A Desconstrução Da Lei No Constitucionalismo Global

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Resumo O artigo analisa as inuências da pós-modernidade e da globalização na desconstru- ção de noções fundamentais do Direito. Examina ainda as crises de participação po- lítica nos processos legislativos, focando sobretudo no conceito de teledemocracia. Encerra discutindo as bases de um possível constitucionalismo global. Palavras-chave: constitucionalismo global, pós-modernidade, teledemocracia. Abstract This article analyzes the inuences of postmodernity and globalization in the decon- struction of fundamental notions of law. Following, it examines the crisis of political participation in legislative processes, focusing on the concept of teledemocracy. It ends by discussing the foundations of a possible global constitutionalism. Keywords: global constitutionalism, postmodernity, teledemocracy. A desconstrução da lei no constitucionalismo global 1 The deconstruction of law on global constitutionalism 1 Traduzido do espanhol por Têmis Limberger e Cesar Augusto Cavazzola Junior. Uma versão preliminar encontra-se publicada como “La deconstrucción de la ley en el constitucionalismo global” In: PÉREZ LUÑO, A.E. 2011. El desbordamiento de las fuentes del Derecho. Madrid, La Ley, p. 105-134. 2 Universidad de Sevilla. Campus Ramón y Cajal, C/ Enramadilla, n. 18-20, 41018, Sevilla, Espanha. Antonio Enrique Pérez Luño 2 Universidad de Sevilla, Espanha secret[email protected] Pós-modernidade e desconstrução Um dos debates mais característicos da situa- ção atual da cultura, também da cultura jurídica, está relacionado com a superação do paradigma moderno e com a sua substituição pelo pós-modernismo. A primei- ra questão é advertir que o termo “pós-modernidade”, com o qual se faz referência mais diversos meios artís- ticos, literários e cientícos, aparece na última fase da experiência cultural do século passado. Trata-se de uma denominação que logrou êxito em 1979, com a publi- cação do livro A condição pós-moderna, do francês Jean François Lyotard (1979). Esta expressão se destinava a designar uma mudança de paradigma cultural, cuja cro- nologia é incerta e debatida (alguns situam suas origens no nal do século XIX, outros após o m da Primei- ra Guerra Mundial, e há aqueles que a situam na crise de consciência coletiva do nal do século anterior); e é importante referir que seu signicado não é pacíco – Hans Küng (1991, p. 19) indicou com precisão que, muitas vezes, este termo é usado “em sentido nebuloso e panetário”. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD) 6(2):129-141, julho-setembro 2014 © 2014 by Unisinos - doi: 10.4013/rechtd.2014.62.02

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Importante artigo sobre a resignificação da lei e do direito no cenário global.

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  • ResumoO artigo analisa as infl uncias da ps-modernidade e da globalizao na desconstru-o de noes fundamentais do Direito. Examina ainda as crises de participao po-ltica nos processos legislativos, focando sobretudo no conceito de teledemocracia. Encerra discutindo as bases de um possvel constitucionalismo global.

    Palavras-chave: constitucionalismo global, ps-modernidade, teledemocracia.

    AbstractThis article analyzes the infl uences of postmodernity and globalization in the decon-struction of fundamental notions of law. Following, it examines the crisis of political participation in legislative processes, focusing on the concept of teledemocracy. It ends by discussing the foundations of a possible global constitutionalism.

    Keywords: global constitutionalism, postmodernity, teledemocracy.

    A desconstruo da lei no constitucionalismo global1

    The deconstruction of law on global constitutionalism

    1 Traduzido do espanhol por Tmis Limberger e Cesar Augusto Cavazzola Junior. Uma verso preliminar encontra-se publicada como La deconstruccin de la ley en el constitucionalismo global In: PREZ LUO, A.E. 2011. El desbordamiento de las fuentes del Derecho. Madrid, La Ley, p. 105-134.2 Universidad de Sevilla. Campus Ramn y Cajal, C/ Enramadilla, n. 18-20, 41018, Sevilla, Espanha.

    Antonio Enrique Prez Luo2Universidad de Sevilla, Espanha

    secretfi [email protected]

    Ps-modernidade e desconstruo

    Um dos debates mais caractersticos da situa-o atual da cultura, tambm da cultura jurdica, est relacionado com a superao do paradigma moderno e com a sua substituio pelo ps-modernismo. A primei-ra questo advertir que o termo ps-modernidade, com o qual se faz referncia mais diversos meios arts-ticos, literrios e cientfi cos, aparece na ltima fase da experincia cultural do sculo passado. Trata-se de uma denominao que logrou xito em 1979, com a publi-

    cao do livro A condio ps-moderna, do francs Jean Franois Lyotard (1979). Esta expresso se destinava a designar uma mudana de paradigma cultural, cuja cro-nologia incerta e debatida (alguns situam suas origens no fi nal do sculo XIX, outros aps o fi m da Primei-ra Guerra Mundial, e h aqueles que a situam na crise de conscincia coletiva do fi nal do sculo anterior); e importante referir que seu signifi cado no pacfi co Hans Kng (1991, p. 19) indicou com preciso que, muitas vezes, este termo usado em sentido nebuloso e panfl etrio.

