A DemocrAciA sob AtAquea política e os políticos, e a aceitar e até defender líderes populis-tas...

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A DEMOCRACIA SOB ATAQUE FUNDAÇÃO ASTROJILDO PEREIRA JOÃO SALDANHA CENTENÁRIO

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A DemocrAciA sob AtAque

FUNDAÇÃO ASTROJILDO PEREIRA

JOÃOSALDANHA

CENTENÁRIO

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Ailton BeneditoAlberto Passos G. FilhoAmilcar BaiardiAna Amélia de MeloAntonio Carlos MáximoAntonio José BarbosaArlindo Fernandes de OliveiraArthur José PoernerAspásia CamargoAugusto de FrancoBernardo RicuperoCelso FredericoCésar BenjaminCícero Péricles de CarvalhoCleia SchiavoDélio MendesDimas MacedoDiogo Tourino de SousaEdgar Leite Ferreira NetoFabrício MacielFernando de la Cuadra

Fernando PerlattoFlávio KotheFrancisco Fausto Mato GrossoGilvan Cavalcanti de MeloHamilton GarciaJosé Antonio SegattoJosé Carlos CapinamJosé Cláudio BarriguelliJosé Monserrat FilhoLucília GarcezLuiz Carlos AzedoLuiz Eduardo SoaresLuiz Gonzaga BeluzzoLuiz Werneck ViannaMarco Aurélio NogueiraMarco MondainiMaria Alice RezendeMartin Cézar FeijóMércio Pereira GomesMichel zaidanMilton Lahuerta

Oscar D’Alva e Souza FilhoOthon JambeiroPaulo Alves de LimaPaulo BonavidesPaulo César NascimentoPaulo Fábio Dantas NetoPierre LucenaRicardo Cravo AlbinRicardo MaranhãoRubem Barboza FilhoRudá RicciSérgio Augusto de MoraesSérgio BessermanSinclair Mallet-Guy GuerraSocorro FerrazTelma LoboUlrich HoffmannWashington Bonfi mWillame JansenWilliam (Billy) Mellozander Navarro

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Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF : Fundação Astrojildo Pereira, 2017.ISSN 1518-7446 No 47

200p. il.

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Política DemocráticaRevista de Política e CulturaFundação Astrojildo Pereira

Março/2017

A DemocrAciA sob AtAque

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Sobre a capa

Cristina Carvalheira é a artista plástica, gravadora e escul-tora, que nos dá o prazer de ilustrar a capa e contracapa desta edição. Nascida em Recife/PE, onde cursou a Escola

de Belas Artes, de 1971 a 1975 frequentou a École Practique des Hautes Études, de Paris, e, mais tarde, trabalhou nos ateliês de Claude Breton e Françoise Bricault; de 1975 a 1979, foi para Moçambique. O contato com as culturas francesa e africana trouxeram rica influência à sua atividade artística. Retornando ao Brasil, foi morar em Brasília, onde se formou, em 1989, como arte-educadora pela UnB, e aqui hoje vive e trabalha, desenha, pinta, faz escultura e gravura. Destaque-se que ela teve como mestre o pintor, escultor e gravador Milan Dusek. Em 1999, fez estágio no Atelier Alma, em Lyon (França).

Muito irrequieta e ativa, ela participou do Clube de Gravura de Brasília, coordenado por Leda Watson, nos anos 1990; trabalhou em Olinda, São Paulo, Paris e Maputo (Moçambique), como profes-sora de arte, desenhista e animadora cultural, além da ilustração de livros; participou de diversas exposições individuais e coletivas no Brasil (Brasília, São Paulo, Curitiba, Rio de Janeiro, Belém e Recife, dentre outros) e no exterior (Paris, Montpelier, Lyon e Sarcelles – França; Rosário e Engre Rios – Argentina; Vancouver e Ottawa – Canadá; e na Cidade do México). Ressalte-se que a participação dela, desde 1991, quase que ininterruptamente, na exposição itinerante organizada anualmente pelo Mini Print Cadagués, de Barcelona (Espanha), resultou numa coleção de mais de 40 gravuras em pequeno formato.

Em suas gravuras, o homem e a natureza são representados em simbiose e interdependência permanentes. Se esta comunhão com a natureza é seu tema, a escolha da gravura, técnica tão antiga, é um desafio que lhe atrai.

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Sumário

EDITORIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

I. TEmA DE CApA: A DEmOCRACIA SOB ATAQUEA retomada das atividades reflexivas Luiz Werneck Vianna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

Esgotamento de ideias e práticasCristovam Buarque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14

Dilemas e desafios da política democráticaMarco Aurélio Nogueira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18

II. COnjUnTURAO Brasil precisa da Lava-jatoArnaldo Jordy . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

O nó da previdência SocialSérgio C . Buarque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44

Alternativa aos extremosFernando Luiz Abrucio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

III. OBSERvATóRIOA política brasileira segundo Caio prado jr.Raimundo Santos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59

Itália – a esquerda que se divide e a democraciaWalter Veltroni . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66

Reflexões sobre Reforma PolíticaDimas Macedo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72

Iv. QUESTõES DA CIDADAnIA E DO ESTADOpor práticas militantes mais audaciosasTereza Vitale . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

Dialogando com a juventudeDenise Paiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89

Um silêncio que gritaAna Maria Machado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95

v. ECOnOmIA & DESEnvOLvImEnTOA dimensão do desastre e algum respiroMiriam Leitão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101

Tecnologia para diminuir diferençasArnaldo Jardim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106

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Reflexões sobre a Previdência, o Desenvolvimento e o Bem-Estar SocialCláudio de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113

vI. BATALhA DAS IDEIASA utopia e os direitosGilvan Cavalcanti de Melo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121

Qual o futuro (próximo) da esquerda agrária?Zander Navarro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126

O Calvinismo e o mundo modernoStephanie Becker . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135

vII. mUnDOUma reação datada Sérgio Besserman Vianna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141

De pacífico já tem bem poucoSilvio Queiroz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143

A Revolução Global e as experiências comunistas no Brasil e no Chile Victor Augusto Ramos Missiato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146

vIII. CULTURA & LITERATURACultura, modernidade e democraciaAlberto Aggio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157

Cinquentenário do encantamento de Guimarães RosaJosé Eduardo Gomes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160

Ix. hOmEnAGEm & mEmóRIA20 anos sem Darcy: a falta que ele faz ao BrasilMércio Gomes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165

Lembrando Tarcísio LeitãoOscar d´Alva e Souza Filho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169

x. EnSAIOO estigma da estrutura jurídica privilegiante do Brasil-colôniaGastão Rúbio de Sá Weyne . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175

xI. RESEnhAO sujeito cosmopolita de Gramsci, segundo VaccaMarcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185

Desbunde como resistência contraculturaMartin Cezar Feijó . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 190

Karl Marx ou o Espírito do MundoEduardo Rocha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193

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Editorial

Não há semana em que não sejamos pegos de surpresa por novas denúncias e/ou ações da Polícia Federal, do Minis-tério Público ou da Justiça, em qualquer das suas instân-

cias, no seu inusitado combate a um modo moderno de açambar-car recursos públicos, em benefício de grupos ou de indivíduos. Um sistema de corrupção envolvendo a “coisa pública”, dominante há séculos, por parte de políticos, corporações do funcionalismo estatal e empresários, ganhou novos contornos negativos nos últimos 15 anos, e continua na sua tentativa de sobreviver a qualquer preço.

É natural que a maioria dos brasileiros tenha dificuldade para entender e aceitar que estas ações sistemáticas de corrupção cons-tituem sobretudo crescentes ataques à democracia que, há um pouco mais de trinta anos, tentamos fazer novamente funcionar. E há necessidade de se enfrentar esta batalha, de uma ponta a outra do país, de cima a baixo, a fim de evitar o completo apodrecimento das instituições brasileiras. Tudo o que vem acontecendo, na última década e meia, envergonha o nosso povo, como também os políticos de bem que, felizmente, ainda existem, embora sejam poucos.

A delicada e complexa situação em que o Brasil vive, mergu-lhado também em uma crise econômica, social e política, oriunda sobretudo deste descalabro de corrupção, acompanhada de patri-monialismo partidário e assistencialismo, é o centro de grande parte dos artigos que publicamos nesta edição. Há análises, as mais variadas, sobre este difícil momento atualmente vivido pelo país e todas elas buscam nos colocar diante desta triste realidade, que precisa ser radicalmente substituída por uma outra.

Todos os nossos colaboradores, preocupados em identificarem as raízes dos nossos problemas, põem o pé no chão, no que credi-tamos como atitudes corretas, quando se trata de possíveis enca-minhamentos de saídas imediatas deles. Sabem que não haverá solução rápida e profunda, mas que o Brasil que se deseja e pelo qual se luta não se alcançará sem que haja um conjunto de refor-mas de base, pelas quais os cidadãos e cidadãs deste país vivem alertando e exigindo, há mais de meio século.

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É claro que brasileiros e brasileiras aguardam maior rapidez e a consumação não apenas da Operação Lava-Jato, que envolve algumas das maiores figuras da República, nos últimos 40 anos, como ex-presidentes, ex-ministros ou atuais ministros do Poder Executivo, presidentes ou ex-presidentes das Câmaras Alta e Baixa, assim como senadores ou ex-senadores, deputados federais, numa lista que ultrapassa uma centena, 13 governadores e ex-governado-res, e dirigentes de empresas estatais, como a Petrobras (hoje profundamente afetada), e grandes empresários e seus asseclas.

Mesmo sabendo que a realidade econômica e financeira, embora lentamente, já começa a dar passos pequenos mas conse-quentes rumo à estabilidade e a um crescimento que poderá nos conduzir a novos rumos para o país, grande parte dos nossos cidadãos, ao tempo em que rejeitam e não admitem mais projetos de lei ou emendas constitucionais de pura enganação sobre a forma como se faz política entre nós, estão se inclinando a rejeitar a política e os políticos, e a aceitar e até defender líderes populis-tas como o capitão Jair Bolsonaro.

Nesse terreno movediço, há, porém, uma boa parte de pessoas que acreditam e defendem que não há outro caminho para a solução dos problemas do Brasil, como de qualquer país, que não seja o da política. E, por conta desta sua correta visão, são favoráveis a que se implante, por exemplo, o sistema de voto distrital misto e outras formas de se escolher melhor nossos representantes. Da mesma linha, exigem que se proponha e se materialize, antes e acima de tudo, uma verdadeira reforma polí-tica, pondo fim ao presidencialismo de coalizão, que nada mais é que um “presidencialismo de cooptação” e se estabeleça o parlamentarismo, regime mais moderno e mais identificado com a realidade contemporânea.

Imprescindível também para eles que se faça uma reforma democrática do Estado brasileiro, uma das máquinas mais caras existentes no planeta Terra, não apenas reduzindo o número de Ministérios e de Secretarias, Agências etc., mas também a absurda quantidade de seus funcionários, com seus supersalá-rios. E, do mesmo modo, uma reforma tributária, que ponha fim às atuais desigualdades, em que os que menos têm e menos ganham são os que, proporcionalmente, mais pagam impostos. E outras reformas mais.

Deleitemo-nos com o rico material que contém esta edição.Boa leitura!

Os Editores

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I. Tema de capa

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Autores

Cristovam BuarqueSenador (PPS-DF), ex-ministro da Educação, ex-governador do DF e ex-reitor da UnB

Luiz Werneck ViannaSociólogo, é professor da PUC-Rio

Marco Aurélio NogueiraProfessor de Teoria Política e coordenador científico do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais-NEAI, da Unesp

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A retomada das atividades reflexivas

Luiz Werneck Vianna

Nessa loucura que nos assola deve haver um método. Mas qual? Se observadas as coisas pela sua superfície, há quem procure remédio para nossos males atuais na

remoção imediata do governo Temer, que estaria identificado com ações que visariam a criar obstáculos ao andamento da chamada Operação Lava-Jato, em sua intervenção saneadora sobre nosso sistema político. Removê-lo dependeria de uma decisão congres-sual ou de um ato de força, mas como essas alternativas estão bloqueadas tanto pela larga coalizão parlamentar que o sustenta como pela recusa das Forças Armadas a admitir caminhos de aventura, parece aos interessados na empreitada que não lhes resta outra via que não a de um levante das ruas.

De modo explícito ou em surdina, o argumento ecoa nos meios de comunicação, e não só nas redes sociais, em artigos que não hesitam em cogitar de um colapso iminente de nossas institui-ções. Importa pouco se em meio a essas fabulações os blocos carnavalescos, até na outrora mais recolhida São Paulo, tenham comemorado as festas de Momo como se não houvesse amanhã. Se a saída não se encontra na política nem nas armas, é deixar o carnaval passar que ela viria pela convulsão social, em embrião nas revoltas do sistema penitenciário e nos motins da Polícia Mili-tar do Espírito Santo.

A convulsão social teria o condão de fazer o que seria inaces-sível à Lava-Jato: zerar a vida institucional – a Carta de 88 incluída – e, bem mais que isso, zerar nossa História e dar a ela

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um novo começo, com qual programa se veria mais à frente. Para alguns, nestes tempos de Trump, bem poderia ser o da direita, que está aí à espreita e criando musculatura.

O inconformismo com o impeachment era esperado, afinal a presidente Dilma Rousseff fora eleita pelo PT, partido com fortes vínculos com o sindicalismo e movimentos sociais, além de encon-trar apoio em círculos significativos da vida cultural. Mas como ele se tem alimentado apenas do espírito de vendeta e do ressen-timento, sua marca tem sido a da esterilidade política.

A lenda urbana do golpe, em que pese o processo do impeach-ment ter transitado sob jurisdição do Supremo Tribunal Federal, mais do que enervar a vida política e social do país, vem servindo como um álibi perfeito para que não se reflita sobre as circuns-tâncias que levaram ao amargo desenlace do governo Dilma e se mantenha a política na expectativa de soluções salvacionistas, mesmo as que ameacem abrir as portas do inferno.

Os idos do regime militar têm lições que merecem ser lembra-das, talvez principalmente pela militância petista e seu amplo círculo de simpatizantes entre os intelectuais. Nos primeiros tempos daquele regime, esquerda e setores democráticos se fixa-ram no diagnóstico equívoco de que sua derrota se explicaria por uma conspiração do imperialismo em conluio com setores inter-nos a fim de barrar o processo de desenvolvimento do país. Na compreensão da época, o desenvolvimento estaria animado por uma lógica interna tendente a nos levar a um governo nacional-popular sob hegemonia da esquerda.

O trancamento desse processo pela via da violência política foi então interpretado por uma parcela da esquerda como se não lhe restasse outra solução senão a da luta armada, desertando do campo da política. Esse caminho se sustentou numa narrativa escorada numa teoria, a do foco, inspirada no modelo cubano e nos escritos de Régis Debray. A recusa a esse caminho exigia a desconstrução do que suportava essa alternativa, que, longe de abalar o regime ditatorial, o reforçava.

Em 1971, dois economistas brasileiros, Maria da Conceição Tavares e José Serra, produzem no Chile, onde viviam – ela como pesquisadora de um instituto internacional, ele como exilado polí-tico –, um pequeno texto seminal, Além da estagnação – uma discussão sobre o desenvolvimento recente do Brasil, de intensa repercussão na época. Nesse texto, seus autores argumentavam que a economia brasileira sob o regime militar, ao contrário de

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1313A retomada das atividades reflexivas

estagnar, crescia a olhos vistos, ampliando a sua sustentação social. O ensaio de Conceição e Serra, recusando o determinismo esquerdista, sinalizava para uma direção oposta da que ele preco-nizava – a resistência ao regime militar encontraria seu melhor terreno no campo da política. Como se sabe, essa inflexão está na raiz das lutas que nos devolveram à democracia.

Hoje, o imobilismo imperante na reflexão sobre a política entre os quadros dirigentes do PT, boa parte deles prisioneiros do slogan vazio do “fora Temer”, começa a ser contestado, tal como na impor-tante entrevista do senador petista Humberto Costa publicada nas páginas amarelas da revista Veja (edição de 22/2). Diz ele: “O PT foi fragorosamente derrotado. O resultado das eleições obriga a gente a virar essa página. A população não quer isso que está aí, mas também não queria o que estava lá com a Dilma”. E vai fundo ao negar que estaríamos sob a vigência de um estado de exceção, visando, ao que parece, a devolver a seu partido liber-dade de movimentos na arena política a fim de tentar recuperar a influência perdida.

A reanimação do campo reflexivo entre os intelectuais e políti-cos é também animadora na comunidade dos economistas, envol-vida na controvérsia suscitada por um dos seus notáveis, André Lara Resende, sobre as complexas relações entre políticas fiscais e inflação, em que um dos temas de fundo versa sobre o papel maior ou menor do Estado na economia, uma questão ainda em aberto não apenas entre os especialistas. Mas, tudo contado, ainda é lento o movimento reflexivo, tal como na economia a reto-mada de um ciclo expansivo. Enquanto esses movimentos não ganham maior vigor, o que importa é manter os antagonismos em equilíbrio, tema maior de Ricardo Benzaquen de Araújo, notável intérprete da obra de Gilberto Freire, que há pouco, infelizmente, nos deixou.

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Esgotamento de ideias e práticas

Cristovam Buarque

O noticiário e a imaginação popular, há meses, observam e debatem o impeachment da presidente da República, sem perceber que, de fato, está acontecendo um impeachment

de todo o modelo social, econômico, político e cultural que, há décadas, está sendo incapaz de oferecer a coesão social e o rumo histórico que o Brasil precisa para se fazer uma nação contempo-rânea com as aspirações de eficiência, justiça, sustentabilidade, liberdade, dentro das características do século XXI. As socieda-des democráticas e modernas se organizam visando o avanço com tais objetivos, mas nem sempre suas elites dirigentes conseguem oferecer este rumo.

De tempos em tempos, as elites dirigentes brasileiras se negam ou não conseguem enfrentar este desafio e sofrem impedimentos como aconteceu com o Império, em 1889; com a República Velha, em 1930; o Estado Novo, em 1945; o Golpe sobre a Democracia, em 1964; a Redemocratização, em 1985, e agora o Impeachment, em 2016. Em cada momento, um modelo se esgotou por incompe-tência, reacionarismo, descrédito, levando o país a esbarrar no seu projeto histórico.

Agora, as lideranças políticas brasileiras das últimas décadas se mostraram conservadoras, não foram capazes de entender o esgotamento do modelo: na economia, não perceberam que, mais uma vez, perdemos sintonia com as mudanças tecnológicas; na sociedade, continuamos apenas na estratégia da assistência; nas finanças públicas, voltamos ao tempo da irresponsabilidade fiscal; e, na política, construímos uma democracia monstruosa, com dezenas de partidos e sem partidos; tolerante com a corrupção, submetida às pressões corporativas e sem entender as novas ferramentas da mídia social que permitem à população prescindir de líderes e agir nas ruas e sobre os parlamentares.

Não perceberam a dimensão da crise e, por apego ao modelo esgotado, ficaram reacionários, não souberam intelectualmente e não quiseram politicamente fazer as reformas estruturais que o Brasil precisa para atender as aspirações de nosso povo e do futuro da Nação.

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1515Esgotamento de ideias e práticas

Ao longo dos últimos 32 anos, aqueles que lutaram para supe-rar o esgotamento da ditadura conduzida pelos militares, não foram capazes de fazer as reformas necessárias para assegurar coesão e rumo ao Brasil. O governo Collor fez algumas mudanças necessárias para nos adaptar aos tempos da globalização, redu-zindo o modelo protecionista; o governo Fernando Henrique quebrou o vício inflacionário e criou a Bolsa Escola, depois Famí-lia; os governos Lula e Dilma ampliaram os programas de assis-tência social. Cada um deles fez pequenos gestos como o Fundef, Fundeb, Prouni etc., mas o PT/PSDB/PMDB se comportaram como os abolicionistas: aboliram a escravidão, mas não distribuí-ram terras aos escravos, nem escolarizaram os filhos deles.

Fizemos a democracia, mas pouco mudamos na sociedade e nada na estrutura social. O PSDB assumiu porque os governos conservadores não fizeram reformas; mas o PSDB também não fez as reformas; o PT venceu pelo esgotamento do PSDB, mas se comportou como um partido igualmente conservador, sem vigor transformador, sem papel reformista, ainda menos revolucioná-rio. E se acomodou tanto no seu conservadorismo que comemora como grandes feitos a ampliação de positivos programas assisten-ciais, generosos e necessários como se fossem o coroamento de seu papel político para superar o esgotamento.

Embora tenha reduzido problemas, não fez as transformações necessárias para superar o esgotamento por meio de uma revolu-ção que traga a coesão e o rumo que a Nação brasileira precisa para seu futuro. Na verdade, ampliou as manifestações de esgota-mento, sobretudo na política. Os dois governos do PT transforma-ram em prática corrente o aparelhamento do Estado, a compra de parlamentares, o financiamento nababesco de campanhas, a desmoralização dos partidos e, sobretudo, a política do corporati-vismo como exercício da prática democrática.

O Brasil chega esgotado a este momento histórico. Nas finan-ças, esgotou-se a velha tradição de financiar gasto público para atender todos os interesses, sem levar em conta os limites de recursos; na política, esgotou-se a democracia voltada para aten-der os interesses das corporações isoladas, sem interesse nacio-nal comum, e tratando o rumo histórico dividido entre cada elei-ção, sem perspectiva do longo prazo; esgotou-se o projeto de desenvolvimento baseado na busca de aumentar a produção industrial tradicional graças a subsídios públicos e empréstimos subsidiados visando aumentar o consumo – o tamanho da dívida e dos juros são provas deste esgotamento –; sem tomar medidas

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1616 Cristovam Buarque

necessárias para incluir o Brasil na moderna economia de servi-ços de bens de alta tecnologia; esgotou-se a possibilidade de aumentar o Estado para atender a voracidade dos partidos por empregos, como também o nível de mordomias e privilégios e o custo da campanha; sobretudo esgotou-se o modelo de desprezo à educação de base para as grandes massas. Este é o centro e a causa principal de todas as manifestações de esgotamento.

O impeachment é o resultado das sucessões de esgotamentos que caracterizam a história do Brasil, sem que os governos seguintes tomassem as medidas necessárias para levar o Brasil adiante, de forma sustentada. O sistema escravocrata se esgotou, por ficar ineficiente economicamente e indigno moralmente, mas não fizemos a Abolição completa; o Império se esgotou, mas não completamos a República, os regimes autoritários se esgotaram, implantamos democracias conservadoras e elegemos governos de esquerda, mas não fizemos as reformas e transformações neces-sárias para oxigenar a economia, a sociedade, a política e a cultura que o Brasil precisa para seu futuro.

O impeachment de 2016 foi o esgotamento das forças que se consideram de esquerda e que, pelo esgotamento da direita, conse-guiram chegar ao governo em 1994 e 1998, e em 2002, 2006, 2010 e 2014, mas não fizeram as transformações das estruturas sociais e econômicas do país. Trouxeram apenas mais sensibilidade social para dar continuidade e ampliar benefícios sociais e assistenciais mais generosos, mas concebidos ou criados anteriormente. Foram governos que fizeram leis que se assemelham à “Lei dos Sexagená-rios” e “Lei do Ventre Livre”, sem promover a Abolição. Nada revolu-cionário, apenas mais generosos assistencialmente e menos responsáveis fiscalmente, a ponto de provocar o esgotamento fiscal, com dívida, inflação, recessão, desemprego.

Uma prova desta exaustão é o crescimento dos mais radicais nomes da direita: o saudosismo do regime militar que se espalha na opinião pública atual como nefasta alternativa ao esgotamento, repetindo os erros traumáticos de 1964, não mais como tragédia, mas como farsa.

A longa luta para superar a exaustão da marcha do Brasil para se transformar em uma nação justa, eficiente, soberana, com lide-rança dentro da realidade do século XXI, exige uma revolução social e econômica que passa por aproveitar cada cérebro brasi-leiro, assegurando que o filho do mais pobre trabalhador terá escola igual ao filho do mais rico brasileiro. O caminho seguido nos

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1717Esgotamento de ideias e práticas

últimos anos não teve esta intenção, nem propósito, foram gover-nos conservadores, feitos por siglas fantasiadas de esquerda, que se mantêm nostálgica e melancolicamente reacionárias, ao ficar olhando para o passado com ideias do passado, sem olhar para o futuro com ideias do futuro, negando o esgotamento do modelo e o próprio esgotamento em suas ideias e práticas.

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Dilemas e desafios da política democrática

Marco Aurélio Nogueira

O momento político é complicado, de transição, pilotado por um governo repleto de ambiguidades e contradições, sobre o qual pesa uma crise profunda, a impopularidade e a

descrença social. Ao menos por isso, chega a surpreender a difi-culdade que o campo democrático – com seus políticos, seus inte-lectuais, seus partidos e suas organizações, que vão do liberalismo avançado às correntes socialdemocráticas mais ou menos radicais –, tem tido de melhorar seu desempenho e promover uma ação minimamente unitária destinada a pavimentar a reorganização da vida política, da governabilidade e das políticas públicas no Brasil.

O fenômeno não começou hoje e não é exclusividade nacional. Para onde quer que olhemos iremos nos deparar com um quadro semelhante. Democratas em guerra entre si, esquerdas se divi-dindo e se redividindo sem cessar, todos entregues à gestão da política miúda, cotidiana, e em constrangedor silêncio proposi-tivo, assistindo de modo quase passivo à invasão da política pelo mercado e pela lógica do “espetáculo”. Abandonam-se princípios e valores fundamentais, deixam-se de lado programas de formação política e de preparação de lideranças, menosprezam-se partidos e organizações. No horizonte, despontam a perda de qualidade da democracia, a consolidação do que tem sido chamado de “pós-democracia” e o encolhimento político e eleitoral das esquerdas, com a consequente redução das chances de formação de governos democráticos representativos, reformadores e eficazes.

O móvel deste universo tem sido a luta intestina, a resistência e a recusa, mais que a busca de hegemonia ou a contestação crítica e prática do capitalismo.

Pode-se tentar explicar o fenômeno valendo-se da subjetivação e apontando o dedo acusador para atores localizados, partidos e dirigentes políticos, responsáveis maiores pelo que haveria de “traição” e fracasso. O melhor caminho, porém, é enfatizar a rees-truturação em curso, tanto a do capitalismo que se reforça mediante novos procedimentos organizacionais e gerenciais e um firme processo de “financeirização”, quanto a da própria socie-dade moderna, que se reformula em decorrência das dinâmicas

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da individualização crescente, da vida em rede e da recomposição do mundo do trabalho.

Há um pouco de cada uma dessas hipóteses na explicação do quadro, com as devidas correções. Não há, por exemplo, “traição”, mas acomodação e incapacidade reflexiva: partidos e dirigentes não conseguem processar intelectual e politicamente o mundo que se refaz de forma acelerada. Deixam-se paralisar pelos enig-mas que não conseguem decifrar e terminam por se devorarem uns aos outros. Também não há “fim do social”, como se agora tudo se limitasse à atuação de sujeitos individuais fora de controle. Os indivíduos estão empoderados, escapam das organizações pesadas, burocráticas, e têm sua atenção dispersada por uma miríade de causas e ofertas, que faz com que percam unidade de ação. Não estão, porém, recolhidos à esfera privada, estranha à política. Estão, ao contrário, manifestando de viva voz a sua insa-tisfação com a política que lhes é oferecida e à qual têm pouco acesso. Viram as costas para o que está instituído, pelo modo predominante de atuação política e partidária, que termina assim por ser deslegitimado.

Na situação brasileira, este quadro, já em si problemático, está sobredeterminado e potencializado por dinâmicas próprias. A reestruturação pós-moderna se abateu com força sobre o país do início do século para cá, ajudando a dissolver consensos, desfazer pactos e desorganizar culturas. O sistema político, que já exibia ambiguidades e contradições, praticamente mergulhou na inoperância. A sociedade ficou sem eixo, fato que se aprofundou, por um lado, com a perda de protagonismo do maior partido de esquerda do país, o PT, capturado sem vacilação pelo jogo coti-diano da política e por seus próprios projetos particulares de poder, e por outro com a não configuração do PSDB como força partidária substantiva. Ambos os fatos desmontaram o que havia de esboço de socialdemocracia no país, abrindo espaço não para novas forças de esquerda, mas para a centro-direita.

Houve mais. Os governos petistas pouco fizeram para refor-mar a sociedade durante os anos em que estiveram no governo federal. Suas políticas não tiveram potência fundacional, ainda que tenham sido importantes. Não se sustentaram no tempo e terminaram por se combinar com orientações econômicas e fiscais que aguçaram os estragos do capitalismo, em vez de moderá-los ou contê-los. Pouco se interessaram em promover a aglutinação da centro-esquerda, optando por privilegiar acordos e alianças com o fisiologismo que lhe garantiria a reprodução no poder.

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E deram vazão – com ou sem intenção – a um gigantesco aparato de corrupção, que envenenou o Estado e a gestão pública e se infiltrou pelas veias da sociedade, trazendo consigo um inédito protagonismo do Judiciário.

Não se tratou de governos corruptos ou de um partido vocacio-nado para o aparelhamento do Estado. O que prevaleceu foi uma concepção de governo e de governança que escancarou as portas do país para uma intensificação, sem precedentes, da apropriação privada do Estado, dos desvios de recursos públicos, da troca de favores e da transferência ilícita de verbas.

O impeachment de Dilma Rousseff foi a conclusão dramática desse processo. Representou basicamente a perda de controle do PT sobre os termos do jogo por ele mesmo posto em movimento, tanto no plano fiscal e econômico, quanto no plano da gestão política das alianças. Suas causas e razões são profundas, têm a ver com erros de condução política, com o esboroamento de uma coalizão governa-mental, com o mergulho do país num quadro de crise econômica profunda. Não deveria ser reduzido a um “golpe”, por mais que manobras “golpistas” possam ter ocorrido: não foi o resultado de uma ação de adversários ou inimigos, mas de aliados. Pensá-lo como um golpe é transferir a dinâmica do processo para zonas externas ao ator principal (no caso, o PT) e enveredar por um caminho que não inclui a autocrítica, mas somente a crítica moralizante dos “outros”, que são todos condenados em bloco como inimigos.

Com o impeachment, exacerbou-se o que já estava em curso desde 2010: a política perdeu capacidade de coordenar a si própria e de articular o social, que ficou sempre mais entregue à exacer-bação dos nichos e das individualidades, tudo devidamente impulsionado pela dinâmica das redes sociais e da mídia (impressa e eletrônica). Ao ser assim deslocada, a política foi superada pela condenação moral, a análise política cedeu em favor do julga-mento ético, o realismo se deixou sobrepujar pelo cálculo de custos, perdas e danos. A contestação do sistema e o controle do governo – a crítica política democrática – deixaram de ser feitas e foram substituídas pela mágoa, pela indignação, pela denúncia, invariavelmente impulsionadas por uma retórica radicalizada, que só fez dividir a sociedade.

A efervescência das redes sociais passou a expressar este novo estado de espírito, refratário à política e aos políticos. Criou-se assim um mundo à parte, de cidadãos indignados movidos à internet, um nicho que se liga à vida real pela recusa à política

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típica das classes médias, mas que também se afasta da vida real, sem conseguir ou se preocupar em agir sobre ela.

Como observou com precisão Luiz Werneck Vianna, esta mídia eletrônica empoderada “é composta de uma juventude, com uma preponderância feminina muito grande, que vem se apropriando desse espaço de forma muito eficiente e, eu diria, sem treinamento e sem conhecimento do país, e sem educação política para dar conta desse turbilhão que se tornou a vida política brasileira. De modo que o registro que essa mídia alternativa faz é mais de natu-reza ético-moral do que propriamente política: não tem análise, tem juízo de valor. Isso faz com que a temperatura apresente indi-cadores muito altos, que não necessariamente dizem respeito à doença do paciente (...). Os dois registros não combinam: o termô-metro, nessas mídias, está indicando uma temperatura muito alta, enquanto a vida transcorre no seu fluxo”. (IHU-On line, <http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2017/03/entrevista-luiz-wer-neck-vianna.html>).

Um dos melhores indicadores da confusão em que estamos metidos é a profusão de convicções extremadas que aparecem nas manifestações orais e escritas dos ativistas, que se distribuem da esquerda à direita. De tanto ouvirem as proclamas, até mesmo as pessoas comuns, os pacatos cidadãos, acabam seguindo as vozes e as repetindo. Elas demonstram o peso de certas obsessões desviantes, que nos afastam do núcleo problemático da vida e disseminam ilusões e fantasias contraproducentes, que imobili-zam sob a aparência de uma hiper-mobilização.

Revelam, por um lado, a impaciência política e a baixa densi-dade ética das pessoas. Por outro, indicam a má formação política de setores importantes da comunidade, que aplaudem e seguem, com extrema facilidade, lemas maximalistas e slogans esquemá-ticos que funcionam como bloqueadores da inteligência reflexiva.

Tais manifestações mostram como, de fato, mudou o “algo-ritmo da política” (expressão de FHC) e o quanto ingressamos em outra época social, na qual os hábitos, as narrativas e os estilos de antes parecem não funcionar, ou o fazem com muita dificul-dade. A insatisfação com o léxico e o gestual do passado impul-siona uma entrega cega a atitudes que anunciariam o futuro mas que somente são, na verdade, uma confissão de impotência.

Tem-se então um quadro assombroso: um governo ambíguo, com baixa densidade técnica e pouca legitimidade buscando realizar um programa de ajuste fiscal e reformas complicadas,

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com um amplo mas instável apoio parlamentar, solto no espaço sem ser socialmente controlado e sem sofrer a pressão crítica e organizada do campo democrático.

Com uma equipe de poucos que podem fazer a diferença, o barco de Temer enfrenta um mar revolto e turbulento, em cujas praias repousam uma economia estagnada, milhões de desem-pregados e uma sociedade alvoroçada. É difícil vislumbrar como conseguirá fazer a travessia.

A chamada classe política, que deveria mostrar racionalidade superior e capacidade de interpretar os sinais do tempo, não o ajuda e ameaça destroçá-lo de uma só vez ou devorá-lo aos poucos, pelas bordas. O próprio presidente, figura de proa dessa classe, parece perdido, sem saber que caminho seguir ou que tom dar ao coro dos insaciáveis.

Os déficits são enormes. Falta convicção social de que a repre-sentação democrática é um valor. Faltam partidos com musculatura para agregar grupos e pessoas em torno de programas factíveis de reforma. Faltam boas escolas e um bom sistema educacional, regu-lação democrática dos meios de comunicação e redução da publici-dade manipuladora para que se dissemine capacidade crítica entre os cidadãos. É um vazio cívico que tem sido preenchido por formas light ou hard de autoritarismo e por postulações próximas da barbá-rie, da intolerância e da grosseria preconceituosa.

A desunião e a baixa capacidade operacional dos democratas deixam o governo Temer sem um contraponto produtivo e não contribuem para que a sociedade compreenda melhor a situação do país e se mobilize para lutar por seus interesses. O vozerio indignado que se localiza nas redes sociais gera a sensação de que há uma intensa mobilização oposicionista, mas pouca coisa de fato acontece. A cidadania bate cabeças, sem conseguir se projetar ativamente no cenário. O campo democrático se move pouco e quase nada propõe, sem nem sequer se preocupar com o que vem pela frente, a começar de 2018.

Os gargalos do país deixam assim de ser considerados de uma perspectiva democrática consistente. A agenda de reformas posta na mesa pelo governo federal evolui sem conhecer a crítica dos democratas, que não se define pela recusa e pela contraposição, mas pela apresentação de alternativas.

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Pressões estruturais e controle de gastos

Temos ou não um problema fiscal no Estado brasileiro? Indepen-dentemente de se buscar culpados ou responsáveis, há elementos que revelam dificuldades para a formação de fundos públicos susten-táveis, para o pagamento da dívida pública e para o financiamento da ação estatal? Não é difícil concluir que temos alguns problemas. Como têm sido enfrentados? Como seria razoável enfrentá-los?

Tirando as soluções óbvias – cortar gastos, bloquear o cresci-mento da dívida, taxar fortunas e suspender isenções e privilégios –, que podem ser óbvias mas dependem dramaticamente de corre-lação favorável de forças, o que tem sido proposto nos últimos tempos, além da recusa às propostas do governo Temer? Mesmo essa recusa tem sido oca, retórica, pouco propositiva, o que deixa desarmados os democratas, aí incluída a parte mais importante das esquerdas.

As perguntas a serem respondidas aqui, em termos políticos, são três: (a) o que a correlação de forças e a estrutura do capita-lismo atual permitem que se faça? (b) como administrar as pres-sões estruturais por gastos públicos, impulsionados pela busca do desenvolvimento nacional, pelas carências de infraestrutura, pela má formação da mão de obra, pela urbanização descontro-lada, pela violência das cidades? (c) o que seria uma política fiscal progressista e factível?

A PEC do teto de gastos foi aprovada pelo Congresso, em dezembro de 2016, em meio a críticas apocalípticas, sem que os cidadãos comuns tenham alcançado uma ideia clara sobre ela. Em boa medida, isso se deveu à imperícia governamental. A PEC tem muitos furos e buracos negros, parecendo ter sido formulada basicamente para abrir um debate e ir sendo, a partir dele, corri-gida. São muitas as vozes que dizem que a medida está mal formulada e que tenderá ao abandono no médio prazo, como desdobramento de sua inconsistência, especialmente se não for complementada por uma reforma da Previdência. Além disso, o governo é péssimo em comunicação. Não fala com a sociedade, não explica suas propostas, operando como se não estivesse com os pés na terra. Falta-lhe vocação pedagógica mínima, ele carece de disposição para levar o debate para o terreno político, só o fazendo de modo marginal.

A falta de compreensão da PEC deve-se também ao corporati-vismo que vigora nas áreas específicas das políticas sociais, cada uma das quais luta para preservar seu status, perder menos ou

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ganhar mais. O argumento da “perda total” tem sido utilizado de forma intensiva: os prejuízos sociais serão incomensuráveis, direi-tos serão simplesmente pisoteados, os pobres terminarão por ser exterminados, as conquistas atiradas no lixo. O exagero retórico, aqui, ainda que válido como recurso de combate, não ajuda ao esclarecimento, pois sobrepõe um tratamento passional e “parcial” a toda e qualquer consideração de ordem mais “racional” e “geral”.

Se agregarmos a isso o fato de que os partidos pouco produ-zem – quando muito, agitam sem muito critério –, conseguimos entender as razões que fazem o debate fiscal ficar na estratosfera, ainda que seja vital para todos. O ajuste vai andando, sem que ninguém se dê ao trabalho de traduzi-lo em termos compreensí-veis e de modelá-lo para causar menos estrago social. A opinião pública no seu conjunto fica paralisada pelo maniqueísmo simpli-ficador do debate, como se não existissem outras opções e como se a política governamental fosse a única e perfeita saída.

A PEC não caiu do céu. Em outros formatos, algo similar a ela foi tentado antes, por Lula e Dilma, bem como por FHC. O país vive assombrado por demônios recorrentes: o crescimento cons-tante dos gastos públicos, a dificuldade de arrecadar mais, a inflação, a corrupção, o imediatismo e a descontinuidade, para lembrar alguns bem conhecidos.

Nos últimos anos, a gestão pública decaiu muito em termos éticos, políticos, institucionais e econômicos. A inadimplência é elevadíssima, há falências sendo anunciadas em cascata, as finanças de estados e municípios estão no osso, a recessão é real. Tudo isso, querendo-se ou não, ficou associado aos últimos gover-nos, que se mostraram pouco hábeis na gestão fiscal. Isso facili-tou o aparecimento de uma onda de caráter neoconservador, ou neoliberal, que elegeu o corte de gastos estatais como bandeira, valendo-se do artifício do antipetismo.

Fala-se, por exemplo, em “congelamento” dos gastos com saúde e educação sem que se esclareça devidamente, por um lado, que eles serão corrigidos anualmente pela inflação passada e, por outro, que tais gastos não são obrigações predominantemente federais. Estados e municípios participam em cerca de 25% deles, assim como o setor privado, que arca com quase 60% do total. O teto da PEC 241, portanto, afetaria aproximadamente 15% do que se gasta com saúde e educação, e nessa faixa haverá de fato perdas e riscos sérios, até porque contrações no governo central tendem a irradiar contrações para os demais níveis federativos.

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A conta, porém, precisa ser feita com cuidado, considerando o tamanho do país, a desigualdade dos estados e municípios, o volume da dívida e do rombo fiscal em cada um deles, e assim por diante. Não dá para passar por cima disso tudo e simplesmente dizer que a educação e a saúde serão baleadas de morte.

Além disso, os parlamentares poderão deslocar recursos da infraestrutura, por exemplo, para contemplar a ciência, a saúde ou a educação. O que não poderão fazer é aumentar os gastos globais, ou seja, inchar o orçamento e endividar o Estado mediante empréstimos que financiem gastos adicionais.

É um problema? Com certeza, pois radicaliza a disputa por recursos públicos num quadro em que os mais pobres, que são também os que têm menos voz e representação, tenderão a perder mais. Mas o real efeito da medida é controvertido e não pode ser claramente estabelecido por antecipação.

Quando se pensa em política fiscal e gastos públicos, é indis-pensável que se considere com atenção a variável demográfica. A população brasileira está crescendo menos: em poucas décadas, passou de 3% para 0,8% ao ano. Tudo indica que continuará com esta tendência. Está envelhecendo rapidamente, cerca de 3,5% ao ano, e vivendo mais, com uma expectativa média de vida de aproximadamente 75-80 anos. Por volta de 1940, a expectativa era de 45 anos.

Isto significa que este fator ”natural” (mais idosos, menos jovens) continuará a pressionar os gastos públicos. A população economicamente ativa não continuará a crescer como antes, o que produzirá impactos no plano das receitas. No caso da educa-ção, pode-se até admitir que alguma “economia” seja feita na medida em que o número de jovens for diminuindo, o que é uma tendência clara. Mas, no caso da saúde, a situação é terrivelmente complicada, seja porque o envelhecimento faz com que aumentem os gastos com saúde, seja porque as doenças vão mudando de perfil (hoje, o câncer é mais grave que as enfermidades cardíacas, e as doenças crônicas estão a aumentar) e onerando os tratamen-tos, seja porque aumenta o custo dos próprios serviços médicos, que são crescentemente mais tecnológicos.

A PEC prevê teto e mecanismos de expansão orçamentária (a inflação do ano anterior), mas não admite que se deixe de honrar compromissos estabelecidos. Isso poderá ser uma vantagem. É que a PEC, no fundo, protege as áreas sociais mais relevantes, tentando evitar que o custo delas cresça artificialmente ou seja

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reduzido arbitrariamente. Palavras do economista especializado em contas públicas Raul Velloso: “Na realidade, é uma proteção para não haver corte nas áreas, mas está sendo interpretado como o contrário. Nenhum outro item poderá crescer à custa de educa-ção e saúde. Quem trabalha nas duas áreas estará protegido, porque são pagos pelos orçamentos de ministérios protegidos. É só não contratar tanto e dar reajuste pela inflação”.

A PEC é omissa na questão de saber como se gasta, onde se gasta, quanto há de desperdício e ineficiência, qual o impacto real da corrupção e o que fazer para contê-la. Sem abrir esta caixa preta, todo esforço poderá ser inútil ou produzir pouca coisa. Se se fixar um teto para os gastos sem avaliar a qualidade global dos gastos, o conjunto não ficará de pé. Supondo que alguma perda orçamentária haverá, como calibrar a qualidade dos serviços – a gestão – para que não haja prejuízo para a população? Nem tudo se resolve com mais verbas.

O que será feito, por exemplo, com o custo da Previdência, terreno delicadíssimo e potencialmente impopular, que ficou intei-ramente fora da PEC? Conforme for seu desenho, maior ou menor será seu impacto na gestão orçamentária global, até mesmo porque o custo da Previdência é corrigido por critérios próprios. Junto com a assistência social, a Previdência consome cerca de 50% dos gastos federais, o que significa que o governo administra somente metade do orçamento, que é precisamente aquilo que obedecerá ao teto. E aí a disputa por recursos será encarniçada.

O que ocorrerá com as isenções fiscais, que consomem uma massa absurda de recursos de utilidade social bastante discutí-vel? Tais desonerações beneficiam empresas, que em princípio dão retorno com a criação de empregos, mas também premiam igrejas, e isso num país em que o Estado é laico. É preciso por tudo isso na mesa, juntamente com o crédito subsidiado, o crédito facilitado, certos mecanismos protecionistas, as licitações e compras do setor público.

