcaram a ambiência do local como o
conhecemos hoje. Ele era uma representatividade histórica, ambiental e, de modo geral,
cultural da avenida; um dos poucos terrenos que persistia ao acelerado crescimento
verticalizado da paisagem.
O tombamento municipal e seus desdobramentos
Com a anulação da proteção estadual, restou ao município buscar a preservação
do bem. Para justificar o tombamento, iniciado em 1989, o CONPRESP levantou três
6 Disponível em: http://acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,era-uma-vez-em-sp-mansao-dos-
matarazzo,11299,0.htm;. Acesso em mai. 2017.
pontos que fundamentavam o pedido. Em primeiro lugar, argumentavam a importância
assumida pela família Matarazzo, em especial ao Conde Francisco e seu filho, Conde
Francisco Jr, sendo, o primeiro, “o mais profundamente ligado ao progresso da indústria
brasileira”. O segundo ponto centrava-se na relevância ambiental, que apresentava,
segundo os técnicos, indubitável valor referencial, sendo marco da paisagem urbana do
período. E, por fim, embora reconhecessem como uma discussão polêmica, as
qualidades arquitetônicas do edifício.
Independente dos aspectos físicos da edificação – ou a qual estilo arquitetônico a
Mansão se enquadrava –, o CONPRESP, pelo menos na teoria, almejava a salvaguarda
de um imóvel que permitisse, além de recuperar a mentalidade e os hábitos da elite
brasileira através do valor material do bem, resgatar, a caráter simbólico, o elo entre as
classes dominantes e os trabalhadores. Por outro lado, as intenções por trás do
tombamento eram, enquanto idealizadas, positivas. A então prefeita, Luiza Erundina,
pretendia construir no local a Casa da Cultura do Trabalhador e o Museu do Trabalhado,
que, segundo o projeto, solidificaria as memórias e vivências dos inúmeros
trabalhadores que contribuíram para o enorme impacto das IRFM. Tem-se, portanto,
através de um bem da classe dominante, a escolha em preservar aquilo que remetesse à
classe trabalhadora paulista.
As intenções para a construção do Museu e da Casa da Cultura foram expostas
através do Decreto nº 27.727, de 11 de abril de 1989:
Art. 19: Fica declarado de utilidade pública, para ser desapropriado
judicialmente ou adquirido mediante acordo, o imóvel de propriedade
particular, com cerca de 4.436,00 m² de área construída, situado nº 179
subdistrito – Bela Vista, necessário a implantação da Casa da Cultura do
Trabalhador e Museu do Trabalho, contido na área de 11.916,42 m²,
delimitada pelo perímetro 21-27-28-24-25-26-21, na planta anexa nº p-
17.727-C3, do arquivo do Departamento de Desapropriações, a qual,
rubricada pela Prefeita, fica fazendo parte integrante deste decreto.
Não obstante, a família, ao entrar com a impugnação ao processo, apresentou
alegações insuficientes que justificassem a anulação do tombamento. Alegaram que,
pelo CONDEPHAAT ter cancelado o tombamento, não caberia ao município querer
preservá-lo, pois a decisão estadual “prevaleceria” sob a municipal. Tal afirmação é, no
mínimo, inepta, pois não existe uma hierarquia entre as esferas protecionistas – cada
órgão possui seus próprios critérios –, e cada bem cultural possui seu grau de
relevância, seja ele municipal, estadual ou federal.
Destarte, não nos cabe aqui debater com profundidade o parecer final do órgão
estadual (embora o mesmo seja passível de revisões), mas sim indagar as afirmações por
parte dos herdeiros do imóvel. A inércia do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional), por exemplo, também poderia ser debatida, mas entende-se que,
naquele momento, o órgão federal possuía outras prioridades do que seriam
merecedores de atenção. A mansão, localizada em uma das avenidas mais influentes do
país, possuía, sobretudo, interesse municipal, por estar inserida no contexto da cidade
que marcou seu crescimento urbano.
Outro ponto levantado pela família foi que, como o primeiro parque industrial
das IRFM, em Água Branca, já estava protegido pelo CONDEPHAAT, não se faria
necessário preservar outro bem que remetesse ao Conde Francisco Matarazzo. Disseram
que a mansão não teria nenhum significado cultural para a cidade, bem como sua área
verde, e ainda exigiram indenização por parte do poder público por desapropriar o
imóvel. Também é levantado o valor da Mansão no mercado, e que o CONPRESP
deveria ter em mente a responsabilidade que teria um eventual tombamento definitivo,
pois acarretaria negativamente a economia do Município.