A estrutura brasileira de tributação é perversa e injusta. Tem vetores de progressividade, mas no fundamental cai muito mais sobre o consumo e a renda do trabalho do que sobre a renda do capital. Diz-se que é assim para que se possa fazer a economia crescer e favorecer a arrecadação, explicação meio cínica. O problema está exposto há décadas.

E os governos – tanto os de Lula e Dilma, quanto o de Temer – ficam paralisados diante da situação, porque simplesmente não

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conseguem contar com correlação de forças mais favorável, ou seja, não dispõem de suportes políticos efetivamente reformadores e se deixam chantagear pelos parlamentares, temerosos de desagradar seus eleitores. Preferem manter o padrão em vez de mexer com os mais fortes, que alegam suportar uma carga tributária que bloqueia a expansão econômica (o “custo-Brasil”) e continuam a pagar proporcionalmente menos impostos, pondo muitas vezes em prática artimanhas de sonegação que a grande maioria desconhece.

Será preciso que alguém demonstre como financiar o gasto público que não cessa de aumentar, num quadro de recessão e queda de arrecadação. Sem isso, ficaremos todos paralisados pelo monstro do quanto se gasta. Veremos a dívida pública permane-cer em expansão, transferindo renda para o setor financeiro e arruinando o futuro.

A joia da Coroa é o crescimento econômico, obsessão social-mente justificada. Será preciso que se explique, portanto, porque a economia não cresce. Trata-se de uma falha da política macroe-conômica, das circunstâncias da economia internacional, do padrão do capitalismo nacional? Ou de tudo isso misturado? Alguém deve contar direito essa história, encaixando na explica-ção, por exemplo, a questão da produtividade e da carga tributá-ria, o tal custo Brasil.

É ou não verdade que nos falta produtividade e que isso amarra e deforma o crescimento? Há defeitos e limitações no planeja-mento e na gestão das empresas, mas também limites derivados da baixa escolaridade e da estrutura institucional que faz inter-face direta com a economia (sistema judiciário, sistema finan-ceiro, sistema de crédito etc.). Quando é que se atacará essa frente de forma vigorosa? E mais: como minimizar o risco de que ganhos tributários derivados do crescimento não sejam devorados por desvios, trambiques e esquemas ilícitos?

O crescimento desafogará e irrigará os cofres públicos, mas é justamente aí que mora o perigo caso não sejam tomadas as devidas providências. Não se trata só de bloquear os dutos da corrupção, mas de aperfeiçoar as práticas, as estruturas, os processos de gestão.

A questão previdenciária

Há ou não déficits e gargalos na Previdência, seja lá quais forem os parâmetros para medi-los? São problemas contábeis ou estrutu-

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rais, os alegados “rombos” são reais ou não passam de estratégia de atemorização dedicada a fazer passar com mais facilidade uma reforma em favor do capital? É razoável que se adote como suposto que “o déficit da Previdência é uma farsa criada pelo pensamento neoliberal conservador”, como dizem alguns setores?

Em um quadro de discussão rasa, generaliza-se a visão que trata a reforma da Previdência como um embuste para que se privatize o sistema e se force a adesão dos trabalhadores à Previ-dência privada. Segundo esta visão, o governo nada mais preten-deria do que beneficiar bancos e grandes empresários. Pouco se discute, mas se denuncia muito.

Podemos adotar como critério que o Brasil continue a gastar cerca de 12% do PIB para sustentar pessoas que, em tese, se reti-raram do mercado de trabalho (muitas delas com 55 anos, ou algo assim), com as respectivas pensões e gastos com seus dependen-tes? A Previdência é um modo de distribuir renda ou um recurso para proteger a velhice, os que não podem trabalhar e seus depen-dentes? Deve-se ou não pensar o sistema tendo em vista o fim do “bônus demográfico” (o envelhecimento da população e a diminui-ção dos nascimentos) e a estrutura produtiva do capitalismo vigente, com seus incentivos aos pequenos negócios, à robotiza-ção, ao empreendedorismo e ao trabalho informal, que não geram receitas previdenciárias? Que reforma seria admissível para que não se percam direitos e se conceba um sistema para o futuro?

São muitos os que afirmam que a fixação de uma idade mínima (de 60, 62 ou 65 anos, não precisamos definir isso aqui) atingirá de forma desproporcional e injusta os mais pobres, que começam a trabalhar mais cedo. Mas o entendimento sobre isso não está de modo algum estabelecido e as zonas de confusão são muito gran-des. É verdade que os mais pobres começam a trabalhar mais cedo, mas mesmo com as regras atuais eles já estão tendo de trabalhar até os 65 anos, ou até mais, seja porque não acumulam o devido tempo de contribuição (oscilam entre períodos de traba-lho formal e trabalho informal), seja porque não conseguem se manter com os salários de aposentadoria.

Ao menos em tese, portanto, uma idade mínima afetará sobre-tudo os trabalhadores mais bem remunerados, mais escolariza-dos ou que podem ingressar mais tarde no mercado de trabalho. Se bem calibrada, poderá contribuir para a produção de maior justiça social. Com um senão: será preciso contornar um dos efei-tos colaterais não desejados da idade mínima, que é o de forçar o

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trabalhador a permanecer por mais anos no emprego, dificul-tando assim a abertura de novas vagas e o acesso dos mais jovens ao mercado de trabalho.

Seja como for, o fato é que a fixação de idades mínimas precisa ser feita com cautela e precaução, pois afeta a expectativa das pessoas. Não pode ser simplesmente enfiada pela goela da popula-ção. A fixação do espaçamento ideal e da gradação mais adequada é difícil de ser estabelecida, o que dramatiza ainda mais a discussão, especialmente quando se tem um quadro recessivo e crise fiscal.

Passa-se o mesmo com o tempo de contribuição. A proposta governamental estabelece que o trabalhador terá de contribuir por 25 anos para ter acesso a 76% do benefício, mas a contribui-ção precisará ser feita durante 49 anos para que o benefício seja recebido integralmente. É evidentemente um exagero e uma exigência obscena. O processamento parlamentar da proposta deveria garantir a correção disso.

Há muitos cálculos, números e projeções na mesa. Alguém deveria buscar organizar minimamente tudo isso, até para que se facilite o entendimento da população. Estatísticas confiáveis dão conta de que o envelhecimento populacional irá se acelerar muito nas próximas décadas. Deverá crescer cerca de 50% nos 10 anos que temos pela frente e por volta de 2050 será 2,5 vezes maior que a atual. É uma mudança imponente, uma espécie de canto do cisne daquele “país de jovens” que exibia ao mundo 10 idosos para cada 100 trabalhadores ativos. Em 2050, esta proporção será de 45 para cada 100. Com mais idosos nesta proporção, há que se descobrir como obter recursos para que se paguem aposentado-rias e pensões.

Isso significa que nenhuma reforma previdenciária poderá se completar sem que seja combinada com uma alteração no sistema tributário. Mais gente terá de pagar impostos e os mais ricos terão de ser expressivamente tributados. O “pacto” que sustenta a sociedade precisará ser reformulado, novos consensos precisarão ser criados, toda uma pedagogia terá de ser posta em movimento para que se forme um novo entendimento a respeito.

É uma discussão cuja resolução depende categoricamente da definição das prioridades nacionais, tarefa que deveria ser estra-tégica para os democratas.

O que a sociedade brasileira considera mais relevante? A título de exemplo, pode-se contrapor a Previdência às políticas de

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Educação e Saúde. Se a população considerar mais valioso sustentar os idosos, tenderá a defender a Previdência tal como está hoje. Se, ao contrário, a opção for por apoiar os jovens, maior será a disponibilidade social para rever o sistema previdenciário. Não há, evidentemente, como criar uma polarização intransponí-vel na área, no mínimo porque ambas as pontas – a Previdência, de um lado; a Educação e a Saúde, de outro – são igualmente essenciais, e não podem ser “negociadas”. Jovens e idosos devem ser tratados como relevantes para qualquer sociedade, seja pelo ângulo dos direitos que devem ter, seja pelo ângulo da contribui-ção que dão ao coletivo. Mas é evidente que cada um destes segmentos pode e deve ser tratado também pelo lado das despe-sas, especialmente quando o contingente de jovens e idosos é alte-rado de forma acentuada.

A discussão também precisa considerar outros aspectos. Parece claro que servidores públicos, militares, juízes e políticos não podem ter regimes especiais de aposentadoria. Mas não há consensos definidos a este respeito. A medida, que hoje vigora, teve justificativa consistente, décadas atrás, quando se tratava de tornar sedutoras as carreiras públicas. Hoje, porém, o Estado já está formado e seu setor administrativo não só está composto como consome largas parcelas de receitas tributárias. Não há justiça social mínima na manutenção dos regimes especiais. Assim como é discutível que se mantenha a distinção entre homens e mulheres para fins previdenciários.

Do mesmo modo, se se tem como certo o aumento da expecta-tiva de vida, pode-se desdramatizar bastante a questão da idade mínima, de modo a vê-la como um critério que acompanha as mudanças temporais e demográficas.

O mesmo poderia ser pensado quando se examinam as tendên-cias estruturais da produção, do trabalho e do emprego, que pare-cem apontar para uma expansão do trabalho informal, das peque-nas empresas “sem patrão” e do empreendedorismo, tendências estas que não só refletem certas mudanças no modo de vida e nas expectativas sociais dos jovens, como são categoricamente refra-tárias à sustentabilidade de regimes previdenciários de alto custo.

Se a questão é abrir uma discussão pública democrática, inte-ressada em criar consensos razoáveis em torno de uma reforma, o tema central não poderá ser o dos “cortes” na Previdência. Será preciso que se mostre que cortes numa ponta significam mais possibilidades de gastos em outras pontas. Não há reforma previ-

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denciária criteriosa que possa nascer sem uma combinação de medidas e de iniciativas no terreno das políticas públicas. Pensada em termos “socialdemocráticos”, sua meta é a fixação de novas prioridades em termos de investimento social: a redução do que se gasta com Previdência precisa ser entendido como uma oportu-nidade para que se gaste mais com Educação, Saúde e Infância.

Questões e dilemas como estes deveriam fazer com que o campo democrático buscasse uma articulação propositiva supe-rior, que ajudasse a política a escapar de polarizações que disper-sam e pouco acrescentam.

Reforma trabalhista

É adequado, justo e correto, para o mundo do trabalho e para as empresas (sobretudo as pequenas e médias), que se mantenha inal-terada a legislação trabalhista, seguindo a mesma cartilha de déca-das atrás, num momento em que tudo está em reestruturação?

A CLT, que é dos anos 1940, já não mais atende às novas circunstâncias e aos diferentes setores da economia, como o de tecnologia, por exemplo, que passa por constantes transformações. As leis, congeladas no tempo, corrigidas de forma casuística e prevalecendo sobre tudo, engessam as relações trabalhistas e encarecem artificialmente o custo do trabalho, até mesmo por esti-mularem muitas disputas judiciais. A ideia do governo é “flexibili-zar” a CLT, preservando alguns dos direitos nela inscritos (FGTS; 13º salário; seguro-desemprego e salário-família; remuneração da hora-extra; licença-maternidade de 120 dias; aviso prévio propor-cional ao tempo de serviço, normas relativas à segurança e saúde do trabalhador) e abrindo espaço para negociação de outros pontos, como parcelamento das férias, fixação da jornada de trabalho (que não poderá ultrapassar 48 horas semanais), garantia do salário mínimo, Seguro-Emprego, remuneração por produtividade e traba-lho remoto. A mudança principal tem a ver com a jornada de traba-lho e com a possibilidade de contratação de profissionais para execução de trabalhos específicos e temporários.

Como reagir a isso com uma perspectiva democrática e social avançada?

Em tese, a proposta dá mais força aos sindicatos, que passa-rão a negociar um maior número de direitos com os patrões e a funcionar como efetivos gestores dos acordos coletivos. As centrais sindicais, porém, não pensam assim e têm se empenhado bastante

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para impedir que as propostas do governo sejam aprovadas. Seu argumento principal é que elas irão “precarizar” o trabalho, aumentar a rotatividade e beneficiar os empresários. Em vez de empregos, gerará desemprego, além de descartar direitos a pretexto de “flexibilizá-los”. Neste entendimento, a proposta facili-tará a criação de vagas temporárias e em tempo parcial, que podem esvaziar os empregos tradicionais.

As dúvidas são numerosas, e há diversos juristas e advogados que questionam a legalidade de certas medidas contidas na proposta, potencialmente contrárias a princípios básicos da Cons-tituição. Setores do Ministério Público pensam que o projeto é inconstitucional e deve ser rejeitado. Parte do sindicalismo se dispõe a discutir e a negociar, mas critica o que considera ser a velocidade excessiva que o governo está impondo.

Pode-se admitir como eficiente, para os trabalhadores, que o “negociado” prevaleça sobre o “legislado”? Que efeito isso terá sobre a vida social como um todo e particularmente no mundo do traba-lho? Protegerá mais ou menos os trabalhadores, dará a eles melho-res ferramentas com que lutar por melhorias salariais e nas condi-ções de trabalho? Ajudará a que se fortaleçam e se qualifiquem as representações sindicais, ou produzirá um esvaziamento dos sindi-catos e um maior rebaixamento da qualidade de seus dirigentes?

Uma eventual “valorização da organização sindical” deve ser bem discutida, para que leve na justa conta que existem sindica-tos que não são legítimos e representativos, outros que são frágeis. Reforçados como negociadores, tais organizações poderão causar um estrago expressivo em direitos e prejudicar toda uma coletivi-dade de trabalhadores.

É difícil separar as coisas, especialmente porque a discussão precisa considerar o que já se tem de garantias no presente, os que já estão “incluídos”, e aquilo que se poderá e se desejará ter no futuro, os direitos daqueles que não estão incluídos. Precisa, também, analisar em que medida há uma “nova economia” se impondo no mundo, movida a tecnologia, robotização e flexibili-dade, e avaliar se esta é uma tendência estrutural “definitiva”.

A reforma do ensino médio

Estamos felizes com o sistema de ensino que vigora no país? Os jovens estão sendo bem formados, os professores se sentem valori-zados, há clareza sobre o que se deve ensinar, temos parâmetros

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curriculares consistentes, escolas convidativas tanto em termos espaciais e estéticos, quanto em termos tecnológicos e didático-pe-dagógicos? Uma “reforma do ensino médio” deve seguir quais crité-rios? Por que a abertura da grade curricular, de modo a torná-la mais opcional e mais flexível, não pode ser uma medida interes-sante? Se não for, o que se deve propor no lugar? Podemos nos dar ao luxo de ficar parados, sem experimentar, à espera de uma reforma que tenha a cara e as cores do que se considera perfeito?

A reforma aprovada em fevereiro de 2017 tem pontos complica-dos e controvertidos, ao lado de outros que deveriam ser bem recebidos. Ela altera a estrutura do atual sistema e mexe, portanto, com coisas estabelecidas, interesses consolidados e uma cultura pedagógica enraizada. A proposta inicial do governo foi bastante modificada no Congresso, que atenuou alguns pontos mais polê-micos. A flexibilização da grade curricular, por exemplo, que é o centro da reforma, permite que os estudantes escolham eixos formativos mais afinados com seus interesses, mas poderá por em risco a permanência de disciplinas como História, Sociologia e Filosofia, tidas e havidas como vitais para uma boa formação. O Congresso Nacional deixou mais vaga a redação, empurrando a execução da medida para as escolas.

Ao propor a flexibilização da grade curricular, o novo modelo permitirá que o estudante escolha a área de conhecimento em que deseja aprofundar seus estudos. A nova estrutura terá uma parte comum e obrigatória para todas as escolas, organizada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e uma segunda parte flexí-vel, com abertura até para a formação profissional. A BNCC defi-nirá as competências e conhecimentos essenciais que deverão ser oferecidos a todos os estudantes na parte comum (1.800 horas), abrangendo as 4 áreas do conhecimento e todos os componentes curriculares do ensino médio definidos na LDB e nas diretrizes curriculares nacionais de educação básica. Somente língua portuguesa e matemática serão obrigatórias nos 3 anos de ensino médio. O restante do tempo será dedicado ao aprofundamento em áreas eletivas, definidas em 5 eixos: I – linguagens e suas tecno-logias; II – matemática e suas tecnologias; III – ciências da natu-reza e suas tecnologias; IV – ciências humanas e sociais aplica-das; V – formação técnica e profissional.

O desenho não é ruim, mas terá de ser analisado com base nas circunstâncias reais do sistema educacional, no qual faltam professores qualificados, o descontentamento é enorme, a desi-gualdade regional é acentuada e a infraestrutura das escolas não

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ajuda. A verdadeira batalha, portanto, não será em torno da reforma, mas das possibilidades de sua concretização. Tanto quanto antes, continuará decisivo saber se as escolas terão como oferecer um ensino de boa qualidade, com ou sem grade opcional, com 10, 12 ou 15 disciplinas, com Artes ou sem, em meio período ou período integral. Se os professores forem bons, meio caminho já estará andado, pois serão eles a motivar os alunos, a ajudá-los a escolher, a mostrar-lhes a importância de conhecer o mundo, as letras, as ciências, as profissões, o Estado e o mercado, de se interrogar sobre a sociedade em que se vive. O arranjo sistêmico pode ajudar ou atrapalhar, mas não decidirá nada.

Se vivemos numa época que consagra a liberdade de movi-mento, a pluralidade de opiniões e fornece muitas possibilidades de escolha em cada minuto do dia, será melhor um ensino que leve isso em conta. O risco de uma “tirania das escolhas e possi-bilidades” estará sempre ali e terá de ser assimilado pelo coti-diano escolar. Com ou sem a reforma aprovada.

A falta que faz um bom consenso democrático

Estes quatro pontos estão hoje no centro da agenda política do país, juntamente com a questão que não quer calar, a da corrup-ção. A corrupção, por sua vez, passa pelo financiamento eleitoral (se público ou não, com empresas ou sem elas) e este pelo sistema partidário e eleitoral, pelo número de partidos, pela adoção ou não de cláusulas de barreira, pelo modo como se organizam as listas partidárias de candidatos (abertas ou fechadas).

Em suma, está tudo conectado, misturado e combinado, o que amplifica a gravidade e aumenta os desafios inerentes à situação. O sistema político, enfartado por falhas e condicionado por meca-nismos vários que corroem seu funcionamento, jaz sobre a mesa, à espera de uma reforma. Que o campo democrático deveria tratar como coisa sua, mas não o faz.

Sem que se responda a esses pontos, os democratas não subservientes ao governo Temer permanecerão parados. Não terão como contestar politicamente o governo, nem se organizar para apresentar uma candidatura que os represente em 2018 e que faça isso de uma perspectiva renovada, sem o ranço do passado e com firme disposição para projetar uma efetiva transição do país para um patamar superior.

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Uma candidatura que os represente em 2018 não pode ser reduzida a um nome. Ela só fará sentido se for um programa em ação e traduzir uma articulação política superior. Sem a qualifi-cação do debate democrático, a redução das polarizações artifi-ciais e a diminuição da exasperação social, 2018 será mais um pesadelo que um sonho.

Uma plataforma democrática consistente não poderá crescer com pessoas que veem inimigos e conspiradores em todo canto, que fazem da contraposição uma arma que fere e alimenta polari-zações paralisantes, que pensam que as disputas por poder são o sal da terra e que, convencidas do valor heurístico do conceito de “luta”, estão sempre dispostas a ativar atritos, combates e conflitos contra tudo e todos. Pessoas assim estão fechadas à cooperação e tendem a ver os “moderados” (os que ponderam, dialogam e buscam ligações) como uma espécie de raça inferior, formada por “gente que capitula”. Sua dialética é rígida, não produz sínteses, não pensa a superação. É uma dialética dicotômica, com dois únicos termos: a tese e a antítese, nós e eles, o bem e o mal.

Se olharmos hoje para o mundo da política em sentido estrito, para o sistema, o veremos de pernas para o ar, ofegante, desorien-tado. Entre o Estado democrático de direito e o sistema político há pouca harmonia e muita disjunção, como se faltassem algumas peças num quebra-cabeças complexo, de difícil finalização.

O sistema ameaça ruir em cada curva do caminho e ao sabor de uma brisa qualquer. Falta-lhe quase tudo para funcionar de modo satisfatório: partidos com capacidade operacional, rumos a seguir, centros de coordenação e lideranças. Está ilhado, isolado da sociedade, atraindo críticas e vaias em abundância, pagando um preço alto, como se fosse, em bloco, um agregado monocromá-tico de “máfias” desqualificadas.

A política, que deveria coroar o sistema e dar-lhe vida, rever-berando a Constituição e as boas práticas republicanas, foi empurrada para a margem.

O mal-estar entre as instituições se acentuou. Pequenas maro-las, que na “normalidade” seriam contornáveis com facilidade, provocam tsunamis perturbadores. Legislativo, Executivo e Judi-ciário parecem não falar mais a mesma língua. Vivem trombando, cooperam pouco, competem demais. A crise derivada desse excesso de ruído e atrito, ao se reproduzir, espalha confusão por todos os lados, mina o pouco que há de confiança, corrói a esperança dos cidadãos e alimenta uma exasperação social que termina por se

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voltar sobre a própria crise, tornando-se componente dela e a impulsionando. As instituições basilares da República funcionam aos trancos, por espasmos, flertando com o improviso.

O “sangue nos olhos” contamina a sociedade civil, mina a soli-dariedade, a moderação e a serenidade. De uma parte estão os que vêm o Ministério Público, o juiz Sergio Moro e a Operação Lava-Jato como fazendo parte de uma articulação golpista contra o PT. De outra parte, os que querem que a justiça seja feita “custe o que custar” e castigue implacavelmente os políticos. Entre uma ponta e outra, o mesmo menosprezo pela política como negocia-ção, diálogo e busca de entendimentos. O clima é de exasperação e de má vontade com os tempos longos e complexos da política.

A miséria política instalada na sociedade civil nos ajuda a entender porque, hoje, nada incomoda o governo Temer a não ser suas próprias contradições internas.

Se se tem de fato no país um governo “ilegítimo”, como pregam alguns, há que se combatê-lo no plano político, com seus tempos e suas regras. Há que se trabalhar dedicadamente pela mobiliza-ção social e pela educação política dos cidadãos, o que não se faz com slogans soltos ao léu, como pipas desgovernadas.

O clima atual, polarizado e vazio de proposições progressistas razoáveis, não beneficia ninguém. As pessoas pensam que, ao agirem como torquemadas vingativos, facilitarão o desgaste do governo, mas o que produzem é precisamente o contrário: agre-gam as forças governamentais, a classe média e todos aqueles que não aceitam que se faça política “daquele jeito”. O clima só ajuda a que as esquerdas e os democratas permaneçam fora do jogo, com a cabeça enfiada na terra, esperneando.

O radicalismo retórico e performático é inimigo do avanço democrático. Não trabalha com a paciência, nem com a sereni-dade, não busca consensos nem se apoia numa teoria aprofun-dada. É pura emoção. Tem sido incapaz, no Brasil, de impulsio-nar a reflexão crítica sobre o processo que levou ao impeachment de Dilma, optando por reduzi-lo à imagem confortável do “golpe”.

O ideal seria ir com um pouco mais de calma e foco. A crise institucional é real, mas não se deve exagerar no diagnóstico. Não se está andando para trás. Nunca como nos últimos anos se pren-deu tanta gente graúda. A impunidade não está instituída. Ao contrário, regride de forma acelerada. Sabemos que a política precisa ser reformada. Aprendemos que a “responsabilidade

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fiscal” não é um garrote neoliberal. Bem ou mal, a democracia vem mostrando suas vantagens.

O desafio democrático atual pode ser reduzido à ideia de arti-culação. Não podemos nos tornar uma nação de políticos ausen-tes e cidadãos indignados, que não querem dialogar, não conse-guem definir quem são os “inimigos principais”, não têm plano de voo. Precisamos de mediações.

Tal perspectiva conflui para aquilo que se costuma associar ao compromisso socialdemocrático, voltado para a distribuição da riqueza, a racionalização dos gastos públicos, os direitos sociais e políticas públicas consistentes, de longo prazo.

É uma perspectiva que supõe já termos ingressado em uma nova fase do capitalismo, assentada sobre formas de trabalho e produção tecnológicas, digitais, robotizadas, que abrirão as comportas para o surgimento de sistemas sociais e modos de vida inteiramente novos.

Podemos não conseguir evitar que essa dinâmica se imponha, mas temos como modulá-la. O quanto ela produzirá de “boa vida” e o quanto disseminará miséria em escala planetária, com a multiplicação de deserdados e excluídos, é algo que não dá para prever, ainda que se possa cogitar. E não dá para prever porque o homem é um ser que responde ao seu ambiente e é da sua natu-reza encontrar soluções para os problemas com que se defronta.

Vale-se, para tanto, da política e da ciência. Que continuam à disposição. Para serem usadas pelos políticos profissionais, mas também e sobretudo pelos cidadãos, que no fundo são quem decide os movimentos, as escolhas e a qualidade dos políticos.

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II. Conjuntura

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Autores

Arnaldo JordyDeputado federal, líder do PPS na Câmara

Fernando Luiz AbrucioDoutor em Ciência Política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP

Sérgio C. BuarqueEconomista, mestre em Sociologia e professor aposentado da FCAP/UFPE

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O Brasil precisa da Lava-jato

Arnaldo Jordy

O que já era esperado começa a ocorrer de fato. Após as prisões do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral; do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo

Cunha; e da condenação de um dos maiores empreiteiros do Brasil, Marcelo Odebrecht; a Operação Lava-Jato começa a rece-ber críticas com relação a um suposto excesso em prisões preven-tivas, se não pela quantidade, mas pela longa duração.

As reclamações vêm não só do mundo político, como era de se esperar, diante da homologação das delações de dezenas de execu-tivos da construtora Norberto Odebrecht, que compromete cerca de 50 parlamentares, mas do próprio Supremo Tribunal Federal (STF). Recentemente, o ministro Gilmar Mendes afirmou que a Corte terá que discutir e se posicionar sobre o tempo alongado das prisões preventivas determinadas pelos juízes da Lava-Jato que, de acordo com ele, conflita com a jurisprudência do STF ao longo dos anos.

Na sequência, foi a vez do ministro Marco Aurélio Mello refor-çar as críticas contra o excesso em prisões preventivas, secun-dando Mendes, ao declarar que a prisão provisória deixou de ser exceção para se tornar regra, e que hoje se prende para dar satis-fação à sociedade, antes de se apurar a participação do alvo de prisão no crime investigado.

A declaração de Marco Aurélio foi dada na véspera da primeira tomada de depoimento do ex-deputado Eduardo Cunha pelo juiz Sérgio Moro. A defesa do peemedebista, como era de se esperar,

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pediu sua soltura, o que foi exemplarmente negado. Antes, o próprio ex-deputado fez questão de citar o nome do presidente Michel Temer como participante de reunião para escolha de dire-tores da Petrobras, o que ele nega. Parecia tudo orquestrado para que Moro cedesse e concedesse a liberdade ao peemedebista. O juiz de Curitiba, no entanto, viu nas declarações de Cunha uma tentativa de chantagear a própria Presidência da República, e disse que não cederia a pressões políticas.

A pressão política, no caso, vinha do próprio Cunha, que sonha com uma influência que não tem mais, e espera ser recom-pensado por supostamente haver autorizado a abertura do processo de impeachment contra Dilma Rousseff, quando exercia a presidência da Câmara. Na verdade, o impeachment atendeu a um anseio popular e a um preceito constitucional e não dependeu tanto de Cunha.

As críticas de alguns dos integrantes do STF à duração das prisões preventivas também foram respondidas por Sérgio Moro, no mesmo despacho em que negou a liberdade para Cunha: “Se a firmeza que a dimensão dos crimes descobertos reclama não vier do Judiciário, que tem o dever de zelar pelo respeito às leis, não virá de nenhum outro lugar”, e ainda ponderou: “Apesar da crítica genérica do excesso das prisões preventivas, há atualmente cerca de sete acusados presos preventivamente sem que tenha havido a prolação de sentença na ação penal”, e comparou as 79 prisões preventivas feitas durante os três anos da Operação Lava-Jato aos números da Operação Mãos Limpas, responsável pela descoberta de um esquema de corrupção envolvendo quase todos os partidos políticos na Itália nos anos 1990 e que, de acordo com o juiz federal, fez cerca de 800 prisões preventivas entre 1992 e 1994, somente em Milão.

Para Sérgio Moro, as “críticas genéricas” às prisões preventi-vas da Lava-Jato se devem, sobretudo, ao encarceramento de grandes figurões do PIB e da política e refletem o entendimento comum de que algumas pessoas estariam acima da lei, ou como se diz por aí, que todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais.

Para justificar as prisões preventivas, ele lembra que o modus operandi da Lava-Jato quebrou o esquema de Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef que, caso não tivessem sido presos preventiva-mente e delatado o esquema, poderiam estar, até hoje, de posse de seus ativos no exterior e talvez até recebendo propinas em contra-tos públicos.

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4343O Brasil precisa da Lava-Jato

A resposta de Moro parece ter surtido efeito, já que, no dia 15 de fevereiro, a maioria dos ministros do STF votou pela perma-nência de Eduardo Cunha na cadeia, referendando a decisão de Moro. Houve também a exortação feita pelo ex-presidente do STF, Carlos Ayres Brito, que chamou a Operação Lava-Jato de “emble-mática” e “irreversível” e avisou: “Que ninguém se atreva sozinho ou enturmadamente a estancar o curso do amazônico rio da Justiça. Da justa e jurídica tomada penal de contas dos defrauda-dores da inegociável honra do país”.

E, mais recentemente, uma nova lista elaborada pela Procura-doria Geral da República pede a abertura de dezenas de inquéri-tos contra figuras políticas do governo passado e da atual gestão federal, além de parlamentares de diversos partidos políticos. No total, Rodrigo Janot pediu que sejam abertos 83 inquéritos no Supremo Tribunal Federal contra autoridades com foro na Corte. Na lista do procurador, há pedidos de investigação contra lideran-ças do PMDB, PT, PSDB, PSD e DEM.

Entendo que é dever da sociedade sustentar a Lava-Jato. A maior operação de combate à corrupção já deflagrada no país denunciou até agora 260 pessoas envolvidas em crimes de corrup-ção ativa e passiva, lavagem de dinheiro, fraude ao sistema finan-ceiro e organização criminosa. Em suas 37 fases, foram decreta-das 79 prisões preventivas. São cerca de duas prisões por fase. Muitas dessas prisões foram revogadas pela própria Vara Federal de Curitiba, quando constatou não serem mais necessárias.

Os números mostram que as prisões antes da condenação são necessárias para enfrentar o ciclo de corrupção movido por tais organizações. Para isso, basta constatarmos que enquanto o STF julgava o mensalão, as operações do petrolão estavam em pleno vigor, mostrando que corruptos parecem não ter medo da Justiça quando não existe a ameaça de prisão. Por isso, todo o apoio às investigações. O Brasil precisa da Lava-Jato.

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O nó da previdência Social

Sérgio C . Buarque

A discussão sobre a previdência social no Brasil está alta-mente poluída por uma pesada nuvem de fumaça que esconde os fatos e elude os dados, confundindo a opinião

pública e atrapalhando as decisões. Este é, seguramente, o tema mais incompreendido e controverso do momento atual do Brasil e, no entanto, o mais relevante diante da crise fiscal e das perspectivas futuras. Concentrado excessivamente no atual desempenho financeiro do sistema – se tem déficit ou superávit – o debate mistura fontes e beneficiários para fundamentar as posições em disputa: contribuição da previdência e impostos, seguridade social e previdência, previdência do Regime Geral (INSS) e previdência dos estatutários. Mesmo sendo limitada ao desempenho financeiro atual, uma bem fundamentada análise que oriente decisões consistentes terá que abrir e desagregar os números, de acordo com suas características e peculiaridades, delimitando com precisão cada um dos componentes, diferen-ciando as fontes e as despesas. O diagnóstico errado é o caminho direto para decisões equivocadas ou para a passividade diante do agravamento do problema.

Além da análise desagregada do desempenho atual, a discus-são sobre a previdência tem que levar em conta a amplitude e a velocidade da transição demográfica com o envelhecimento da população e seu evidente impacto sobre receita e despesa futura do sistema. E mais do que isso, é necessário examinar o peso dos benefícios da previdência no orçamento público, a parcela dos recursos públicos que está sendo e será alocada no futuro para o pagamento de aposentadorias e pensões e que, portanto, pode faltar para os investimentos em áreas fundamentais para a quali-dade de vida dos brasileiros e o desenvolvimento do Brasil.

previdência e seguridade social

Para compreender a problemática da previdência social no Brasil é necessário, antes de tudo, desvendar a enorme complexi-dade do sistema e a diversidade de beneficiários e fontes, come-

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4545O nó da Previdência Social

çando por distinguir o Regime Geral da Previdência Social, que contempla os trabalhadores do setor privado, do Regime Próprio da Previdência Social, específico para os servidores públicos. Apenas o primeiro é considerado um dos componentes da Seguri-dade Social, que contempla ainda a Saúde e a Assistência Social.

O sistema de Seguridade Social, que reúne a Saúde, a Assis-tência Social e a Previdência Social (apenas o Regime Geral), tem sido superavitário nos últimos anos, apresentando um saldo de R$ 16,6 bilhões, em 2015. Mas a previdência social é deficitária quando se confrontam as despesas com os benefícios (aposenta-dorias e pensões), com a receita decorrente da contribuição dos trabalhadores e dos encargos sociais. Em 2015, o resultado da previdência social dos trabalhadores do setor privado apresentou um déficit de R$ 78,6 bilhões.

Isto significa que os outros dois segmentos da Seguridade Social – Saúde e Assistência Social – estão financiando o rombo da previdência do Regime Geral. Ou seja, o Brasil está tirando dinheiro que poderia ir para a Saúde, com um sistema em estado degradante, para pagar benefícios da previdência que, por lógica e justiça, teria que ser financiado apenas pelas contribuições (dos próprios trabalhadores e dos seus patrões). Em síntese: o Regime Geral da Previdência Social tem sido deficitário, tendo apresen-tado, em 2015, um buraco de quase oitenta bilhões de reais. Parte significativa dos recursos de contribuições tributárias dos brasi-leiros destinados à Seguridade Social strictu sensu (sem a previ-dência) está sendo destinada para a previdência, em vez de melho-rar os serviços de saúde ou mesmo ampliar a assistência social. Não parece justo e, além do mais, confunde as fontes adequadas a cada tipo de proteção social.

Por outro lado, dentro dos 28 milhões de beneficiários da Previ-dência do Regime Geral, existe uma enorme diferença entre os trabalhadores urbanos e rurais. Na verdade, se forem analisados separadamente a contribuição e as despesas com os benefícios, a previdência social é superavitária no meio urbano mas carrega um enorme déficit da previdência rural. Este déficit é o resultado direto da enorme informalidade no meio rural (incluindo agricultores familiares) na medida em que a esmagadora maioria dos trabalha-dores rurais não contribui para a previdência (apenas um por cento deles faz sua contribuição) . Com apenas 32,4% do total de benefi-ciários, a previdência rural tem um déficit de R$ 90,96 bilhões (2015), embora tenha um valor de benefício médio bem inferior ao da previdência urbana. Considerando que, pelas suas condições de

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trabalho, grande parte dos trabalhadores rurais não pode mesmo contribuir, o mais acertado seria incluí-los na assistência social, aliviando o peso dentro do sistema de previdência.

previdência do setor público

A grave situação financeira da previdência social do Brasil reside no Regime Próprio dos Servidores Públicos que, como vimos, é um sistema separado do Regime Geral e não é conside-rado parte da seguridade social. Com apenas 1,3 milhão de aposentados, a previdência do setor público gera um déficit de R$ 72,5 bilhões (2015), quase tanto quanto o registrado no Regime Geral com seus 28 milhões de beneficiários (R$ 78,6 bilhões). Esta desproporção reflete a enorme desigualdade dos benefícios dos dois sistemas: o aposentado do Regime Geral (INSS) recebe, em média, R$ 1.164,10 (dado de 2016) e o aposentado do setor público tem um benefício médio de R$ 8.419,18 que, diga-se de passagem, esconde outra desigualdade, na medida em que os beneficiários do Judiciário, do Ministério Público e do Legislativo não recebem menos de R$ 20 mil reais por mês.

Vale lembrar, em todo caso, que esta análise se limita à União e que os problemas da previdência do setor público se multiplicam nos estados e nos municípios. Estudo realizado por Samuel Pessoa e Vilma da Conceição Pinto (FGV-Fundação Getulio Vargas/Ibre) estima um déficit total da previdência dos estados brasileiros de R$ 77 bilhões, em 2015 (www.estadao.com.br), pouco mais do que o déficit da previdência da União no Regime Próprio (servidores públicos). E, segundo levantamento do economista Nelson Marconi (FGV), ao longo dos próximos dez anos, cerca de 48% dos servido-res públicos estaduais terão direito à aposentadoria com salário integral (www.novojornal.jor.br). Apenas no Governo Federal, se forem somados os dois sistemas de previdência – Regime Geral e Regime Próprio do setor público – o déficit em 2015 chegou a R$ 150 bilhões de reais (ou 2,6% do PIB).

Entendendo que a previdência social, tanto o Regime Geral quanto o Regime Próprio, deve ser financiada pelas contribuições dos trabalhadores e empregadores e não pela receita tributária, o desempenho financeiro já é insustentável no presente. Ignorar o déficit e a sua composição é um caminho certo para um diagnós-tico errado do problema que deve levar a decisões e escolhas equi-vocadas e de resultados desastrosos. A discussão em torno da previdência (e das alternativas de reforma) deve considerar estas

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enormes diferenças dos sistemas para focar nos aspectos mais relevantes e graves de comprometimento financeiro presente e futuro. Embora legislação de 2013 tenha acabado com a aposenta-doria integral do servidor público, definindo o mesmo teto dos trabalhadores do sistema privado, a medida vale apenas para os que entrarem no serviço público a partir da data que entrou em vigor. Portanto, a pressão sobre a previdência vai continuar elevada nos próximos 35 anos, na medida em que vai se aposentando uma geração inteira contratada nos anos anteriores. Se não for criado um sistema de transição, nos próximos anos, o déficit da previdên-cia do Regime Próprio deve crescer bastante no futuro próximo.

Crise se agrava no futuro

Se, no presente, a crise da Previdência se manifesta diretamente no Regime Próprio do setor público e na previdência rural, no futuro nenhum segmento estará livre das rachaduras e a salvo da falência. De 2000 a 2015, as despesas com benefícios do Regime Geral da Previdência Social cresceram de 5,4% para 7,5% do PIB. O aumento da despesa acompanhou o crescimento do número de benefíciários que saltou de 17,5 milhões, em 2000, para 28,3 milhões, em 2015, crescimento de 3,4% ao ano, muito acima da média de crescimento da economia (10,8 milhões a mais de beneficiários).

Este aumento dos beneficiários é uma decorrência direta do envelhecimento da população em ritmo muito superior ao aumento da população apta para o trabalho e, portanto, para a contribui-ção previdenciária. De 2000 a 2014, a população em idade ativa cresceu 1,49% ao ano e a população idosa (com 60 anos ou mais) cresceu 3,48% ao ano (IBGE).

Esta evolução do passado recente deve se acelerar no futuro como resultado do envelhecimento da população que é estrutural, previsível e inarredável. De acordo com projeção do IBGE, nos próximos 35 anos, a população idosa (60 anos e mais) deve cres-cer a uma taxa média de 3% ao ano, praticamente dobrando de 2015 a 2035 – passa de 24 milhões para 48 milhões de pessoas – e chegando a 66 milhões, em 2050, o que representa quase 30% do total dos brasileiros. Mesmo se for considerado idoso apenas com 65 anos e mais, mais do que dobra de 2015 a 2035, passando de 16 milhões para 35 milhões. O resultado será uma enorme pres-são sobre as despesas com os benefícios da previdência social.

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No mesmo período, a população em idade ativa, terá uma queda de 0,13% ao ano; assim, a relação entre população ativa e inativa deve passar de 5,7, em 2015, para apenas 2, em 2050, de modo que se todas pessoas aptas para o trabalho estivessem ocupadas, o que não ocorre porque apenas cerca de metade está no mercado de trabalho, cada trabalhador teria que financiar os benefícios de dois idosos (projeção demográfica do IBGE). Mesmo aumentando a idade mínima para 65 anos, a relação seria ainda de 2,8 trabalhadores ativos para bancar um inativo. Logo, manti-das as regras atuais da previdência, em 2050 cada trabalhador teria que triplicar a sua contribuição para manter a relação receita-despesa do sistema previdenciário.

Passado e futuro

A discussão sobre a previdência social deveria avaliar também os custos alternativos da aposentadoria e das pensões no orça-mento público, absorvendo parcela relevante e crescente dos recursos disponíveis para investimento e custeio no Brasil. Supondo que a carga tributária do Brasil já alcançou patamares elevados (35% do PIB), sendo atualmente pouco inferior à da Alemanha, qualquer aumento dos gastos na previdência social deve reduzir disponibilidade para outros itens e rubricas do orça-mento. Quanto maior o gasto com benefícios da previdência, menor a disponibilidade de recursos da União, dos estados e dos municípios para aplicação em fatores determinantes do desenvol-vimento, especialmente educação e inovação. Como um compo-nente das despesas primárias, a previdência social deve ser anali-sada e discutida como parte de uma estratégia de alocação de recursos prioritários para o desenvolvimento nacional com desdo-bramentos presentes e futuros na realidade brasileira. Nos últi-mos dez anos (2005 a 2015), as despesas com a Previdência Social (Regime Geral e Regime Próprio) têm flutuado em torno de 26,7%, de acordo com estimativa da FGV.

A previdência social é um instrumento fundamental de distri-buição de renda para a população inativa e idosa, constituindo um benefício da economia para os que não mais produzem riqueza. Mas esta distribuição de renda não contribui para o desenvolvimento, representando, na verdade, uma redução da poupança nacional transformada em renda das famílias. Em outras palavras, a previdência social (assim como as diferentes formas de Assistência Social) é um resultado positivo do desenvol-

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vimento econômico com a proteção dos que não podem produzir riqueza (nem mesmo seu próprio sustento), mas constitui, em última instância, uma forma de consumo de poupança, fator deci-sivo para investimento. Nos últimos dez anos, a previdência social do INSS (Regime Geral e Regime Próprio) comprometeu, em média, 26,7% do orçamento da União e 8,9% do PIB-Produto Interno Bruto. Em 2015, Previdência e Serviço da Dívida comprometeram juntos 50,04% do Orçamento da União. No mesmo ano, deste foram autorizados apenas 5,27% para Educação (tendo sido executados apenas 76,6% do previsto), 5,13% para Saúde e insig-nificantes 0,48% para Ciência e Tecnologia.

Ao longo das próximas décadas, considerando o aumento iner-cial das despesas, provocado pelo envelhecimento da população, a Previdência Social (RGPS e RPPS) deve ampliar sua participação no Orçamento da União, mesmo sem o congelamento das despesas primárias definido pela PEC-Proposta de Emenda Constitucional 241, na medida em que os benefícios devem crescer mais que a receita ainda supondo que a economia volte a ter, no médio prazo, um crescimento em torno de 3% ao ano. Com o congelamento do total das despesas públicas federais, nos próximos 20 anos, e consi-derando que a PEC não pode conter os gastos previdenciários, a participação destes no Orçamento vai crescer rapidamente até 2035, podendo chegar a nele comprometer 44,6%. Assim, não sendo reali-zada uma reforma da previdência, os gastos com benefícios (Regime Geral e Regime Próprio) vão forçar uma violenta compressão dos outros itens de despesas, prejudicando a disponibilidade de recursos para educação, saúde, qualificação profissional e inovação.

Conclusões

A previdência social, com o crescente déficit e elevada partici-pação no Orçamento, está consumindo o futuro do Brasil na medida em que gasta poupança e reduz a disponibilidade de recursos para investimentos em áreas estratégicas que preparam o futuro. Os dados mostram que a previdência social, com os dois regimes (RGPS e RPPS), já tem um déficit de R$ 150,90 bilhões (em 2015) e compromete mais de 24% do Orçamento da União (2015). Nas próximas décadas, se não houver uma drástica reforma nas regras de aposentadoria, este déficit pode explodir, a depender do ritmo de crescimento da receita das contribuições que, por seu turno, depende da retomada da economia e do nível de formalização do trabalho.

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Estudos estimam para o período até 2050 um déficit atuarial futuro de R$ 1,2 trilhão da Previdência da União (que chegaria a 21,9% do PIB a preços de hoje), considerando apenas os servido-res civis. Se for acrescentada a estimativa de déficit atuarial dos estados, o total do desastre previdenciário futuro é da ordem de R$ 3,6 bilhões (65,8% do PIB). Análise realizada por Marcelo Abi-Ramia Caetano mostra que o déficit previdenciário dos esta-dos deve crescer em 5,3% ao ano, até 2030, enquanto para os municípios essa taxa crescerá em 12,3%, sempre muito acima do que se pode imaginar para elevação do PIB, dos orçamentos e das receitas previdenciárias.

Ou seja, sem uma reforma da previdência, o Brasil quebra no médio prazo. Alguns estados já estão quebrados. E o Brasil precisa da poupança que está sendo consumida pela previdência para investimentos nos fatores centrais do desenvolvimento econômico e social – educação, formação profissional, inovação e infraestrutura. Como não é viável aumentar a carga tributária, já bastante alta para um país de renda média, é fundamental que o Brasil reduza as despesas correntes, e aposte na alocação da poupança no que, de fato, constrói o futuro. O que exige a realização de uma imediata e profunda reforma da previdência para deter o processo silencioso de crescente comprometimento da receita pública com o passado.

São muitos os pontos discutidos numa reforma da previdên-cia. Mas, considerando o diagnóstico anterior, quatro aspectos merecem destaque. O mais geral seria a elevação da idade mínima de aposentadoria para 65 anos para os dois sistemas – RGPS e RPPS – e para todas as categorias, acabando com os injustifica-dos regimes especiais e com a diferença de gênero. Dentro do Regime Geral, merece um tratamento diferenciado a previdência dos trabalhadores rurais, procurando combater a evasão e a informalidade disfarçada de trabalhadores rurais em atividades formais que podem e devem contribuir para o sistema. O restante deve ser transferido para a Assistência Social não apenas como um recurso contábil, mas como uma forma de diferenciação das características dos trabalhadores e sua capacidade de contribui-ção para a previdência social.

Entretanto, a mais importante reforma da previdência deve ser feita no Regime Próprio dos servidores públicos, complementando a lei de 04/02/2013, que acabou com a aposentadoria integral e defi-niu um teto igual ao do Regime Geral: extensão da regra para os atuais servidores com menos de 50 anos de idade e menos de 20

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anos de contribuição e definição de mecanismo de transição para o restante, com proporcionalidade do benefício, de acordo com o prazo para aposentadoria. Ao mesmo tempo, seria reforçada a previdência complementar (acima do teto), promovendo a transição do regime financeiro de repartição – que distribui no mesmo ano a receita gerada pelas contribuições geradas – para um regime de capitalização. Esta mudança teria uma dupla vantagem: redução da pressão sobre o orçamento e formação de uma poupança adicio-nal que, além de garantia dos benefícios futuros, financiaria os investimentos estruturadores na economia brasileira.

Se, como disse Mansueto de Almeida, o Brasil “envelheceu antes de ficar rico”, a reforma da previdência é fundamental para promover uma inflexão na tendência de falência do Estado brasi-leiro, de modo que o envelhecimento futuro da população seja acompanhado de um substancial aumento da riqueza nacional.

Referências

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ANFIP. Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil; Fundação Anfip de Estudos da Seguridade Social e Tributário. Análise da Seguridade Social 2015. Ago./2016 – 16. ed. Brasília: Anfip, 2016.

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5252 Sérgio C. Buarque

TAFNER, Paulo; GIAMBIAGI, Fabio (orgs.). Previdência no Brasil: debates, dilemas e escolhas. IPEA. Rio de Janeiro, 2007.

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VANDERLEY, José Maçaneiro. Financiamento da Previdência Social: receitas, renúncias e recuperação de créditos. Anfip. Previdência Social. Contribuição ao debate. Maio/2016.

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Alternativa aos extremos

Fernando Luiz Abrucio

O crescimento do populismo no mundo, geralmente de extrema-direita, deve ser criticado, mas, antes de tudo, deve ser compreendido como um fenômeno social. Ele é

fruto da incapacidade de o capitalismo do século XXI em lidar com a desigualdade e com a integração de diversas parcelas da popula-ção. Obviamente que houve avanços nos últimos 30 anos, porém, eles foram insuficientes para evitar o surgimento de extremistas. É preciso fugir da dicotomia globalismo liberal versus naciona-lismo populista se quisermos evitar o retorno de autoritarismos, como ocorreu entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial.

Talvez a lição de outros momentos de crise do capitalismo possa servir como parâmetro para repensar a política atual. É interessante notar o que ocorreu em dois períodos paradigmá-ticos, o do pós-Comuna de Paris e o do final da Segunda Guerra Mundial. Em ambos, houve reformas importantes, destinadas a combater desigualdades. No primeiro deles, houve reformulação da legislação trabalhista, criação de aparatos previdenciários, construção das primeiras burocracias meritocrática-universalis-tas e o primeiro grande impulso à expansão do sufrágio univer-sal. No segundo, a mudança foi muito mais profunda, com a montagem de Estados de Bem-Estar Social em quase toda a Europa e noutras partes do mundo.

Nas duas ocasiões, existiam várias forças reformistas, tanto à esquerda como entre certos círculos liberais – entre estes últimos basta lembrar o papel de Stuart Mill na Inglaterra e, posterior-mente, de Woodrow Wilson e os chamados “progressivistas” nos Estados Unidos. Mas foram os intitulados socialdemocratas os atores que mais se identificaram com o ideário de reformas. Se é verdade que seus papeis foram diferentes ao longo do tempo e nos vários lugares, nos casos mais bem-sucedidos foram capazes de estabelecer uma aliança pluriclassista que construiu um modelo político e econômico ancorado na tentativa de conciliar a produ-ção da riqueza com a sua distribuição.

Esta visão socialdemocrata entrou em colapso nos países desenvolvidos na década de 1990. Houve uma tentativa de recons-

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truí-la com a chamada Terceira Via, comandada pelo trabalhista britânico Tony Blair. Houve até avanços nesse período, especial-mente na gestão pública e na adoção de ferramentas tecnológicas para tornar os governos mais transparentes e abertos. Mais recentemente, líderes como o presidente Obama avançaram também em agendas progressistas, no campo dos valores e no terreno ambiental. Entretanto, mesmo essas lideranças fracassa-ram em criar uma nova aliança social para combater a desigual-dade, que é crescente na maioria dos países ricos.

O populismo não é o melhor substituto do globalismo liberal, evidentemente. O retorno a um nacionalismo pré-Muro de Berlim, combinado com discursos baseados num moralismo fascistóide – pois persegue minorias e alimenta a intolerância – e em promes-sas de um “governo forte”, constitui uma fórmula que vai aprofun-dar a crise, em vez de resolvê-la. Para além do front interno, o modelo populista vai gerar grande instabilidade geopolítica no mundo, atingindo aquilo que a globalização obteve de estabili-dade internacional, ainda que ela não se estenda a todo o planeta.

O desafio maior hoje, portanto, está em criar outra alternativa, que passe, de um lado, por novos pactos nas democracias que garantam uma combinação ótima entre produção de riqueza e sua redistribuição, e, de outro, por reformulações na globalização, para que os aspectos positivos da integração internacional sejam acom-panhados de uma redução da assimetria entre os países.

Uma possibilidade seria pensar numa socialdemocracia vincu-lada aos desafios do século XXI. Claro que ela teria conformações diferentes nos diversos espaços nacionais, levando em conta a história e a assimetria entre os países. De todo modo, sua agenda seria uma renovação da ideia reformista que a instituiu: um pacto pluriclassista capaz de balancear melhor a produção capitalista com o combate à desigualdade. Não seria possível hoje fazer isso da mesma maneira que no passado. São muitas as mudanças que precisaram ser levadas em consideração: tecnológicas, demográfi-cas, na distribuição econômica da riqueza entre as nações etc. Porém, tais dificuldades não devem gerar inação; ao contrário, devem estimular políticos, intelectuais e lideranças sociais a pensar num novo paradigma. Afinal, também não estava claro o que fazer em outros momentos de reforma do capitalismo.

A agenda desse novo reformismo deve incorporar um conjunto de pressupostos. O primeiro é a necessidade de fazer as mudan-ças reforçando as instituições democráticas, sejam as clássicas,

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sejam os instrumentos de participação e transparência constituí-dos mais recentemente. É preciso refletir sobre como construir um pacto social mais amplo usando o aparato democrático numa sociedade muito fragmentada como a atual. A abertura de canais de conversa e diálogo do governo com os cidadãos, para ouvi-los e pensar juntos a solução para os problemas, é uma estratégia essencial contra o populismo.

O segundo pressuposto diz respeito à necessidade de incluir uma nova tábua de direitos que surgiram nos últimos anos. Ques-tões vinculadas às chamadas minorias, a sustentabilidade ambien-tal, o modo de vida nos grandes centros urbanos, a preocupação com as alterações demográficas, principalmente o envelhecimento, enfim, são temáticas que precisam focar a ampliação das oportu-nidades e a qualidade de vida. Alguns desses tópicos poderão esbarrar na resistência de grupos mais conservadores. No entanto, é preciso dialogar com eles e mostrar possibilidade de se conviver com perspectivas plurais de liberdade individual e coletiva.

Qualquer tentativa de colocar o Estado como o centro desse novo pacto socialdemocrata passa pela melhoria da gestão pública. Muitos avanços ocorreram nos últimos anos e devem ser aprofundados. É preciso organizar as políticas públicas por meio de metas, indicadores e formas de aprendizado organizacional capazes de aumentar a eficiência, a efetividade, a equidade, a ética e a accountability do Poder Público. A produção de melhores resultados governamentais é essencial para dar legitimidade a uma mudança de paradigma.

Nesta linha, é fundamental que as evidências científicas sejam uma arma da nova socialdemocracia, realçando quais são os meios adequados para resolver os problemas coletivos, sem preconceitos ideológicos que paralisem a ação. Eis aqui um ponto importante de contraposição com o populismo e mesmo com o globalismo liberal: com o primeiro, porque ele tem se demons-trado anticientífico por natureza (como era o fascismo), e com o segundo, porque muitas vezes o ideário liberista tem ignorado fatos evidentes, como o crescimento da desigualdade e do descon-tentamento derivado dela.

Também é essencial focar naquelas áreas que têm maior efeito acumulado contra a desigualdade e pela maior integração social. Não conseguiremos derrotar os populistas se a educação e a saúde, principalmente, não forem para todos e fornecidas com qualidade. Afinal, olhando para os EUA, as disparidades de

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formação educacional explicam uma parte importante do voto pró-Trump. Mas a política educacional tem de ser um meio não só de aumentar a empregabilidade, como também de reforçar valores plurais e democráticos de convivência, que são atacados constan-temente pelas redes sociais.

Claro que muitas ideias liberais são essenciais à melhoria da sociedade contemporânea. Além do liberalismo político e sua defesa da liberdade, o empreendedorismo, a busca de eficiência tecnológica, a competição econômica – contra os “amigos do rei” –, entre outros aspectos, devem ser incorporados à socialdemocra-cia de forma bem equilibrada. Ademais, é essencial que setores democráticos de esquerda que não se considerem socialdemocra-tas tenham um papel central nesse processo, pressionando cons-tantemente na luta contra a desigualdade. Só houve avanço nas reformas do capitalismo quando os reformadores souberam incor-porar ideias de outros grupos e se viram pressionados por eles.

E como esta situação pode ser pensada para o Brasil? Desde a Constituição de 1988 e passando pelos governos FHC e Lula, o país teve muitos avanços institucionais e sociais. Por um período de 20 anos, entre 1993 e 2013, tivemos um modelo socialdemocrata à brasileira, capaz de incorporar milhões de pessoas à cidadania por meio do jogo democrático, algo inédito em nossa história. Mas desde as jornadas de junho este paradigma entrou em colapso.

O futuro do Brasil vai depender da maneira como vamos resol-ver esta crise e entrar num novo modelo. Precisamos, ao mesmo tempo, reformar o Estado, melhorar a produção da riqueza e continuar fazendo, com efetividade, a redistribuição de recursos e oportunidades. A reforma da previdência mandada ao Congresso faz parte disso, mas, sobretudo em relação às transferências aos mais pobres, é completamente equivocada. Se fracassarmos nesse projeto de sair do buraco aberto desde 2013, daremos chances para os populistas em 2018. É sobre isso que deveriam estar conversando as principais lideranças políticas e sociais do país.

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III. Observatório

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Autores

Dimas MacedoJurista, mestre em Direito, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará

Raimundo SantosProfessor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro .

Walter VeltroniFoi duas vezes prefeito de Roma, em 2001 e 2006 . Em 2007 tornou-se o primeiro secretário nacional do Partido Democrático .

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A política brasileira segundo Caio prado jr.1

Raimundo Santos

Ainda hoje nos surpreende ver como Caio Prado Jr. analisa as conjunturas políticas dos governos de Juscelino Kubistchek e João Goulart, tomando por fato básico o desencontro entre

o mundo político e a dinâmica da sociedade daqueles tempos. A narrativa caiopradiana desse breve período tem como ponto de partida o movimento de opinião pública pluralista que, desde a posse de JK no começo de 1956, havia despertado energias desen-volvimentistas e afirmado a ideia de reforma na esfera pública. Os seus protagonistas são os partidos políticos requeridos a forta-lecer a vida democrática e suas instituições representativas.

As reflexões do historiador indicam as possibilidades das transformações do país, mas também mostram as debilidades da estrutura partidária, exibindo os impasses da política brasileira da qual dependia o seu encaminhamento. Analista de conjuntura com vistas postas no agir efetivo, ele chega a dirigir a todos os atores político-partidários da época um alerta sobre os perigos da situação de “desequilíbrio catastrófico” que se formara em 1961 com a renúncia de Jânio Quadros. Chama particularmente a atenção para a “falsa radicalização” das esquerdas que pensavam em saltos revolucionários naquele momento em que a instabili-dade política crescia e paralisava a tentativa de realização das medidas reformistas então postas em discussão na cena pública.

1 Este texto retoma passagens do livro Caio Prado Junior na cultura política brasileira (Mauad/Faperj, Rio de Janeiro, 2001), no qual comentamos quatro artigos que Caio Prado escreveu para a Revista Brasiliense, entre os anos 1956-62.

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Na sua análise do começo de 1956, “O sentido da anistia ampla”, Caio Prado Jr. valorizava a eleição de Juscelino Kubitschek, por ela ter tido origem em um forte movimento de opinião pública (“sem dúvida uma das mais vigorosas afirmações da vontade popular registradas em nossa história”), opinião pública que, primeiro, pesara na aceitação do resultado da eleição e, depois, impulsio-nara a mobilização pela posse do Presidente vitorioso nas urnas. Abria-se, dizia ele, um quadro com “perspectivas promissoras” para o processo político, havendo um “sopro de renovação” no governo, dado pelo fato de JK o ter constituído em um novo tempo em que “as grandes transformações ocorridas desde a última guerra começam a amadurecer e se fazerem nitidamente sentir” (Revista Brasiliense, n. 4, mar.-abr./1956).

Mesmo sendo um governo formado em meio a acordos partidá-rios (“sem conteúdo ideológico e cimentados quase unicamente por interesses pessoais”), o seu desafio consistia em dar passagem às forças renovadoras, antes dispersas, que se haviam reunido na eleição sob a forma “de amplos setores da opinião pública” mobili-zados pela ideia de reforma; aberto o caminho para que aquele despertar político se desenvolvesse em profundidade. (Revista Brasiliense, n. 4, mar.-abr./1956).

No seu segundo artigo, “A política brasileira”, publicado no final de 1956, comparando as poucas medidas “positivas” com as muitas “negativas” adotadas por Juscelino no transcurso do ano, Caio Prado Jr. centrava sua análise no plano propriamente da política, perscrutando as possibilidades reais das mudanças, realçando o papel dos partidos. Para ele, o desempenho do governo e da oposição (“O que se pode observar é unicamente uma oposi-ção que ataca, e um governo atacado que se defende”) mostrava-se ser um terreno pantanoso por onde o grande programa de “industrialização e desenvolvimento econômico” (sic) que emer-gira na eleição ia se esvaindo em razão da “improvisação, super-ficialidade e inconsequência da atual administração”, ajustando-se ao novo padrão de crescimento capitalista mediante “medíocres dependências” aos trustes internacionais em detrimento da mobi-lização da massa da população para o trabalho produtivo e eficiente. (Revista Brasiliense, n. 8, nov.-dez./1956).

Este é o diagnóstico que fazia daqueles anos 1950: “O certo é que as instituições políticas brasileiras se acham desconjunta-das”. E explicava: “A sua base essencial, que são ou deveriam ser os partidos políticos, não tem consistência alguma”. Os partidos precisavam, antes de tudo, começar a existir, afirmar “a persona-

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lidade independente dos indivíduos que os compõem e eventual-mente os representam”. Estas definições compunham a argumen-tação do autor: “Cabe aos partidos transpor essas questões (que se propõem no desenvolvimento da vida econômica e social) para o plano político, dar-lhes uma elaboração teórica adequada e submetê-las assim ao debate público e à opinião do país. É somente assim que se irá formando um pensamento coletivo e uma cultura popular capazes de orientar a vida política do país, colocando-a a salvo de agitações estéreis e do caos que, de outro modo, estarão sempre iminentes”. (Revista Brasiliense, n. 8, nov.-dez./1956).

Caio Prado Jr. se voltava para a “questão geral” da democrati-zação da vida política nacional, dizendo que a democracia era, “antes e acima de tudo, o conjunto de práticas através das quais se torne(a) possível ao povo em geral adquirir consciência de seus problemas e necessidades, formar opinião sobre a maneira mais conveniente de resolver aqueles problemas e dar satisfação às necessidades; e, finalmente, fazer com que essa opinião seja levada em conta na administração pública do país. A liberdade e os direitos políticos assegurados na Constituição brasileira e nas leis não têm ou não devem ter outros objetivos que aqueles. E se explicam e justificam na medida exclusiva em que contribuem para isso. De nada servem portanto se deles se excluir o conteúdo concreto que vem a ser o fato de servirem de caminho e instru-mento de participação popular na direção e administração do país” (Revista Brasiliense, n. 8, nov.-dez./1956). O autor falava de uma democracia de partidos e procedimental – “esta verdadeira democracia” – como a mais importante condição para o “funcio-namento regular” das instituições políticas e da administração pública: “Não é possível governar e administrar o país, no mundo de hoje e naquele que se projeta para futuro, sem ser na base de fortes correntes de opinião pública nas quais os governos busquem não somente inspiração para seus atos, como agentes políticos e administrativos capazes de realizar de maneira consequente e fecunda as tarefas que incumbem aos órgãos do poder”. (Revista Brasiliense, n. 8, nov.-dez./1956).

Nesse texto, ele retornava ao antigo tema das suas reflexões sobre a vida nacional – a indiferença política –, aludindo ao ceti-cismo da “grande maioria da população” ante as respostas que ela esperava da administração pública sem ver sinais de solução satis-fatória aos seus problemas: “O povo não está nem mesmo em condi-ções de saber ao certo o que deve ou pode esperar. Falta-lhe para

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isso suficiente coesão ideológica; e, em matéria de pensamento e ação política, não vai além do imediato. A direção que têm tomado os sufrágios populares em tantas instâncias mostra isso clara-mente. Resulta daí que nem o governo e os partidos que o susten-tam podem contar com um apoio popular suficiente para levarem a cabo uma tarefa administrativa de largo fôlego; nem a oposição, por motivos semelhantes, conta com autoridade moral para servir de freio aos erros do governo. E não tem outro recurso, para justi-ficar sua existência, que se agitar freneticamente e sem outra pers-pectiva que arrastar o país nessa agitação estéril”. (Revista Brasi-liense, n. 8, nov.-dez./1956).

Com a persistência das velhas práticas da política brasileira – de “hostilidades pessoais ou de grupo”, “de rivalidades de campa-nário” e dos debates de questões políticas e administrativas “no plano de suas preferências doutrinárias e convicções pessoais” –, Caio Prado divisava um quadro político sombrio, de crescente confusão e vazios que haveriam de alimentar os grandes interes-ses nacionais e internacionais à espera de “dias ainda piores de completa desordem e desorganização da vida administrativa do país”. (Revista Brasiliense, n. 8, nov.-dez./1956).

Na terceira dessas análises caiopradianas, “Panorama da polí-tica brasileira”, publicada no final de 1961, já em andamento o governo Jango, a avaliação do momento era de grande preocupa-ção. O foco era a circunstância de “desequilíbrio catastrófico” que se estava criando a partir de uma situação de “vácuo” e “marasmo”. Ele chega a interpelar as “forças políticas dominantes sobre que recai a responsabilidade da direção do país” pela omissão numa hora “em que mais se fazia sentir a necessidade da ação, de uma tomada decisiva de posições, de perspectivas claras e de realiza-ções de grande envergadura” (Revista Brasiliense, n. 38, nov.-dez./1961). Dizia que a política brasileira se encontrava num “ponto morto”, na “completa esterilidade dos seus atuais quadros políticos”, vivendo-se uma situação que se deteriorava sem uma estrutura político-partidária capaz de dar passagem a formas de “atividade política fecunda e de perspectivas”. (Revista Brasi-liense, n. 38, nov.-dez./1961).

Assim ele via a raiz dessas “incongruências” e “inconsequên-cias” que “estranhamente” se perpetuavam: “Realmente, a polí-tica brasileira ainda se acha fundamentalmente disposta dentro de um velho esquema inteiramente superado pelos fatos e, que herdado de um passado que já se vai tornando remoto, vem anacronicamente se arrastando sem renovação. Esse esquema

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vem dos tempos em que a figura de Getúlio Vargas ocupava o centro de nossa vida política. Essencialmente, os nossos partidos e agrupamentos políticos ainda formam nos dois campos originá-rios das forças que no passado respectivamente apoiaram Getúlio Vargas e lhe fizeram oposição” (Revista Brasiliense n. 38, nov.-dez./1961). Este velho “dispositivo político” projetava a “ilusão” de que “as contingências e vicissitudes da política brasileira são reflexo da correlação de forças econômicas e sociais no plano das lutas político-partidárias”, anulando num “jogo estéril” (sic) “uma larga parcela de esforços honestos e dignos de melhor sorte” (Revista Brasiliense, n. 38, nov.-dez./1961).

A eleição de Jânio também reproduzira o “obsoleto esquema faccioso que é o PSD-PTB, de um lado, e a UDN, do outro”. Caio Prado observava que não seria nada estranho que, nesse quadro, a demagogia “populista e esquerdizante” de Jânio ganhasse conteúdo popular apenas para, em sua aventura, levar a uma situação de “paralisia” da política brasileira. Essa “cena política oficial” envolvia os debates em torno das questões nacionais com uma “nebulosa estratosfera de vagos princípios abstratos onde, embora debatidos, não oferece a menor possibilidade ou probabi-lidade de se traduzirem em realizações concretas” (Idem). Os partidos políticos deveriam aposentar “definitiva e inapelavel-mente o decrépito dispositivo político-partidário” e se reestrutu-rarem “em função de programas de ação efetiva no rumo da solu-ção dos grandes problemas nacionais, e na base da organização popular, isto é, tomando por fulcro os movimentos populares onde encontrarão o impulso e cooperação necessários, e somente aí o encontrarão, para aquela ação”. (Revista Brasiliense, n. 38, nov.-dez./1961).

No quarto e último artigo publicado no final de 1962, “Pers-pectivas da política progressista e popular”, ele tornava a insistir na questão da inexistência de um “sentido mais profundo” na “vida política partidária oficial brasileira”, e revelava seu pessi-mismo ante o fato de que as “aspirações e reivindicações e a problemática econômico-social brasileira” estavam apenas sendo instrumentalizadas. (Revista Brasiliense, n. 44, nov.-dez./1962).

Ao invés de ver aquele tempo do governo Jango como um terreno firme, cuja “disposição de forças” permitisse definir táticas adequa-das a um objetivo de mais alento, Caio Prado Jr exigia que as esquerdas buscassem compreender a deficiência da vida política (“revelada na inadequação dos quadros partidários à nossa reali-dade e problemática econômico-social”). Dizia que a formulação

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dos “grandes problemas” se havia tornado “clara, pelo menos em suas linhas gerais e fundamentais” e que se tinha popularizado alguns pontos dos “temas nacionais”, mas “os quadros partidários brasileiros não se dispõem em função das soluções a serem dadas a essas questões. Ou o fazem de maneira ambígua e inconsequente. Eles se dividem e agrupam não na base de programas destinados a enfrentar as tarefas propostas pelo desenvolvimento autônomo e nacional da economia brasileira e pela reforma agrária – que são os pontos em que se centralizam as questões pendentes na conjun-tura atual – e sim com vistas a insignificantes interesses de grupos partidários, quando não de simples ambições e vaidades pessoais”. (Revista Brasiliense, n. 44, nov.-dez./1962).

A responsabilidade maior por esse quadro cabia às “forças democráticas e progressistas” que haviam perdido a iniciativa perante os “fatos”, ou seja, ante os demais atores, tanto junto àqueles a quem deveriam conduzir quanto em relação aos adver-sários (e aliados) que, pela lógica da política vigente, terminavam por lhes subalternizar a ação. Dizia Caio Prado Jr. que, ao não se concentrar no labor de operar a “polarização de forças segundo os problemas nacionais”, o protagonista “democrático e progressista” deixava que aqueles problemas nacionais se disfarçassem e esvaíssem na heterogeneidade dos dispositivos partidários “que se defrontam na arena política, bem como na vagueza de formu-lações inconsistentes e inconsequentes”. (Revista Brasiliense, n. 44, nov.-dez./1962).

O analista avaliava o tempo transcorrido do governo Jango como uma conjuntura na qual não se conseguira converter a instabilidade que se formara após a renúncia de Jânio em uma fase de “grandes transformações capazes de encaminhar a solu-ção das contradições pendentes” (Revista Brasiliense, n. 44, nov.-dez./1962). Dizia ele: “O país atravessou, neste ano e pouco, uma das mais agitadas fases de sua política, uma sucessão de crises que vem abalando profundamente o país e chegando mesmo a colocá-lo na iminência de lutas armadas. Na base dessa agitação e crise, o que em última instância as alimenta, foi sem dúvida, como ainda é o caso, a intranquilidade decorrente do aguçamento das contradições profundas que dilaceram o organismo econô-mico e social da Nação e se manifestam entre outros neste efeito e sintoma tão palpável que é a crescente aceleração do processo inflacionário”. (Revista Brasiliense, n. 44, nov.-dez./1962).

A tese do desencontro entre “os fatos concretos da política partidária brasileira e as contradições profundas da nossa reali-

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dade econômica e social” baliza todas as avaliações políticas caiopradianas. A recusa das esquerdas em levar em conta essa matriz analítica vai se manifestar na sua visão enganosa de que se podia avançar o processo daqueles anos do governo Jango no sentido de uma mobilização radical. Para Caio Prado Jr., esta “falsa radicalização” era “sem dúvida um grande óbice, talvez no momento o mais sério, oposto a um fecundo desenvolvimento da política brasileira no sentido da solução das grandes contradições econômicas e sociais que afetam o organismo da Nação”. (Revista Brasiliense, n. 44, nov.-dez./1962).

Ele era incisivo em dizer que, sem a “ânsia desmedida” pelo poder naquela situação dramática do final de 1962, as “forças democráticas e progressistas” estariam em melhores condições de formular práxis (destinada a “corrigir as defeituosas vias em que se processa a política brasileira”) em favor de uma “clara definição e polarização de forças”. Era por esse caminho que se abriam perspectivas para “a solução das contradições econômicas e sociais pendentes”, interditando-se a velha lógica da política brasileira que terminava sempre por “canalizar e dissipar o dina-mismo latente nessas contradições para estéreis lutas de facções e choques de interesses personalistas”. (Revista Brasiliense, n. 44, nov.-dez./1962).

“Um primeiro e imediato passo”, dizia o militante do PCB, naqueles anos tumultuados, seria a concretização “sistemática” (sic) de um programa, “a fim de tirá-lo das vagas generalizações e dispersão de princípios que ainda hoje o caracterizam”, ter noção “precisa de como propor essas questões concretamente e de modo a lhes dar soluções expressas em normas práticas e desde logo aplicáveis”. (Revista Brasiliense, n. 44, nov.-dez./1962).

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Itália – a esquerda que se divide e a democracia

Walter Veltroni

Muitas pessoas me pediram que publicasse o texto de meu discurso na assembleia nacional do Partido Democrá-tico. É o que faço, esperando que possa ser útil. Quero

só estabelecer uma premissa: percebemos o que está acontecendo em torno das discussões e divisões da esquerda?

Retomo só os últimos três dias, só estes. Pois bem: Matteo Salvini, o líder da Liga Norte, uma pessoa que pode ter no futuro importantes cargos de governo, coloca na rede uma mensagem em que reproduz, apoiando-o, o aberrante vídeo feito por dois sujeitos que se regozijam por terem fechado num contêiner de lixo duas mulheres nômades.

Salvini acrescenta a tal filme assombroso as seguintes pala-vras: “Mas como grita esta desgraçada!”. E o mais terrível é ver que houve dezenas de milhares de like e ler os comentários de pessoas que celebram o gesto e até incitam a formas ainda mais ferozes de discriminação.

Nos Estados Unidos, o novo presidente anuncia uma fase de implementação de corrida às armas nucleares, invertendo a tendência da presidência Obama. Não é pouco. Por fim, em meio ao desinteresse de muitos, Trump impediu o acesso, num encon-tro com a imprensa, de jornais que considera incômodos. Espan-tou-me que os outros colegas tivessem aceitado esta discrimina-ção impensável e não tenham ido embora.

Três episódios, diferentes entre si, que nos devem fazer refletir sobre este tempo. Não percebemos que a democracia treme? A demo-cracia não é feita só de regras e instituições, mas também, em primeiro lugar, de um espírito, de uma exigência difusa de liberdade. Digo sinceramente – penso que como nunca antes esta não é mais uma certeza. À esquerda gostaria de dizer que, antes de fragmentar-se em mil lascas armadas umas contra as outras, deveria entender o que está acontecendo no cerne da opinião pública, especialmente nos setores mais fracos e abandonados pela política.

Há muito tempo não participo das reuniões dos organismos de nosso partido. Minhas escolhas de vida, feitas com a necessária

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radicalidade, me levaram a decidir deste jeito. Não foi fácil, como todo o resto, mas era e será correto assim. Mas hoje creio ser meu dever tomar-lhes poucos minutos para dizer o quanto me parece errado e me angustia o que está acontecendo. E gostaria de me dirigir às companheiras, aos companheiros, aos amigos com os quais conduzimos tantas batalhas, conhecemos vitórias e derro-tas, momentos de alegria e períodos difíceis. A eles gostaria de dizer que não tomem caminho diferente daquele de todos nós1.

E não dirijo este apelo em nome da tradicional exortação, ainda que legítima, à unidade. Não, digo isso porque o Partido Democrático precisa de seu ponto de vista, de seu senso crítico, de suas ideias. Penso na desorientação e na dor que estão experi-mentando as pessoas que, nestes dez anos, acreditaram na ideia e na novidade do Partido Democrático.

O PD não nasce do nada, há uma história por trás de nosso caminho. Um caminho longo que todos, sem exceção, deveríamos ter sempre na mente e no coração. A história não começa com nenhum de nós, nunca. Pela primeira vez, provenientes do século XX, a grande maioria das forças reformistas italianas, herdeiras daqueles que, combatendo unidos o fascismo, reconquistaram a liberdade, encontraram-se no PD. Derrubado o muro, terminadas as ideologias, não havia razão pela qual os reformistas não deves-sem se reunir, não devessem se propor como governo possível deste país. Antes de 1989 estas forças estavam legitimamente divididas pela história. Mas depois só se dividiram pelas próprias lógicas de contraposição.

Será o caso de recordar por uma vez que em 1994, se os progressistas e os populares estivessem unidos, teriam vencido as eleições e Berlusconi não teria governado a Itália? Será o caso de dizer que, se a experiência do primeiro governo Prodi, o da Oliveira, tivesse prosseguido, a história italiana teria tido um outro curso? Será o caso de dizer que, depois das eleições de 2006, na coalizão aconteceu de tudo – a maioria que votava contra o governo no Parlamento, as manifestações contra o Executivo com a presença de ministros deste mesmo governo? Será o caso de dizer que, se não fosse a divisão da esquerda, Romano Prodi seria eleito em 2013 presidente da República?

A esquerda, quando se dividiu, fez mal a si mesma e ao país. Esta é a verdade. Este foi exatamente o demônio da esquerda.

1 Referência aos atuais dissidentes da esquerda do PD, entre os quais Pierluigi Bersani e Massimo D’Alema.

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A doença é de natureza política e reduzi-la às características das pessoas é um atalho fácil, tal como é buscar, personalizando, os bodes expiatórios de uma síndrome profunda. O PD nasceu para superar tudo isso. A ideia do Lingotto2 não era só construir a síntese entre católicos democráticos e esquerda, era fazer um partido intei-ramente novo, por identidade, programa e forma. Um partido do novo milênio, verdadeiramente reformista e verdadeiramente radi-cal. Não ossificado em correntes, mal que não cessa de devastar o PD, mas terreno de participação autêntica, capaz de inovações corajosas e firmemente assentado em suas raízes profundas.

Um partido da esquerda, não algo indistinto. Quanto mal nos fizeram as fabulações sobre partidos da nação ou as tolices sobre o fato de que não mais existem direita e esquerda! Trump e Le Pen estão tratando de nos recordar a extraordinária diferença que existe entre quem pensa numa sociedade de oportunidades sociais e inclusão humana e quem considera pobres e imigrados como perigos ou restos a remover. O PD, ainda hoje, e também por mérito de todos os secretários que vieram depois de mim, é a força que pode a partir da esquerda imaginar a construção de uma maioria na sociedade antes ainda do que no Parlamento. Existe algo de que faço questão: combatam sempre a ideia de que a esquerda seja minoria neste país. Porque, se o for, então são minoritárias as razões dos direitos, da justiça social, das liberdades de escolha. Por isso, e ainda que fosse só por isso, a esquerda não pode se permitir ser minoria por escolha, não tem este direito. A esquerda democrá-tica deve cultivar o objetivo de conquistar amplo consenso em virtude da força, da radicalidade e da coerência de sua proposta. E, permitam-me dizê-lo com afeto, não será com a palavra de ordem da revolução socialista que isto acontecerá.

O PD nasceu por fusão, não por cisão. Entre tais cisões, por exemplo, vivi a da Refundação Comunista, quando Achille Occhetto, com uma coragem que jamais lhe foi plenamente reco-nhecida, salvou e transmitiu para o futuro a história melhor do PCI. Não estava de acordo com quem fez aquela escolha de ruptura, mas respeitava seu sofrimento, a profundidade de uma divergên-cia que nascia das ideias e só delas.

2 O Lingotto — ex-instalação fabril da Fiat no bairro turinense de mesmo nome — foi o palco do lançamento do Partido Democrático, por parte de Walter Vel-troni, em junho de 2007. Como se verá mais adiante, a ideia do PD era associar organicamente, entre outras forças reformistas, os pós-comunistas e os pós--democrata-cristãos (a Margarida, continuadora do Partido Popular).

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Dois sociólogos franceses descreveram esta fase histórica como a época das “paixões tristes”. Receio que tenham razão. Nesta dimensão inscrevo a possibilidade de que se divida hoje o maior partido da esquerda europeia por uma questão que corre o risco de não ficar esculpida nos livros de história. Bem sei que existem conflitos mais de fundo, mas para a opinião pública parece até aqui uma questão interna, de procedimentos e ritmos. As diferenças ideais, programáticas, políticas e até sobre questões éticas são legítimas e, para mim, vitais num partido que não pode nunca ter só uma cor nem ser partido pessoal, mas uma comuni-dade aberta, feita de diferenças, unida por um sentimento comum, por uma esperança comum.

Há muito tempo estou alarmado com a abulia da esquerda diante da mais perturbadora fase de mudança histórica que nossa geração conheceu. Tudo está se revolucionando, o modo de traba-lhar, distribuir a riqueza, de saber, de comunicar, o modo de as pessoas estarem em relação. A precariedade se tornou o sinal devastador de existências em suspenso. As tecnologias reduzem o trabalho, e a formação, ainda não transformada em coração social e cultural da esquerda, não prepara para o novo, não educa para um mundo que a própria política parece não compreender nem interpretar. Estamos imersos na mais longa recessão dos últimos dois séculos, o Ocidente está marcado por grande ondas migrató-rias, as mudanças demográficas estão abalando o welfare. Existe ou não matéria para uma reflexão coletiva de uma esquerda que, em todo o Ocidente, hoje está posta nas margens? A direita fez tal reflexão, consensualmente, e disso se vêm os sinais. Percebemos que hoje se pronunciam palavras de ódio e discriminação que ontem eram impronunciáveis? A esquerda tem o dever de se opor a tudo isso, inclusive em termos valorativos. E agora o que mais me interessa há bastante tempo: a democracia hoje está em apuros, parece incapaz de guiar um mundo demasiadamente veloz para suas regras, parece espremida na alternativa entre uma inquietante exigência de simplificação, até autoritária, e o mito da democracia direta.

A democracia não é maná dos céus, foi uma exceção na histó-ria humana. Vive se é transparente, se decide, se os controles funcionam. Mas vive também se é capaz de imaginar novas formas de participação e contribuição a partir de baixo que envolvam e responsabilizem todos os cidadãos, subtraindo-os assim à subal-terna e exclusiva prática da invectiva. A democracia sobrevive se os governos são estáveis. Observem que pode ser efetivamente

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devastadora a perspectiva de novas eleições nas quais não haja maioria e governos possíveis. Digo tão só minha opinião: equivo-car-se-ia quem pensasse que o modo melhor de se contrapor ao Movimento Cinco Estrelas seja a construção, de novo, de uma grande aliança “contra”.

O consociativismo não irá derrotar a antipolítica, e sim o refor-mismo verdadeiro. E permitam-me acrescentar que se agora a perspectiva é um sistema proporcional, com tantos e variados pequenos partidos capazes de condicionar o governo e decretar sua instabilidade, com os votos de preferência,3 que considero a relação mais perversa entre eleitos e eleitores, relação que só o colégio uninominal torna transparente e virtuosa; se a perspec-tiva é o retorno a um partido que lembra a Margarida e outro que lembra os Democráticos de Esquerda, bem como a coalizões hete-rogêneas reunidas por lógicas de poder; então não chamem isso de futuro, chamem de passado. Um PD mais frágil, uma centro-esquerda dilacerada por polêmicas ajudam a enfrentar estes desafios? Ajudam a evitar que prevaleçam por toda parte forças cuja intenção é a destruição da maior conquista do pós-guerra, a Europa unida? A pergunta é esta, só esta. Um partido vale para os outros, não para si mesmo.

Devemos nos acostumar a conviver, a ser alternadamente maioria e minoria num partido. Mas, estando juntos, sempre a nos respeitar e a valorizar. Devo lhes dizer a verdade. Vendo de mais longe, hoje o PD parece mais empenhado em intermináveis discussões para decidir mais o que convém aos indivíduos do que para decidir o que é mais justo para os outros. Quero dizer deste modo o que deveríamos fazer: menos reuniões de corrente, mais representação das exigências sociais. Somos filhos de gente que nos educou assim. Não pensavam em si mesmos ou no que lhes convinha os rapazes que saíram finalmente livres de Via Tasso depois da Libertação.4 Não pensavam em si mesmas as mulheres que, afirmando seus direitos, abalaram a Itália, fazendo-a tornar-se moderna. Nem o faziam os católicos que afirmavam a paz quando a guerra parecia óbvia. Não pensavam em si mesmos os operários que faziam greve contra o terrorismo. Nós somos filhos desta história e de muito mais. Cheguei ao fim, peço desculpas, mas sentia o dever de estar com vocês, hoje. Porque espero que aquela bandeira, aquele símbolo, aquela ideia de unidade não

3 Em outros termos, a “lista aberta” das eleições proporcionais. 4 Local da prisão e centro de tortura mantido pelas SS nazistas, hoje Museu His-

tórico da Libertação, em Roma.

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sejam recolhidos e deixados de lado. Penso que a Itália e a Europa precisam muito e desesperadamente do PD, de uma comunidade de esquerda aberta, popular, reformista e moderna. Permaneçam unidos, está em jogo o destino da esquerda e da Itália.

Publicado em L’Unità, 26/02/2017Fonte: L’Unità & Gramsci e o Brasil .

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Reflexões sobre Reforma Política

Dimas Macedo

Dominado pela esperteza ou a incapacidade dos seus gover-nantes e da sua elite dirigente, o Brasil clama por uma Reforma Política e pela defesa da Constituição. Há uma insa-

tisfação, inquieta e generalizada, no oceano da cidadania, e o que se aspira, em toda a nação, é a transformação do seu estrato político.

Aquilo de que o Brasil mais necessita está ainda tamponado pelas leituras superficiais com que os aplicadores do Direito leem a Constituição, e pela ousadia com que o crime organizado estru-tura a outra Constituição, com a qual vai entretendo o Poder Judiciário e a aplicação do orçamento.

A guerra que se levanta, entre nós, desde a mobilização da classe média e da cidadania, não é apenas uma oposição ao estrato governante, mas um movimento que vai se tornando permanente contra a corrupção plantada na máquina do Estado, que desafia a Polícia Federal e o Poder Judiciário e preocupa o Ministério Público.

No plano das instituições, aquilo que mais se expõe é a incompe-tência dos nossos governantes, que não sabem olhar para a crise, tratando o interesse público como extensão dos seus interesses.

Os desvios de função, a malversação dos recursos, as omis-sões e os crimes, no âmbito do aparelho público, têm feito do Brasil um Estado sem nenhum sentido de mudança, que vive em conluio com os seus comparsas e com aqueles que corrompem as suas finanças.

Vivemos uma crise política e econômica, institucional, moral e financeira; crise de inapetência para os sentidos maiores da polí-tica ou para a condução do Poder e o abuso da autoridade; crise de não saber dizer para onde vai o Orçamento e qual a dimensão da nossa tragédia social.

O governo, que vai se confirmando no Brasil, tem ainda uma dívida de legitimidade perante os anseios da nação, apesar do aparato jurídico que o sustenta, desde a apuração do crime de responsabilidade pelo Poder Legislativo, com a tutela do Poder Judiciário.

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7373Reflexões sobre Reforma Política

A quadrilha, investigada pela Lava-Jato, ainda nos parece revestida de vários ornamentos. O crime orçamentário, até agora apurado, é apenas o indício de uma fraude que mudou a história política do Brasil e que corrompeu, ainda mais, a sua formação social, com as suas aberrações e o seu teatro, feitos para iludir os pobres e necessitados, ou armados para o conluio e a parceria com os maiores criminosos.

A corrupção no Brasil atropelou a Reforma Política; e os valo-res da economia neoliberal foram tornando as instituições impo-tentes. Os partidos se esfacelaram, desde a existência de mensa-lões ou mensalinhos, desde quando a elite governante resolveu roubar a máquina do Estado, de forma soberana e intransigente.

A esquerda perdeu o seu espaço, se apossou da máquina do Estado e submeteu-se ao sistema financeiro neoliberal, levan-tando bandeiras que nunca foram suas. Rendeu-se às exigências do mercado e se esfacelou em nome da sua permanência no poder, realizando, entre nós, a maior de todas as trapaças.

A promiscuidade do nosso sistema político, eleitoral e partidá-rio, desde a chegada da República e, especialmente, desde a virada do milênio, resolveu colocar os seus interesses pessoais acima da vontade geral, de forma que o interesse privado solapou as deci-sões daqueles que governam.

A História nos mostra que a política se caracteriza pela imprevisão, especialmente, nestes tempos em que estamos vivendo, nos quais os valores da sociedade e do Estado pedem um mínimo de garantia e de segurança para a travessia sobre a qual estamos caminhando.