Mas se a mansão não fazia parte da cultura brasileira, como poderíamos definir
nossa cultura? Como bem determina a Constituição de 1988, o patrimônio cultural
também é representado pelos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Não
estariam os italianos imigrantes, que, quer queira ou não, contribuíram para nossa
história, inseridos neste grupo de formadores? Inegavelmente, a cultura brasileira é um
conjunto de tantas outras que se materializaram. Como bem afirma Coli (1991), a
ideologia nacionalista brasileira pautada nas três raças é incabível à nossa cultura (o
imigrante seria, pela lógica equivocada, o “outro” que corrompeu nossas origens), pois
nossas raízes não são pautadas apenas em três raças, mas sim em complexos e distintos
grupos que contribuíram para nosso multiculturalismo.
Felizmente, alguns – poucos – grupos se mostraram favoráveis ao tombamento,
com destaque ao SASP (Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo), que
reconheceu a mansão como um patrimônio que iria além do atributo arquitetônico, pois
também englobaria valor histórico, simbólico, referencial, ambiental e efetivo, e
alertaram que o tombamento é um instrumento de preservação que propicia a
permanência de um bem cultural perante a dinâmica urbana, gerando melhorias na
qualidade de vida dos cidadãos.
Deste modo, em 16 de março de 1990, o Conselho Municipal de Preservação do
Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo, por unanimidade
dos votos, decidiu tombar o edifício, através da resolução nº 01/90 – CONPRESP.
Dentre as instituições representantes do Conselho, merecem destaque o Instituto dos
Arquitetos do Brasil e a Ordem dos Advogados que, naquele momento, deram maior
apoio à resolução. Meses depois, em 03 de setembro, a prefeita Luiza Erundina
homologa a decisão do Conselho, efetivando, assim, a proteção legal do bem.
Figura 2: Resolução nº 01/90 – CONPRESP. Folha de São Paulo, em 18 de março de 1990.
Fonte: Acervo digital/Folha de São Paulo7.
Todavia, a decisão do CONPRESP não perdurou por muito tempo. Em 1994, a
família entrou com julgamento judicial e conseguiu reverter o tombamento e a
desapropriação do imóvel. A decisão foi registrada no 4º Oficial de Registro de Imóveis
de São Paulo, no Livro 2 do Registro Geral, sob número de matrícula 176.160.
Claramente, a deliberação judicial não levou em consideração a importância cultural da
7 Disponível em: http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1990/03/18/340. Acesso em mai.2017.
edificação e sua área ambiental, e apenas seguiu o consenso articulado pelos veículos de
informações, ignorando os aspectos técnicos e os estudos que envolviam e justificavam
a proteção da Mansão Matarazzo.
Figura 3: Processo de demolição da mansão dos Matarazzo, 1996.
Fonte: Edu Garcia/Estadão.8
Dois anos depois, em 1996 (após o fervor dos acontecimentos baixar), a família
ordenou a demolição da propriedade. E, mesmo tendo o tombamento anulado em 1994,
foi somente em 2010 que o CONPRESP reconheceu a decisão e excluiu os registros
referentes ao tombamento naquele órgão, pois, além do julgamento judicial, alegaram
que o imóvel já não existia, tampouco registros iconográficos suficientemente
detalhados que permitissem sua ‘reconstrução’. Entre 1996 e 2010 o terreno serviu
como estacionamento, e foi vendido para Cyrela Commercial Properties (CCP) que, em
abril de 2015, inaugurou o Shopping Cidade São Paulo.
Considerações finais
8 Disponível em: http://acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,era-uma-vez-em-sp-mansao-dos-
matarazzo,11299,0.htm. Acesso em jun.2017.
Durante o período em que o terreno funcionou como estacionamento, restavam
ainda a fachada, parte do jardim, um banco e a sauna (que permaneceu abandonada até
sua demolição completa, em maio de 2011), que se deterioraram com o tempo devido à
falta de manutenção. Embora o poder público não tenha se manifestado em preservar o
que restou da mansão, podemos nos indagar se o que permaneceu até 2011 seria sujeito
de atenção dos órgãos preservacionistas. De modo geral, os eventos gradativos de 1996
até 2011 passaram inertes aos olhos da sociedade paulista, e a discussão somente foi
retomada com a construção do Shopping, em 2015.
Logo, este patrimônio cultural – assim como tantos outros – ficou à mercê de
interesses pessoais de famílias com alta influência social, relações políticas e valor
monetário. Utilizaram o contexto político da ascensão de Erundina à prefeitura para
obter apoio da elite e da imprensa, que era contrária à figura da petista e,
consequentemente, ao tombamento do imóvel.
O caso da Mansão Matarazzo transcende questões arquitetônicas, políticas ou
imobiliárias. Trata-se da destruição, da perda de um pedaço materializado da história
paulista e brasileira, em prol de mais uma construção em um dos locais centrais para a
história da cidade de São Paulo que, hoje, tão pouco preserva a memória de suas
origens. Para a memória da região onde a mansão estava inserida, resta a preservação
dos poucos casarões remanescentes na Avenida Paulista, entre eles a conhecida Casa
das Rosas, nº 37, tombada a nível municipal, e a antiga residência de Joaquim Franco de
Mello, nº 1.919, protegida pelo município e pelo Estado de São Paulo.
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