Em uma primeira leitura da nossa crise política, o que defen-demos é que a Constituição seja respeitada e que o nosso discurso jurídico se ponha em harmonia com a sua estrutura semântica e com os seus princípios e valores, pois esta é a receita garantida pelo Estado de Direito.

O impeachment e a Reforma Política

Mas o que urge e o que clama na consciência da nação é a neces-sidade de um grandioso processo de impeachment que possa atingir, também, a cúpula do Poder Legislativo e a leniência e falta de isen-ção e de justiça que governam a mente de muitos dos nossos magis-trados, especialmente daqueles que são chamados de ministros.

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Uma efetiva Reforma Política implica a completa reformulação da sua estrutura eleitoral e político-partidária. E a necessidade de implementar cortes na imensa máquina do Estado e na sua exces-siva burocratização, seria um ponto de inflexão indispensável.

A redução dos privilégios e dos cargos de natureza política e funcional, a começar pelos ministérios e pelo excesso de parla-mentares, com a profissionalização de um corpo de funcionários, como nos países sólidos economicamente, seria uma boa medida, mas isso apenas ajudaria a deter o caos que se instalou no apare-lho estatal.

A base de uma reforma institucional passa pela requalificação da educação e a edição de um projeto plurianual de grande inves-timento nessa seara, onde se concentra a maior dívida social e política do país, cujos governantes, até agora, tiveram por carac-terísticas: a irresponsabilidade, a alienação, a arrogância e o personalismo a coroar as suas decisões.

No Brasil, os artigos da Constituição e as instituições e asses-sorias vinculadas ao governo federal parecem dizer muito pouco à vontade dos que fazem o exercício do poder, os quais parecem surdos ou insensíveis às maiores turbulências, como se a ineficiên-cia ou o vazio das suas decisões fossem o anteparo da cidadania.

O caráter do nosso pensamento político, sempre dual e despro-vido de compromisso para com o Brasil, envergonha-nos diante das comunidades a que pertencemos. Somos uma colônia de banqueiros e de políticos inescrupulosos, que teimam em desafiar a Constituição e a cidadania. Os nossos governantes parece que não querem (como nunca quiseram) fazer as reformas que o Brasil necessita, e se as coisas estão colocadas nesse ponto, faz-se indispensável agir. As ruas ocupadas não resolvem tudo, mas a mobilização é prova de que ainda estamos vivos e que sonhamos com algum resultado positivo.

A crise política do Brasil já nos levou a um segundo processo de impeachment, mas a crise da nossa representação partidária, no Executivo e no Legislativo, é ainda muito mais profunda. Está conectada com a falta de legitimidade e com a promiscuidade do nosso sistema partidário.

O jogo sujo para a conquista da máquina do poder, no Brasil, um dia levará a lavanderia política para o ralo, e o teatro vergo-nhoso da fraude talvez termine enterrando o Brasil em uma travessia vergonhosa.

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7575Reflexões sobre Reforma Política

A dívida social brasileira

A cultura do desperdício e as fraudes cometidas contra o Orça-mento são parcelas insolúveis dos crimes de consciência e dos crimes dolosos que minam os recursos do Estado. A forma como a tributação é exercida e a exposição da sua incapacidade de mudança, pelo Parlamento e pelo Poder Judiciário, nos levam a pensar na falta de cultura e na malícia dos nossos governantes, e nos crimes lavrados pelo fisco contra a produtividade.

Até onde o Estado brasileiro pretende nunca reduzir a máquina do Estado e até quando os nossos dirigentes continuarão reféns do mercado e dos prestadores de serviços? Teremos ou não uma lei eleitoral e partidária que não seja o tecido da prostituição e da usura generalizada?

A infraestrutura e o seu abandono, a falta de um projeto de tecnologia e de segurança das nossas fronteiras, dizem-nos, talvez, para onde estamos caminhando, que não é, com certeza, para uma mudança decisória, mas para a estagnação da máquina na qual nos espelhamos.

O que seria o Brasil, diante da dívida com a Educação? Temos ou não temos uma mentalidade que lê ou ignora? Quem seria mais defi-ciente no Brasil: a Previdência ou a Seguridade, a falta de recursos para a Saúde ou o envelhecimento das relações de trabalho?

A Federação, entre nós, constitui uma distorção da sua natu-reza. Se não mexermos neste ponto, a dívida interna do Brasil será, com o tempo, ainda mais profunda e a questão da Reforma Tribu-tária nunca será resolvida.

Tanto mais, no Brasil, uma coisa se engrandece pelas necessida-des: as condições mínimas de habitação e de trabalho para os excluí-dos, marginalizados e torturados pela irresponsabilidade dos nossos dirigentes e pela miséria da escravidão social a que foram conduzidos.

Somos, ainda, no plano jurisdicional das Cortes de Justiça, uma marca daquilo que as nossas elites desejam, desde a sua ideologia triunfante: um repositório de normas e de decisões abstrusas para os que mandam no capital e na propriedade, conquistados pela extorsão ou pelo conluio com os que repartem os roubos do Estado. E tudo isso, às vezes, contra os juízes de primeira instância e a luta incessante do Ministério Público.

A dívida social e a recuperação da confiança – especialmente a confiança do povo e a confiança dos nossos credores – são situa-

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ções que precisam ser examinadas, em face daquilo que já atingi-mos, e em face daquilo que a nossa Constituição promete.

É claro que os brasileiros conquistaram direitos inalienáveis e direitos à informação como em nenhum Estado soberano; é claro que transformaram o seu padrão de consumo, mas continuam carentes da falta de pudor e da correção política dos seus repre-sentantes. Isto, talvez, seja um defeito de fábrica, não somente dos políticos, mas também do povo, com o seu jeito malandro de ser, de extorquir a fiscalização e de querer impor a sua egolatria e as heranças da escravidão e do personalismo, com as quais a nação foi edificada.

Raimundo Faoro, Rui Barbosa, Paulo Bonavides e outros pensadores da nossa formação social e da nossa vida política, sempre recortada pelas suas crises, já refletiram acerca do cará-ter nacional brasileiro e mostraram que o Brasil é produto de uma intermitência de abalos institucionais que primam pelo persona-lismo e pela leniência.

A corrupção, entre nós, se aproxima de uma política de desmonte da Constituição e das suas regras e princípios. Contudo, apesar de ser o cancro da nação ou a alegoria de muitas eutanásias ou lixo do nosso esquecimento, ela precisa ser combatida de frente, com as armas da Constituição e da coragem, já empilhadas em todas esquinas do nosso território. As profecias constitucionais do juiz Sérgio Moro, feitas, ainda, na época do mensalão, começaram, de último, a germinar no país, e nelas já estava indicado que a corrup-ção não tem cores ideológicas de qualquer natureza, pois tanto a direita quanto a esquerda são nefandas, quando não envolvidas com os princípios políticos, acrescentando-se aqui que o ideal polí-tico mais seguro é a terceira margem, por onde escorre a aflição que se desloca da periferia contra a perversão das elites.

Mas, no Brasil, aqueles que conduzem a política institucional e partidária estão cegos e caminham pelo centro do poder com os olhos vendados: uns, espancando os fantasmas com os quais conviveram no passado; outros, recusando-se a olhar o futuro, ou com o receio de vender o pouco que lhes resta da sua consciência. O espírito doloso da política sempre foi um veneno letárgico para o povo, desde a sistematização de Aristóteles até as estratégias de conquista e manutenção do poder, que fluem da obra de Maquia-vel. No Brasil, contudo, este elemento infeccioso nos parece ainda mais sofisticado, porque recheado de componentes desumanos e porque produto da falta de escolas para a liberdade.

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A ideóloga Marilena Chauí já declarou, em um vídeo divulgado pela internet, que odeia a classe média brasileira, levando-nos a pensar, talvez, que não devemos ter opinião. Neste ponto, pensa-mos exatamente o contrário; intuímos que o governo e o Estado, no Brasil, devem ser questionados pelos seus intelectuais inorgâ-nicos, que proveem justamente dessa classe social, onde se encon-tra um eixo interativo de defesa da Constituição.

O presidencialismo e a participação

Os instrumentos da democracia participativa ainda são embrionários no Brasil. Não conhecemos o recall nem o poder de veto popular, não possuímos uma versão parlamentar de resolu-ção das crises do poder e a iniciativa dos processos de impeach-ment ainda são vulneráveis e, constitucionalmente falando, ainda carecem de uma revisão legislativa.

No Brasil, de forma reiterada, o Presidencialismo tem sido um mal-entendido, sendo o republicanismo, tão somente, uma ideolo-gia manipulada pelos demagogos, como se a Constituição não existisse com a sua força normativa e os seus princípios de grande densidade. O presidencialismo de coalização, entre nós, é um simulacro e uma falácia, e não conhecemos o sentimento constitu-cional como categoria do nosso discurso político.

As crises, neste campo, nunca serão resolvidas se não puder-mos avançar em busca do Parlamentarismo. Enquanto ele não chegar ao Brasil, teremos que conviver com os processos de impea-chment, traumáticos e desfavoráveis para toda a nação e para a confiança da cidadania.

Por outro lado, não seria apenas uma inciativa pessoal aquilo que pode levar o Parlamento à apuração de um crime de respon-sabilidade, mas um projeto de iniciativa popular é o que devemos almejar para o direito público do Brasil, especialmente nesta fase em que a Constituição se vai concretizando de forma gradativa, pela sua mutação e pela sua grandeza democrática.

Não estou afirmando, aqui, que os pedidos de impeachment, até agora processados, foram ilegítimos ou coisa que o valha, mas apenas sugerindo que as suas formas de iniciativa sejam, no futuro, ainda mais consistentes, e que se coadunem com a iniciativa popu-lar. As leis de iniciativa popular e os projetos ou propostas relaciona-dos a essa temática da democracia participativa serão sempre bem-vindos em qualquer nação civilizada, tanto mais no Brasil, onde

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temos uma Constituição cidadã em pugna com uma elite distorcida, que se acha à margem das normas jurídicas de maior hierarquia, mas que já é atingida pela concretização da Carta Magna.

A força normativa da nossa Constituição, no pertinente aos seus órgãos de controle – tais como os Tribunais de Contas, o Ministério Público, a Polícia Federal e a Justiça de Primeira Instân-cia –, está construindo, no Brasil, uma grande esperança, na proporção em que entrega à cidadania o discurso da Carta que ainda residia no cipoal do abandono. Concretizar a Constituição é fazer o casamento dos princípios políticos de um povo com o seu estuário de maior latitude; é tirar a folha de papel da Carta e repor em seu lugar a sua força normativa, tão bem teorizada pelo gênio filosófico de Konrad Hesse e já divulgada, desde algum tempo.

A Teoria Constitucional da Democracia Participativa, formu-lada pelo mestre Paulo Bonavides, é também um aporte de ordem doutrinária que nos atinge com a sua dinamite, alicerçando-se aí O humanismo como categoria constitucional, para aqui sermos fiéis ao pensamento de Carlos Ayres Britto.

Em síntese, o acolhimento da democracia participativa pelo nosso discurso constitucional e pela dinâmica dos nossos pode-res políticos, de uma forma ainda mais acentuada, faria do nosso processo político um poderoso instrumento de força, contra os refluxos da opinião ou de grupos e facções da elite que controlam os seus representantes em nome de interesses escusos.

A questão eleitoral e o judiciário

As fraudes eleitorais, no Brasil, continuam decorrendo dos absurdos da legislação. Os partidos falam em financiamento público das campanhas, mas esquecem que a corrupção que nasce desde a existência do fundo partidário e dos valores que decorrem das liberações do Orçamento, já são o usufruto de uma engenharia vergonhosa.

A corrupção no Brasil, neste ponto, está oficializada, e de forma que as propinas das obras licitadas, como no caso do petro-lão e de outras quadrilhas dessa natureza, já seriam a permissão de um ajuste de contas, culminando com a extorsão e um crime de maior gravidade, porque fundamentados numa máfia que desafia a lógica do poder. Um charco, uma náusea, uma situação asquerosa e abjeta, uma trapaça ou um jogo que se joga na vala

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de algum prostíbulo, tudo isso perfaz o objeto da corrupção dos partidos políticos brasileiros.

O sistema político no qual nos inserimos é um antissistema todo ele eivado de dislexias, de impontualidades e de exceções que terminam não confirmando as regras. Daí as reticências do Poder Judiciário; daí a inclusão de todos os partidos num mesmo caldei-rão; daí a existência permitida da fraude em todo o espaço desse tabuleiro. A representação e a questão eleitoral e partidária são pontos de estrangulamento da nossa Reforma Política. Vivemos um verdadeiro Estado de Exceção nessa seara, e os poderes Judi-ciário e Legislativo ainda não nos deram um caminho, pois sempre que avançam, recuam, ou, quando não recuam, jogam para o eleitor um retrocesso, porque a crise política brasileira, desgraça-damente, não é uma crise constitucional, mas constituinte, crise da empáfia e do personalismo.

Não temos, no Brasil, uma lei eleitoral definitiva. A instabili-dade e a imprevisão são os faróis que, a cada eleição, vão sendo acesos para caçar os incautos ou para abrir uma janela para a fuga, em demanda dos partidos de aluguel ou dos partidos cria-dos para agradar ao presidente de plantão.

A infidelidade partidária é uma tentação e uma prática nefanda. As leis e as decisões da Justiça Eleitoral são modificadas pelos interesses daqueles que se vão acomodando nos postos de comando. Se as cláusulas de barreira já foram, no Brasil, uma conquista, hoje elas são peças de museu, que permitem a sobre-vida dos partidos pequenos que nascem para agradar os donos do poder ou recolher as migalhas do Fundo Partidário.

O Supremo Tribunal Federal proibiu, recentemente, as doações de pessoas jurídicas para o processo eleitoral, mas o Parlamento também não indicou, de forma coerente, que os financiamentos devem ser abertos e que os lobbies devem ser divulgados, como nos países de maior firmeza democrática. As formas de claridade da democracia exigem o conhecimento daquilo que se joga nos bastidores de uma disputa pela posse da máquina política. O “caixa dois” e as “sobras de campanha” são resíduos infecciosos e crimes eleitorais que necessitam ser eliminados; são tumores malignos do poder político brasileiro; são imperfeições que preci-sam ser corrigidas pela lei eleitoral e pelo Poder Judiciário.

Mas que Poder Judiciário de grau superior temos em Brasília? Que balcões de negócios se erguem ou se dissolvem pela sutileza nos corredores jurídicos do Planalto? Que trapaça se arma em

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Brasília, em muitos gabinetes? A burocracia e as procrastinações, no âmbito do Poder Judiciário, são a retórica e o abuso com que os magistrados e os operadores do Direito se lançam no discurso da não decisão e na frieza das suas convicções elitistas, que não respondem ao clamor da pós-modernidade.

São atitudes criminosas contra o humanismo e os princípios da Constituição; constituem parte da corrupção, por meio da interpre-tação, como já esclareci no meu livro Direito Constitucional (Rio: Lumen Juris, 2015); são golpes de poder contra o Estado de Direito.

No Brasil, a soberania da Constituição tem sido atacada, também, por essa mentalidade predadora; por essa miopia que não enxerga o universo sistêmico do Direito e as relações de alte-ridade que se tercem entre as necessidades e as aspirações de justiça dos marginalizados. O discurso jurídico brasileiro, em algumas das suas práticas mais obtusas, é tão enfadonho e verboso quanto o discurso parlamentar e partidário. E como se isso não bastasse, o excesso de recursos tem sido, entre nós, uma lástima, quando, na realidade, precisamos apenas de algumas regras recursais que possam ser obedecidas por todos, com as garantias que a Constituição já nos oferece.

Pensamos, também, que a inserção do STF na estrutura do Poder Judiciário, e não como Corte Constitucional e poder de moderação ou de equilíbrio entre os demais poderes, é uma incon-gruência no corpo da Constituição, servindo, tanto mais, como balcão de negócios e de proteção para autoridades. Diante da existência do STF como órgão de proteção do colarinho branco, fica-nos a impressão de que a Corte Constitucional brasileira encontra-se, talvez, sufocada ou, quem sabe, refém de toda a nossa crise jurídico-política.

Onde, no Brasil, reside a Justiça para os pobres? E para onde fluiu o Direito Constitucional dos Oprimidos? O Direito Constitu-cional de Resistência e de Lutas, pregado por Paulo Bonavides, será a única forma de direito que irá servir, no futuro, ao tecido político da nação. Filiados que somos aos contornos da Constitui-ção material, temos a convicção de que os parlamentares e minis-tros e aqueles que cometem crimes de conexão com esses titula-res de cargos de maior escalão, não deviam usufruir da Prerrogativa de Foro, uma categoria política que já não se enqua-dra nas Constituições dos dias de hoje.

A criação de uma Vara Criminal, em Brasília, para julgar estes malfeitores, como já proposto por um ministro do Supremo,

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não nos parece uma solução adequada. A justiça federal comum, que tem como cúpula o Superior Tribunal de Justiça, já se pres-taria a este papel. E no ápice do processo já temos o Supremo Tribunal Federal para resolver os desvios constitucionais acaso cometidos. Como instância original para o processamento de autoridades é que o STF não deve permanecer. Esta competên-cia, de configuração tanto mais ordinária, enfeia a nossa Corte máxima e desvirtua o guardião da Constituição. Bastam-lhe as competências recursais ordinárias e seu recurso extraordinário, pedra de toque da Constituição.

Conclusão

Assim sendo, urge que possamos pensar o Brasil de uma forma totalmente nova, mas não contra o texto da Constituição, que é a nossa maior garantia. A Reforma Política que propomos é, de partida, um artigo jurídico precioso, um princípio que não se pode postergar, uma urgência de primeira linha, com a qual se devem costurar todas as reformas.

Mas o Brasil não necessita apenas de uma Reforma Política; espera das suas elites uma revisão das suas práticas e uma muta-ção do seu discurso jurídico, especialmente aquele de caráter judi-cial e decisório, estuário por onde a Constituição se derrui e a norma de Direito se transforma em norma de Poder, outorgada por quem apenas defende os privilégios e os valores da corrupção.

O direito de cidadania e de mudança política ao qual aspira-mos, infelizmente, não é uma dádiva do Estado; será uma conquista ou nunca seremos um Estado Social de Direito.

Referências

BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa, 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Forum, 2007.

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1997.

MACEDO, Dimas. Direito Constitucional . Rio: Lumen Juris, 2015.

VERDÚ, Pablo Lucas. O sentimento constitucional. Rio: Forense, 2006.

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Iv. Questões da Cidadania e do Estado

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Autores

Ana Maria MachadoEscritora

Denise PaivaAssistente Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora, é consultora em política social e administração pública

Tereza VitalePedagoga, editora, é integrante do Conselho Consultivo da Coordenação Nacional de Mulheres do PPS

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por práticas militantes mais audaciosas

Tereza Vitale

Mais um 8 de Março! Um dia importante de reflexões sobre os direitos das mulheres no mundo todo. Sua importân-cia aumenta de acordo com os números que temos em

pesquisas, e aqui no Brasil não faltam números assustadores. Números que mostram o quanto temos ainda que caminhar em direção aos direitos mínimos para zerar as mortes por gravidez indesejada, violência doméstica e pública, lesbofobia…

Nada contra aqueles que comemoram este dia com flores, chocolates e festas. Mas, particularmente, acho inadequado. Este não é o caminho. Acho que devemos levantar problemas, tentar ajudar a encontrar soluções, e, antes de tudo, provocar inquieta-ções, levantar questões que abalam a vida das mulheres, seja em seu cotidiano doméstico seja em comunidade. Quando conhece-mos o problema, nos preparamos para enfrentá-lo.

Às mulheres do PPS, incomoda a conjuntura que ainda se mostra desfavorável na perspectiva de gênero e acreditamos que os espaços de decisão precisam ser compostos por pessoas de diferentes perspectivas sociais. Os direitos sociais das mulheres precisam ser reconhecidos e maior presença feminina nos Parla-mentos alteraria a formulação de políticas públicas, hoje feitas pelos homens.

A sub-representação feminina nos Parlamentos continua a assombrar a sociedade, eleição após eleição. Quando se pensa que talvez as mulheres tenham algum avanço na política eleito-ral, os resultados continuam a se mostrar pífios. No Brasil, a

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presença feminina nos Parlamentos gira em torno de 10%, sendo que as mulheres são mais da metade da população. No ranking mundial, o Brasil ocupa o vergonhoso 116º lugar entre 190 países, segundo a União InterParlamentar (UIP).

As taxas brasileiras ficam abaixo da média mundial, que chega a ser de 22,1% de mulheres ocupando cadeiras nos Parlamentos. Os números brasileiros são ainda inferiores aos da média do Oriente Médio, com uma taxa de participação feminina de 16%. Como avaliar esta questão, além do fator cultural, se existe um país como Ruanda, por exemplo, cujo Parlamento se tornou o mais feminino do mundo? As mulheres ocupam 63% das cadeiras. Sabe-se que as mulheres africanas lutam até mesmo para manterem-se vivas, entretanto, concretamente ocupam, hoje, espaços de poder e decisão. Além das inúmeras iniciativas peculiares àquela socie-dade, mecanismos de ações afirmativas foram largamente utiliza-dos. Sua Constituição de 2003, por exemplo, além dos 30% da cota no serviço público, instituiu vagas para mulheres, sempre visando à igualdade de oportunidades entre as pessoas.

O Brasil não pode copiá-los, mas é importante que saiba que, se este pequeno país da África conseguiu, qualquer outro poderá conse-guir. Lembramos que as mulheres têm problemas na maioria dos lugares do planeta, imaginem num país que teve de ser todo recons-truído. Enfim, os avanços de Ruanda são complexos e específicos.

No Brasil, está muitíssimo difícil aos partidos atravessarem a barreira cultural, mas, também, deve-se lembrar que esta luta é recente e que são poucos aqueles que realmente acreditam no potencial da mulher. Vemos isso, por exemplo, em relação ao voto de mulheres em mulheres. Nem mesmo “elas votam nelas”, pois, senão, por serem a maioria da população, as mulheres teriam votações maciças.

Os partidos políticos, infelizmente, não derrubam efetiva-mente seu machismo nesta questão. Ao tempo em que aceitam a existência de um organismo voltado ao empoderamento das mulheres militantes, na hora das eleições pecam por não dar apoio efetivo. Não investem em candidaturas novas. No dia a dia, também o apoio é relativo. As direções ainda não compreenderam a importância de preparar novas candidaturas. Apenas compreen-dem que a Lei Eleitoral exige 30% de mulheres em suas chapas eleitorais. Colocam os 30%, passam pelo crivo da organização partidária e dos TREs, não se dando conta da importância do

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trabalho da formação política, da preparação das militantes para ocupação de cadeiras parlamentares.

Embora o Brasil conte com políticas alternativas, não existem resultados positivos: a prática tem que ser mais impactante, mais audaciosa. É necessário forçar o entendimento dos partidos polí-ticos para a importância da representação feminina nos Parla-mentos, ao cumprimento da Lei. O TSE está fazendo sua parte. Punindo os partidos que não cumprem as leis. Parabéns, TSE! Os que ignoram as leis não podem ficar impunes! Se as mulheres não conseguem se fazer entender por via da militância, que seja por via da LEI!

Este é o foco do movimento de mulheres do PPS. É a mulher na política! Mas por quê?

Muito simples de compreender: por conta da importância da pauta feminina nos Parlamentos, que se reflete na luta de políticas públicas para as mulheres que vai da questão da saúde pública à criação de creches passando pela violência pública e doméstica.

‘Alguns’ posts contemplam nossas políticas e mostram a contemporaneidade da luta. Dizem respeito a sexo, sexualidade, reprodução, direitos reprodutivos. E, ao câncer que condena a sociedade à degradação: a Violência Contra a Mulher.

[…] há falta de conhecimento dos profissionais de saúde sobre as diversas orientações sexuais, identidades de gênero [e raça] . [Caro-lina Ambrogini, especialista em saúde feminina e sexualidade]

Quando a mulher consegue dizer que se relaciona com mulhe-res, é comum que seja tratada como virgem. Por isso, muitos profis-sionais deixam de realizar o exame ginecológico quando indicado ou deixam de colher o Papanicolau, o que coloca as mulheres que se relacionam com outras mulheres à margem do cuidado em saúde adequado, retardando a realização de exames e diminuindo a chance de atuar preventivamente . [Luiza Magalhães, Médica de Família e Comunidade]

Ninguém defende que mulheres abortem . [ . . .] A defesa pela descriminalização e legalização é para que a mulher possa ser acolhida e receber um atendimento digno no hospital público, conforme propõem os principais tratados internacionais e a Orga-nização Mundial de Saúde (OMS) . Católicas abortam, evangélicas também . É a vida concreta que se sobressai às falácias, ao mora-lismo e à doutrinação . [Por Paula Guimarães-Desacato.info]

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No Brasil, os recentes números sobre violência mostram que uma mulher é estuprada a cada 11 minutos . [ . . .] Há uma denúncia de violência contra a mulher a cada 7 minutos . A cultura do estupro não se limita apenas à educação em casa, ela se reflete em toda a sociedade. [Jussara Oliveira-Blogueiras Feministas]

[…] Isso significa uma resistência diária a todas as piadas, brin-cadeiras, propagandas de cerveja e de margarina, fiu-fius, apalpa-das e tantas outras práticas tão repugnantes quanto socialmente aceitas . [Maíra Cotta-Advogada feminista-Blogueiras Feministas]

[…] há um sentimento crescente contra o qual lutamos constan-temente e tem nos deixado cada vez mais exaustas: o ódio . O país está sempre nos primeiros lugares em rankings mundiais de assas-sinatos homofóbicos . [Bia Cardoso-Blogueiras Feministas]

Que mundo é este? Queremos apenas ter o direito de ir e vir! Queremos sair sozinhas, voltar sozinhas, vestir o que bem enten-der e fazer aquilo que temos vontade: conversar, namorar, beber, dançar… sem culpa, sem vigias! Conviver com os homens sem medo, sejam eles amigos, parentes, conhecidos… Nem todos os homens são “perigosos”, nem todos os homens são “incontrolá-veis”, nem todos os homens são “paranoicos” ou “esquizofrênicos”. Queremos que as diferenças, as escolhas, as identidades sejam respeitadas. Por que interessa tanto a vida que os outros levam?

Feministas não são o contrário de machistas. Isso é pura desinformação. O machismo mata! As feministas só querem um mundo igualitário para todas as pessoas, sem preconceito, sem privilégio, sem exclusões, sem violência. Esta luta chama-se equi-dade de gênero, ou seja, cada qual ocupando seu espaço na socie-dade. Com suas diferenças respeitadas…

E aí estamos lidando com o tal de empoderamento que não pode NUNCA ser tratado como um ato individual, senão ele não acontece. Trata-se de um ato coletivo. Aí sim, sucesso total! Aí sim, uma sociedade fazendo uma história de respeito, de alegria, de generosidade!

Nós todas estamos cientes de que não se retrocedem direitos. Somente é possível ampliá-los. Não aceitamos retrocessos e por ele lutaremos, gritaremos se preciso for! Vamos resistir todos os dias perante falas e atos machistas.

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Dialogando com a juventude

Denise Paiva

Sim, é possível uma humanidade melhor” (discurso do presi-dente do Uruguai, Pepe Mujica, na ONU, set./2013)

Alguns temas são palpitantes e motivam um diálogo com a juventude. Exemplos: Redes Sociais, Educação, Cultura, Diálogo com o Governo, Direito de se Associar, Mercado de

Trabalho, Objetivos do Milênio, Respeito às Diferenças, Segurança, Maioridade Penal, Sexualidade, Participação Política, Drogas.

O protagonismo juvenil, a participação ativa do jovem como sujeito da história se impõe ao clamor e à necessidade do conjunto da sociedade, ao chamamento na definição das prioridades nas politicas públicas.

O futuro dos que nos antecedem e dos que nos sucedem depende, sobretudo, dos jovens, no aqui e no agora.

As redes sociais são a grande revolução do mundo contempo-râneo. Nenhum outro meio tecnológico e de interatividade é mais capaz de mobilizar, conscientizar e organizar as pessoas e promo-ver a cidadania.

Quando falamos em juventude em rede, devemos qualificar: Juventude em rede para a cidadania.

As redes sociais da juventude podem, além de expressar sonhos e projetos, reivindicar, exigir e fiscalizar o cumprimento das ações do poder público no encontro das necessidades e aspi-rações da sociedade, traduzidas em políticas públicas efetivas, sobretudo a educação de qualidade para todos.

Nenhum outro meio, a não ser as redes sociais, é tão capaz de desmascarar os que se apropriam da representação popular, contrariando o interesse público.

Temos que ter sempre em mente que, ao longo da história, existem forças poderosas e muito atuantes, com fortes conexões, manobrando para que as mudanças no interesse coletivo e da verdadeira evolução e transformação social não aconteçam. Tais

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forças não dormem, nem sequer cochilam, mas elas podem ser adormecidas, se surpreendidas por uma nova força inusitada, emergente, fresca: a força da juventude, a força das redes sociais comprometidas com a cidadania, a democracia, os avanços sociais, políticos, econômicos e sociais.

É imponderável, é espetacular, a força das redes sociais e da internet para conscientizar e articular o movimento social de forma barata, rápida e eficiente.

A ideia de espaço, distância, se relativizou. A informação, até então restrita, se publicizou.

Estamos no advento vigoroso da Era da Informação, da comu-nicação. Eis a Era na qual o novo ganha espaço, e os anseios robustos, frescos e animados da juventude se legitimam.

Creio que a capacidade de mobilização e de provocar mudan-ças está nas mãos de rapazes e moças.

Nosso grande desafio é pensar o novo sob uma perspectiva de evolução pacífica, mas sem deixar de pensar no salto de quali-dade que as manifestações das ruas passaram a clamar de forma retumbante no Brasil contemporâneo.

O gigante Brasil acordou? Está acordando?

Não creio que estivesse dormindo. Fomos reprimidos, açoitados, acuados, amedrontados, até que um dia, como se fosse do nada, como de geração espontânea, ou por algo que como o transporte urbano que revela de forma tão brutal a inversão do interesse público, o gigante acorda, espreguiça, ocupa os espaços que lhe convém e, sobretudo, o que lhe é de direito: O Direito à Indignação.

O gigante aparentemente sonolento, letárgico, indiferente às injustiças e às lutas sociais, foi acordado corajoso e mais forte pelas redes sociais, pela juventude em rede, pela cidadania.

Aparentemente, tênues e imbricados são os contornos e limites da expressão legítima da cidadania com a expressão da violência.

O processo de debate, conscientização, mobilização, reivindi-cação, controle social e fiscalização, em nome do interesse público, deve ser feito sem confronto, sem provocação, sem violência, por parte de quem quer que seja.

O direito e a ética embasam a evolução humana no caminho de uma civilização mais justa e fraterna e estarão sempre, lado a lado, por um mundo melhor, pela construção de uma nova ordem.

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A paz é imperativa, a paz é solo e semente da construção do novo, pelo qual todos nós almejamos e devemos arregaçar as mangas.

Não estamos defendendo a paz dos cemitérios, mas estamos falando de uma paz inquieta, crítica, criativa, solidária e libertária.

A paz é a antítese da violência, esta sim, irmã siamesa do egoísmo, da intolerância, da opressão e, sobretudo, da exploração entre seres humanos iguais, igualdade ontológica, que reside na própria essência de ser humano.

É preciso ter em mente que as redes sociais, protagonizadas pela juventude, podem ser objeto de controle e manipulação. Preci-samos identificar e combater o controle e interceptação que algu-mas forças pretendem estabelecer sobre o direito à comunicação.

Tal questão serve de alerta e lição a um duplo título: primeiro, o cuidado que se impõe, sobretudo, levando em conta a impulsivi-dade natural dos jovens; e, segundo, a defesa de um valor maior, decorrência do próprio princípio da dignidade da pessoa humana, que é o direito à inviolabilidade, à privacidade e à intimidade dos seres humanos.

Novos e eficientes mecanismos de interação e comunicação não podem ser submetidos aos interesses conservadores, às forças que sustentam o atraso e a exclusão social.

Precisamos ter antídotos, que sejam células ou núcleos de resistência contra a virulência dos agentes comprometidos com a manutenção do status quo.

Devemos e podemos criar e fortalecer o que os jovens chamam de “redes do bem”, redes que procuram intercambiar o mundo virtual e o mundo real, numa relação harmoniosa. A internet nos coloca no mundo, mas não garante a relação com a vida.

A vida mais criativa e produtiva para os jovens se dá nas rela-ções com a família, com os vizinhos, com a comunidade. Se dá nas organizações da juventude, como nos grêmios, nos times de fute-bol, nos cineclubes, casas de cultura, associações de modo geral.

Nossas esperanças, as de várias gerações, desde os que ainda estão no ventre materno até os que já se encontram no ocaso da vida, estão, sem dúvida, nas mãos dos jovens.

Os jovens devem assumir um papel de vanguarda na história, identificando e refletindo sobre os problemas que afligem não só a eles, mas a toda a sociedade, a todas as gerações.

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Os Conselhos da Juventude devem sugerir e ajudar a definir, com os demais Conselhos, pautas e agendas comuns nas priori-dades, nas várias esferas da Federação.

Os segmentos da juventude dos partidos políticos devem contaminar o conjunto do seu partido com suas pautas.

Os jovens precisam refletir sobre atitudes concretas, no plano pessoal e interpessoal, sobre as possibilidades de transformação que podem ser operadas no contexto da família, da vizinhança e, sobretudo, da escola, independente do Poder Público e da ação governamental.

Novos conceitos, valores, atitudes e comportamentos compatíveis com a inovação, a solidariedade e a responsabilidade social podem/devem ser debatidos, divulgados para atingirem a coletividade.

Tirar o “R” da palavra “Arma” a transforma em “Ama”, mudar o “R” de lugar a transforma em Amar. É um gesto simples e simbó-lico. Quantas coisas podem ser mudadas no cotidiano das nossas vidas, para que nos tornemos melhores pessoas, melhores profis-sionais, melhores cidadãos.

Quais seriam algumas pinceladas para um enredo de trans-formação social, de invenções democráticas e de construção de felicidade?

Quando falamos de drogas, devemos entender que a droga é a resposta à não resposta.

Quando falamos de sexo, devemos procurar no Plano Nacional de Direitos Humanos o direito a uma sexualidade saudável e à paternidade e maternidade responsáveis.

Quando falamos em maioridade penal, devemos antes de cedermos ao discurso tentador/enganador do enrijecimento penal como solução para a problemática da segurança, nos atermos às interpretações sistêmicas de tal fenômeno, isto é que assegurem a visão do todo e da inter-relação entre todas as partes de um mesmo problema.

Neste sentido, devemos nos debruçar, seriamente, sobre as causas, para nos empenharmos mais severa e responsavelmente com as ações, programas e políticas públicas preventivas.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei de 1990, ainda clama por sair do mero plano da validade formal.

Trazer toda responsabilidade do aumento da violência urbana para os adolescentes, a fim de legitimar uma redução da idade da

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imputabilidade penal, soa tão ineficaz quanto desarrazoado ou descabido. Devemos demarcar bem os limites que podem confundir esta posição com a falta de responsabilização. A criança, desde a mais tenra idade, precisa de limites, precisa conhecer o sim e o não, e o talvez.

A liberdade de um indivíduo termina quando inicia a liberdade do outro. Existem valores universais, consagrados que precisam ser afirmados e perpetuados. Dizer que o adolescente, autor de um ato infracional, necessita de uma proteção social e atenção especial e diferenciada, no seu processo de recuperação, não significa que ele não seja responsabilizado pelos seus atos, por meio de uma legislação que busque, de forma específica, a educa-ção como a prevista na lei.

Quando falamos em mercado de trabalho, devemos aprofun-dar sobre empreendedorismo, economia solidária, cooperativismo, indústria criativa, além da gama infinita de possibilidades que o mercado formal nos oferece. Devemos lutar contra e condenar severamente o trabalho infantil. Lugar de criança é na escola.

Quando falamos em educação, devemos avaliar o quanto nossos parâmetros curriculares estão defasados das exigências da vida e do trabalho, e a assustadora precarização do ensino público, no qual ressalta a irrisória valorização dos professores.

Quando falamos em diálogo com o governo, devemos falar de parcerias, participação criativa, autonomia, qualificação de demanda e corresponsabilidade com as tarefas que podem e devem ser assumidas em conjunto e contribuem para o aperfei-çoamento do Estado democrático.

Sobre cultura, propomos uma reflexão muito especial. Cultura não é algo fora de nós, que podemos, eventualmente, adquirir por um treinamento, uma casca, uma superfície brilhante. Um livro, por exemplo, não é um objeto inerte numa biblioteca, mas sim uma mensagem que podemos tornar viva e incorporar como uma segunda pele.

Cultura é algo vivo e que nos constitui existencial e moral-mente. É roupa que vestimos, a comida que comemos, os sonhos que compartilhamos. Cultura é a cidade em que vivemos, o passado que vem até nós, e, especialmente, o presente e o futuro que queremos e podemos construir juntos, de modo criativo, soli-dário e sobretudo responsável na visão de conjunto de toda a humanidade e de todo o planeta.

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A cultura é capaz de nos retirar da solidão do individualismo e do consumismo, solidão na qual dizia o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade: “se desaprende a linguagem com que homens e mulheres se comunicam”.

Concluindo: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”. Esta mensagem do imortal Rui Barbosa, na sua celebre Oração aos Moços, em 1929, traduz a expressão de um sentimento de desilusão e desencanto que não pode contaminar a juventude.

Hoje, dispomos de instrumentos de conscientização, de mobi-lização e luta jamais conhecidos e imaginados. Ser jovem e não ser revolucionário, não ser comprometido com o NOVO, é uma contradição antes de tudo biológica.

Juventude, em rede para cidadania; avante, em marcha, rapa-zes e moças sempre movidos pela esperança, “inquietude em forma de ação”, como ensina Pierre Furter.

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Um silêncio que grita

Ana Maria Machado

Há um detalhe em Dom Casmurro, que sempre me toca. Miúdo, sutil. Talvez tenha me batido fundo porque eu tinha a idade da protagonista quando li o romance pela

primeira vez e me identifiquei com ela. É um indício que revela com nitidez quem é Capitu, o que uma adolescente podia esperar em matéria de educação na época da ação, e como Machado de Assis estava atento a essas limitações. Neste Dia Internacional da Mulher bem que podemos recordá-lo.

A menina Capitu quer estudar latim. Mesmo sendo mulher. E vai buscar os meios para isso, recorrendo ao padre, ainda que todos zombem dela. A curiosidade ou a sede de conhecimento fala mais alto que qualquer zombaria ou proibição.

Anos mais tarde, encontrei a mesma consciência em Virginia Woolf. Ao comentar os obstáculos para uma mulher se tornar escritora, a romancista inglesa analisa a importância de ter um quarto todo seu onde pudesse escrever sem ser interrompida, mas assinala também as barreiras que lhe proibiam estudar grego e latim, impedindo-a de ter uma formação clássica e de conhecer filosofia, história e ciência, numa época em que a maioria dos autores da Antiguidade ao Renascimento não estava traduzida para as línguas modernas e mesmo o saber mais recente em geral era fixado em textos escritos em latim.

Cabia à mulher manter o funcionamento de tudo. Desde fiar, tecer e costurar os trajes da família cujo tecido fabricara na roca e no tear, até fazer o sabão com que lavaria no rio ou tina a roupa suja ou a louça da janta que cozinhara (após matar o frango ou o porco, fazer a linguiça, o pão e a conserva). Além de cuidar dos filhos e da casa, nas eventuais horas vagas se sua situação social permitisse, mulher podia se dedicar apenas às chamadas prendas domésticas – bordar, fazer crochê e tricô, tocar piano para distra-ção em saraus domésticos, desenhar ou pintar aquarelas. Os romances europeus dos séculos XVIII e XIX por vezes as retratam nessa atividades. Mas a memória desse resultado ficou apagada. Um nome como o de Clara Schumann na música é uma raridade.

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Escritoras pioneiras notáveis conseguiram furar um pouco esse bloqueio, mas em números muito reduzidos. Porém as artis-tas plásticas em sua quase totalidade foram relegadas ao silêncio e ao esquecimento, salvo pouquíssimos casos, quando eram filhas, irmãs ou esposas de artistas que as incorporavam a seus ateliês. Ou então constam dos registros apenas como eventuais modelos, quando também posaram para os colegas, sobretudo no renascimento italiano ou no impressionismo francês. Mas, em geral, nem seus nomes sobreviveram na História da Arte.

Agora as mais recentes levas dos movimentos feministas estão fazendo um trabalho admirável na pesquisa, resgate e reconheci-mento dessas artistas esquecidas e silenciadas. Com isso, desco-brimos tesouros.

No ano passado, pela primeira vez o Grand Palais de Paris dedi-cou seus salões à retrospectiva da obra de uma mulher, Elisabeth Vigée LeBrun, seguindo o exemplo do Museu Marmottan que reve-lara a extraordinária qualidade do conjunto da obra da impressio-nista Berthe Morisot. Este mês, logo após o fim da grande mostra sobre Clara Peeters no Prado, em Madrid, agora a Galeria Uffizzi de Florença inaugura dia 8 uma exposição da freira renascentista Plautilla Neri e anuncia que vai tirar dos porões pinturas e escul-turas feitas por mulheres como Marietta Robusti, até aqui só vistas com hora marcada, por pesquisadores.

E o Museu Pitti vai abrir uma mostra da austríaca Maria Lass-nig, enquanto o Canadá acaba de revelar que a cultuada obra assinada por C. L. Davis, até aqui atribuída a um homem, na verdade é de autoria de Carolina Davis.

Então, neste Dia da Mulher, quero lhe dar um presente. Marcante, rico, inesquecível. Você vai me agradecer pela dica. Há na internet uma janela para essas artistas, de épocas e países dife-rentes: @female .artists .in .history. Cadastre-se e passe a receber o resultado de uma notável garimpagem de obras de mulheres, com suas biografias e referências. Aos poucos descobrirá suas predile-ções. Umas são mais marcantes que outras – exatamente como acontece com artistas homens. Mas o conjunto é instigante.

Ao contrário deles, elas não podiam estudar anatomia ou desenhar modelos nus. Não nos trazem grandes cenas épicas, batalhas, temas bíblicos ou mitológicos. Também não eram contratadas por mecenas para retratar poderosos. Pintam o coti-diano, o trabalho comum, seus afazeres, os interiores das casas, as naturezas mortas que se multiplicavam na mesa da cozinha ou

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nos instrumentos de trabalho, as paisagens entrevistas das jane-las a partir do interior, as brincadeiras infantis. E uns cinco sécu-los de selfies a pinceladas. Absolutamente fascinante.

Fica ainda uma sugestão de trabalho, para universidades ou órgãos culturais. Vamos incluir as brasileiras nesse acervo univer-sal. Até agora, só encontrei pouquíssimas. Vai ser uma coisa boa a fazer na internet, ajudando a reduzir esse silêncio que grita.

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v. Economia & Desenvolvimento

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Autores

Arnaldo JardimDeputado federal licenciado (PPS-SP) e secretário de Agricultura e Abastecimento do Estado de S . Paulo

Cláudio de OliveiraJornalista e cartunista

Miriam LeitãoEconomista e comentarista de Economia em jornais, emissoras de rádio e TV

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A dimensão do desastre e algum respiro

Miriam Leitão

A maior queda do PIB da nossa história foi construída na marcha da insensatez do governo Dilma. Este 7 de março foi o dia de olhar de frente para todos os números do nosso

desastre e é espantoso que haja quem duvide da origem dos erros que nos trouxeram ao ponto em que estamos. Mais de 7% de recessão em dois anos, mais de 9% quando a conta é feita pelo PIB per capita desde 2014.

A história econômica registrará o ineditismo do mo mento. Desde que há estatísticas, em 1901, nunca se viu um biênio como este. A crise foi feita por Dilma, mas Temer ainda não a reverteu. Estamos numa tran sição. O dado do último trimestre de 2016 foi mais ne ga-tivo do que o esperado, mas, felizmente, não é uma tendência.

Há várias formas de se olhar este índice. O PIB caiu 0,9%, no último trimestre, comparado ao trimestre an terior. Havia sido de -0,3% no segundo trimestre e -0,7% no terceiro. Quem olha a sequência de números pode pensar que estamos no meio de um agravamento da recessão. Mas, não. A melhor forma de olhar os dados é compará-los com o mesmo trimestre do ano anterior. Por essa conta, no começo do ano passado, a queda era de 5,4%, e, agora, 2,5%. Atenua-se lentamente o ta manho da recessão.

A melhora vai ser demorada e com isso o país vai continuar convivendo com números desastrosos. A ta xa de investimento – que mostra possibilidade futura de crescimento – teve uma queda no ano de 10,2%. Em 2015, havia caído mais: 13%. E chegou a

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estar em queda de 18,7%, no último trimestre de 2015. Ainda es tá muito ruim, mas já foi pior.

A história que os números contam é a de um país que despen-cou em queda livre e longa desde o fim de 2014, época em que a então presidente e candidata Dilma Rousseff perguntava sempre a cada entrevista: “crise? que crise?” O que ela não via estava diante dos olhos dos economistas e analis tas do país. A recessão estava sendo contrata da pela displicência com a inflação, pelo gasto excessivo, pelos subsídios insustentáveis aos empresários, pelo seu pensamento econômico rudimentar.

Temer já governa o país desde maio do ano passado. Tem conseguido algu mas melhoras na eco nomia, mas não fez a virada rápida que o país precisa va. É, de fato, muito difícil mudar, em pouco tempo, uma situação tão ruim. O governo Temer tem tomado deci sões acertadas na economia, mas permanece imerso em ambiguidades e suspeições. O pior ficou para trás, contudo a recuperação será lenta.

Como o dado do último trimestre foi pior do que o es perado, os economistas explicam que o carregamen to estatístico para 2017 também piorou: saiu de -0,7% para -1,1% no cálculo da Tendên-cias. Isso significa que a economia começou o ano de um ponto ainda mais baixo do que se esperava. Para voltar ao zero, na mé dia, terá que, primeiro, recuperar esse 1,1%. Por isso, as proje-ções para o PIB, de vários bancos e consulto rias, já estão sendo revistas para baixo.

A queda que é positiva

O mês de março começou pesado, com a constatação do tama-nho da queda da economia, mas teve, na sua segunda semana, uma lufada de vento fresco: a inflação caiu mais ainda. Em feve-reiro, ficou abaixo do esperado e agora o acumulado está em 4,76%. Os economistas estão refazendo seus cálculos e acham que o índice deve terminar o ano em 4% ou até abaixo disso. Isso permite a queda mais forte dos juros. Há sinais de recuperação.

A inflação vai continuar caindo em 12 meses. Vai chegar ao centro da meta em março, depois deve ficar abaixo de 4% lá por agosto. Então, volta a subir ligeiramente. A inflação quando cai não resolve os problemas, mas torna mais fácil enfrentá-los. A Selic descerá mais forte e isso fará efeito no segundo semestre. Este primeiro semestre será ajudado pela agropecuária. E assim

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lentamente vamos saindo da recessão que nos empobreceu por dois anos e meio.

Ouvi dois economistas, na Globonews, Rodrigo Melo, do Icatu, e Silvia Matos, da Fundação Getulio Vargas, e ambos falaram que a recessão ficou para trás. A FGV acha que o primeiro trimestre pode ser de alta de 0,3% do PIB e que em todos os trimestres haverá alta, ainda que pequena. Rodrigo acha que o primeiro pode ficar entre 0,5% e 0,7%.

– Todos os números são de crescimento nos trimestres de 2017. Talvez um pouco melhor no final do ano. Ainda temos muita incer-teza, mas acredito que se chegue ao fim da recessão no primeiro tri. A agricultura vem forte no primeiro. No segundo, o cresci-mento é mais espalhado, está na indústria, mas também em parte dos serviços. O FGTS que está sendo liberado pode ajudar o consumo no segundo trimestre – diz Matos.

– Temos expectativa de alta de 0,5% para o ano. No primeiro trimestre estamos mais otimistas que a FGV, mas por uma ques-tão metodológica. É difícil calcular o impacto do PIB agrícola, por isso dá essa diferença nas previsões – explicou Rodrigo Melo.

A recessão pode estar ficando para trás, mas o crescimento ainda vai demorar. Com a herança estatística fortemente nega-tiva, o país terá que crescer 1% para chegar a zero e só acima disso o número de 2017 será positivo. Armadilhas da estatística, mas é assim. E, quando os economistas dizem que estão otimis-tas sobre 2017, estão falando de crescimento pequeno de 0,5% a 1% no máximo. E um quadro de desemprego ainda muito difícil. A FGV acha que o ambiente ficará melhor para o emprego durante o ano, mas o primeiro movimento das empresas será aumentar as horas de quem já está trabalhando. Silvia Matos acredita que o desemprego começará a cair no fim do ano, apesar de dizer que mesmo em 2018, quando o ambiente melhorar, ainda ficará alto, em torno de 10% a 11%.

Com o nível de atividade mais fraco e a redução da inflação, o Banco Central vai acelerar o ritmo de corte dos juros de 0,75% para 1% na reunião de abril. Este impulso da política monetária chegará à economia real, mas apenas no segundo semestre. No primeiro semestre, a grande esperança está na agri cultura. Mesmo com todos os impulsos, o país terá um número pífio em 2017.

Há ainda uma grande incerteza. O economista Sér gio Valle, da MB Associados, diz que se não for apro vada a reforma da Previ-

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dência o país pode ter reces são também este ano, em vez do ligeiro positivo que to dos esperam. Parece exagero. Mas uma parte da me lhora dos indicadores é resultado da expectativa de que o país vai começar a sair do buraco fiscal.

Ele diz que, sem a reforma, o limite de teto de gas tos não se sustenta e o aumento das despesas com apo sentadorias continua em ritmo insustentável. Isso ele vará o risco-país, o dólar, o pessi-mismo. É o que pen sam os economistas em geral. O país terá que fazer re formas difíceis num governo cheio de fragilidades pa ra sair do fundo desse poço.

Algum respiro

A indústria respirou. Foram longos 34 meses cain do em rela-ção ao mesmo mês do ano anterior para ter em janeiro o primeiro dado positivo. A quedi nha, quase nenhuma, em relação a dezem-bro, de 0,1% surpreendeu os economistas que fazem projeção e que estimavam um número pior. Muita coisa afeta a indústria e ela permanecerá fraca, mas este pode ser um ano positivo.

Ela caiu tanto, nos últimos três anos, que a al ta pequena que se espera para 2017, em torno de 1%, não fará muita diferença nas grandes números do desabamento. Ela está, hoje, 19% abaixo do melhor momento, em julho de 2013. A indústria, na verdade, vive uma década per dida: está apenas 3% acima de dezembro de 2008, no auge da crise financeira internacional.

Estes dados recentes trouxeram algum alento, um pequeno respiro. O negativo de 0,1% não foi o que mais chamou a atenção. Mesmo nessa compa ração com o mês anterior (entre fevereiro e janeiro), houve altas como 3,1% de bens semiduráveis e não durá-veis, cresci mento de 4% em derivados de petróleo e biocom bustíveis e 5,5% no setor de bebidas. Farmacêu tico e farmaquímicos salta-ram 21%. Mas veículos tiveram queda de 10%, que não chegou a anular o resultado positivo de 18% que ficou acumulado do final do ano passado. E assim, a in dústria fica oscilando: quando há um resultado positivo é porque teve queda forte demais antes; quando sobe, logo depois “devolve” parte em uma queda mais adiante. São fatores como re posição de estoques que justificam a alta.

Na comparação com janeiro de 2016, há inúmeras boas notí-cias e até a mé dia móvel trimestral mostrou alta de 0,9%. Isto não salva a indústria nem a faz se levantar do tombo sofrido. Este é o período que ficará conhecido como a grande recessão brasileira,

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tão autoprovocada quanto a do gover no Collor, que der rubou em 4,3% o PIB, em 1990, por aquele plano tresloucado de sequestrar os ati vos financeiros das famílias e das empresas. Há crises que vêm de fora, mas esta e a do Collor foram feitas aqui mesmo por obra das loucu ras dos governantes.

Nesta grande recessão, a maior atingida foi a indústria. Ela começou a cair antes e ficou em queda por mais tempo. Nada a protege contra recuos futuros. O que ficou provado é que não adiantaram os inúmeros benefícios dados a al guns setores. O país ficou mais endividado e com rombos maiores nas contas públicas por que a indústria foi ajudada com desconto de impostos e empréstimos a juros baixos, para os quais o Tesouro vendeu títulos no mercado. A ideia era que se o governo empurrasse o car ro pegaria. Não funcionou porque não é assim que funciona.

O que dá certo é melhorar os fatores gerais de competitividade. Investir em logística, simplifi car impostos, ter regulação previsí-vel, reduzir os juros estruturais da economia. Há custos que pe sam sobre todas as empresas, de todos os se tores, e são travas ao crescimento.

Estes fatores que tiram a competitividade, o velho custo Brasil, ficaram ainda mais pesados com a abrupta queda de consumo das famílias, a recessão na qual o país foi jogado. Alguns segmen-tos haviam tido benefícios tão fortes que acabaram tendo anteci-pação de consumo, co mo caminhões. E isso tornou a queda ainda mais pronunciada.

Fora isso, a indústria encolhe no mundo inteiro e reduz sua participação no PIB. É preciso pensar em todos os fatores antes de sair por aí acreditan do que há uma solução mágica, uma pana-ceia pa ra fazer reviver os tempos áureos da indústria.

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Tecnologia para diminuir diferenças

Arnaldo Jardim

O protagonismo do agronegócio na economia brasileira não é por acaso. O setor que registra hoje uma participação de mais de 21% na composição do PIB (Produto Interno

Bruto) avança extraordinariamente graças aos investimentos de instituições públicas e privadas na pesquisa científica, que se desdobram na inovação tecnológica e têm propiciado o aumento contínuo da produção e da produtividade no campo.

Responsável por 48% das exportações totais do Brasil, segundo a CNA (Confederação Nacional de Agricultura), a estimativa era que só no ano passado os produtos do agronegócio garantiriam um saldo comercial de aproximadamente US$ 72,5 bilhões, gerando não só divisas, mas renda, emprego e a definição de novas tecnologias na produção de alimentos. A pujança dos números, no entanto, não reflete o intenso debate que mobilizou ao longo dos anos vários segmentos da sociedade brasileira, dos produtores rurais à comunidade científica, sobre a questão da biotecnologia e dos transgênicos.

O Brasil já contava com a Lei de Biossegurança – cujo texto é quase todo de autoria do então relator da matéria na Câmara dos Deputados, o ex-deputado federal Sérgio Arouca (PPS-RJ) –, quando o PPS promoveu, em 2003, um intenso debate sobre a produção, a pesquisa e a comercialização dos transgênicos, na esteira da colheita da safra de soja do Rio Grande do Sul, quase toda ela plantada com sementes transgênicas trazidas clandesti-namente da Argentina, e da ambiguidade do então governo Lula em relação ao assunto.

O PPS, então, situava-se ao lado do avanço da ciência, da questão da biotecnologia e dos transgênicos diante do contínuo processo de transição nos modos de produção que representa a superação da sociedade industrial e o ingresso na era do conheci-mento e da comunicação. A compreensão foi de que a engenharia genética e os organismos geneticamente modificados faziam parte da marcha histórica contra o atraso e o obscurantismo em rela-ção à ciência e à pesquisa no papel de agentes de mudança e transformação da atividade produtiva brasileira.

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Combater os transgênicos, ou trabalhar com qualquer ideia de impedir a pesquisa dos organismos geneticamente modificados, seria o mesmo que estrangular o desenvolvimento no campo. Foi na esteira dessa discussão que a Câmara aprovou, em dezembro de 2004, com o apoio da bancada do PPS na Casa, a Medida Provi-sória com as normas para o plantio e comercialização da soja transgênica para a safra de 2005, restringindo a possibilidade de cobrança de royalties de produtores, uma bandeira que o partido vinha defendendo desde 2002.

Agricultura familiar

A mudança de rumo da pesquisa agropecuária está repercu-tindo positivamente nos resultados da produção agropecuária nacional. Ao mesmo tempo, tem permitido a convivência harmô-nica entre o grande, o médio e o pequeno produtor rural na apli-cação de novas tecnologias, sejam pelo apoio e assistência de organismos governamentais e o investimento do setor privado.

O agricultor familiar é pequeno na sua extensão, mas intenso do ponto de vista da atividade e deve ser campeão de produtivi-dade. Deve estar à frente das inovações que surgem. O nosso compromisso é com uma agricultura familiar cada vez mais eficiente, que busque permanentemente a inovação, excelência no trato com novas cultivares, ineditismo nos novos equipamentos, ousadia nos métodos de produção e que seja também solidária do ponto de vista da sua organização para poder oferecer ao consu-midor produtos de melhor qualidade, com menor custo e de uma forma mais ágil. É com este conceito que estamos tratando a agri-cultura familiar no Estado de São Paulo.

O governo paulista aumentou a competitividade da agricul-tura no estado ao fortalecer organizações de produtores rurais, apoiando suas iniciativas de negócios, investindo em tecnologia e educação justamente para diminuir essa distância entre Estado e o pequeno agricultor.

O pequeno agricultor busca a produtividade para gerar lucro, mas também a preservação do meio ambiente. No mercado interno brasileiro, a chamada Agricultura Familiar é responsável por 70% dos alimentos consumidos no país, e toda sua cadeia produtiva contribui com cerca de 10% do PIB.

A extensão rural contribui para este desenvolvimento, pois faz a ligação do conhecimento com os produtores rurais, levando

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inovação e as melhores técnicas, fazendo com que todos possam melhorar sua atividade.

Em São Paulo, por exemplo, o trabalho da Cati (Coordenadoria de Assistência Técnica Integral) dá amparo aos agricultores familia-res. É na Casa da Agricultura que o agricultor encontra as mais variadas linhas de crédito, desenvolvidas pelo Feap (Fundo de Expansão do Agronegócio Paulista) para criar oportunidades e assim fazer com que a agricultura familiar continue a produzir com qualidade, garantindo o rendimento do produtor e de sua família.

Um outro projeto que produz resultados e eficácia grandiosos, é o PPais (Programa Paulista da Agricultura de Interesse Social), uma iniciativa da Secretaria da Agricultura e Abastecimento, juntamente com a Itesp (Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo), que visa estimular a produção e garantir a comer-cialização dos produtos da agricultura familiar. O programa faz com que São Paulo se torne o principal comprador dos produtos da agricultura familiar, permitindo a melhora da qualidade de vida dos pequenos produtores, garantindo igualdade de oportuni-dade e estímulo aos trabalhadores do campo.

É importante ressaltar ainda o cooperativismo para o fomento do setor. Para o agronegócio, as associações são exemplo de enti-dades que se unem por uma causa maior, que é ajudar o pequeno e médio produtor. São o braço fundamental do desenvolvimento rural, fomentando a produção com qualidade e preservando o meio ambiente. E isso as fortalece cada vez mais.

O Microbacias II é outro projeto do governo paulista, também executado pela Secretaria de Agricultura, por intermédio da Cati, e pela Secretaria do Meio Ambiente, para promover o desenvolvi-mento rural sustentável e a competitividade agrícola paulista, com propostas que devem ser voltadas ao mercado consumidor e que visem o aumento das oportunidades de emprego e renda para os agricultores familiares.

Estas propostas, além de inovadoras, trazem não apenas o desenvolvimento econômico para cada cooperativa e associação beneficiada pelo projeto, como também proporcionam um novo entusiasmo para desenvolver suas atividades.

A nossa visão da agricultura familiar não é sinônimo de depen-dência, de programas sociais que se resumem na distribuição de bolsas isso e aquilo, mas de agricultores que necessitam ser apoia-

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dos para se tornarem excelência na gestão, manejo, conquista de produtividade e produção de alimentos saudáveis e baratos.

Agricultura sustentável

As inovações cada dia mais presentes na vida do agricultor também remetem necessariamente à preocupação com o meio ambiente na produção de alimentos, sobretudo a reflexão sobre o futuro do planeta e das políticas ambientais necessárias para reduzir as emissões de CO2, responsável pelo aquecimento global. É também uma oportunidade de propor e agir para a consolida-ção de uma economia de baixo carbono que resulte na melhora da qualidade de vida e na igualdade social.

O Brasil tem de continuar perseguindo uma política proativa no setor ambiental pela contínua instituição de instrumentos econô-micos de proteção à biodiversidade, o que nos possibilitará um diferencial econômico em relação ao conjunto das demais nações.

Os órgãos governamentais, ambientais e o setor produtivo têm pactuado com a meta da produção sustentável, como foi o caso do Protocolo Agroambiental do setor sucroenergético paulista, que elimina a queima da despalha do canavial, mecanizando adequa-damente esse processo que já conta com a adesão de 90% da produção no Estado.

A agricultura não é inimiga do meio ambiente, mas é preciso continuar trabalhando para implantar cada vez mais programas e práticas que viabilizem o aumento da produtividade e da produ-ção com o menor impacto ambiental e preservando solo e água.

Estima-se que o Brasil reúna quase 12% da vida natural do planeta, pontuando fortemente como referência em biodiversi-dade. Assim como um país marcado pelos superlativos, o Brasil é visto internacionalmente, como o de maior potencial para ampliar a produção de alimentos para atender ao crescimento da popula-ção mundial que, de acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas) deve saltar dos atuais 7,3 bilhões de habitantes para 9,6 bilhões em 2050.

O setor agropecuário brasileiro vem dando o exemplo de como produzir mais, sem aumentar áreas plantadas e em sintonia com o meio ambiente. Os setores produtivo e governamental cami-nham na mesma direção e devem se unir ainda mais para conti-nuar na vanguarda da agricultura sustentável.

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Busca da inovação

Mas não é só a produção agrícola que tem acompanhado o rumo da ciência, das inovações e do experimento de novas tecno-logias. Buscando a excelência na produção de animais, o Governo de São Paulo investiu cerca de R$ 2 milhões para implantação do Laboratório NB3, inaugurado em maio do ano passado. O labora-tório cumpre os requisitos de Segurança Biológica Nível 3, estabe-lecidos pela OIE (Organização Mundial de Saúde Animal). É um dos poucos do país na área animal a ter esse nível de segurança e tem se mostrado fundamental para o apoio e a execução dos programas sanitários brasileiros, contribuindo para as operações de comércio nacional e internacional.

As análises possibilitam uma ação mais rápida na área de defesa agropecuária. Serão feitos em até 48 horas atendimentos emergenciais para identificação de doenças – em situações normais, essas análises são feitas em cinco dias úteis, aproximadamente.

A confiabilidade de laboratórios de diagnóstico veterinário repercute na credibilidade da comercialização internacional de commodities animais, importantes na balança comercial brasi-leira. E o Instituto Biológico é referência de laboratórios acredita-dos pelos órgãos públicos. O Instituto foi criado há 89 anos prin-cipalmente para combater a broca do café, mas ao longo do tempo foi ampliando sua atuação e se tornou símbolo de confiança, saudabilidade para os alimentos, sanidade animal e vegetal e inovação tecnológica.

É esta confiabilidade que faz com que seja referência também na produção de vacinas para pelo menos 14 estados brasileiros. Em 2015, foram comercializadas 2.372.620 doses – sendo mais de 642 mil para o rebanho paulista. É referência também internacio-nal, com suas inovações buscadas por países de vários cantos do mundo como Turquia, Bolívia, Camarões, Espanha e Canadá. Os resultados de suas pesquisas são agora diretamente transferidos para o homem do campo em iniciativas como o Prosaf (Programa de Sanidade em Agricultura Familiar).

Campo digital

A realidade é que a agropecuária brasileira vem se moderni-zando como poucos entre os setores da economia, pela propaga-ção constante de programas que têm levado as inovações tecnoló-

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gicas ao campo, permitindo ganhos extraordinários de produtividade e recordes de safras.

Há uma efervescência no setor agropecuário que, sem dúvida, hoje é o mais dinâmico de nossa economia. Tem demonstrado uma grande capacidade de inovação, utiliza as mais modernas ferramentas de gestão, incorpora mecanismos de financiamento que transcendem os padrões oficiais antigos, negocia contratos no mercado futuro e ainda tem convivência harmônica entre pequeno, médio e grande produtores, que se complementam nas suas atividades.

Uma experiência que tenho vivenciado na condição de secretá-rio de Agricultura de São Paulo é a transferência direta de tecno-logia ao produtor rural por meio de feiras com a apresentação de inovações desenvolvidas pela APTA (Agência Paulista de Tecnolo-gia dos Agronegócios).

A Agência leva ao produtor rural soluções para o aumento de produtividade e garantia de sanidade para a produção vegetal e animal. Estas informações, levadas ao conhecimento do produtor em feiras anuais no Estado de São Paulo, são fruto de um programa de pesquisa desenvolvido há 25 anos por uma parceria entre Instituto Agronômico, APTA, agricultores e cooperativas. Anualmente, os pesquisadores avaliam 40 cultivares de milho para identificar o potencial produtivo e as regiões que mais se adaptam para o cultivo.

Esta modernidade do setor agropecuário fez com que a Fatec Pompeia passasse a oferecer, desde este ano, o Curso de Big Data no agronegócio. O objetivo é formar profissionais capazes de manusear e interpretar grandes volumes de dados, a fim de gerar conhecimentos específicos para a tomada de decisões no segmento.

O curso superior tecnológico foi elaborado em parceria com a Fundação Shunji Nishimura de Tecnologia, com apoio de empre-sas como Intel, Totvs e SAP. O conteúdo se baseia em cursos de mestrado oferecidos na Finlândia e nos Estados Unidos.

pesquisa agrícola pública

Muito embora o setor agropecuário tenha se constituído em um dos pilares de sustentação da economia brasileira, a pesquisa agrícola pública enfrenta dificuldades. Em artigo ao jornal O Estado de S . Paulo (“Os dilemas da pesquisa agrícola pública”),

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que assinei em parceria com Octaviano Neto e zander Navarro, consideramos que no atual contexto “a estrutura de inúmeras unidades regionais da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) também não atende as exigências da moderna economia agropecuária brasileira.

O que fazer? Este é o quadro geral. É preciso agir. O sistema agroalimentar é hoje o coração dinâmico da economia brasileira e precisa modernizar-se continuamente. Para isso, manter a pesquisa agrícola pública ativa e competente é pressuposto incon-tornável, trabalhando em sintonia com os agentes privados nos diversos ramos produtivos.

O Ministério da Agricultura precisa, com urgência, sem inter-dições de nenhuma ordem, e dialogando sempre com todos os setores produtivos, em todo o país, abrir imediatamente um debate amplo para construir uma estratégia consistente no campo da pesquisa agrícola pública. Somente assim será garantido no futuro próximo um sistema agroalimentar que produza mais e melhor, para o Brasil e para o mundo, seguindo preceitos susten-táveis e, primordialmente, que seja também correspondente às aspirações da sociedade brasileira.

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Reflexões sobre a Previdência, o Desenvolvimento e o Bem-Estar Social

Cláudio de Oliveira

Creio que a discussão em torno das aposentadorias no Brasil deve ser conduzida no horizonte de um debate mais amplo sobre o financiamento do Estado do Bem-Estar Social e as

condições econômicas necessárias ao desenvolvimento sustentado. Nossa experiência histórica demonstra que sem a expansão da atividade econômica aumentam as restrições do poder público para cumprir suas obrigações sociais determinadas pela Constituição.

Há um consenso de que sem investimento não há crescimento econômico. A China, país campeão do crescimento nos últimos 30 anos, prova a importância de combinar investimento público e privado, nacional e estrangeiro, para a promoção do desenvolvi-mento e, assim, da expansão da renda.

A alta taxa do crescimento do PIB chinês permitiu não só que centenas de milhões de chineses saíssem da pobreza, como também fez do gigante asiático exportador de capitais, alterando profundamente o seu papel na economia global, cujas consequên-cias retroalimentam a expansão de sua economia interna. Tal crescimento econômico, com a determinação da liderança chinesa nessa direção, tem elevado o padrão de vida dos cidadãos e de sua capacidade de consumo, criando um círculo virtuoso para o desenvolvimento, o que coloca a China cada vez mais em melho-res condições de negociação na arena internacional.

A taxa de investimento na China está em torno de 40% do PIB, sendo que o setor público responde por cerca de 10% do PIB em investimentos em infraestrutura, enquanto no Brasil a taxa geral de investimento gira em pouco mais de 16% do PIB, dos quais apenas cerca de 2% do PIB são investimentos do setor público.

Aqui está, pois, o calcanhar de Aquiles do Brasil: a sua baixa taxa de investimento, especialmente público, desde o fim do governo do general Ernesto Geisel (1975-1979), quando em 1981, no governo do general João Figueiredo (1979-1985), o país entrou em recessão, atormentado por explosão da dívida externa, altas taxas de inflação e juros, além de descontrole das contas públi-cas. Vulnerável à situação mundial decorrente da crise do petró-

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leo e sem recursos para se financiar, o Brasil teve então de recor-rer à ajuda do Fundo Monetário Internacional e, em 1987, no governo do presidente José Sarney (1985-1990), pediu moratória da sua dívida externa por falta de reservas internacionais para o pagamento dos juros.

Somente no governo do presidente Itamar Franco (1992-1994), o país conseguiu renegociar a sua dívida externa, deixando ela de ser um forte entrave ao desenvolvimento nacional. O Plano Real, lançado em 1994, ao derrubar a taxa de inflação de 2.477,15% em 1993 para 1,65% em 1998, demonstrou que bons fundamentos macroeconômicos, entre eles, a sustentabilidade das contas públi-cas, são condição necessária, ainda que não suficiente, para a retomada do crescimento.

Diferentemente do “milagre econômico” do período ditatorial (1964-1985) e da tentativa infrutífera do Plano Cruzado, de 1986, a queda da inflação não aconteceu por medidas artificiais, mas, entre outras, por melhor controle do gasto público. Ao buscar incentivar a economia, caminhar para um regime de responsabi-lidade fiscal e com inflação em declínio, o governo do presidente Itamar Franco colheu rapidamente bons resultados. Em dois anos, verificou-se uma expansão do PIB em 5,4% contra o saldo negativo de -1,3% dos dois anos anteriores do seu antecessor, o presidente Fernando Collor (1990-1992).

Em grande parte, a boa ou má situação dos fundamentos macroeconômicos, somada à conjuntura internacional, terá contribuído para que o crescimento do PIB fosse de 2,4% nos governos do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2001), de 4% nos governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e de -0,75% nos governos da presidente Dilma Rousseff (2011-2016), com repercussões na renda, no emprego e no finan-ciamento do Bem-Estar Social, a começar pela própria Previdên-cia, além da Assistência Social, da Saúde e da Educação.

Desde o lançamento do Plano Real, o saneamento das contas públicas teve como objetivo não só derrubar a inflação, como também recuperar a capacidade de investimento do Estado brasi-leiro, fundamental para garantir o seu papel regulador, indutor, e financiador do investimento privado. Sem o aumento da taxa geral de investimentos, não há crescimento sustentado.

Sem entrar na controvérsia se a Previdência é deficitária ou não, a expansão das suas despesas, tanto as atuais quanto aque-las previstas pelo envelhecimento da população, tem comprimido

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e deverá comprimir outros gastos sociais e especialmente o inves-timento público. Aqui talvez esteja a razão maior da necessidade de uma reforma da Previdência e da contenção do gasto público.

Em 2003, diante do recrudescimento da inflação e da rápida trajetória ascendente da dívida pública, dois dos principais responsáveis por nossa alta taxa de juros, o primeiro governo do presidente Lula realizou um dos mais severos cortes nas despe-sas públicas de nossa história recente e com isso conseguiu uma economia de gastos, o superávit primário, de 4,25% do PIB. O governo Lula ampliou o superávit para 4,6% do PIB em 2004 e para 5,25% em 2005.1 Em todos esses casos, a diminuição da despesa pública se realizou especialmente do lado do investi-mento público: corte de 70% do investimento em 2003.2 O padrão de proporção do investimento em ralação ao PIB se repetirá tanto nos governos Lula quanto nos governos Dilma. Porém, com o declínio da atividade econômica, em um dos últimos ajustes do período dilmista, as restrições atingiram não só obras de infraes-trutura, como também programas sociais importantes, com cortes em até 87%.3

Mesmo a reforma da Previdência do setor público realizada por Lula em 2003, com a taxação dos inativos, entre outras medi-das, não foi capaz de alterar esse padrão. E não por acaso, o seu ministro da Fazenda, Antônio Palocci, secundado pelo então presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, defendeu em 2005 a proposta de um teto de aumento do gasto público limitado à expansão do PIB. O argumento central em defesa da medida era garantir uma estabilidade macroeconômica necessária a todos os agentes econômicos, e em especial ao investimento privado, como também ampliar a capacidade de investimento do Estado. Essa tese, derrotada por setores dentro do governo capitaneados pela então ministra Dilma Rousseff, está bem exposta em artigo do professor da FGV Yoshiaki Nakano, daquele ano, intitulado “Défi-cit nominal zero para estabilidade com crescimento”:

1 Superávit primário do setor público fica acima da meta <http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,superavit-primario-do-setor-publico-fica-acima-da-meta,20050128p6162>. Governo ultrapassa meta do superávit em 2005 <http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,governo-ultrapassa-meta-do-superavit-em-2005,20060130p33320>.

2 Arrocho de Lula reduz os investimentos em 70,3% <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc3112200302.htm>.

3 Cortes vão afetar o PAC, diz Mantega <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mer-cado/me0712201023.htm>.Programassociaistêmcortesdeaté87%comDilma<http://oglobo.globo.com/brasil-programas-sociais-tem-cortes-de-ate-87-com--dilma-19206020>.

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[...] os gastos correntes do governo têm crescido ao longo dos últimos anos, enquanto que os investimentos do governo, parti-cularmente do governo federal, que representam hoje menos de meio por cento do PIB, têm caído sistematicamente gerando uma situação dramática de deterioração e estrangulamento na infraestrutura básica do país.

[...] Déficit nominal zero significa que a necessidade de financia-mento do setor público no seu conjunto será zerada. Isto signi-fica que a dívida pública global em termos absolutos deixará de crescer, isto é, cairá em relação ao PIB na medida em que este crescer. E isto é de fundamental importância, pois a consequên-cia será a queda na taxa real de juros, outra precondição para o crescimento sustentado da economia brasileira.4

No orçamento realizado até setembro de 2014, em valores da época, os investimentos foram de R$ 57,1 bilhões, enquanto as despesas com a Previdência foram de R$ 372,6 bilhões; os gastos com pessoal, de R$ 210 bilhões; com os juros da dívida, de R$ 189,7 bilhões; e o custeio e consumo do governo, de R$ 187,8 bilhões.5

No orçamento realizado até novembro de 2016, a preços de então, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) recebeu R$ 32,61 bilhões (contra R$ 38,9 bilhões em 2015), enquanto as despesas com Benefícios Previdenciários foram de R$ 461,8 bilhões. Somados aos R$ 16,8 bilhões da Compensação ao INSS pelas Desonerações da Folha, mais R$ 102,3 bilhões dos gastos com a Previdência dos servidores federais, mais R$ 45,7 bilhões dos Benefícios de Prestação Continuada da Loas, teremos um gasto de caráter assistencial e previdenciário no total de R$ 626,6 bilhões, o que representou 57,6% do orçamento federal. Para efeito de comparação, no mesmo período, os gastos com Educação foram de R$ 30 bilhões e com Saúde de R$ 89,4 bilhões.6

Para a maioria dos economistas, os fatores fundamentais para o declínio da atividade econômica no governo da presidente Dilma Rousseff foram, exatamente, a baixa taxa de investimento público e a queda significativa do investimento privado. A expansão do PIB caiu de 7,65% em 2010 para 4% em 2011; para 1,8% em 2012;

4 Disponível em PDF em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rce/article/view/27973/26851>.

5 Dilma diz que governo fará corte em gastos que ‘não afetem a demanda’ <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/11/1549080-dilma-diz-que-governo-fara-corte-em-gastos-que-nao-afetem-a-demanda.shtml>.

6 T e s o u r o N a c i o n a l < h t t p : / / w w w . t e s o u r o . f a z e n d a . g o v . b r /resultado- do-tesouro-nacional>.

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de 2,7% em 2013 para 0,5% em 2014, até a contração de -3,8% em 2015 e de -3,5% em 2016, após a explosão da presente crise fiscal.

Uma das razões da queda do investimento privado foi a falta de confiança na sustentabilidade das contas públicas. A dívida pública ultrapassou os 60% do PIB em 2014 (alcançou 70% em 2016 e deve chegar a 93% em 2021, segundo analistas), o que por si só já seria um problema para o seu financiamento, porém agra-vado pela trajetória ascendente do gasto público, superior ao aumento da arrecadação e que apontava para uma condição de insolvência, desestimulando tanto o investimento privado quanto o consumo privado, outro importante motor para o crescimento.

Uma reforma da Previdência deveria ter como critério funda-mental promover a igualdade e a justiça social. Segundo a litera-tura sobre o tema, 2/3 das aposentadorias dos trabalhadores do setor privado são no valor de um salário mínimo. Em 2014, o valor médio das aposentadorias rurais pagas pelo INSS era de R$ 680 reais. Dos trabalhadores urbanos era de R$ 1.240, enquanto o valor médio das aposentadorias dos servidores civis do poder Executivo era de R$ 6.558. O valor médio das aposentadorias dos militares era de R$ 7.741, dos servidores do Judiciário era de R$ 16.726, do pessoal do Ministério Público era de R$ 19.234 e do membros do Legislativo era de R$ 25.225.7

A meu ver, aqui está a principal distorção a ser corrigida. Segundo os dados do governo, os 27,8 milhões de benefícios do INSS seriam responsáveis por um déficit de R$ 141 bilhões, enquanto a Previdência do setor público, com 973,7 mil beneficiá-rios, seria responsável por um déficit de R$ 77,6 bilhões. Uma maior transparência das contas públicas, permitiria dirimir a polêmica em torno da existência do déficit da Previdência.

Pelas regras atuais, há dois tipos de aposentadorias pelo INSS. A aposentadoria por idade, com idade mínima de 65 anos para homens e de 60 anos para mulheres e obrigatoriedade de 15 anos de contribuição. É nessa categoria que está a maioria dos benefí-cios no valor do salário mínimo, isto é, a população de baixa renda, principal vítima da informalidade, das sucessivas crises econômicas e do baixo crescimento.

7 Onde estão as maiores aposentadorias da União? Veja ranking < h t t p : / / d i n h e i r o p u b l i c o . b l o g f o l h a . u o l . c o m . b r / 2 0 1 4 / 0 1 / 1 5 /onde-estao-as-maiores-aposentadorias-da-uniao-veja-ranking/>.

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O outro tipo de aposentadoria do INSS é a aposentadoria por tempo de contribuição, com o tempo mínimo de contribuição de 35 anos para os homens e de 30 anos para as mulheres, sem exigência de idade mínima. É aqui que está uma boa parcela dos profissionais de renda mais elevada. Em 1998, antes das mudanças da Previdên-cia no governo do presidente Fernando Henrique, a idade média com a qual o brasileiro se aposentava era de 48 anos. Hoje, é de 58 anos. O estabelecimento de uma idade mínima como regra geral deveria considerar regras de transição, algum tipo de bonificação para quem começou a trabalhar mais cedo e excepcionalidades para trabalha-dores rurais que trabalham em condições severas, bem como garan-tir fontes de financiamento de suas aposentadorias.

Em sua autocrítica de maio de 2016, logo após a crise do impea-chment da presidente Dilma Rousseff e depois de 14 anos à frente do Executivo central, o PT admitiu que “logo ao assumirmos, relegamos tarefas fundamentais como a reforma política, a reforma tributária progressiva e a democratização dos meios de comunicação”.8

Em relação à reforma tributária, corretamente, não se pode falar em contenção de gastos públicos e reforma da Previdência sem discutir uma reforma para dar racionalidade e eficiência ao sistema tributário brasileiro e corrigir o seu caráter regressivo. Assim, mudanças nas aposentadorias deveriam ser negociadas no Congresso em troca de uma reforma tributária progressiva. Uma criteriosa revisão de desonerações, incentivos e subsídios do BNDES é outra providência necessária.

Uma última questão se coloca. Quais forças políticas teriam a tarefa de realizar um novo pacto político e social para modernizar o Estado brasileiro e abrir caminho para um longo ciclo de cresci-mento econômico sustentado que garanta o Bem-Estar Social? Não seriam elas as mesmas que em 1988 foram responsáveis pela atual Constituição, definidora das bases institucionais do nosso Estado do Bem-Estar Social? Seriam aquelas do bloco de centro-esquerda liderado na Constituinte por Ulysses Guimarães e que reuniu libe-rais, socialdemocratas, socialistas e comunistas? É possível congregar essas mesmas forças no Congresso do Brasil de hoje?

8 Resolução de Conjuntura, maio 2016. <http://www.pt.org.br/wp-content/uploads/2016/05/Resolu__es-sobre-conjuntura-Maio-2016.pdf>.

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vI. Batalha das Ideias

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Autores

Gilvan Cavalcanti de MeloCriador e editor do blog Democracia Política e novo Reformismo

Stephanie BecherCientista política pela UnB

Zander NavarroEngenheiro Agrônomo . Doutor em Sociologia (Sussex University, Inglaterra, 1981), pesquisador concursado da Embrapa (Brasília) . É professor aposentado da UFRGS (Porto Alegre) .

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A utopia e os direitos

Gilvan Cavalcanti de Melo

Há um tema que me desperta e provoca minha atenção: a ques-tão da utopia. Neste pequeno trabalho, tentarei, de forma resumida, fazer uma aproximação sobre a minha percepção

do polêmico assunto. É apenas uma hipótese entre tantas versões em circulação. Espero contribuir para esse debate instigante.

É conhecida a história política recente dos últimos 12 anos do país. São conhecidos, também, seus resultados políticos: “hege-monismo” partidário, cooptação, aparelhamento, mensalão, Lava-Jato etc. Os fundamentos da democracia foram abalados: a divi-são dos poderes da República esgaçados. O Parlamento e os partidos políticos perderam protagonismo. Conhecidas, também, as sequelas da economia politicamente dirigida: recessão, juros altos, inflação acima do teto, milhões de desempregados, aumento da pobreza e da violência, etc. Os movimentos sociais, omissos. Pior, em silencio. É conhecida a modificação no campo da ética: o cinismo, a manipulação, a enganação, a fantasia, a ilusão e a mentira, a corrupção sistêmica, passaram para a categoria de valores “universais”. Este é o nosso drama. Também a nossa miséria e tragédia.

Nesta circunstância, concreta, escutam-se muitas vozes de notáveis – dirigentes políticos, colunistas da mídia, intelectuais, etc. –, falar e escrever sobre a perda de utopia e a busca de uma nova. Mas, que isso significa? Buscar sua definição? A tentativa é bastante complicada, complexa e de múltiplas aproximações.

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O conceito é usualmente conhecido como “lugar inexistente”, “lugar feliz”, ou um mundo sem contradições.

Mas, isso não significa que não tenha valor político, inclusive filosófico, mesmo desconexa e apenas esboçada. Neste aspecto, a religião é a mais gigantesca utopia que já apareceu na história, em sua tentativa de conciliar as contradições reais da vida. Seria oportuno recordar um trecho de Marx na Introdução da Crítica da Filosofia do Direito, de Hegel: “o homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular”. É uma realização fantástica e fantasiosa do ser humano.

A morte de Sócrates levou Platão a desprezar a vida na pólis e questionar alguns dos ensinamentos dele. O fato de Sócrates não ter conseguido persuadir os juízes de sua inocência e seus méri-tos, fez Platão duvidar da validade da persuasão, do convenci-mento. Sócrates considerava a retórica, a arte da persuasão, a mais elevada, a arte verdadeiramente política. Platão seguiu um caminho diferente: a utopia social. Em sua obra A República, cria um Estado perfeito, governado por reis-filósofos. Em outras pala-vras, a República dos filósofos.

Já Thomas More cria uma ilha-reino, chamada Utopia. Nela tenta demonstrar como seria aplicável uma sociedade sem proprie-dade privada e sem intolerância religiosa, na qual a razão é o critério para estabelecer condutas sociais e não o autoritarismo do Rei ou da Igreja.

A revolução francesa gerou uma leva de pensadores conheci-dos como socialistas utópicos: Henri Saint-Simon, Charles Fourier e Robert Owen. Entre eles, percebe-se a concepção de construção de uma sociedade ideal, em que se defendia a possibilidade de criação de uma organização onde as classes sociais vivessem em harmonia ao buscarem interesses comuns que estivessem acima da exploração ou da busca incessante pelo lucro. Alguns deles chegaram a levantar a questão: “A cada um segundo sua capaci-dade, a cada um segundo suas obras”.

Mas, havia um traço comum entre eles: o autoritarismo. O sistema proposto para liquidar com os males do industrialismo liberal era entregar as tarefas a homens “capazes” como produto-res, técnicos, cientistas e artistas. Seria abolido o direito heredi-

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tário, o Estado seria proprietário único dos meios de produção, do capital e da distribuição.

Em oposição ao socialismo utópico, Friedrich Engels propõe a utopia do socialismo científico. Com base nos estudos e pesquisas do fundador da filosofia da práxis, transforma capítulos de sua obra polêmica com o pensador positivista Eugen Dühring no panfleto Do socialismo utópico ao socialismo cientifico que se cons-tituiu desde então, no manual da nova utopia para a educação de amplos setores do Ocidente.

O que propunha o autor da utopia cientifica? A classe do prole-tariado tomaria o poder político e, por meio dele, converteria em propriedade pública os meios sociais de produção. Com esse ato livraria os meios de produção da condição de capital, que tinham até então. Daria a seu caráter social plena liberdade para se impor. A partir desse fato já seria possível uma produção social segundo um plano previamente elaborado. O desenvolvimento da produção transformaria num anacronismo a sobrevivência de classes sociais. À medida que desaparecesse a anarquia da produ-ção social, iria diluindo-se também a autoridade política do Estado. Os homens, donos por fim de sua própria existência social, tornar-se-iam senhores da natureza, senhores de si mesmos, homens livres. A realização desse ato, que redimiria o mundo, seria missão histórica do proletariado moderno.

As diversas utopias exprimiam, na verdade, uma crítica das sociedades existentes em seu tempo. Ao mesmo tempo introduzi-ram a igualdade econômica como a base para as reformas ideali-zadas. Mas, consideravam, só possível estabelecer essa mesma igualdade pela via de atos de vontades desde o alto: sem a política, sem a democracia.

Com a visão crítica a respeito das utopias como ato de vontade, o pensador italiano Antonio Gramsci chegou a escrever um texto nos Cadernos do Cárcere muito significativo: “Não é talvez a reação, também ela, um ato construtivo de vontade? E não é ato voluntário a conservação? Por que, então, seria “utópica” a vontade revolucionária de Maquiavel, e não utópica a vontade de quem pretende conservar o existente e impedir o surgimento e organiza-ção de forças novas que perturbariam e subverteriam o equilíbrio tradicional? A ciência política abstrai o elemento “vontade” e não leva em conta o fim a que uma vontade determinada é aplicada. O atributo de “utópico” não é próprio da vontade política em geral, mas das vontades particulares que não sabem ligar o meio ao fim

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e, portanto, não são nem mesmo vontade, mas veleidades, sonhos, desejos etc.”.

Seria importante relembrar que Maquiavel não escreveu nenhuma utopia que aspirasse um Estado já constituído com todas as suas funções e elementos. Diferente dos utopistas, ele escreveu sobre a ação política concreta, imediata, do homem. A criação de uma vontade coletiva para um determinado objetivo político, sob a forma de fantasia e arte. Na ação concreta, virtù e fortuna são elementos fundamentais, ou seja, aliar a capacidade de adaptação aos acontecimentos e às coisas permanentes e inevitáveis.

Como foi dito anteriormente, a utopia também tinha o seu valor político. Um livro do pensador alemão, Jürgen Habermas, Sobre a constituição da Europa parece-me ter como objeto a mesma temática. Mas, introduz a sua inquietação de não repro-duzir a imagem da utopia social de uma felicidade coletiva. Sua preocupação, agora, é o tópico da dignidade humana e, na prática, dos direitos humanos. Isso significa resgatar a dimensão política da participação democrática dos indivíduos nos processos decisó-rios na gestão das políticas econômicas e financeiras.

Na sua tese, deixa claro sua preocupação com a incapacidade da política de controlar a economia e reação às crises econômicas. Amplia seu horizonte com proposta de reforma institucional e em gerar uma sociedade mais justa, não só no sentido de garantir as liberdades básicas, mas também de assegurar mais igualdade e uma vida a todos os seres humanos. Para ele, os direitos huma-nos formam uma utopia realista.

No Brasil, intelectuais do campo da esquerda democrática, em seus artigos e ensaios, sempre deixam evidente a ausência de um pensamento constitucionalista dos direitos humanos, de uma parte da esquerda. Esta parte é portadora de uma cultura não democrática, sob a ação de uma versão da filosofia da práxis, de viés positivista, mística, fideísta.

A Constituição brasileira, no próximo ano completará trinta anos. Não é pouco. É a mais longa da nossa história. Nela está contida uma série de compromissos. Vão desde seus princípios fundamentais, tais como a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Aponta que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natu-reza, garantindo a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade. Nos direitos sociais, indica como direitos a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a

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previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistên-cia aos desempregados etc. Os direitos acordados nela, ancoram o próprio desenho de programa e objetivo ideal de uma sociedade justa, nas instituições de um Estado democrático.

A realidade dos fatos impõe um processo de crítica dessa mesma realidade e agir para modificá-la. Dentro desta utopia realista, algumas reformas seriam necessárias no atual cenário: a) uma reforma política eleitoral; b) uma reforma trabalhista e sindical; c) uma reforma tributária federalista; d) uma reforma que elimine os gargalos da previdência social. São alguns elemen-tos de uma utopia reformadora associados aos compromissos constitucionais de distribuição de riqueza que poderão obter um forte apoio social, plural e crítico. E, trabalhar para construir uma nova vontade política coletiva nos valores e ideais democrá-ticos, para transformar a atual realidade brasileira.

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Qual o futuro (próximo) da esquerda agrária?

Zander Navarro

O problema: particularmente àqueles interessados nos estu-dos rurais, submeto o presente comentário, organizado na forma de algumas curtas e diretas proposições arroladas

adiante. É texto que pretende refletir, ainda que sucintamente, sobre um tema que julgo ser relevante - o estado atual e as chan-ces no futuro (mais ou menos imediato) de um campo de ação interpretativa sobre os processos sociais rurais, intitulado de “esquerda agrária”.

Reconheço, enfaticamente, ser este um comentário demasiada-mente desafiador, tornando-o presa fácil de inevitáveis incompreen-sões ou diversos desentendimentos potenciais, pois não oferecerei evidências empíricas e nem submeterei fatos a respeito. Também não me aventurarei em sequer esboçar algumas considerações sobre a história do pensamento social dedicado ao assunto e suas vicissi-tudes, ao longo dos anos. O comentário consta, tão somente, de proposições gerais e, portanto, não oferecendo “provas”, irá parecer meramente como uma listagem de “argumentos de autoridade”.

Por se tratar de um comentário, na fronteira do testemunho, aqui são propostas generalizações que, para alguns dos membros singulares que se identificam com a esquerda agrária, talvez sejam argumentos gerais que poderão parecer, em alguma medida, impróprios, quem sabe até injustos. De fato, “esquerda”, “esquerda agrária”, “socialismo”, “Marxismo”, ou tantos outros termos correlatos, não são, sequer remotamente, monolíticos, teoricamente coesos, ou rígidos em suas definições. Pelo contrá-rio, são termos sujeitos a infindáveis controvérsias e, em conse-quência, o pensamento social e político sobre a esquerda (ou “as esquerdas”) é riquíssimo e extremamente diversificado, sem um arcabouço particular dominante. O objetivo foi apenas sugerir as grandes fronteiras que demarcam o grupo, sem especificar dife-renças internas ou especificidades. Reconheço a existência e a importância de tais particularidades, mas apontá-las escapa aos objetivos mais imediatos desse comentário.1

1 Curioso sobre a “esquerda e sua história”, tive a fortuna de realizar meu dou-toramento em Sociologia na Universidade de Sussex (Inglaterra) entre os anos

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A justificativa

O pressuposto que anima esta curta reflexão deve ser, portanto, imediatamente enunciado. Para analisar com maior precisão os processos sociais rurais em curso no país, precisamos de um vivo e ativo “pensamento à esquerda”. Em decorrência, o lento e gradual estiolamento ora observado nesse campo de inquirição é um desenvolvimento profundamente deletério à nossa capacidade de avançar o conhecimento mais sólido acerca da produção agro-pecuária e da vida social rural.

Processos sociais (incluindo os econômicos) nunca serão consensualmente explicados e, por isso, o conhecimento científico que pretende se apresentar como sendo “a verdade” (ou, pelo menos, intenta ser a explicação mais influente) somente virá a lume a partir da existência de um ambiente de pesquisa plura-lista e do confronto de visões de mundo, ideologias, teorias, mode-los analíticos e paradigmas. Uma de nossas tantas tragédias é que, no Brasil, esta tem sido uma situação de rara ocorrência. A marca principal das Ciências Sociais dedicadas ao “rural” tem sido a interdição, quando não a desqualificação imediata, de toda e qualquer produção científica que não seja a mesma adotada pelo próprio autor ou sua escola de pensamento. A fertilização do campo de debates via o confronto de ideias – um dos cânones fundamentais da prática científica – tem sido a exceção em nossa vida universitária e acadêmica.

A perda crescente de influência da “esquerda agrária” (EA) e a diluição contínua deste campo interpretativo inevitavelmente empobrecem as possibilidades de compreensão acerca do mundo rural. Estas são tendências que precisam ser devidamente discu-tidas, no sentido de perceber suas causas e, eventualmente, abrir espaços para a sua reconstituição, ainda que necessariamente sob lentes teóricas novas e renovadas. Insistir, em larga propor-ção, na ortodoxia clássica significará, concretamente, a pá de cal nas possibilidades objetivas deste grupo interpretativo manter-se como segmento respeitável da comunidade científica que estuda os processos sociais rurais.

de 1977 e 1981. Quando submeti minha candidatura, a Universidade mantinha um “Departamento de Estudos Marxistas”, no qual o grande nome era István Mészáros, o lendário filósofo de origem húngara discípulo de Lukács. Com a assunção de Thatcher ao poder, em 1979, esse Departamento foi extinto, em função dos cortes orçamentários. Fui aluno de Mészáros e de outro brilhante pro-fessor de Sussex, Tom Bottomore, talvez o maior marxólogo de todos os tempos.

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A esquerda agrária

Mas, o que caracteriza a “esquerda agrária”? Quem integra este campo do pensamento social, quais são os seus espaços institucionais? Entendo que são cinco os principais aspectos que devem ser destacados:

(a) primeiramente e, sobretudo, os seguidores da EA adotam uma postura anticapitalista, mas os matizes desta orientação são muito variáveis em suas manifestações (simbólicas ou políticas), refletindo construções mentais muito distantes entre si. Combi-nam desde a exigência de repetir frases protocolares, de alguma banalidade, que seriam obrigatórias (como “dominação do grande capital”) às infindáveis citações de frases de Marx, quaisquer que sejam, embora neste último caso apenas entre aqueles que (rarís-simos), de fato, leram o autor e se apresentam sem muitos disfar-ces como marxistas.

Há aqui um desafio prático: separar aqueles, de um lado, que adotam posturas e leituras nitidamente anticapitalistas, sem nenhuma dúvida, e, de outro lado, aqueles que apenas parecem contestar superficialmente o regime econômico (ou algumas de suas facetas), pois estão confinados, na realidade, à crítica ética ou à indignação moral sobre os nossos incontáveis passivos sociais e suas iniquidades históricas. Como estes grupos se misturam e muitas vezes agem em conjunto, parece que a esquerda agrária real (em números) é muito maior do que é. E como o significado de “esquerda”, em nossos dias, é desconhecido, a avaliação sobre a relevância concreta da esquerda agrária se mantém, confundindo a todos. Por isso, às vezes, a EA parece influente e ampla, mas em outros momentos parece ser o inverso, dependendo de qual dos dois grupos prevalece ou se ambos estão atuando em conjunto. Se retirado o segundo grupo, dos “indigna-dos morais” contra certos aspectos do regime econômico e das tragédias sociais de nossa história, provavelmente a EA de fato se mostraria surpreendentemente diminuta.

São muito negativas para a pesquisa e para a produção de conhecimento sobre o tema geral as implicações destas assumi-das posturas (ainda que legítimas do ponto de vista político). Um exemplo é a recusa de realizar qualquer estudo empírico sobre os “ricos no campo” e praticamente não temos nenhuma pesquisa sobre a burguesia agrária ou as classes patronais das regiões rurais. É comportamento tão patético que não requer ser anali-sado mais detidamente. Como entender o desenvolvimento agrá-

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rio brasileiro sem incluir na análise os grandes grupos econômi-cos que atuam nas regiões dinâmicas da agropecuária brasileira ou no âmbito das cadeias produtivas?

(b) outro aspecto negativo que vem enfraquecendo fortemente a ação da EA é a sua incapacidade de separar mais claramente “ciência e militância política (e, em especial, a partidária)”. Sobre tal exigência lógica, para desenvolver credibilidade e reputação científica, não me estenderei, pois são inúmeros e notórios os exemplos e situações. Não sendo realizado um esforço de estabe-lecer fronteiras visíveis entre as exigências científicas, o rigor analítico e as práticas canônicas da vida acadêmica, de um lado, e as escolhas políticas pessoais, de outro lado, a EA apenas se apequena, em todos os âmbitos;

(c) a esquerda agrária, mais do que qualquer outro subgrupo das Ciências Sociais, desenvolveu até aqui uma enorme confusão conceitual sobre “o empírico” e seu papel na construção do conhe-cimento. Há, sobre o tema, uma herança de controvérsias inten-sas, desenvolvidas nas décadas de 1970 e 1980, quando “as gran-des narrativas” (como o Marxismo, o Estrutural-funcionalismo e outras escolas) se debatiam e as tradições de esquerda comba-tiam tenazmente o “empiricismo” das tradições analíticas não marxistas. Como no geral uma proporção significativa dos inte-grantes atuais da EA estuda muito pouco, parece não ter conhe-cido esses debates do passado e, assim, criticam paradigmas que exageraram a valorização do empírico, mas esta crítica acabou também gerando práticas de pesquisas, entre os membros da EA, que são absurdas – porque desvalorizam a pesquisa de campo, o levantamento de dados e o conhecimento das realidades rurais;

(d) é assustador o paroquialismo da EA no Brasil e, ainda mais, são inacreditáveis as generalizações sobre “o todo” a partir de evidências microscópicas do ponto de vista empírico. Quase sempre, as opções analíticas são “o local”, o qual, no entanto, é extrapolado para “o nacional” e, às vezes, até para “o global”. São narrativas surpreendentes, em face de sua pobreza analítica e, com maior surpresa, envolvendo universidades de prestígio e cole-gas pesquisadores que são influentes. Bastaria lembrar, como um exemplo ilustrativo, as dezenas de pesquisas sobre manifestações sociais de grupos e classes de famílias rurais mais pobres que têm sido imediatamente transformadas (pelos pesquisadores, não pelos protagonistas) em evidências concretas de “formas de resis-tência social” (ao capitalismo, é claro), mas sem nenhuma prova empírica que estabeleça esta relação factual;

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(e) onde estão os aderentes da esquerda agrária? Basicamente, seus integrantes estão em espaços majoritariamente estatais, o que introduz uma faceta comum cujo exame sociológico produzi-ria implicações de alguma problematização. Ou seja, pratica-mente todos os mais ativos integrantes da EA são funcionários públicos, mas esta relação de trabalho não os impede que pontifi-quem sobre o rural e, particularmente, sobre os “comportamentos sociais desejáveis dos agricultores”, sem que a vasta maioria jamais tenha tido qualquer relação direta com a agricultura e suas vicissitudes (particularmente as suas dificuldades e preca-riedade). Quase todos têm sua renda garantida mensalmente, mas, ainda assim, entendem legítimo pregar sobre supostas virtu-des que deveriam compor o receituário comportamental das famí-lias rurais, especialmente as mais pobres. Em sua maioria, estão nas universidades públicas, mas muitos outros trabalham nos demais órgãos do Estado (ligados à pesquisa agrícola ou outros) e nos serviços de extensão rural, além de alguns isolados, espalha-dos aqui e acolá. Mas, também estão na maior parte das ONGs que atuam no campo e nas organizações sindicais ou econômicas que tem no “rural” o seu foco de atuação.

Os estudos rurais perdem força

Na história das Ciências Sociais brasileiras, o espaço intitu-lado de “rural”, tradicionalmente, ocupou no passado um lugar destacado de interesse, por razões de ampla obviedade, associada, sobretudo, às iniquidades que sempre marcaram as regiões rurais, da concentração da propriedade da terra às diversas manifestações de violência rural, da gritante desigualdade social ao seu corolário, que tem sido a extrema precariedade da vida social rural. Por tais razões (e muitas outras), o interesse dos cientistas sociais sobre os processos em curso nas regiões rurais sempre se manteve forte.

Mas esta é característica que durou apenas até os anos noventa. No último quartel de século, este foco de interesse foi sendo esmaecido e, gradualmente, os antigos colegas da área substituíram as suas áreas temáticas de pesquisa. O país urba-nizou-se fortemente e, do ponto de vista produtivo, a agropecuá-ria tem respondido às demandas do mercado interno. O antigo Brasil rural, de conteúdo fortemente agrário, foi sendo erodido, surgindo um novo Brasil rural de conteúdo, cada vez mais, circunscrito ao agrícola e ao estritamente produtivo. Em conse-

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quência, atualmente, quase que se contam nos dedos os pesqui-sadores das Ciências Sociais que, sistematicamente, realizam pesquisas sobre “o rural”, oferecendo resultados de seu trabalho de investigação com regularidade e contínua atualização. Na área de Sociologia, como ilustração dessas novas escolhas, as duas maiores universidades brasileiras (USP e Unicamp) não contam mais com pesquisadores que tenham elegido “o rural” como o seu ambiente social privilegiado de pesquisa.

As proposições

Ante o conjunto de mudanças e tendências antes anunciadas, seguem-se a seguir as proposições que formam o centro deste comentário. São as seguintes:

(1) A EA é um subgrupo da “esquerda em geral”. Este campo político maior, contudo, jamais empreendeu seriamente esforços continuados de autoanálise e, por isso, a EA padece dos mesmos desafios que afligem o grupo maior. Desde uma forte herança stalinista que sempre marcou a história política da esquerda (tornando-a avessa à democracia) ao desafio maior, que é urgen-tíssimo desde 1989: alcançar alguma conclusão prática sobre a pergunta – “qual o significado da esquerda em nossos dias?”. Além desses inúmeros contratempos políticos e teóricos, à EA se adiciona um desafio mais específico, que não tem sido enfrentado – analisar o desenvolvimento agrário brasileiro recente e suas transformações, incluindo análises muito mais refinadas sobre a dinâmica do capital no campo. No geral, o grupo apenas repete a mesma série de “análises” que vem sendo feitas desde sempre, assim se distanciando fortemente da realidade;

(2) Igualmente em relação à “esquerda em geral”, à EA se pediria um esforço adicional na tentativa de compreender a si mesma. As tradições da esquerda, no Brasil, sempre seguiram uma lógica biná-ria (“nós contra eles”) e obedecem aos ritos organizativos típicos de seitas. Comportam-se mais como grupos religiosos do que agrupa-mentos de cientistas e movem-se através de mecanismos argumen-tativos de “arrogância defensiva”. Isto significa a desqualificação imediata e in limine de qualquer proposição diferente da tradição da esquerda e dos discursos dominantes do grupo. A consequência mais imediata é a impossibilidade de qualquer debate;

(3) A EA precisa ter a coragem, além disso, de confrontar as narrativas espantosamente rebaixadas e primárias que foram

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desenvolvidas, particularmente a partir dos anos 1990, quando novos aderentes do grupo surgiram – mas sem formação teórica apropriada. São aqueles oriundos da Agronomia ou da Geografia, antes citados, os quais, sem nenhum lastro analítico mais substan-tivo, passaram a falar em nome de uma “visão de esquerda” sobre os processos sociais rurais, sem receberem, no entanto, qualquer crítica por parte dos setores da EA que detêm maior densidade analí-tica. Consequentemente, a listagem de aberrantes equívocos foi crescendo exponencialmente durante esse período, ao mesmo tempo em que foi cerceado qualquer questionamento a respeito;

(4) Ao mesmo tempo, é preciso ter a humildade de reconhecer que nossos esforços científicos, nas Ciências Sociais “dedicadas ao rural” (à esquerda ou não), resultaram em um acúmulo que é relativamente pobre. Formam um campo multidisciplinar fraca-mente institucionalizado, o qual ostenta um desenvolvimento acadêmico insuficiente, quando comparado com outros países, sendo exageradamente ideologizado e pobre em termos analíticos. Nossa “acumulação primitiva” sobre o tema geral é ainda muito rarefeita. Por exemplo, nunca tivemos cientistas políticos que tenham se dedicado regularmente aos processos políticos ocorri-dos nas regiões rurais, ainda que alguns tenham atuado perto, através da Sociologia Política. Os esforços em “Antropologia do mundo rural”, por sua vez, foram mais significativos apenas entre as décadas de 1970 e 1980 (lembrando o Museu Nacional), mas essa trajetória foi depois desaparecendo. Na Economia, quando sob a inspiração da EA, os resultados até hoje têm sido deplorá-veis, ainda que outros arcabouços teóricos da Economia tenham produzido conhecimento mais sólido. Na Sociologia, onde está mais presente a EA, os esforços científicos foram sendo degrada-dos paulatinamente com o passar dos anos e os esforços de refle-xão teórica, que constituiram a marca dos anos iniciais, gradual-mente foram abandonados e o rebaixamento foi se assenhorando como a marca principal da Sociologia dedicada aos processos sociais rurais. Como ilustração absolutamente espantosa, basta citar o ressurgimento recente do termo “camponês” e uma litera-tura bizarra e infantil sobre “recampesinização”, a qual surgiu a partir da segunda metade dos anos noventa;

(5) É igualmente necessário apontar que uma nefasta faceta de nossos comportamentos como cientistas sociais (e, mais ainda, aqueles situados no campo da EA) é a incapacidade de manter posturas críticas sobre os objetos estudados. A aceitação acrítica e pueril dos dogmas convencionais da esquerda torna as análises

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assemelhadas a meros panfletos. Os exemplos são tantos e tão notórios que não merecem ser listados;

(6) Retrospectivamente, minha impressão é que estudamos muito pouco, nossos esforços são totalmente insuficientes, sem rigor e nem disciplina, sem estratégia teórica e sem os esforços intelectuais necessários. Somente assim para entender porque acumulamos tão pouco, em termos de conhecimento geral sobre os processos sociais rurais. Se este é o quadro geral, no subgrupo da EA a situação atual é ainda mais sofrível, pois são colegas que escrevem e falam sobre temas inacreditáveis. Tome-se como ilus-tração o absurdo exemplo da “agroecologia”, aceita acriticamente através de importação imposta pelas nossas tradições de compor-tamentos colonizados e, espantosamente, sendo uma palavra repetida sem que ninguém da EA faça algumas perguntas imedia-tas que até o senso comum imporia: qual é o conceito ou a proble-mática teórica da agroecologia? E, em especial, qual o formato tecnológico que sustenta tal noção? Mesmo sem respostas para estas perguntas (pois não existem), continua a marcha da completa insensatez em torno da palavra mágica “agroecologia”;

(7) Como a EA é um subgrupo da “esquerda em geral”, repe-tem-se as “obrigações ideológicas” desse campo. E são posturas completamente contraditórias, na maior parte das vezes. De um lado, se aceita o ridículo relativismo atualmente defendido pelo campo da esquerda em geral, sob o qual qualquer grupo social, minúsculo que seja, pode defender sua “cultura”, hipervalori-zando-se “a diferença”, sem se preocupar com indicadores objeti-vos e empíricos que assim justifiquem a segmentação. Mas, em oposição, a esquerda em geral está também presa à noção de universalidade que, igualmente, produz aberrações inacreditá-veis. Uma delas é a aplicação da categoria “trabalhadores” a dife-rentes conjuntos sociais que, de fato, são membros da classe média, inclusive em regiões rurais. Não comentarei aqui o infinito absurdo que tem significado a expressão “agricultura familiar” (tema sobre o qual já escrevi em demasia), mas, o que justifica intitular de trabalhadores as famílias rurais moradoras em pequenos estabelecimentos rurais? Sociologicamente, estas famí-lias seriam componentes dos estratos de uma “baixa classe média” ou, as mais pobres, integrariam uma parte do “sub-proletariado rural”. Para que serve então uma das categorias centrais da tradi-ção marxista, o conceito de classe social?

(8) Não me estenderei mais longamente sobre este ponto, mas a esquerda agrária não sobreviverá se não for para o campo e inten-

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sificar mais os seus estudos empíricos, com os olhos abertos e sem pré-leituras acerca da realidade. Por certo, alguns exercitam com saudável regularidade a pesquisa de campo. Mas parecem cegos ao mundo real, pois seus escritos decorrentes sugerem interpretações que dificilmente seriam correspondentes aos processos sociais rurais. Há uma revolução produtiva e tecnológica em curso nas regiões rurais e “tudo está mudando”. Assim, manter os velhos discursos do passado, apenas repetindo jargões e termos sagrados não conseguirá oferecer nenhuma interpretação aceitável ante esse quadro de transformações sociais e econômicas;

(9) A esquerda agrária brasileira está morrendo, seja aquela situada no extremo político mais moderado e se posicionando politicamente “à esquerda”, mas motivada especialmente por preceitos morais, ou, no outro extremo, a esquerda agrária mili-tante e ideologizada. Os temas rurais estão perdendo sua atrati-vidade na sociedade e, assim, a reiteração de um discurso do passado encontra cada vez menos eco entre os brasileiros. Para os estudos sociais rurais, esta agonia é um fato a lamentar, pois se reduzem as chances de maior pluralidade no campo analítico. Mas, para manter-se viva, a EA precisaria experimentar uma verdadeira catarse renovadora, autoanalisando-se radicalmente e realizando um esforço gigantesco de refundação teórica, objetivo que, infelizmente, não parece estar presente no horizonte.

Em conclusão

É inescapável a verificação sobre um quadro geral deplorável que afeta a esquerda agrária no Brasil em nossos dias. Não deve-ria existir uma reação? Por que aceitar passivamente a própria agonia, permitindo que o mundo da carochinha desenvolvido pelo rebaixamento das análises se tornasse dominante, desmorali-zando o próprio trabalho dos integrantes da esquerda agrária?

Como está, atualmente, a esquerda agrária está escolhendo a sua imolação como destino.

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O Calvinismo e o mundo moderno

Stephanie Becker

Neste ano, celebra-se uma data importante na história do Ocidente e do mundo: há 500 anos, Martinho Lutero pregou suas 95 teses contra certos dogmas do catolicismo

na porta da igreja do castelo de Wittenberg, desencadeando o processo que viria a ser conhecido como a reforma protestante. Embora sendo um movimento religioso, a reforma desencadeou uma mudança de mundo que Max Weber, em seu clássico A ética protestante e o espírito do capitalismo, classificou como decisiva para a conformação da Europa moderna.

A reforma protestante, contudo, não foi um movimento único. Ela teve uma sistematização na figura de João Calvino (1509-1564), que tinha apenas oito anos quando Lutero manifestou-se contra o papado na Alemanha. Ainda na Universidade, Calvino começa a se destacar com ideias protestantes e, por estudar em Paris, uma cidade muito católica, ele se viu obrigado a fugir, refu-giando-se em Genebra, na Suíça, que se tornou o centro religioso do movimento que veio então a chamar-se calvinismo.

O Calvinismo é particularmente interessante porque João Calvino foi além de seus interesses religiosos e escreveu sobre o Estado, política, representação e as relações entre as esferas laicas e a fé religiosa. Quanto à política, por exemplo, ele tem pelo menos três textos que tratam diretamente sobre o Estado: seus comentários a Romanos 13, o capítulo XX do volume 4 de As insti-tutas da religião cristã e Sobre o governo civil. Nestes textos, Calvino não aparta a religião de seu pensamento, argumentando que a primeira preocupação dos governantes deve ser as obriga-ções devidas a Deus. Ele atribui dois papéis principais aos gover-nantes: a manutenção da ordem política e eclesiástica e a provi-são do ensino da verdadeira doutrina cristã.

Com relação à manutenção da ordem política, o que direciona seu raciocínio é a ideia de que os governantes são autoridades instituídas por Deus e têm por função honrar os bons e punir os maus, ou seja, os que agem de forma errada, por exemplo, aten-tando contra outros seres humanos. Defende que os governantes devem prover segurança e paz, fazer justiça, reprimir a violência

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dos ímpios, punir delitos, quando possível usar clemência, mas quando não, aplicar punições e castigos. Porém, não derra-mando sangue inocente ou se utilizando de violência gratuita, e ainda amparando os pobres e carentes. Devem igualmente defender a propriedade e a honestidade, garantindo o bem-estar e a paz de seu povo.

Sendo assim, Calvino é contra a anarquia, pois vê a necessi-dade do Estado, afirmando que a autoridade civil é uma vocação legítima, a mais sagrada e honrosa de todas. Com o poder que os governantes têm, ele os alerta para não cederem a paixões pessoais, pois isso desvirtuaria sua autoridade. Segundo Calvino, eles devem se guiar pela ideia de bem público e não manifestarem ódio nem mesmo em relação àqueles que têm que ser punidos.

João Calvino teve a oportunidade de colocar em prática o que defendeu sobre o Estado, quando foi chamado para ajudar na Reforma de Genebra. Porém, apesar da influência que tinha na cidade, nunca se tornou um ditador, pois estava sob a autoridade do Conselho Municipal. Vale perceber também que ele teve grande influência não apenas nas questões religiosas da região, mas também participou de decisões políticas e sociais.

O seu pensamento com relação à política teve continuidade na obra de alguns de seus seguidores como Abraham Kuyper, Wayne Grudem, David T. Koyzis, Herman Dooyeweerd e Franklin Ferreira. Todos eles tratam de política de alguma forma, com focos e ênfases diferentes, mas tendo como referência o pensa-mento do reformador francês.

A defesa do papel do Estado é ponto comum em todos os pensa-dores calvinistas. O Estado possui o poder de coerção, a ser utili-zado em defesa do bem comum, a República sendo para eles a melhor forma de governo. Apesar da defesa da presença do Estado, os calvi-nistas enfatizam que os cidadãos devem sempre vigiar o poder esta-tal para que este não restrinja a liberdade dos cidadãos.

Os calvinistas defendem a independência da família e do Estado, bem como a autonomia da escola, das artes, da igreja e do trabalho, já que estas, como Kuyper define, são esferas distintas que não podem ser misturadas. Sendo assim, é necessário evitar a confusão entre as linguagens delas. O Estado, portanto, não é um todo com suas partes; cada uma destas constitui uma esfera distinta e soberana, ainda que sob uma única fonte de poder e autoridade, que é Deus. O Estado, porém, pode intervir nas demais em questões pontuais, quando, por exemplo, for necessá-

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rio garantir a divisão de funções entre elas ou manter o exercício de deveres e direitos.

Outro ponto essencial para o calvinismo é a obediência às autoridades. O fato de toda autoridade ser proveniente de Deus e todos estarem sob o seu poder faz com que os cidadãos tenham o dever de obedecer aos governantes e pagar-lhes tributos e impos-tos, sendo errado os cidadãos se revoltarem de maneira impen-sada ou injustificada. Essa atitude só seria legítima em caso de as autoridades abandonarem seu dever, sendo assim passíveis de serem retiradas do poder pelos cidadãos.

Podemos então observar no calvinismo as sementes de elemen-tos que constituirão o mundo moderno: a descentralização e dife-renciação das esferas da sociedade como a educação, as artes e os ofícios; e o direito dos cidadãos de protestarem contra os poderes instituídos quando estes deixam de cumprir suas funções. Porém, outros pontos importantes defendidos no calvinismo se apresen-tam de maneira fraca no mundo moderno, a saber questões como o valor da obediência às autoridades e a noção de que, respei-tando a soberania das esferas, é possível, e até importante, existir influência religiosa no Estado.

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vII. mundo

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Autores

Sérgio Besserman ViannaPresidente do Instituto Jardim Botânico do Rio de Janeiro

Silvio QueirozComentarista de política internacional, responsável pela coluna Conexão Diplomática

Victor Augusto Ramos MissiatoDoutor em História (UNESP/Franca) . Professor no curso de Arquitetura das Faculdades Anhanguera (Leme/SP) . E-mail: victor_missiato@hotmail .com

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Uma reação datada

Sérgio Besserman Vianna

A física contemporânea ainda está longe de compreender o tempo. Mas, séculos atrás, Santo Agostinho já disse algo muito interessante sobre o tempo dos humanos: “Existem três

tempos, o tempo presente das coisas passadas, o tempo presente das coisas presentes e o tempo presente das coisas futuras.”

Vivemos no tempo presente, mas ele contém o passado e as memórias, falsas ou verdadeiras, e as expectativas, sonhos e investimentos sobre o futuro.

A eleição de Donald Trump, o Brexit, os autoritarismos na Rússia, China, Turquia e muitos outros, além da ascensão eleitoral da extrema-direita na Europa, levaram muitos analistas a conside-rarem revertida a tendência acelerada de globalização que vem de 1945 e que se acentuou muito dos anos 1980 até os dias de hoje.

Estão errados. Só estão enxergando o tempo presente das coisas presentes e, pior, projetando simploriamente o que veem para o futuro.

É claro que existe uma onda histórica forte de rejeição aos aspectos frágeis da globalização: as perdas econômicas de segmentos da população dos EUA e da Europa (contrapartida da muito maior ascensão social de centenas de milhões na Ásia e em outras regiões), a excessiva e exasperante burocracia dos órgãos multilaterais etc.

No contexto da Grande Recessão de 2008, essas fragilidades foram suficientes para gerar a reação atual. Mas tratase apenas

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disso, uma reação. Datada no tempo e condenada apenas ao registro histórico. Nada pode deter a tendência humana dos últi-mos 50 mil anos, desde a revolução cognitiva, para ampliação das redes de relações sociais entre nós, mesmo no contexto de uma espécie, o homo sapiens, profundamente tribal.

A globalização dos mercados e as novas ferramentas tecnoló-gicas de comunicação entre os humanos já seriam suficientes para concluir, como o professor Yuval Harari, autor de Sapiens, um dos mais importantes livros deste século, que a consolidação da rede global é uma tendência inevitável (ainda que sujeita a poderosos percalços).

Os Estados-nação continuarão importantes, mas já perderam grande parte de sua relevância, o que a sociologia alemã chama de perda de poder do titulo eleitoral: vota-se na Alemanha, mas decide-se com o voto muito menos do que 50 anos atrás, por exemplo.

A grande lacuna está na defasagem entre a globalização dos mercados e a globalização dos contrapesos da sociedade civil. Os desafios contemporâneos como as mudanças climáticas, o terro-rismo, a ética na manipulação do DNA humano etc exigem gover-nança global (não governo mundial, importante deixar claro).

Passada a reação atual, que une as direitas e esquerdas anacrônicas, a globalização, felizmente, voltará a se acelerar. Um exemplo para pensar? Hoje não é mais possível ser a favor da autodeterminação dos povos e dos direitos humanos fundamen-tais ao mesmo tempo. Ou um ou outro.

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De pacífico já tem bem pouco

Silvio Queiroz

O impeachment da presidente da Coreia do Sul, Park Geun-hye, acrescentou um ingrediente de instabilida de no panorama já um tanto turbulento da região da Ásia banhada pelo

Oceano Pacífico. O julgamento de Park por corrupção tem dinâ-mica própria, que não se relaciona diretamente com o ambiente conturbado que cerca o país. Mas o desfecho do processo coincide com um momento delicado em parte do globo onde se encontram desafios dos mais peri gosos para uma ordem mundial que mal começa a delinear sua coluna dorsal.

A troca de governo em Washington, com a posse de Donald Trump, é um dos primeiros e mais importantes fatores de incer-teza. Não será por mera coincidência que a troca de guarda na Casa Branca se sobrepõe a uma aparente escalada militar do acuado regime comunista norte-coreano.

Desde a vitória eleito ral de Trump, em novembro, o jovem líder de Pyongyang, Kim Jong-Un, aventurou-se em uma sucessão de desafios à comuni dade internacional. Promoveu novos testes de armas nucleares, disparou mísseis cujo alvo ideal – ainda longe do alcance – é o território continental dos Estados Unidos e, ainda na semana passada, si mulou um ataque às bases militares ameri-canas no Japão.

Em um cenário no qual a China começa a lançar ao mar seus primeiros porta-aviões, enquanto a Marinha americana inicia o patrulhamento militar ostensivo de áreas de disputa territorial no Mar do Sul da China, as turbulências em ambas as metades da Península Coreana só fazem ressaltar que o ambiente no Oceano Pacífico parece cada vez distante daquilo que o nome possa sugerir.

A esfinge pergunta

A esse roteiro que evoca filmes de James Bond, soma-se o grau extremo de imprevisibilidade representado pela presença de Donald Trump na Casa Branca, desde janeiro.

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É certo que a definição do Pacífico como centro da geopolítica estratégica dos EUA antecede em muito a ascensão do intempes-tivo magnata ao comando da maior potência militar do globo: foi no governo Obama que o Pentágono delineou a reorientação dos planos de defesa para o desenrolar do novo século. Mas a transi-ção de go verno em Washington, à qual se soma agora o relativo vácuo po lítico na Coreia do Sul, transforma mais do que nunca em enig ma a Coreia do Norte.

Não terá escapado ao jovem Kim, herdeiro de uma dinastia comunista na superfície e na nomenclatura, mas fundamental-mente monárquica, que os adversários exibem hoje capacidade limitada de resposta, mais ainda de resposta imediata. Com a repetição de testes com misseis de longo alcance e artefatos nu cleares, o regime norte-coreano joga um delicado xadrez geo po-lítico regional e global.

A diferença, em relação ao tabuleiro disposto durante o governo Obama, é que, hoje, os EUA fazem parte do campo das incógnitas, com um presidente que afirma, desde a campanha, a primazia do que entende como interesses próprios do país sobre o que mais se interponha a eles.

É unilateralismo, estúpido!

Houve, durante a intempestiva campanha eleitoral pela Casa Branca, quem classificasse como “isolacionista” a postura de Trump sobre política externa. Os movimentos recentes no Pací-fico, porém, sugerem que é outro o adjetivo talhado para vestir a diplomacia americana sob o novo governo. O magnata republi-cano jamais se disse alheio ao que acontece mundo afora: o que afirmou, e que certamente rendeu votos valiosos, foi a determi-nação de colocar à frente do que mais seja aquilo que identifica como os interesses dos EUA.

Em resumo, o foco do Departamento de Estado, hoje sob o comando do executivo-chefe da multipetroleira Exxon, passa a ser uma abordagem unilateral dos conflitos e contenciosos. Um enfoque que pôde ser captado na resposta inicial às novas pro vo-cações norte-coreanas: a instalação de sistemas antimísseis na Coreia do Sul, movimento que, ao lado do patrulhamento naval no Mar do Sul da China, provocou reação pronta e irritada do regime comunista chinês, que falou em “consequências” – referência a possíveis represálias econômicas e comerciais.

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Em outras palavras, como já parecia desenhado no Oriente Médio, a linha-mestra de intervenção internacional do governo Trump parece replicar o célebre lema não declarado de campa nha de Bill Clinton, que derrotou George Bush proclamando o slogan: “É a economia, estúpido!”

Oriente, rapaz...

Da perspectiva da diplomacia brasileira, o potencial de ten-sões no Pacífico oferece motivos de sobra para preocupação, mas oferece, igualmente, oportunidades. Elas se articulam, por ironia, com as arestas surgidas na relação com a Argentina em torno dos vôos militares britânicos para as Ilhas Malvinas com escala em solo brasileiro. Há pelo menos cinco anos, o Mercosul busca uma rota comercial para o Eldorado representado pelas economias emergentes do Pacífico.

A saída dos EUA da parceria comercial com os países da região oferece chances para o Mer cosul. Para aproveitá-las, no entanto, será necessário recompor o espírito de bloco respirado durante as gestões de Lula/Dilma, no Brasil, e do casal Kirchner, na Argentina.

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A Revolução Global e as experiências comunistas no Brasil e no Chile

Victor Augusto Ramos Missiato

No centenário da Revolução Bolchevique de 1917, muitos serão os livros e artigos que procurarão realizar balanços e interpretações acerca dos sentidos daquele movimento

revolucionário na Rússia, que veio se tornar global, no decorrer do século XX.

Considerado um movimento de emancipação do poder e de radicalização da modernidade, o comunismo soviético produziu uma racionalidade revolucionária, que vigorou por quase um século. Seus ideais percorreram todos os continentes do globo terrestre, contrapondo-se à modernidade adjacente ao modo de produção capitalista. Ademais, a materialidade deste projeto de Revolução Global teve na figura do partido político o espaço repre-sentativo de elaboração das estratégias comunistas. O espraia-mento de sua teoria revolucionária resultou em novos partidos comunistas, que procuraram relacionar a teoria revolucionária da III Internacional com suas realidades nacionais e regionais.

No caso específico de um partido comunista, a ideologia exer-ceu um papel muito importante em sua leitura acerca do processo histórico:

Para aqueles que se encontram na ideologia política do partido, membros, militantes ou simples simpatizantes, a função da ideo-logia é mais complexa. Ela dá a seus fiéis uma grande leitura dos acontecimentos que funda sua solidariedade de ação; permite exprimir, em termos de interesses gerais e escolha da sociedade, dando-lhes um alcance geral, decisões e atitudes cuja origem está muitas vezes na conjuntura mais imediata; constitui enfim, para além de toda finalidade puramente prática, um conjunto de cren-ças que permite integrar os membros do partido numa comuni-dade quase espiritual. (BERSTEIN, 2003, p. 91).

Fatores externos à ideologia também influenciam na caracte-rização de um partido comunista. Segundo Umberto Cerroni, os desenvolvimentos assumidos pelo Estado e pelas instituições políticas modernas determinaram muitas vezes os rumos dos partidos de cunho socialista, “modificando às vezes (e vocês verão que não hesitarei em documentar isso), e de maneira profunda, as

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impostações originárias ou algumas impostações teóricas origi-nárias dos clássicos do marxismo e do socialismo” (1982, p. 11). Esta foi uma tendência assimilada por Lênin em seu projeto polí-tico comunista. Ainda de acordo com o autor, o leninismo passou a encarar a luta política como uma transformação da luta de clas-ses em uma sociedade vista a partir da ótica da divisão em clas-ses. E a representação dessa luta política teria no embate entre os partidos sua expressão mais latente:

Esta segunda formulação indica com exatidão que a fase logi-camente mais elevada da luta de classes é constituída, não pelo choque puro e simples dos interesses das classes contrapostas, mas, ao contrário, pelo crescimento da mediação política, pela intervenção da mediação política no choque econômico-sindi-cal (corporativo). Aqui, a autonomia da classe operária não consiste mais na pura e simples defesa separacionista dos inte-resses operários. Ao contrário, a luta política torna-se a expres-são mais coerente, integral e completa destes interesses. (CERRONI, 1982, p. 20).

Contudo, para Cerroni, a esquemática leninista não conse-guiu compreender por completo o fenômeno do partido político na modernidade. Ao refletir sobre o conceito de partido político, o pensador italiano resgata os escritos de seu conterrâneo Antonio Gramsci, a fim de compreender a relação entre interesses econô-micos, alinhamentos políticos, construções culturais e interpre-tações gerais do mundo, no interior de um partido. A articulação entre política e cultura no mundo moderno produziu, no interior do partido comunista, uma relação mais complexa com a moder-nidade daquela preconizada por Lênin. As produções culturais e as práticas políticas comunistas deixaram de compor uma rela-ção umbilical para ultrapassarem as fronteiras do mundo operá-rio e atingir o mundo da sociedade civil:

Se isto é verdadeiro, começamos a compreender alguns fenô-menos importantes da vida política contemporânea e, portanto, como já disse, a compreender também que a organicidade entre política e cultura existente no partido proletário é uma organi-cidade em parte apenas mítica, no sentido de que quanto mais o partido socialista operário se desenvolve, cresce, se difunde e se organiza, mais ele articula também a sua cultura e dá um espaço autônomo à elaboração científica e cultural. (CERRONI, 1982, p. 22).

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Para além destes aspectos supracitados, o comunismo prota-gonizou movimentos de lutas sociais e de libertação nacional, bem como fundamentou em termos políticos regimes totalitários, opressivos e libertários. Ademais, no decorrer do século XX, o comunismo representou um projeto global de modernidade, ao mesmo tempo em que se alicerçou na busca pelo controle do Estado-nação visando à construção de um Estado revolucionário (PONS, 2014). Deste modo, internacionalismo e nacionalismo muitas vezes estiveram coadunados nas estratégias de diversos partidos comunistas. Neste caso, a relação dos PCs nacionais com o comunismo soviético muitas vezes procurou entrelaçar concepções nacionalistas e internacionalistas através da filiação junto ao Movimento Comunista Internacional1 (MCI):

Sob este aspecto, parte consistente da historiografia sobre o movimento comunista errou o alvo. De fato, a tendência de ver as origens dos partidos comunistas nas respectivas sociedades nacionais apresenta o defeito imperdoável de perder o nexo constituinte que se instaurou entre Estado revolucionário e movimento comunista. Ao contrário, tal nexo foi um elemento primário para todos os partidos comunistas, elemento que, em sua história, representaria ao mesmo tempo força e limite deci-sivos. (PONS, 2014, p. 27).

Por meio desta perspectiva, procuramos pensar tal relação inserindo o comunismo na quadratura latino-americana, reali-zando assim, uma análise comparada entre o Partido Comunista do Brasil (PCB) e o Partido Comunista de Chile (PCCh).2 Ambos nascidos em 1922, estes dois partidos tiveram uma histórica inte-ração com o aparato teórico-metodológico leninista-stalinista. Suas trajetórias, durante boa parte do século XX, compartilharam e traduziram, cada uma ao seu modo, várias estratégias esboçadas pelo MCI. Foi assim ao final da década de 1920 com a chamada “bolchevização” ou “proletarização” dos PCs, nas décadas de 1930 e 1940 com as Frentes Populares no combate ao nazi-fascismo, nas décadas de 1950 e 1960 com a estratégia de “coexistência pacífica”, além da manutenção do apoio ao comunismo soviético até os seus últimos anos de existência. Porém, tal identificação não significou uma dependência integral por parte destes partidos frente ao MCI e à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Ao invés

1 O que chamamos aqui de comunismo soviético está relacionado ao regime que se instalou a partir da Revolução Bolchevique de 1917 e que posteriormente viria fundar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

2 Em 1962, o PCB viria a se chamar Partido Comunista Brasileiro.

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disso, as experiências comunistas no Brasil e no Chile gestaram suas peculiaridades político-culturais e sempre dialogaram com as culturas políticas existentes em seus países.

Sendo assim, a cultura política do comunismo latino-ameri-cano se caracterizou por ser um fenômeno evolutivo ao ter de se adaptar às mutações de suas sociedades. Especificamente, no caso dos comunismos brasileiro e chileno, tais evoluções percor-reram muitas das transformações ocorridas nesses dois países. No caso do PCB, os sentidos de sua transformação corresponde-ram às próprias transformações advindas dos projetos de moder-nização estabelecidos na sociedade brasileira, enquanto que no PCCh fomentou-se um projeto próprio de modernização que o levaria ao poder, juntamente com outras forças políticas da esquerda chilena. No entanto, esta ascensão ao poder pela via eleitoral procurou estabelecer um projeto revolucionário que não promoveu um consenso majoritário na sociedade chilena.

Por conseguinte, ao realizarmos um exercício comparativo entre estes dois partidos estamos, no fundo, procurando identifi-car as diferentes estratégias comunistas construídas no espaço latino-americano a partir de distintas interpretações acerca das modernizações vivenciadas no Brasil e no Chile. Tal exercício ganha maior relevo, quando o colocamos na perspectiva da chamada “revolução global” (1917-1991), pensada por Silvio Pons. Ademais, por estar inserida no Movimento Comunista Internacio-nal, a estratégia revolucionária baseada no leninismo-stalinismo balizou a visão de mundo destes dois partidos em comparação.

Em suma, além de ampliar o campo dimensional da pesquisa, relacionando as estratégias comunistas nacionais com as diretri-zes do MCI, esta análise comparada possibilita “observar dois objetos ou realidades dinâmicas em transformação” que partem tanto para uma direção mais específica quanto para a construção de um “conjunto referente, que vai sendo construído quer pela investigação quer pelas instâncias do pensamento crítico” (AGGIO, 2015, p. 145). A atuação do Movimento Comunista Internacional e a atuação de cada partido comunista frente às especificidades nacionais buscam compreender, no exercício da comparação, a questão do comunismo junto às culturas políticas nacionais imer-sas em um processo global de transformações no século XX.

No caso destes dois partidos políticos, tanto a cultura política do comunismo chileno, como a cultura política do comunismo brasileiro, transcenderam a própria institucionalidade partidária

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e, em distintos momentos, acompanharam a modernização de suas sociedades, distanciando-se de qualquer relação mecani-cista com o comunismo soviético.3 Destacamos então, que nosso principal objetivo aqui é interpretar os sentidos que os PCs deram às transformações ocorridas no Brasil e no Chile ao longo do século XX, tendo como eixo principal as estratégias estabelecidas a partir do final da década de 1950, quando ambos os partidos produziram programas políticos que os colocaram em posições de destaque em suas sociedades.

Seguindo esta lógica expositiva, assinalamos brevemente que, anteriormente à década de 1950, as estratégias adotadas por esses dois partidos haviam seguido caminhos distintos – de um lado, a consagrada estratégia político-institucional da Frente Popular, no Chile, e, por outro, a fracassada estratégia político-insurrecional da Aliança Nacional Libertadora (ANL), no Brasil. No entanto, embora tenham tido distintos fins, as políticas definidas por estes dois Partidos alicerçaram-se por meio de questões sociais, políticas e econômicas idênticas, que estiveram presentes nos dois Progra-mas, tanto da ANL quanto da Frente Popular, caracterizando, deste modo, a participação decisiva do MCI na formulação estratégica dos comunismos latino-americanos e a percepção dos comunistas nacionais acerca dos seus problemas internos.

Entre os anos 1952-1958, as estratégias dos PCs deram ensejo a uma nova compreensão em torno de suas sociedades e do próprio processo de modernização vividos por seus países. Consideramos esse período como um momento fundamental de renovação da esquerda latino-americana, que muitas vezes foi eclipsado pelo fenômeno da Revolução Cubana (1959), quando seu impacto acabou por dividir a história das esquerdas na América Latina. No caso da experiência comunista brasileira, as reorientações do PCB após o suicídio de Vargas, culminaram no apoio conferido a Juscelino Kubitscheck durante as eleições de 1955. Ademais, em 1956, após a divulgação do Relatório Kruschev, a reação dos comunistas brasileiros a esse fato teve um impacto fundamental no processo renovador do Partido, quando os reflexos do XX

3 Sobre esta temática, no caso brasileiro, ver: GOMES, A. C. A política brasileira em busca da modernidade: na fronteira entre o público e o privado. In: SCHWARCz, L. M. (Org.) História da vida privada no Brasil. V. 5. São Paulo: Cia das Letras, 1998; VIANNA, L. W. A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil . Rio de Janeiro: Revan, 1997. Em relação à experiência chilena: AGGIO, A. Frente popular, radicalismo e revolução passiva no Chile. São Paulo (SP): Annablume; Fapesp, 1999; MOULIAN, T. Contradicciones del desarrollo político chileno (1920-1990). Santiago: LOM, 2009.

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Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) promoveram uma grande reorientação em suas políticas. Em rela-ção à estratégia do PC chileno, ao contrário da experiência brasi-leira, que passou por uma transformação, a manutenção da linha frentista abriu caminho para a Frente Nacional del Pueblo, que se formou nas eleições de 1952. Porém, a partir dessa década, o PCCh passou a defender uma frente liderada pela esquerda chilena, pois havia se sentido traído pelo Partido Radical, após ser posto na ilegalidade, em 1948. Tal unidade de esquerda iria se desenvolver nos anos 1950, transformando-se na Frente de Acción Popular (Frap). Esta experiência significou uma renovação da estratégia da Frente Popular.

No intuito de compreendermos e compararmos profundamente os sentidos destas novas estratégias, estabeleceremos como epicen-tro da nossa análise dois processos políticos ocorridos em 1958: na experiência do comunismo brasileiro, destacamos os sentidos da “Declaração de Março” do Partido Comunista do Brasil (PCB), que daria início a uma alteração profunda em sua linha política. No Chile, ressaltamos a organização e participação do PCCh no processo eleitoral da Frap, que por pouco – menos de 30 mil votos – não conquistou as eleições presidenciais. Estas iniciativas e reorientações, que por suas peculiaridades organizacionais e nacionais diferem entre si, podem ser vistas como estratégicas polí-ticas anteriores à Revolução Cubana de 1959, e que teriam sido, de certa forma, deslocadas dos referenciais teóricos e políticos da esquerda latino-americana. Um ano depois, em 1959, vitoriosa em Cuba, a perspectiva nacional anti-imperialista e o método guerri-lheiro de realizar a revolução ficariam consagrados, durante déca-das, por muitos grupos de esquerda na América Latina, como o único caminho viável para a conquista do poder na região. Diante do predomínio que se estabeleceu a partir da generalização da estratégia guerrilheira inspirada na Revolução Cubana, aquelas reorientações esboçadas em 1958 acabariam sendo mitigadas em qualquer análise histórica do período. Portanto, resgatar essas duas estratégias tem um significado especial na releitura da traje-tória das esquerdas latino-americanas.

Depois da travessia turbulenta dos anos 1956-1957, quando novas dissensões e novas ideias marcaram o ambiente político do PCB, o ano de 1958 se iniciou com uma nova estratégia política. Os sinais dessa transformação foram sentidos após os diversos debates expostos pelas alas do Partido, tanto por parte de seu corpo dirigente, quanto pelos chamados “renovadores”, críticos à

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política da cúpula partidária. Em um período de maior liberdade de atuação comunista na imprensa, novas ideias foram discuti-das e (re)formuladas. Tratava-se dos anos JK, talvez o único do período democrático de 1946-1964 que tenha conseguido enfren-tar crises políticas sem abalos profundos. Foi nessa conjuntura que o PCB inaugurou sua “nova política”, quando absorveu muitos dos elementos presentes nos debates anteriores, salvaguardando sempre o poder de decisão por parte de seus líderes. A solução a ser adotada deveria estar na formação de uma “frente única” alinhavada a tais pressupostos. Dentro dessa conjuntura, o PCB divulgaria um dos documentos mais importantes de sua história: A Declaração sobre a política do Partido Comunista Brasileiro, divulgada em março de 1958. Logo em sua apresentação, a Decla-ração reconhece que as discussões advindas do XX Congresso do PCUS motivaram a formulação do documento. O texto fora divi-dido em oito seções: I) O processo de desenvolvimento econômico do Brasil; II) A democratização da vida política nacional; III) Cres-cem no mundo inteiro as forças da paz, da democracia e do socia-lismo; IV) Aprofunda-se a contradição entre a nação brasileira e o imperialismo norte-americano; V) A frente única e a luta por um governo nacionalista e democrático; VI) O caminho pacífico da revolução brasileira; VIII) Fortalecer o Partido para a aplicação de uma nova política. Compreende-se, portanto, que a “nova política” idealizada na “Declaração de Março”, muito distante do secta-rismo e do insurrecionalismo dos anos anteriores, impôs uma lógica reformista na estratégia do PCB, que transformou sua concepção revolucionária. Em termos conceituais e históricos dar-se-ia início ao chamado pecebismo contemporâneo – termo este cunhado por Raimundo Santos.

Diante de tais transformações, a concepção estratégica do PCCh, alicerçada historicamente numa política de alianças, tendo como identidade sua participação nas Frentes Populares, adequou-se aos novos tempos antes mesmo das consequências advindas com o XX Congresso do PCUS. Contudo, atentos às transformações no Movimento Comunista Internacional, os comunistas chilenos foram muito eficazes, quando souberam relacionar sua estratégia interna com as “vias nacionais” inseridas dentro de uma conjun-tura de “coexistência pacifica”. E foi nesse instante que, pela primeira vez, o PCCh adotaria a via pacífica como política oficial do partido. Contudo, o fato de a via pacífica ter adentrado ao horizonte estratégico oficial do PCCh não significou uma transformação em sua cultura política e nem deu ensejo a uma transformação similar ao que analisamos em relação ao pecebismo contemporâneo . No

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153153A Revolução Global e as experiências comunistas no Brasil e no Chile

caso do PC chileno, a via pacífica tinha uma relação profunda com a participação eleitoral. Via pacífica, aqui, significava via parla-mentar. Dessa forma, o que viria a se consolidar como vía chilena al socialismo não transformaria a cultura política do PCCh, mas o colocaria diante de um caminho eleitoral como impulsionador de um processo revolucionário.

A conjuntura percebida pelos comunistas chilenos indicava uma direção em torno de vias politico-institucionais em contrapo-sição às vias insurrecionais. Nos anos 1956-1958, a via pacífica foi ganhando substância ao ponto de ser oficializada como único recurso estratégico daquele momento. Dessa maneira, izquier-dismo, naquele instante, representava qualquer ação que pudesse prejudicar a participação e o apoio da Frap nos processos eleito-rais. A revolução no Chile deveria ocorrer pela vitória de uma frente hegemônica de esquerda, que lideraria outras forças políticas. No Brasil, a revolução burguesa para os pecebistas seria liderada pela própria burguesia nacional, que deveria se aliar às forças progres-sistas, incluindo aí o próprio PCB, que abdicava inclusive de qual-quer cargo político-instrucional. Isso nos auxilia a pensar as distintas estratégias dos partidos comunistas analisados. Portanto, enquanto o PCB transformava seu pensamento político, materiali-zado na Declaração de 1958, o PCCh reafirmou e aprofundou sua estratégia eleitoral, reforçada pelas novas perspectivas que se abri-riam com a derrogação da Ley Maldita e a unificação dos partidos socialistas. Portanto, enquanto o PCB passava a legitimar as trans-formações socioeconômicas brasileiras, dando ensejo ao que viria a ser conhecido como pecebismo contemporâneo, o PCCh visualizava na Frap a possibilidade de alcançar o poder por meio de uma hege-monia de esquerda, que liderasse o processo revolucionário com apoio de setores nacionalistas.

Em suma, a análise em torno da “Declaração de Março” e das eleições presidenciais no Chile, ambas estabelecidas em 1958, resgata os sentidos estratégicos destes dois partidos comunistas, quando o PCB dava seus primeiros passos rumo a uma transfor-mação em sua cultura política, enquanto que o PCCh reafirmava sua vocação revolucionária por meio de uma estratégia de conquista das instituições políticas através de processos eleitorais.

Referências

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CERRONI, U. Teoria do partido político. São Paulo: Ciências Humanas, 1982.

GOMES, A. C. A política brasileira em busca da modernidade: na fronteira entre o público e o privado. In: SCHWARCz, L. M. (Org.) História da vida privada no Brasil. V. 5. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

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vIII. Cultura & Literatura

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Autores

Alberto AggioHistoriador, é professor da Unesp

José Eduardo GomesMédico em Brasília, especialista em Cardiologia pela Sociedade Brasileira de Cardiologia e pela Associação Médica Brasileira

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Cultura, modernidade e democracia

Alberto Aggio

As cenas de antidemocracia que ocorreram na entrega do Prêmio Camões a Raduan Nassar, promovidas por uma claque conhecida em determinados ambientes políticos, é

mais um desserviço à cultura e à política democrática em nosso país. Os atos e especialmente sua repercussão nas redes e na opinião pública, negativos em si, retiram o foco do que seria essen-cial discutir, de forma mais produtiva, a respeito das relações entre cultura e política na contemporaneidade e no nosso país.

No passado, havíamos muitas vezes provado que sabemos fazer essa reflexão, mas parece que precisamos reaprender, ultrapas-sando as inclinações instrumentais que, a partir de visões finalis-tas e autoritárias, querem anular a convivência entre diferentes. A natureza e os sentidos do debate cultural sempre foram muito vivos entre nós e precisam ser resgatados e expandidos para o conjunto da sociedade. Há que superar ideologismos rasteiros, posturas fechadas e diretrizes normativas preestabelecidas e ir ao encontro do pluralismo que marca nossas sociedades para se estabelecer uma relação fecunda entre cultura, modernidade e democracia.

As políticas públicas para a cultura são fruto do ambiente político em que vivemos, bem como da nossa presença nele. São objetivas e subjetivas, simultaneamente, e no caso brasileiro guardam um sentido preciso: a esperança de se construir um país mais democrático, com relações cada vez mais igualitárias, promotoras da alteridade e operadas a partir da plena liberdade de expressão e de manifestação. Seu objetivo principal é garantir

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a todos e a cada um o acesso amplo às manifestações culturais, bem como à possibilidade de produção simbólica, independente-mente de sexo, etnia, credo religioso e origem.

Em termos culturais, um país democrático se constrói quando se pensa a partir de um princípio: o locus da produção cultural é e deve continuar sendo a sociedade civil. Uma política cultural de viés emancipador deve partir desse ponto, mobilizando a partici-pação efetiva, independente e criadora dos produtores culturais. Enquadrar a política cultural a partir de uma lógica de grupos, partidos ou mesmo do Estado sempre criou mais problemas e disfunções do que o florescimento da cultura. Partidos políticos que se fundam nessa lógica não têm dado uma contribuição posi-tiva à sociedade, muito ao contrário. Como afirmou Norberto Bobbio, “a política da cultura é uma posição de abertura máxima em direção a posições filosóficas, ideológicas e mentais diferentes, dado que é uma política relativa àquilo que é comum a todos os homens de cultura e não atinente ao que os divide”; é, no fundo, “uma política feita pelos homens de cultura para os próprios fins da cultura”.

Sabemos que a produção de cultura necessita do apoio do Estado para se tornar viável. O engajamento do poder público vem da consciência de que boa parte da produção cultural não é capaz de sobreviver a contento numa sociedade predominante-mente mercantilizada. Por isso o impulso e o estímulo à criação artístico-cultural devem procurar combinar suas ações, sempre que possível, buscando um equilíbrio entre o Estado e as exigên-cias do mercado.

Mas é importante compreender que a política cultural, ao incentivar, promover, proteger e difundir a cultura em todas as suas formas e expressões, visa também a aproximar cultura de cidadania, atribuindo às manifestações culturais o status de um direito. Um dos dados mais importante da conjuntura que vive-mos é o fato de que o país assimilou a necessidade de se estabele-cer uma conexão entre as instituições políticas da democracia e os desafios abertos com a atual “revolução cidadã” que a Nação vive desde as manifestações de 2013. Nada a estranhar: nossa cultura sempre foi mais criativa quando se abriu e realizou o embate político, sem receio e sem preconceitos, envolvendo, na criação e na crítica, intelectuais e artistas de diversos matizes.

Claro está, portanto, que uma política cultural supõe e exige comprometimento com a trajetória democrática do País, além de

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imparcialidade e incorporação de uma visão pluralista que brota da sociedade. Supõe também a recusa à famigerada barganha político-eleitoral que muitos governos – até os que se declaram de esquerda – acabaram por reproduzir, mesmo que embalada em maquiagens modernas, contribuindo com a reprodução de uma visão oligarquizada e patrimonialista do Estado, nefasta à demo-cracia. Uma política cultural democrática deve ser aberta e proje-tada para servir à cultura e só a ela. Deve fazer jus à ideia de que a cultura é uma esfera social e humana que supre e, ao mesmo tempo, gera novas necessidades culturais.

Integrados ao mundo como sempre fomos, nós, brasileiros, invariavelmente nos inclinamos a promover uma perspectiva cultu-ral de superação das fronteiras artificiais e reducionistas que opõem o caráter popular ao erudito, essa “muralha chinesa” mental que vem criando obstáculos à intersecção dessas duas dimensões culturais da nossa formação histórica. Algo que nunca fez muito sentido porque nossa cultura sempre expressou hibridismo e uma mescla étnica que impediram o estabelecimento de guetos cultu-rais e populacionais, como em outras histórias nacionais.

Uma política cultural progressista se pauta, portanto, na máxima qualificação da produção cultural, seja ela de perfil popular ou não. O País precisa resgatar e dar um novo curso a essa visão. Trata-se de uma tarefa que depende – mas a supera – da esfera dos artistas e intelectuais e deve ser assumida por toda a sociedade.

O embate desastroso provocado na sessão do Prêmio Camões só contribuiu para impedir que se discuta com abertura, perti-nência e profundidade o que deve ser discutido na área cultural. Foi, mais uma vez, a imposição de uma narrativa estapafúrdia que só faz consumir nossas melhores energias.

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Cinquentenário do encantamento de Guimarães Rosa

José Eduardo Gomes

Dezenove de novembro de 1967. Vinte horas. Guimarães Rosa é encontrado morto no escritório de seu apartamento em Copacabana, em frente da máquina de escrever. Por

telefone pedira socorro à ex-esposa. Quando a primeira pessoa chegou, uma sobrinha, encontrou-o já sem vida.

Previa ou prognosticava a própria morte. Médico, embora não praticante, conhecia as manifestações da doença coronariana e esperava o pior há anos.

Tabagista, sedentário, obeso e hipertenso. Quatro dos seus sete tios haviam morrido de infarto, aos 58 anos de idade. Eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 1963, tomou posse em 16-11-1967, alguns meses depois de completar 59 anos de vida. Morreu 3 dias depois.

Em 1967, os recursos para tratamento da hipertensão arterial eram limitados e pouco eficazes. Fora diagnosticado em 1958. Nesse mesmo ano, foi promovido a embaixador pelo colega e amigo Jusce-lino Kubitschek. Preferiu permanecer no Brasil. Temia estar longe.

Em janeiro de 1956, lançou Corpo de Baile, posteriormente dividido em três livros:

• Manuelzão e Miguilim, com as novelas Campo Geral e Uma estória de amor;

• No Urubuquaquá, no Pinhém, com as novelas O recado do morro, cara-de-bronze e A estória de Lélio e Lina;

• Noites do Sertão, com as novelas Dão-Lalalão e Buriti.

Em maio do mesmo ano, lançou Grande Sertão: Veredas, auge da atividade como escritor. Trabalhou nesse livro durante muitos anos, principalmente em Paris, de 1948 a 1951.

Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas somam 1.420 páginas.

Escrevia e reescrevia, retrabalhava, mudava termos e sintaxe.

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161161Cinquentenário do encantamento de Guimarães Rosa

Em 1937, concorreu ao Prêmio Humberto de Campos, da Livraria José Olympio, com um volume intitulado Contos que, em 1946, seria publicado com o nome de Sagarana.

Mudou-se de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, aprovado em concurso para o Itamaraty, em 1934.

Médico pela então Universidade de Minas Gerais, em 1930.

Nasceu em Cordisburgo-MG, em 27/06/1908, três meses antes da morte de Machado de Assis.

De minas Gerais para o mundo

Médico atuante em Itaguara, então distrito de Itaúna, como clínico geral, realizou o nascimento de Wilma Guimarães Rosa, a primogênita.

Insatisfeito com as precárias condições de trabalho, retornou a Belo Horizonte, depois de cerca de dois anos, e serviu como médico voluntário da Força Pública, mais tarde Polícia Militar do Estado de Minas Gerais. Posteriormente, após concurso, foi para o 9º Batalhão de Infantaria de Barbacena, como oficial-médico. Nesta cidade, sobrava-lhe mais tempo para pesquisar, ler e escre-ver. As tarefas como médico eram mais amenas.

O interesse e a dedicação ao estudo de idiomas levaram um amigo a sugerir-lhe o concurso do Itamaraty, em 1934. Aprovado, mudou-se para o Rio de Janeiro.

Em 1938, foi nomeado cônsul-adjunto em Hamburgo, Alema-nha, onde conheceu a paranaense Aracy de Carvalho Moebius, também funcionária do consulado, que se tornaria sua segunda esposa e companheira até o final da vida. O casal ajudou a cente-nas de judeus, fornecendo-lhes passaportes, contrariando as ordens do governo brasileiro.

Em 1942, com o fim da neutralidade brasileira quanto à guerra, eles e mais outros membros do Corpo Diplomático fica-ram retidos em Baden-Baden, por quatro meses e, ao serem libe-rados, retornaram para o Brasil.

No mesmo ano, foi designado para Bogotá, Colômbia, lá perma-necendo até 1944.

De novo retornando ao Brasil, foi nomeado chefe de gabinete do ministro das Relações Exteriores, João Neves da Fontoura.

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Mistérios na obra e na vida

Sua obra é densa, marcada por mistérios e sutilezas. Sutilezas e obscuridades marcam também a biografia do escritor:

• por que, tão precocemente, separou-se de Lygia Cabral Pena, a segunda esposa?

• qual foi sua atitude rebelde nas revoluções de 1930 e 1932?

• qual seu estado de saúde, a partir de 1958?

• nomeado Embaixador, por que recusou postos no exterior?

Estes e muitos outros tópicos interessarão a pesquisadores e a estudiosos, para futuras biografias.

Obstáculos impostos por herdeiros da produção literária difi-cultaram, até agora, publicações mais elaboradas da vida e da obra de J.G.R.

Literatura

Publicou apenas um romance, Grande Sertão: Veredas, listado entre os cem melhores da literatura universal. (1956).

Antes e depois, dedicou-se a contos e novelas.

Seria indicado, em movimento liderado por tradutores euro-peus, ao Prêmio Nobel de Literatura de 1968.

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Ix. homenagem & memória

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Autores

Mércio GomesAntropólogo, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Oscar d´Alva e Souza FilhoProfessor de Filosofia do Direito e Ética em Fortaleza

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20 anos sem Darcy: a falta que ele faz ao Brasil

Mércio Gomes

Darcy Ribeiro morria numa tarde quente de Brasília, dia 17 de fevereiro de 1997, quando, numa comissão do Senado Federal, se discutia um projeto que ele escrevera, convi-

dara os debatedores e queria passar como lei e como tarefa para o Executivo: o Projeto Caboclo. Há muitos anos, Darcy vinha tentando propor, com sua característica insistência e persistência, a todo e qualquer governo federal, a diversos governos estaduais do Norte, ao CNPq, ao Impa, e a quem interessasse, que a solução (salvação!) da Amazônia, vilipendiada mundo afora como uma das principais causadoras do efeito estufa, poderia estar no aproveita-mento de alta intensidade dos produtos naturais já descobertos e utilizados pelos índios e caboclos regionais. Guaraná, cupuaçu, açaí, bacaba, camu-camu, a madeira das árvores, cipós, fungos, peixe-boi, pirarucu, tartarugas e jabotis, porcos-queixada, até araras e papagaios – poderiam ser cultivados em roçados com alta tecnologia, tratados em viveiros, plantados e replantados, preparados, congelados, fabricados em móveis, transformados em fármacos, administrados e distribuídos por todo o país por um sistema de organização social criado pelas próprias comunida-des locais, como se fossem pequenos nódulos socialistas conec-tados em rede, os quais, por essa virtude, prescindiriam do orde-namento do capital empresarial, da concentração de renda, da exploração do trabalho, da destruição do meio ambiente.

Preparar as comunidades ribeirinhas e os assentamentos de colonos para se instrumentalizar das tecnologias necessárias e requalificar esses produtos da flora e da fauna necessitaria de toda

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uma estrutura de produção científica, tecnológica e industrial que, por sua vez, iria demandar toda uma nova forma de pesquisa e produção de conhecimento e, ao final, de relacionamento social e cultural. Um novo mundo haveria de nascer desse experimento. Ao mesmo tempo, acabaria com a derrubada louca das matas e a irra-cional destruição do meio ambiente. O Projeto Caboclo visava um socialismo caboclo. Simples assim, e um tanto maluco.

Darcy viveu e morreu achando que podia mudar o mundo, e seu modelo de mudança ao final era uma espécie de socialismo à brasileira, o “socialismo moreno”, de que falara tanto nos anos do governo Brizola (1983-87; 1991-94) para espantar as vozes críti-cas sobre seu projeto educacional, sobre a criação do Sambó-dromo, sobre a universidade que fundara no Norte Fluminense.

Nascido na então pequena cidade de Montes Claros, no alto norte de Minas Gerais, Darcy se fizera comunista no início dos anos 1940 quando estudava, com pouquíssimo gosto, Medicina. Por isso, escapulia para frequentar as aulas da Faculdade de Direito, e era assediado por colegas e professores para entrar na liça política, no turbilhão das disputas entre comunistas e inte-gralistas. Dizia ele que se tornara comunista porque estes eram generosos e libertários e consideravam a humanidade inteira como problema do partido, como responsabilidade de todos, enquanto os integralistas se atinham a uma visão tacanha e boboca do Brasil. Muita gente da elite ou da classe média brasi-leira, que se tornou comunista naqueles anos, foi movida por esse mesmo tipo de empuxo ético.

Ele se mudou para São Paulo, em 1943, para estudar Sociolo-gia e Antropologia, na Faculdade de Sociologia e Ciência Política. Foi aluno de Herbert Baldus, um alemão refugiado que ensinava cultura indígena e etnohistória. Coordenou a campanha para a eleição de Caio Prado Jr. a deputado constituinte estadual e queria ser o editor do jornal Luta Operária, mas foi dissuadido por Mário Alves a tocar sua vida com autonomia partidária. Parece que o partido ficou feliz quando ele foi se apresentar ao Marechal Rondon, cognominado por Darcy de o “herói”, chefe do Serviço de Proteção aos Índios, no Rio de Janeiro e tornar-se de fato um antropólogo de campo por dez anos. Os melhores anos de sua vida, dizia meio ancho e meio na brinca.

Até que conheceu Anísio Teixeira, cognominado de o “sábio”, que o encantou para estudar o Brasil e preparar as bases para a revolução educacional. O resultado foi a Universidade de Brasília,

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16716720 anos sem Darcy: a falta que ele faz ao Brasil

inaugurada em 1962, e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, promulgada em 1963. Daí foi ministro da Casa Civil e perdeu a batalha por suas causas da época: a reforma agrária, o controle da emissão de lucros das empresas estrangeiras e a implantação da educação de base por todo o Brasil.

No exílio do Uruguai, Chile, Peru e Venezuela, Darcy escreveu uma vasta obra que chamou de Antropologia da Civilização, que compõe seis volumes sobre índios, problemas culturais e políticos brasileiros e sul-americanos, e uma teoria sobre a formação de sociedades e nações, especialmente destinada para entender porque o Brasil se desenvolvera tão mal e tão desigualmente e como poderia se aprumar de novo – sobretudo após o momento, que ele sabia que viria um dia, do fim da ditadura militar. Seu livro sobre o processo civilizatório foi elogiado, nessa ocasião, pelo historiador Arnold Toynbee, como uma das obras mais lúcidas daquele período. Naqueles anos, os intelectuais latino-america-nos amavam as obras de Darcy muito mais do que os brasileiros, exceto por sua última grande obra, O povo brasileiro, publicada quase no fim de sua vida, em 1995.

No Rio de Janeiro, Darcy abraçou o projeto de Brizola de reto-mar as propostas do getulismo, desta vez renovadas pela expe-riência no exílio e por uma visão mais abrangente do mundo, e com uma pitada bem forte de um ideal de socialismo e de cultura brasileira. Por duas ocasiões (1983-86; e 1991-95) lançou e implantou o Projeto Ciep, com a instalação de 506 escolas desti-nadas à educação de tempo integral; fez a Universidade do Norte Fluminense; e construiu o Sambódromo, inicialmente criticado por muita gente e hoje emulado pelo Brasil afora.

Quem teve a honra, o prazer ou até o desconforto de conviver com Darcy em função de suas atividades públicas, que começa-ram desde meados da década de 1940, sabe que o homem não era mole. Getúlio Vargas o chamava de “encouraçado Potenkim”, quando Darcy foi levado pelo Marechal Rondon, junto com Orlando Villas-Boas, para apresentar e discutir o projeto Parque Nacional do Xingu, que eventualmente iria criar a primeira grande terra indígena do Brasil, a qual eventualmente serviria de exemplo para as futuras demarcações de terras aborígenes. Getúlio se espan-tara com esse jovem intelectual (31 anos à época) expondo com veemência que o Brasil precisava assegurar para as futuras gera-ções uma grande parte da Amazônia, antes que os invasores a tomassem toda, e que demarcar terras para os índios seria um caminho bom e natural. Dito e feito, Getúlio assinou o projeto,

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que propunha a demarcação de uma terra com cerca de 200.000 km2, um mês antes de seu suicídio, e o encaminhou aos ministé-rios pertinentes, onde ficou até ser ressuscitado no governo Jânio Quadros por persuasão de Orlando Villas-Boas, de quem era amigo, e demarcado com um décimo do tamanho original. Tudo bem, acatou Darcy, já tocando sua vida em direção à realização da Universidade de Brasília.

Darcy lutou muito e infatigavelmente, como um herói, pelo que considerava essencial para o Brasil. Ao final, sentiu que perdeu muitas lutas e não esmoreceu. Jamais perderia a sua fé no socia-lismo como a forma ideal de organizar os povos, ainda que tivesse desacreditado totalmente da experiência do “socialismo real” e entendesse que o equilíbrio filosófico e político entre o indivíduo e o social fosse fundamental para a felicidade humana.

Mais convictamente ainda, Darcy jamais perderia sua fé no Brasil, como um experimento humano inusitado, nascido de um processo vigoroso de miscigenação racial e cultural, e que, por isso mesmo, tinha tudo para dar certo e servir de exemplo para o resto da humanidade. Que ninguém viesse se lastimar de algum defeito do Brasil perto dele! Ou das derrotas passadas.

Viver sempre, tocar a vida intrepidamente, vencer as dificulda-des e gozar da vida o que ela lhe concedesse, foi a principal carac-terística humana de Darcy Ribeiro. E é por tudo isso que jamais será esquecido.

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Lembrando Tarcísio Leitão

Oscar d´Alva e Souza Filho

“As coisas exigem começo...” – Para salientar a necessidade da transição do ideal à práxis, muitas vezes, o advogado e ativista político Tarcísio Leitão cearense, recentemente

falecido, citava as lições de “sua avó índia” (Julita) para manter as discussões no plano da realidade e nos impedir de navegarmos nas calmarias e nos perder no Cabo da Boa Esperança...

A necessidade do pensamento político precisava estar em conformidade com a realidade histórica concreta (objeto do pensa-mento articulado pelos companheiros do PCB): “O pensamento não é aritmético...”. Se assim fosse cairíamos no cartesianismo ou no matematicismo, que é uma forma de idealismo, lembrava Tarcísio.

Ele combatia sempre o que chamava de “udenismo do Parti-dão”, identificado na postura de condenar os desvios morais e doutrinários dos companheiros. E dizia aos críticos insistentes: “acho que vocês deveriam se matricular num Colégio de Freiras”... (e mais risos e gargalhadas, nunca mau humor). Sempre foi um exemplo de tolerância.

Sua atitude constante era a de valorizar, compreender, enalte-cer os companheiros de luta, mesmo de outros partidos. Falava com carinho e especial admiração de nosso amigo Pedro Albuquer-que a quem recomendou a Francisco Julião (das Ligas Campone-sas). Acompanhou o sofrimento dele e de sua companheira na Guerrilha do Araguaia, e depois seu reingresso firme e altivo nas lutas sociais subsequentes, com Brizola e o PDT, por exemplo.

Tarcísio Leitão sempre elogiava e ouvia, quando podia, o compa-nheiro Inácio de Almeida (a quem chamava de Martelo d´Água). Inácio não vinha a Fortaleza sem procurar ouvi-lo. Estive com eles pelo menos vinte vezes me beneficiando das lições dialogadas. No início de 2016, estivemos na casa de Tarcísio, na praia do Sabia-guaba: Cândido Feitosa, Pedro Albuquerque, Inácio e eu: “Conte as novidades de Brasília” ... Inácio aproveitou e falou, falou e concluiu com otimismo sobre o possível impeachment da presidente Dilma Rousseff, a Operação Lava-Jato, o fim do lulopetismo e tudo o mais... Tarcísio, que ouvira tudo calado, perguntou-lhe: – “Mas, me

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diga uma coisa, você ainda mora nesse planeta?” Todos riram livre-mente na República democrática de Sabiaguaba.

A opinião dele era sempre positiva e condescendente sobre os companheiros de luta, sempre enxergava em cada um uma atitude digna de respeito e valoração. Uma vez, ele discorria sobre Cândido Feitosa, companheiro exemplar que entrou no Partidão em 1947 (ano do meu nascimento) e participou com coragem e inteligência de vários movimentos sociais e políticos, como O Petróleo é Nosso. Alguém perguntou, “esse Candido é aquele de Maracanaú, que sempre está distribuindo panfletos? Ele não tem muito juízo não” ... E Tarcísio finalizou o assunto dizendo com a sabedoria de sempre: “Esse negócio de juízo é outra história. E que eu saiba nenhum partido político exige atestado de sanidade mental para admitir um militante. Eu mesmo nunca me submeti a nenhum exame e continuo distribuindo panfleto e jornalzinho.”

Este querido companheiro foi um exemplo patente de simplici-dade, de coragem e de determinação ideológica. Sua experiência histórica, todavia, ele a minimizava contando minúcias ou fatos anedóticos, tantos de sua vida revolucionária e heroica. Foi preso, maltratado, torturado, mas sempre entendeu esses episódios como aspectos singulares da luta social e política a que se vincu-lou com coração e alma desde os onze anos de idade.

O senso de justiça e de alegria fácil acompanhou-o até na prisão na Ilha de Fernando de Noronha. Ele, que sempre foi um crítico da ditadura militar, elogiou com razão o então Governador da Ilha, por atender às reivindicações dos presos políticos, de melhorar a alimentação, limpar o presídio e instalar uma Biblio-teca, cujo maior frequentador diário era o próprio Tarcísio.

Ele foi o maior advogado trabalhista do Ceará. Em um deter-minado período (1970-1990) – seu escritório atuava em cerca de 50% de todos os processos trabalhistas do Estado.

Em 1976, fui candidato a vereador de Fortaleza pelo MDB. Obtive 3.186 votos, mas figurei na 4ª suplência. A Universidade de Fortaleza (Unifor) me demitiu e ele foi meu advogado. Eu já era bacharel em Direito e inscrito naquele ano na OAB-CE. Nada conhecia do Direito Trabalhista e passei a procuração devida ao grande causídico e amigo. O resultado, já no TRT, foi positivo, pois fizemos um bom acordo. Quando falei sobre honorários, ele me disse com certa sole-nidade: “Esta é uma homenagem minha e dos companheiros a você. Continue do mesmo jeito.” Como insisti na conversa dos honorários, ele me disse: “Pague o que quiser, quando quiser e se quiser.”

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Depois, ele me mandou algumas causas de interesse dos companheiros ou das famílias deles, como foi um habeas corpus preventivo em favor do filho de Pedro Jerônimo, assassinado numa masmorra da ditadura em Fortaleza. Passei a visitar o escritório do Tarcísio com frequência e testemunhei muitos casos e lições. O movimento de clientes era imenso, cerca de 40 a 60 pessoas por tarde, pois pela manhã ele fazia audiências nas Juntas de Conci-liação do Fórum Autran Nunes.

Ele politizou sua conduta moral dizendo que a ditadura tinha procurado uma falha no seu relacionamento profissional com a classe trabalhadora, “mas ninguém segura na minha munheca”, dizia ele. Na verdade, ele só advogava em prol da classe trabalhadora.

Tenho a imensa felicidade de ter sido um bom amigo dele. Quando o conheci, eu tinha 18 anos de idade. Quantas vezes estive com ele, aprendendo sempre com sua coragem, sua humil-dade, sua inteligência, sua tolerância, seu “machismo-leninismo”, que era proclamado em tom de brincadeira e logo em seguida refutado por uma reflexão honesta.

Um dos últimos comentários sóbrios a mim feitos por ele deu-se a propósito do posicionamento do Papa Francisco sobre a liberdade de amar dos gays e lésbicas, quando o Papa falou: “se alguém diz que ama a Deus ou a outro ser humano, quem sou eu para dizer algo em contrário. O amor deve sempre ser abençoado e não o ódio”. Tarcísio disse-me com os olhos marejados: “Nós erramos muito e o Partido também. Este Papa é mais evoluído do que qualquer marxista que a gente conheça, não se engane não.”

Nas conversas inúmeras que manteve com nossos companhei-ros e amigos, Tarcísio nunca desconstruiu a conduta política ou moral de um companheiro. Perseguido, preso várias vezes e tortu-rado pela Ditadura, nunca ostentou a posição de herói que ele legitimamente conquistou com sangue, suor, lágrimas (suas, de sua família, companheiras, filhos, netos e amigos): ao longo de sua existência militante pela paz, pela democracia, pelo socia-lismo e pelo ideal comunista.

No dia 19 de junho de 2016, estivemos com o Cândido Feitosa, Pedro Albuquerque, Galba Gomes e Inácio de Almeida, numa última visita ao nosso querido amigo-irmão que já se nos apre-sentava bem mais calado, pensamento mais lento ou perdido na nossa incompreensão médica. Os amigos referidos falavam avida-mente sobre a política brasileira: Todos pro impeachment. Eu estava sentado ao lado do Tarcísio que apenas ouvia sem a parti-

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cipação de sempre, que tanto conhecíamos. Então toquei no braço dele e perguntei: “o que você acha dessa conversa, Tarcísio”. Ele fez cara de riso, uma ironia no canto da boca, e falou: “Todos aí têm medo de alma.”

Não se passaram dois meses. Já no dia 1º de agosto, Tarcísio nos deixou já imortalizado pelo seu exemplo, pela amizade que tanto desfrutamos e pela humanidade e altruísmo que testemunhamos.

Viva o Tarcísio Leitão!!!

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x. Ensaio

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Autor

Gastão Rúbio de Sá WeyneProfessor Associado aposentado do Departamento de Engenharia Química da Escola Politécnica da USP; tenente-coronel “T Eng Quím” reformado do Exército; advogado e doutor em Direito, na Área de Filosofia do Direito (USP).

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O estigma da estrutura jurídica privilegiante do Brasil-colônia

e seus reflexos sobre os rumos da política no país

Gastão Rúbio de Sá Weyne

Formação econômica do Brasil e privilégios

É sabido que a colonização portuguesa, no Brasil, alicerçou-se no latifúndio, na monocultura e na escravidão. Além disso, a estrutura social do período colonial brasileiro foi caracterizada por acentuada desigualdade material e jurídico-formal entre a classe hegemônica e a classe subalterna, estando esta classe desfavorecida submetida a uma legislação anacrônica e privile-giante, representada pelas Ordenações Filipinas (Ordenações do Reino), vigentes a partir de 1603, que sucederam às Ordenações Manuelinas, em vigor desde 1521 e às Ordenações Afonsinas, vigentes desde 1446. No Brasil, as Ordenações do Reino vigora-ram até 1916, quando foi promulgado o Código Civil Brasileiro. Neste trabalho de pesquisa, busca-se avaliar os reflexos negativos do longo período de vigência das Ordenações do Reino no país sobre os rumos da política brasileira.

Mostra a história que as transformações das estruturas polí-tica, social, cultural e jurídica brasileiras, são atribuídas, princi-palmente, a causas econômicas. Conforme Simonsen (1967, p.23): “Sem irmos ao exagero de tudo atribuir a motivos de ordem econô-mica, não podemos deixar de reconhecer sua crescente importân-cia na evolução dos povos”. Se é verdade que, em determinados períodos históricos, constatou-se a influência de fatores religio-sos, culturais e políticos, afetando profundamente o desenvolvi-mento dos povos, a característica fundamental dos tempos moder-

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nos, iniciados com a descoberta do Brasil, é a preponderância do fator econômico.

A ocupação do solo brasileiro pelos portugueses ocorreu com maior rapidez em razão da pressão política de outros países euro-peus e visou objetivos basicamente comerciais. Para Furtado (1999, p. 6):

O início da ocupação econômica do território brasileiro é, em boa medida, uma consequência da pressão política exercida sobre Portugal e Espanha pelas demais nações europeias. Nestas últimas, prevalecia o princípio de que espanhóis e portugueses não tinham direito senão àquelas terras que houvessem efetivamente ocupado.

Conforme Prado Jr. (1969, p.23):

o problema do novo sistema de colonização, implicando a ocupa-ção de territórios quase desertos e primitivos, tiveram feição variada, dependendo, em cada caso, das circunstâncias parti-culares em que se apresentaram. A primeira delas foi a natureza dos gêneros aproveitáveis que o território proporcionaria.

Veja-se que, a princípio, naturalmente, ninguém cogitou de outra coisa que não fosse a exploração de produtos espontâneos, extrativos.

Os privilégios nas Ordenações do Reino

Vale lembrar, preliminarmente, que o direito brasileiro seguiu o rumo do direito português, principalmente porque aos lusita-nos, aqui chegados como senhores e colonizadores, interessava manter a sua cultura, seus princípios de direito, seus costumes, além de sua legislação. Para Romero (2001, p. 250): “O direito brasileiro teve de seguir fundamentalmente o seu curso reinol, tomando apenas, de longe em longe, uma coloração divergente na superfície, sob o influxo de fatores étnicos e mesológicos”. Desta forma, o direito brasileiro confundiu-se, desde os seus primór-dios, com o direito português. As Ordenações do Reino (Ordena-ções Filipinas), criadas em 1603, representaram o instrumento legal que maior influência teve desde os primórdios da civilização brasileira, estendendo-se a sua aplicação no Brasil até fins de 1916, ou seja, por mais de 300 anos.

Nas Ordenações Filipinas, alguns privilégios eram declarados e consagrados, particularmente o privilégio honorífico, pelos quais as leis para os nobres, na sua aplicação, eram diferentes

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das leis para os judeus, negros, mouros e peões. Ressalte-se que o termo “peão” aplicava-se ao trabalhador braçal, à época, social-mente marginalizado. Vale lembrar, além disso, que os chamados “oficiais” (alfaiates e sapateiros, por exemplo) eram marginaliza-dos, mas tinham “maior qualidade” que os peões. Viviam-se momentos de inacreditável processo de discriminação.

Observe-se que as classes dominantes portuguesas, na Idade Média, eram constituídas, basicamente, pelo clero e nobreza, que, entre outros privilégios, estavam até isentos de pagar impostos, pois consideravam-nos vexatórios, conforme Ferreira Lima (1976, p. 40). Em segundo lugar, as classes dominantes portuguesas na Idade Média (clero e nobreza) sempre se caracterizaram pelo conservadorismo e, mesmo com as mudanças experimentadas por outras classes sociais ao longo do tempo (agricultores, proprie-tários, artesãos, pequenos industriais), mantiveram a sua forte influência sobre as estruturas políticas, econômicas, culturais e ideológicas, e este imobilismo trouxe reflexos significativos para o ordenamento jurídico brasileiro e a consequente vigência, no país, das Ordenações do Reino pelo longo período de 1603 a 1916.

Em suma, a causa maior dos arraigados privilégios expressos nos primeiros textos legais brasileiros está vinculada às estrutu-ras sociais no Brasil durante os 300 anos de vigência das Orde-nações do Reino. Alguns trechos significativos dessas Ordenações são citados a seguir, com a linguagem da época, acompanhados de alguns comentários ilustrativos, de interesse do presente tema.

As queixas contra os hereges, feitas através dos representan-tes da justiça (desembargadores), para julgamento e aplicação de sanções, eram recebidas pelos representantes da Igreja (juízes eclesiásticos). Estas sanções englobavam castigos físicos e confisco dos bens. Tais penas discriminavam especialmente os judeus e os mouros, conforme o Título I, do aludido Livro V. Aos convertidos, aplicavam-se penitências espirituais. No caso dos que blasfemavam contra Deus, as penas, para uma primeira vez, eram variadas: a) aos fidalgos, pagamento de quatro mil réis; b) aos cavaleiros ou escudeiros, pagamento de dois mil réis; c) aos peões, trinta açoites mais pagamento de dois mil réis. Quando ocorria reincidência, as penas seriam em dobro e, no caso de uma terceira repetição, além da pena pecuniária, os nobres (fidalgos, cavaleiros e escudeiros) seriam degredados por três anos na África e, se peões, condenados a três anos nas galés (trabalhos forçados). Vê-se que, para o mesmo delito, as penas variavam conforme a posição ou “qualidade” social do apenado.

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Outras situações eram definidas nas Ordenações Filipinas, com delitos que evidenciavam os privilégios já mencionados. O ajuntamento carnal (homem ou mulher) com judeu ou mouro era punido com pena de morte e isto mostra a discriminação contra as duas raças. A discriminação e o privilégio se mostravam de forma clara e indiscutível no caso de quem “entra no mosteiro ou tira freira ou dorme com ela ou a recolhe em sua casa” . Neste caso, o peão era apenado com a morte; os de “maior qualidade” pagariam cem cruzados para o mosteiro e seriam degredados, de forma perpétua, para o Brasil.

Vê-se, assim, que os privilégios dos “de maior qualidade” são declarados, valendo o poder econômico. O peão, pobre que era, pagava com a morte, e o nobre, caracterizado pelo poder econô-mico, sofria uma pena significativamente mais branda (degredo para o Brasil), contribuindo, além disso, com dinheiro para o mosteiro. Vê-se, neste caso, que a Igreja atuava como coletora de tributos, pagos diretamente pelos nobres ao mosteiro. Outro exemplo evidente de discriminação e de privilégio apresenta-se no caso “do que dorme com mulher casada”, situação em que o infra-tor, se peão, pagaria com a morte. No entanto, diz a lei (Título XXV), “se o adúltero for de maior condição que o marido dela, ou seja, se o adúltero for fidalgo, cavaleiro ou escudeiro, se o marido peão, receberá um mandado para que seja feita a justiça”. Observe-se que o termo “justiça”, neste caso, não define a pena que será aplicada ao privilegiado, seja ele fidalgo, cavaleiro ou escudeiro, tratando-se, portanto, de um privilégio nobiliárquico destes membros das classes dominantes da época.

O Título XVIII rezava (ipsis litteris) que, “se alguém, com uso de força, dormir com outra mulher, se peão, sofrerá a pena de morte. Se, no entanto, o levador for fidalgo, ou pessoa posta em dignidade, ou honra grande, e o pai da moça for pessoa plebeia, e de baixa maneira, ou oficial, assim como alfaiate, sapateiro ou outro semelhante, não igual em condição, nem estado, nem linha-gem ao levador, o levador será riscado de nossos livros, e perderá qualquer graça e será degredado para a África”. Observe-se que o termo “levador” significava aquele que levava, aquele que condu-zia. Como se pode verificar, o texto da norma configura um privi-légio honorífico cristalino, do nobre frente ao plebeu.

Muitas outras situações análogas de privilégios declarados e protegidos, constam do Livro V das Ordenações Filipinas e em todos os outros casos (de bigamia, de dormir com mulher casada, etc.), há sempre uma ressalva repetitiva: ...se for fidalgo, cava-

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leiro, escudeiro... e, após a ressalva, era aplicada uma pena abrandada, fictícia ou dissimulada. A discriminação contra os negros parece tão implícita que poucas vezes são eles citados nas Ordenações Filipinas. Referências são feitas, entre outras, na proibição de ajuntamento de negros, no impedimento de recolhê-los em casa por piedade, ou no cerceamento da liberdade de realizarem festas (Título LXX). Tudo isso representava um quadro extremamente discriminante e vergonhoso.

Reflexos da estrutura jurídica do Brasil-colônia sobre os rumos da política brasileira

Reitere-se que as Ordenações do Reino (Ordenações Filipinas), foram aplicadas no Brasil a partir de sua publicação em 1603 até a vigência do Código Civil Brasileiro, em 1º de janeiro de 1917. O longo período de aplicação das Ordenações do Reino implicou, entre outros aspectos, em três pontos claramente anacrônicos: a) o vínculo do Estado português e, em consequência, do Estado brasileiro com a Igreja Católica, incluindo a ritualística proces-sual, a participação da alta hierarquia da Igreja nos procedimen-tos e o apoio à “Santa Inquisição”; b) o primitivismo das sanções impostas aos delinquentes, as quais, embora próprias da época, não distinguiam delitos, malefícios e pecados; c) os privilégios concedidos à classe dominante, na qual os nobres – representa-dos pelos fidalgos, cavaleiros e escudeiros – se sobrepunham aos peões, aos judeus, aos mouros e aos negros. Assim, a “maior qualidade” sempre pairava sobre a “menor”.

Tudo indicava que apenas uma fração da sociedade deveria ser objeto da preocupação dos governantes, enquanto os demais deveriam se ajustar aos interesses daqueles poucos mandantes. Os fatos indicavam que as classes hegemônicas, detentoras do poder econômico, estavam sacrificando o desenvolvimento do Brasil para manter seus privilégios. Como o único interesse português foi voltado para fora do Brasil, visando exclusivamente a objetivos comerciais, o caráter dominante no início da coloniza-ção brasileira, de nação explorada, manteve-se durante séculos, ficando este fato gravado na filosofia de vida dos habitantes do país até os dias atuais.

Assim, os estigmas da discriminação, do atraso e dos privilé-gios trazidos ao Brasil com as Ordenações do Reino, constituí-ram-se em barreiras de difícil e demorada transposição para o progresso do país, principalmente para a consolidação de seu

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poder político. A dinâmica política brasileira ficou, portanto, em compasso de espera, motivado pela prolongada vigência das Orde-nações do Reino. Os antecedentes destas estão ligados à história política brasileira, e, de certa forma, explicam os obstáculos cria-dos para a evolução política, resultando no acidentado e contradi-tório processo histórico envolvido.

Do período colonial brasileiro extrai-se uma das lições de vida política do país: o desajuste entre o estatuto jurídico e o estatuto político, entre a norma jurídica e o fato que a imobiliza, ou a deturpa. Não é um fenômeno singular, uma vez que mesmo os povos que mais se têm obstinado na preservação da legitimidade do direito contam com o descompasso. Outra lição é a da luta entre a autoridade e a liberdade, velha lição que os gregos, no passado, já proferiam, e que é uma parte da própria história da Civilização.

A proclamação da República no Brasil foi inevitável. Crises, como a religiosa, a militar e a social, esta decorrente da Aboli-ção, não podiam ser solucionadas por um Imperador precoce-mente envelhecido e por uma sucessão dinástica que geraria crise maior. Inevitável, ainda, pelos efeitos negativos impostos pelas Ordenações do Reino. Por ter nascido de uma revolução que operou a mudança do regime político, a República procurou outras fórmulas, de expressão radical. O Presidencialismo foi uma delas. Sem dúvida, a mais característica dentro do sistema republicano e, ao lado do federalismo, constituiu uma das parce-las da nova evolução política.

Vale lembrar que as condições sociais e políticas do país pare-cem favorecer o Presidencialismo, sistema melhor aparelhado a manter a tranquilidade, fora da chamada guerra psicológica dos partidos. Veja-se que o presidencialismo de 1891 foi até conside-rado, com o surgimento de forças sociais em ebulição, como despreparado para a realização de seus objetivos, ou para evitar certos abusos.

Além disso, o patriarcalismo e o caudilhismo, prováveis reflexos das Ordenações do Reino, na nossa história apresentam-se com elementos que dão à política um aspecto às vezes singular ao Presi-dencialismo. O patriarcalismo é, nas suas raízes, um fenômeno social, fruto de condições materiais e morais do momento. Não é, no entanto, um elemento perturbador do Presidencialismo.

Por outro lado, tem-se dado como um dos males do federa-lismo, no Brasil, o florescimento de oligarquias, fenômeno mais social, na realidade, fruto de um longo processo oriundo da Colô-

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nia, com o desequilíbrio da população, a desigual divisão geográ-fica e, preponderantemente, pela extensa vigência das Ordena-ções do Reino. A verdade é que as oligarquias, em muitos casos, traduziam um patriarcalismo assentado na estrutura econômica e social do país.

Considere-se ser a vida democrática caracterizada por seus conflitos e suas contestações, oriundos do próprio principio da separação e harmonia dos poderes, conforme o texto constitucio-nal. Busca-se que o processo jurídico-político funcione dentro da norma de Montesquieu, nascida da observação da política inglesa de sua época.

O passado político brasileiro e os reflexos malévolos das Ordenações do Reino, paulatinamente, foram dando lugar ao entusiasmo trazido por correntes políticas diferenciadas, ampla-mente divulgadas, notadamente as que chegam para consolidar uma nova esquerda democrática que melhor se harmonize com as exigências da sociedade, alicerçadas na coerência e osten-tando o nobre objetivo da radicalidade democrática. Tudo isso vem estimulando o idealismo dos estudiosos e militantes da esquerda brasileira. E o idealismo que move essas correntes libertárias, ao que nos parece, é aquela “velha chama” quei-mando dentro de cada um, trazendo alegrias e tristezas, exigindo de todos muita coragem e abnegação, conduzindo até às prisões, mas que jamais se extingue.

Referências

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FERREIRA LIMA, Heitor. História do Pensamento Econômico no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976.

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FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1999.

ORDENAÇÕES FILIPINAS. Livros de I a V. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984.

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PRADO JR., Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1969.

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______. Legitimidade das Leis, um Enfoque Social. São Paulo: Grupo Editorial Scortecci, 2005.

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xI. Resenha

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Autores

Eduardo RochaEconomista pela Universidade Mackenzie, pós-graduado em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Unicamp e economista da União Geral dos Trabalhadores (UGT)

Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira Doutorando em História e Cultura Política pela Unesp/Franca . Escreveu Em um rabo de foguete: trauma e cultura política em Ferreira Gullar (Fundação Astrojildo Pereira/ Contraponto, 2016); membro da incubadora cultural Cupim Literário (Uberaba – MG)

Martin Cezar FeijóFormado em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP . Professor na Faculdade de Comunicação da Faap e autor de vários livros, entre eles, O Revolucionário Cordial (Boitempo)

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O sujeito cosmopolita de Gramsci, segundo vacca

Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira

As leituras de Giuseppe Vacca em torno da figura de Antonio Gramsci não são recentes, de modo que o filósofo italiano, ex-presidente da Fondazione Gramsci, se coloca como um

dos principais intelectuais, tanto na Itália quanto no exterior, que se dedicam à hercúlea tarefa de se debruçar sob o pensamento gramsciano. As primeiras reflexões de Vacca acerca de Gramsci ocorrem no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Conse-quentemente, a obra em questão, publicada no final de 2016 no Brasil, é fruto de um denso percurso investigativo construído por Vacca. Deste modo, Modernidades alternativas se configura, concomitantemente, como aprofundamento e conclusão de um ciclo de produções iniciado anteriormente.

Diante disso, a presente obra não pode ser apreendida em si mesma, não apenas porque fruto desse intenso processo de pesqui-sas, mas também porque se propõe como complemento de uma produção anterior, publicada no Brasil em 2012 também pela Fundação Astrojildo Pereira1. Tal publicação girava em torno de uma proposta de reconstrução de Gramsci a partir de sua histori-cização integral, centrada nos nexos necessários entre os contex-tos históricos e biográficos que atravessam o pensamento político gramsciano. Modernidades alternativas figura como complemento a essa discussão mais marcadamente biográfica, uma vez que pretende, em primeiro lugar, desenvolver um percurso interpreta-

1 Vacca, Giuseppe. Vida e pensamento de Antonio Gramsci . Brasília/Rio de Janeiro: FAP/ Contraponto, 2012.

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tivo das notas carcerárias para, posteriormente, revelar as possibi-lidades de utilização dessas notas no mundo contemporâneo.

Em Modernidades alternativas não abandona a proposta de uma historicização integral do pensamento de Gramsci. Todavia, apropria-se mais intensamente do método filológico e diacrônico desenvolvido a partir dos anos 1980 por Gianni Francioni. Esse método consiste na percepção de uma temporalidade interna inerente à escrita dos Quaderni, que denota a existência de um determinado ritmo de pensamento subjacente ao processo de trabalho de Gramsci, de modo que os conceitos desenvolvidos ao longo do cárcere só podem ser apreendidos a partir de sua muta-bilidade temporal. Assim, ao se apropriar desse método filológico e diacrônico, Vacca procura perscrutar os principais conceitos desenvolvidos por Gramsci, observando suas transformações no tempo no intuito de auferir sua força heurística para a interpreta-ção dos rumos da política contemporânea.

O primeiro conceito no qual Vacca se detém é o de hegemonia, uma vez que considera a teoria da hegemonia como o centro sobre o qual gravitam as outras reflexões desenvolvidas nos Cadernos. Nestes, a teoria da hegemonia é constituída a partir de experiên-cias históricas específicas que envolvem as principais questões políticas das primeiras décadas do século XX. Tais experiências, em virtude de sua intensidade, alteram as formas com as quais se pensava a política e a história, gerando a necessidade de criação de novos instrumentos teóricos e metodológicos capazes de captar a política diante dessas novas configurações históricas. Em razão disso, nos Cadernos, o conceito originalmente elaborado por Lenin ganha uma nova leitura, deixando de ser compreendido a partir de um corte classista referente à direção do proletariado para se tornar uma ferramenta ao mesmo tempo analítica e estra-tégica capaz de compreender questões referentes à conquista e ao exercício do poder.

O cerne dessa redefinição do conceito de hegemonia, para Vacca, reside em seu vínculo necessário com aquilo que o autor nomeia por teoria da interdependência.2 Essa teoria implica a consideração das relações de forças, fundamentais para a compreensão da hegemonia, a partir de nexo essencial entre as dimensões nacional e internacional, central na contemporanei-

2 Os apontamentos de Vacca em torno da teoria da interpendência em Gramsci se mostram como aprofundamento de reflexões anteriores que remontam o início dos anos 1990. Para consultar tais reflexões ver: Vacca, Giuseppe. Pensar o mundo novo – rumo à democracia do século XXI, São Paulo: Ática, 1996.

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dade em razão do avanço do processo de globalização impulsio-nado pelo movimento da economia capitalista. O problema, nesses termos, é que a política, ainda vinculada à figura do Estado-nação, se mostra incapaz de acompanhar o movimento da econo-mia, de modo que há um certo atraso da primeira em relação à última. Para Gramsci, esse contraste entre o cosmopolitismo da economia e o nacionalismo dos Estados se configura como o cerne das crises experimentadas nas primeiras décadas do século XX.

Nesse contexto, a construção da hegemonia não deve ser apreendida pelo viés estatal ou nacional, mas a partir do equilí-brio das correlações de forças operadas entre os diversos Estados. Por isso, Vacca procura apontar que a validade do conceito grams-ciano de hegemonia está para além das fronteiras dos Estados, uma vez que parte exatamente do diagnóstico da crise dessa forma política, estando inserido na complexidade das relações internacionais. Deste modo, não se trata de perceber a hegemonia como um conceito unívoco e estável, mas de captar sua mobili-dade nos processos formativos daquilo que o autor nomeia como constelações hegemônicas.

Em termos políticos, isso significa uma transformação signifi-cativa nas formas de ação. Na medida em que o movimento histó-rico caminha para a superação da centralidade do Estado, as lutas políticas também devem ocorrer em um nível cosmopolita. Vacca pretende demonstrar que a estratégia delineada por Gramsci se orienta para a construção de uma regulação econômica e polí-tica operacionalizada mundialmente a partir de um equilíbrio de compromisso entre as forças antagônicas. Nesses termos, o autor distancia a proposta cosmopolita de Gramsci daquela própria à cultura política bolchevique. Enquanto a última se encontra marcada pela iminência da catástrofe bélica, a primeira se assenta em uma rede intricada de forças políticas que não se anulam.

Todavia, a centralidade que a teoria da hegemonia assume nas reflexões de Vacca termina por reduzir o potencial interpretativo do conceito de revolução passiva, ainda que não o elimine. Nos termos do autor, a revolução passiva também obedece ao mesmo movi-mento histórico que perpassa a hegemonia, operando uma revisão na concepção marxista da história ao relativizar seu corte clas-sista. Nesse sentido, o conceito de revolução passiva passa a figu-rar como um corolário historiográfico do conceito de hegemonia, não podendo ser manejado para a compreensão internacional.

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188188 Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira

Isso ocorre, na visão de Vacca, em razão do caráter assumido pelo processo histórico naquele momento. Nessa leitura, a visão de Gramsci acerca das primeiras décadas do século XX se encon-tra marcada pelo diagnóstico de uma crise de hegemonia, carac-terizada pela incapacidade de construção de uma constelação hegemônica em nível global. Consequentemente, a revolução passiva, encarada como conceito responsável por apreender as modalidades pelas quais os equilíbrios de compromisso se cons-troem, se mostra insuficiente para interpretar as relações inter-nacionais desse momento.

Esse amplo processo de revisão do marxismo culmina, para Vacca, na construção da filosofia da práxis. Essa construção, marcada pela transformação do materialismo histórico em filoso-fia da práxis, se encontra condicionada por uma mudança funda-mental na concepção de sujeito, bem como por uma historicização integral da política e da economia. Ao se afastar das hipóteses causais e deterministas do marxismo de sua época, Gramsci logrou construir uma teoria da constituição dos sujeitos no mundo contemporâneo, na qual a questão da formação de uma vontade coletiva emerge como um dos aspectos centrais para a formação de um mundo unitário, regulado globalmente a partir da hegemo-nia. Assim, na leitura de Vacca, a filosofia da práxis aparece como uma teoria da “constituição dos sujeitos políticos baseada gnosio-logicamente no conceito de hegemonia e historiograficamente no de revolução passiva”. (Vacca, 2016, p. 263).

Com isso, a filosofia da práxis se baseia em um princípio imanente da história responsável por superar o caráter geral-mente mecânico e determinista que as relações entre estrutura e superestrutura assumiram no interior do marxismo. Ao historici-zar a própria noção de mercado, Gramsci pôde rever também as perspectivas liberais que consideravam de modo orgânico a sepa-ração entre Estado e sociedade civil, apontado como tais dimen-sões se solidificam a partir de um intrincado jogo de forças que se chocam historicamente.

Nessa leitura, a noção da história própria da filosofia da práxis se baseia em jogo antagônico de forças imprevisível em razão de sua regulação política. Nos termos de Vacca, a dialética grams-ciana aparece como um movimento no qual a formação do par amigo-inimigo se torna impossível, uma vez que o choque das forças em questão não significa anulação de uma das forças, mas um processo de síntese que caminha para um equilíbrio em movi-mento perpétuo. Como consequência dessas noções de história e

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política, a filosofia da práxis se encontra intimamente vinculada à política democrática, visto que só a democracia pode garantir a instauração desses conflitos sem a anulação das forças em confronto. Portanto, a democracia para a qual Gramsci pretende apontar é profundamente calcada no cosmopolitismo, com vistas à produção de formas democráticas supranacionais.

Assim, o Gramsci de Vacca se configura como um pensador essencialmente cosmopolita, habilitado para enfrentar as ques-tões contemporâneas, sobretudo aquelas ligadas aos impactos políticos e econômicos da globalização. Nesse cenário cada vez mais mundial, Gramsci pretende abarcar o mundo como um todo, não abandonando a perspectiva universalista, essencial à tradi-ção comunista. Todavia, esse universalismo se mostra distante daquele bolchevique ou mesmo liberal, uma vez que se funda-menta em uma democracia supranacional capaz de regular o mundo pela ótica da política, a partir da ação fundamental de sujeitos também constituídos no interior desse cosmopolitismo, aptos a regularem uma democracia global.

Com Gramsci, pois, Vacca pretende, em meio aos escombros da contemporaneidade, repropor a questão fundamental do sujeito dentro da política, colocando a possibilidade de pensar um sujeito universal e cosmopolita longe de uma versão de totalidade inca-paz de perceber a divergência, mas a partir de um universalismo capaz de instituir o conflito e a divergência.

Sobre a obra: Modernidades alternativas: O século XX de Anto-nio Gramsci, de Giuseppe Vacca. Brasília/Rio de Janeiro: Funda-ção Astrojildo Pereira/Contraponto, 2016. 324p.

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Desbunde como resistência contracultura

Martin Cezar Feijó

Normalmente se conta a história da resistência ao regime militar no Brasil (1964-1985) a partir de dois enfoques: a opção pela luta armada ou em torno da unidade polí-

tica das oposições. Quase nunca se reconhece ter havido uma forma alternativa de resistência, tida como alienada ou covarde, porque principalmente baseada em um estilo de vida, nas artes ou em uma perspectiva individual e mais voltada para o prazer e a liberdade.

No Brasil, esta alternativa foi denominada de desbunde de uma forma pejorativa. E um livro recém-publicado em inglês, pela Universidade da Carolina do Norte, apresenta uma versão nova deste contexto: Contracultura – Alternative Arts and Social Transfor-mation in Authoritarian Brazil, de autoria de Christopher Dunn.

Um período ao mesmo tempo opressivo e marcado por uma profunda criatividade artística, que ia das artes plásticas à poesia, da música popular ao cinema, de Hélio Oiticica a Wally Salomão, de Caetano Veloso a Glauber Rocha. E embora o epicen-tro da contracultura no Brasil tenha sido a cidade do Rio de Janeiro, Salvador foi um cenário privilegiado de experimenta-lismo nas artes e nos costumes. Gerando até um acompanha-mento da imprensa do Sul, nem sempre com bons olhos.

E uma imprensa alternativa também é destacada, a começar do semanário O Pasquim, que tinha entre seus jornalistas Luiz Carlos Maciel, pioneiro nas questões da contracultura no Brasil. Mas este periódico, apesar de Maciel, não poupou o que chamou “invasão dos baianos”, chamados de “baiunos”, de forma jocosa. A resposta foram Os Doces Bárbaros. A Bahia como o Oriente do Brasil. Contra a banalidade do mal, uma “baianidade” do bem...

Além da imprensa alternativa, que teve um papel fundamental na resistência, com sua pluralidade e abordando aspectos que atraiam uma juventude antenada culturalmente com as tendên-cias mundiais, a contracultura no Brasil, estudada por Christo-

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pher Dunn, também aborda a importância da questão racial, como o exemplo do movimento Black Rio, por meio do qual se explica o aparecimento de um artista como Tim Maia que, após tentar uma temporada nos Estados Unidos, desenvolveu um projeto pessoal, inicialmente atrelado à Jovem Guarda a partir da música soul.

Não falta também no livro a questão sexual, do feminismo às orientações sexuais sendo discutidas. Temas, como a homosse-xualidade, ganham uma dimensão artística que explica a emer-gência de artistas que adotam um visual andrógino – como Ney Matogrosso, do grupo Secos & Molhados, do grupo Dzi Croquetes e até dos tropicalistas Caetano, Gil, Bethânia e Gal que se apre-sentam como um grupo intitulado Os Doce Bárbaros, causando até a prisão de Gilberto Gil, em Florianópolis, por porte de maco-nha – polêmicas, mas também defesas hoje bastante comuns sobre a descriminalização da maconha.

Uma movimentação cultural que marcou um período eferves-cente em um contexto autoritário, rompendo os limites impostos pelo conservadorismo e pela perseguição do autoritarismo. Um livro que merece ser traduzido pelo que reúne de informações, pelo rigor da pesquisa e por ter apresentado uma necessidade de pesquisas historiográficas alternativas a discursos polarizados que, de forma maniqueísta, dividem o mundo a partir de pressu-postos ideológicos.

Mais uma ideia fora do lugar?

Já se disse que as ideias no Brasil chegam sempre fora do lugar, tendo o liberalismo em época de escravidão como o melhor exemplo, porém estudos mais específicos demonstram que, na modernidade, pelo menos no plano das ideias e sua correspon-dência social, o país sempre esteve antenado com as questões centrais de seu tempo.

Assim se deu com a contracultura que aqui adquiriu cores próprias (e bota cores nisso, como demonstram as várias manifes-tações tropicalistas) no mesmo contexto em que ela se manifes-tava no contexto anglo-saxão, acirrada com a posse de Richard Nixon após a eleição em 1968 no governo norte-americano, o que não foi coincidência.

No Brasil, o ano de 1968 foi marcado pelo auge e radicalização das manifestações estudantis, mas também pela decretação do AI-5 em dezembro, que instaurou uma ditadura sem disfarces, o

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que foi, claro, acompanhado de várias formas de resistência, da luta armada à reorganização da oposição em novos moldes de atuação, destacando-se a atuação do PCB na clandestinidade em torno de uma unidade política das oposições, o que demonstrou ser a opção realmente vitoriosa a partir dos anos 1980.

O que este trabalho de Christopher Dunn demonstra, com uma pesquisa bem cuidada e detalhada, é que na esfera do comportamento e das artes também várias alternativas ocorre-ram, algumas no âmbito das vanguardas estéticas, no comporta-mento, até na cultura pop, com grandes sucessos de mercado.

E não é o primeiro trabalho deste pesquisador e professor de cultura e literatura brasileira na Universidade Tulane, em Nova Orleans, que trata da questão. Antes, ele havia escrito Brutali-dade Jardim – A Tropicália e as origens da contracultura no Brasil, publicado aqui pela editora da UNESP.

O desbunde – em vários níveis, dos estéticos aos comporta-mentais – também foi uma forma de resistência ao autoritarismo que deve ser levado em conta. E nestes tempos de Trump, que lembra em sua posse as extravagâncias direitistas de Nixon, o tema tem importância não só histórica, mas também se demons-tra extremamente atual.

Sobre a obra: Contracultura – Alternative Arts and Social Transformation in Authoritarian Brazil, de Christopher Dunn. Publisher: The University of North Carolina Press, 342 p.

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Karl Marx ou o Espírito do Mundo

Eduardo Rocha

Nenhum autor teve mais leitores, nenhum revolucionário susci-tou mais esperanças, nenhum ideólogo mereceu mais exegeses, e, à parte alguns fundadores de religiões, nenhum homem exer-ceu no mundo uma influência comparável à que Karl Marx teve no século XX .

Assim começa uma das mais belas biografias de Karl Heirinch Mordechai Marx; sim, este era o nome completo de Karl Marx. É uma obra que surpreende pelas descrições minu-

ciosas sobre a sua trágica e heroica trajetória pessoal, familiar, amorosa, profissional, política, intelectual, teórica e revolucio-nária. Foi escrita por um economista argelino-francês, ex-conse-lheiro do presidente francês François Miterrand (1981-1990).

É sabido que toneladas de páginas carregadas de tintas gros-sas já foram escritas por diversos autores, inimigos e amigos, sobre a vida de Karl Marx, mas poucas sobre Karl Heirinch Morde-chai Marx, ou simplesmente Karl, como é chamado por Attali durante todo o livro. E será assim, para respeitar o biógrafo, que chamaremos Marx.

Nas outras biografias há de tudo: amor e ódio, admiração e aversão, verdades e mentiras, filiação e refutação, vivificação e dogmatização, progressão e petrificação, absolvições e condena-ções, enfim, contradições a antagonismos. Isso porque a produ-ção pluridimensional, multifacetada, universal, global, gestada e manifestada no ímpeto intelectual incontrolável de abarcar a totalidade do mundo real, concreto, material, existente e também de abarcar a totalidade do conhecimento humano e até mesmo em desvendar o desconhecimento humano sobre o mundo radical-mente humano e desumano como tal ele o é, ele o fez como se não houvesse o amanhã.

Karl abalou toda a ordem sociopolítica existente de sua época, deu compreensibilidade à história e estremeceu o século XIX, atravessou o XX e nada indica que o XXI ainda não o tenha como a matriz de toda uma tradição teórica, que precisa ser como Karl, principalmente dominando e desenvolvendo o método – tarefa extremamente árdua, pois terá de ultrapassar aquilo que se pode

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chamar de A Muralha de Hegel. Isso porque sem Hegel, não há e nunca haveria Karl Marx. Sem Hegel, nunca haverá herdeiros de Marx. Sem Hegel, nunca haverá desenvolvedores do método criado por Karl junto com Engels.

Neste particular, vale o registro de Lênin feito em seus Cader-nos Filosóficos escritos em 1914, em Berna, Suíça, quando reestu-dava a fundo a Ciência da Lógica, de Hegel: Es completamente imposible entender El Capital, de Marx, y em especial su primer capítulo, sin haber estudiado y entendido a fondo toda la Lógica1 de Hegel! Por conseguinte, hace médio siglo ninguno de los marxis-tas entendió a Marx.2

Em O Espírito do Mundo não se encontram a reprodução ad nauseam dos conceitos marxianos expressos nas diversas exege-ses publicadas (em algumas delas, diga-se repletas de esquemati-zações, reduções, simplificações, falsificações e vulgarizações propagandísticas etc. que fariam Marx dizer “Pare!”) e de fatos corriqueiros de sua vida já sobejamente conhecidos.

Há muita coisa nova e, claro, algumas que são conhecidas, mas, algumas delas, recheadas/enriquecidas de detalhes desco-nhecidos. Provavelmente não é e nem será a última palavra sobre a vida de um homem que até hoje, apesar de tudo o que foi dito e feito em seu nome e de todos os seus inimigos tanto pelo que disse e não disse quanto pelo que fez e não fez, ele, Karl, ainda perturba o espírito do capital do século XXI, que insiste ad infinitum a “relembrar” ao mundo que “Marx está morto”.

Quando eu era adolescente, meu pai dizia que da mesma forma que não se podia condenar Jesus Cristo pelos males que a Inquisição provocou em tantas pessoas, também não se poderia condenar Karl Marx pelas atrocidades feitas em seu nome.

Ao fazer um juízo acerca das tradições sintetizadas e incorpo-radas por Karl, Attali afirma que ele:

[...] herda do judaísmo a ideia de que a pobreza é intolerável e de que a vida só vale a pena se permitir melhorar o destino da

1 Trata-se de: Hegel, G.W.F. Ciencia de la Lógica. Traducción del alemán de Augusta y Rodolfo Mondolfo. Prólogo de Rodolfo Mondolfo. Ediciones Solar y Libreria Hachette. 1968.

2 Pela tradução livre seria: "É completamente impossível compreender O Capital, de Marx e, especialmente, seu primeiro capítulo, sem ter cuidadosamente estu-dado e compreendido profundamente toda a [Ciência da] Lógica de Hegel! Por conseguinte, há meio século nenhum dos marxistas entendeu Marx". Lenin, V.I. Cuadernos Filosoficos. Buenos Aires, Argentina: Ediciones Estudio. 1963. p. 174.

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humanidade. Herda do cristianismo o sonho de um futuro liber-tador em que os homens haverão de amar uns aos outros. Herda do Renascimento a ambição de pensar o mundo racionalmente. Herda da Prússia a certeza de que a filosofia é a primeira das ciências e de que o Estado é o coração, ameaçador, de todo o poder. Herda da França a convicção de que a Revolução é a condição emancipadora dos povos. Herda da Inglaterra a paixão pela democracia, o empirismo e a economia política. Herda, enfim, da Europa a paixão do universal e da liberdade.

É por isso que Attali destaca que Karl iniciou e desenvolveu o método de pensar o mundo:

[...] como um conjunto ao mesmo tempo político, econômico, científico e filosófico (...) [ao] apresentar uma leitura global do real (...) [e] ver o real apenas na história dos homens, e não mais no reino de Deus (...). Manifestando uma incrível voraci-dade de conhecimento em todas as disciplinas, em todas as línguas, ele se empenha até o último fôlego em abarcar a tota-lidade do mundo e das molas propulsoras da liberdade humana. Ele é o espírito do mundo.

Em síntese, Karl procurou seguir aquilo que Hegel recomen-dava a todos quantos desejam abraçar o conhecimento científico, qual seja: seguir o desenvolvimento enciclopédico da totalidade da filosofia assim como o das suas disciplinas particulares.3

Mesmo o cérebro humano mais universal não está imune ao mundo dos humanos. Ao visitar toda a árvore genealógica de Karl, fica-se sabendo que a família de seus ancestrais remonta ao início do século XV; que seu nome Marx nada mais foi do que a expres-são de um erro de grafia feito pelo cartório de registro (o certo seria Marc); aos oito anos de idade, conhece Jenny von Westpha-len, de 12 anos, sua futura esposa que, ao casarem-se, vê seu Karl, então com 25 anos, levar e estudar, em plena Lua de Mel, 45 livros (Hegel, Rousseau, Montesquieu, Maquiavel, Diderot, Feuer-bach, dentre outros) e ainda o vê trabalhar em dois textos: Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e a Questão Judaica .

Antes de completar 30 anos, é o autor do livro não religioso mais lido da história do mundo: O Manifesto do Partido Comu-nista. Attali narra com riqueza todas as dificuldades pessoais, familiares e intelectuais enfrentadas durante sua redação.

3 Hegel, G.W.F. Estética: a ideia e o ideal; Estética: o belo artístico ou o ideal . Tra-dução de Orlando Vitorino. 5. ed., p. 7 São Paulo: Nova Cultura, 1991 – Col. Os Pensadores.

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O Manifesto, tal como ele o é, e O Capital nunca teriam saído caso Karl perdesse a vida em dois duelos em armas.

A obra é também um desfile acerca de datas e nomes dos recriadores/criadores de conceitos modernos que até hoje susci-tam controvérsias, tais como fetichismo, proletariado, socialismo, comunismo, para ficar apenas nesses.

Após as revoluções de 1848, encontra-se todo o movimento revolucionário ciente que chegara ao fim o sonho de uma demo-cracia europeia. Karl, que tem a prisão decretada pelo governo francês, decidiu ir para a Inglaterra, depois de hesitar entre a Suíça e os Estados Unidos. No dia 26 de agosto de 1849 chega a Londres, cujo idioma ainda não domina, sem um tostão no bolso, sem um aliado por perto, nenhum apoio, nenhuma profissão e sem notícias da esposa e dos três filhos e sem saber se Engels está vivo. Assinale-se que, diante de todos os movimentos revolucioná-rios, toda vez que pode, Karl dispendeu todo o seu dinheiro para ajudar a causa revolucionária.

Não é sem fundamento que, após tantos sofrimentos emergidos pelos desaparecimentos de seus familiares e amigos mais queridos, Karl e sua esposa presenciaram e sofreram com a morte de quatro dos seus sete filhos em decorrência da fome, do frio, da miséria abso-luta: Jenny Eveline Frances, “Franziska” (1851-52), Edgar (1847-1855), Henry Edward (1849-1850) e outro, que não chega a nascer nem a receber um nome devido a um aborto espontâneo de Jeniffer, sua esposa, ainda no início da gravidez. Suas duas outras filhas Eleanor (1855-1898) e Laura (1845-1911) suicidaram-se tempos depois da morte dos pais por motivos bem distintos.

Não à toa, ele chegou a sentenciar tanto para os seus familiares quanto para os cérebros históricos que o antecederam: A tradição de todas as gerações desaparecidas pesa como um pesadelo no cérebro dos vivos . Aos sessenta anos, já possui aparência de 70.

Seu outro filho Frédéric Demuth, operário e socialista, morre aos 78 anos sem jamais ter sido informado quem era possivel-mente seu pai, Karl. Sua mãe, Hélene Demuth, vitimada por um câncer, está enterrada no próprio túmulo dos Marx, família a que serviu durante toda a sua vida.

A biografia exuma, revisita e destaca certas concepções marxia-nas desde há muito escondidas, esquecidas ou subestimadas por todos quantos afirmaram e ainda afirmam pertencer ao campo do

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seu legado teórico. Concepções essas que deixariam e com certeza deixarão pasmos muitos dos que se afirmam marxistas

Como muito bem resgata O Espírito do Mundo:

O capitalismo é uma condição prévia [do comunismo] absoluta-mente indispensável, pois, sem ele, a penúria é que se tornaria generalizada, e, com a necessidade, recomeçaria também a luta pelo necessário, e fatalmente voltaríamos a cair na velha lama.

Para nós, afirma Karl e Engels em A Ideologia Alemã, o comu-nismo não é um Estado que deve ser criado, nem um ideal a partir do qual regular a sociedade . Chamamos de comunismo o movimento real que abole o Estado atual4 .

Compreendido aqui como “estado” enquanto a rica e plural realidade da totalidade existente, e não como “Estado” propria-mente dito.

Em 9 de janeiro de 1848, perante a Associação Democrática, em Bruxelas, Karl faz uma racional e apaixonada defesa do livre comércio entre as nações. Esse discurso, que deve ser situado historicamente e repensado aos dias de hoje, será publicado em fevereiro de 1848, em francês, e a partir de então levará o nome de “Discurso sobre o livre-cambismo” .

E o que ele diz?

4 Claro está que não é objeto deste texto a história das definições/conceitos de comunismo, mas vale resgatar essa diferença das traduções que poderá ser objeto de estudos futuros. Na edição portuguesa, por exemplo, esta passagem, esque-cida e desconhecida por muitos que se dizem “marxistas” saiu-se bem melhor. O comunismo não é para nós um estado de coisas que deva ser estabelecido, um ideal pelo qual a realidade [terá] de se regular . Chamamos comunismo ao movi-mento real que supera o atual estado de coisas . No manuscrito, este parágrafo foi inserido por Marx por cima do primeiro parágrafo desta seção, cf. Tradução de responsabilidade da Edições Avante. <www.marxists.org/portugues/marx/1845/ideologia-alema-oe/cap4.htm#t46>. Na edição brasileira, a tradução é também bem melhor descrita e explicada: O comunismo não é para nós um estado de coisas [Zustand] que deve ser instaurado, um ideal para o qual a realidade deverá se dire-cionar . Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual . As condições desse movimento [devem ser julgadas segundo a própria reali-dade efetiva . (S . M .)] resultam dos pressupostos atualmente existentes . (A . M .) Marx, Karl, 1818-1883. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B . Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846)/Karl Marx, Friedrich Engels; supervisão edito-rial, Leandro Konder; tradução, Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007. Tradução de: Die deutsche Ideologie. Kritik der neuesten deutschen Philosophie in ihren Repräsentanten Feuerbach, B . Bauer und Stirner, und des deutschen Sozialismus in seinen verschiedenen Propheten Conteúdo parcial: Teses sobre Feuerbach/Karl Marx 1. Feuerbach, Ludwig, 1804-1872. 2. Materialismo dialético. p. 38.

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A situação mais favorável para o trabalhador é a do cresci-mento do capital, temos de admiti-lo [...]. De maneira geral, o sistema protecionista de hoje é conservador, ao passo que a livre troca é destruidora. Ela aniquila as nações e leva o anta-gonismo entre o proletariado e a burguesia ao extremo. Numa palavra, o comércio livre acelera a revolução, e é numa direção revolucionária, senhores, que voto a favor do livre comércio.

Attali, então, chega à seguinte conclusão: o espírito do mundo entende o socialismo como a consumação da universalização do mercado e assinala também que a política de alianças diante de um dado momento histórico concreto também recebe de Karl uma orientação incisiva. Destaca a valorização feita à assim chamada democracia parlamentar à luta dos trabalhadores.

Paralelamente aos duros dramas familiares, lidera a formação da Associação Internacional dos Trabalhadores (será seu cérebro e sua alma) e produz sua maior obra, O Capital, cuja investigação e exposição da matéria foram-lhe extremamente penosas. Dá ainda detalhes minuciosos extraídos de relatos de revolucionários de todas as partes do mundo que frequentaram sua casa em Londres, sobre a sua vida pessoal e o seu método de trabalho diário.

Expõe com riqueza os momentos finais da vida de Karl e relata como as suas obras passam a ganhar cada vez mais destaque nos círculos operário-revolucionários de todas as partes do mundo.

A gestação dos chamados “arquivos Marx-Engels” também merecem destaque por uma descrição minuciosa das circunstân-cias históricas e personagens envolvidos, com destaque para Engels, Eleanor Marx, Karl Kautsky, Eduard Bernstein, August Bebel e David Riazanov. Este, aliás, um jovem e brilhante intelec-tual marxista russo, foi o grande responsável de fazer com que os arquivos Marx-Engels passassem das mãos dos alemães para as dos russos. – ou, como diz Attali, mais exatamente, das mãos de alguns alemães que já não se interessam realmente por eles para as de um russo que se interessa muito .

Enfim, Karl é o criador de uma ação crítico-racional-totali-zante de investigação e exposição vivificante. É uma dedicação sobre-humana para proporcionar inovações qualitativas ao conhecimento universal. Desenvolve um método de análise que possibilita fazer com que qualquer objeto real da vida concreta seja expulso do reino das trevas e torne-se minimamente inteligí-vel numa eterna e inatingível aproximação com a plenitude inco-mensurável e multifacética da totalidade ser estudado.

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A trajetória de Karl e sua influência intelectual renderam-lhe a eleição como o maior pensador do milênio, graças a uma pesquisa feita em setembro de 1999 e promovida pela British Broadcasting Corporation (a BBC, a respeitada emissora pública de rádio e televisão do Reino Unido).

Nesta lista de gigantes universais do pensamento humano que compreende o período histórico de 1000 a 1999 estavam também nada mais nada menos que Albert Einstein (também socialista), Isaac Newton, Charles Darwin, São Thomas de Aquino, Stephen Hawking, Immanuel Kant, René Descartes, James Clerk Maxwell, Friedrich Nietzche, entre outros grandes nomes que moldaram a humanidade no milênio – muitos dos quais continuam e conti-nuarão a influenciar milênios vindouros.

Talvez seja correto afirmar que nenhum “marxista” ou mesmo um “antimarxista” tenham, nos dias de hoje, lido ou tomado conhecimento de todas as biografias que foram produzidas e continuam sendo produzidas sobre este homem. Muitas foram escritas, outras virão. Embora se possa discordar de certas conclusões de Attali, é certo dizer que ele dá uma contribuição séria e relevante à vida de Karl.

Jacques Attali confessa honestamente: Nunca fui nem sou ‘marxista’ em qualquer sentido da palavra. Entretanto, presta um “serviço” inestimável a todos os que se filiam ao método de análise e transformação da realidade inaugurado por Karl. Prova disso é a exumação que faz dos escaninhos (inocente ou propositada-mente esquecidos e/ou escondidos) de uma recomendação crítica feita por Engels a um jovem revolucionário russo.

Foi uma severa crítica de Engels, já ao final da vida, aos que pensavam o mundo sem o Espírito do Mundo, isto é, sem pensar o mundo através do método analítico desenvolvido por ambos.

Qual seria essa crítica violentíssima? Attali nos dá a informa-ção. Esse argelino-francês, não marxista, informa algo que talvez nenhum “marxista” faria. Ele nos diz que em 1893, Engels, que conscientemente já sente sua chama se apagar (falecerá em 1895), está concentrado na produção e finalização do livro III de O Capi-tal e recebe a visita de um emigrado russo recomendado por Georgy Plekhanov. É um jovem chamado Alexei Voden, interes-sado em escrever uma história da filosofia inglesa e por isso quer colher ensinamentos com ele, Engels.

Page 200: A DemocrAciA sob AtAquea política e os políticos, e a aceitar e até defender líderes populis-tas como o capitão Jair Bolsonaro. Nesse terreno movediço, há, porém, uma boa parte

200200 Eduardo Rocha

Numa parte da conversa com esse jovem, que dedicadamente lhe relata o crescimento do “marxismo” na Rússia, o velho e inse-parável amigo de Karl talvez tenha desferido um grande, necessá-rio, decisivo, permanente e atual puxão de orelhas não apenas nos marxistas russos e de todos os marxistas daquela época, mas também para todos os marxistas de todas as épocas e de todas as partes do mundo.

Engels, com o joven Voden, produziu algo como um bing bang, cujas ondas sonoras críticas podem sentir-se até hoje ouvidos dos “marxistas” da época atual: ( . . .) gostaria que os russos – e não só eles, por sinal –, em vez de ficarem citando Marx e Engels, come-çassem a pensar como Marx pensaria em seu lugar . Só assim a palavra ‘marxista’ teria sua ‘raison d’être’ (razão de ser, ER)”.

Diante dos complexos problemas que se apresentam à existên-cia do gênero humano, cabe a pergunta: como você os pensaria objetivando a anulação e superação do mundo atual, caso seguisse e desenvolvesse o método de Marx ou, como definiu Attali, do Espí-rito do Mundo?

O desafio é pensar como Marx e sistematizar o método com as conquistas do conhecimento que a humanidade dispõe hoje, mas antes, há que superar a Muralha de Hegel, e interpretar este novo mundo, pois sem tal empreendimento não haveria Karl.

Sobre a obra: Karl Marx ou o Espírito do Mundo, de Jacques Attali, Editora Record, 446 p.