    Revista de Estudos Constitucionais, Hermenutica e Teoria do Direito (RECHTD)6(2):129-141, julho-setembro 2014 2014 by Unisinos - doi: 10.4013/rechtd.2014.62.02

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    Alm de suas ambiguidades e imprecises, e com a falta de uma denominao mais apropriada, a ps-mo-dernidade constitui uma referncia para o surgimento de um conjunto de sinais que implicam uma ruptura re-lacionada com os valores culturais da modernidade. No mbito jurdico, moral e poltico, foram repetidas com assiduidade teses abolindo os grandes valores ilustra-dos: a racionalidade, a universalidade, o cosmopolitismo, a igualdade, que consideram ultrapassados e tentaram substituir por uma exaltao muitas vezes simplifi cada e acrtica da diferena, da desconstruo, assim como do retorno a um nacionalismo tribal e excludente. As normas jurdicas gerais e abstratas, corolrio de pa-dres ticos universais, foram questionadas por conta das preferncias particularistas fragmentrias; a prpria legitimidade tica do Direito e da poltica baseada em princpios consensuais universalizveis chegou a ser considerada um vcuo ideal e suspeito de esconder uniformismos totalitrios. unidade do ethos moder-no ops-se a fragmentao e a multiplicidade de ethos baseados nas diferenas nacionais, locais, plurais, individuais (minorias tnicas, religiosas, lingusticas, culturais, sexuais...). O declnio do sculo XX coincidiu, em suma, com um novo ataque teoria postuladora da integrao da moralidade, da poltica e do Direito, na medida em que esta dita teoria era parte do aparelho legitimador do Estado de Direito. A transformao dos valores e dos pressupostos sociais e polticos, que ser-viram de contexto ao Estado de Direito e motivaram suas sucessivas decantaes, no poderia deixar de se manifestar em seus critrios de legitimao. Portanto, o Estado de Direito, que uma das grandes conquistas da modernidade, estava envolvido em uma cultura como a do fi m do sculo, qualifi cada como ps-moderna. O assdio modernidade (Sebreli, 1992) , precisamen-te, o termo que se pretendia referir ao fenmeno do relativismo cultural e da ascenso dos particularismos antiuniversalistas prprios da fase histrica das ltimas dcadas.

    Na cultura jurdico-poltica, o paradigma ps-mo-derno foi projetado, com especial incidncia, na teoria dos direitos e liberdades. Se, para a fi losofi a prtica mo-derna, a elaborao terica dos direitos humanos, por sua importncia nodal para o Direito, para a tica e para a poltica, implicava a necessidade de uma argumentao particularmente forte, para os representantes da cul-tura ps-moderna ser uma expresso do pensamento fraco. Com isso, pretende-se sugerir que a temtica ps-moderna evita qualquer pretenso de radicalidade de pesquisa dos ltimos pressupostos, do signifi cado e do sentido das liberdades. Partindo dessas premissas,

    considera-se impossvel escapar contingncia da lin-guagem sobre os direitos e prpria contingncia da realidade indescritvel a que se refere essa linguagem.

    Ao resumir o alcance desta mudana de paradig-ma, referi-me a uma tripla representao: ao essencialis-mo pelo pragmatismo; ao universalismo pelo particula-rismo e fundamentao pela narrativa (ver Prez Luo, 2007, p. 17 ss.; Prez Luo, 2009b, p. 593 ss.).

    Nessa mesma rbita de tendncias ps-mo-dernas se situa a doutrina do fi lsofo francs Jacques Derrida, que tornou clebre sua proposta metdica de desconstruo das categorias do passado moderno. O conceito de desconstruo no unssono e tem le-vantado, por isso mesmo, uma pluralidade de interpre-taes. Em sua signifi cao bsica possvel distinguir dois nveis:

    Uma proposta terica que tende a mostrar a natureza equvoca e ambgua dos conceitos fi losfi cos e das prprias categorias lingusticas herdadas do pa-radigma racionalista moderno. Derrida entende que o signifi cado de um determinado texto, seja literrio ou fi losfi co, o resultado da diferena entre os signifi can-tes, ou seja, entre as palavras usadas, e no as palavras de referncia aos signifi cados ou s coisas que eles repre-sentam. O mtodo proposto por Derrida propicia uma diferena ativa, que trabalha a partir do cruzamento de cada um dos termos que integram seu contexto. Assim, os diferentes signifi cados de um texto podem ser des-cobertos pela decomposio da estrutura da lngua em que est redigido.

    Deve-se tambm inovao metdica defendi-da por Derrida a dicotomia diferena/deferncia. Para Derrida, o paradoxo da diffrance expressa uma in-terdependncia entre as categorias culturais. Entre elas existem relaes que no podem ser reduzidas a meras alteraes na hierarquia de seu papel e de sua relevn-cia, como tambm elas envolvem a oposio paradoxal e a necessidade mtua de cada conceito e categoria com os demais, na medida em que cada um deles deixa sua marca e, portanto, interage com os demais.

    Uma denncia pragmtica da dependncia do tempo do discurso. A fi losofi a ocidental havia partido da pressuposio de um cenrio de racionalidade siste-mtica. Tambm postulou o domnio do discurso sobre a escrita e a ideia conclusiva de um mundo em que tudo tem sentido. A desconstruo se prope a acabar com o abuso da racionalidade de herana moderna e hege-liana, propondo precisamente o contrrio: a impossibili-dade de que textos fi losfi cos ou literrios tenham um nico sentido lgico e preciso. A desconstruo revisa e dissolve o cnone racionalista de signifi cado, enten-

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    dido como totalidade e unicidade de sentido. Defende uma negao absoluta de signifi cado e prope uma re-construo temporal, que depende das formas sociais e culturais histricas.

    A desconstruo afi rma que a envoltura ret-rica dos conceitos fi losfi cos ou narrativas literrias sempre temporariamente dependente. Portanto, a obra fi losfi ca ou a obra de arte literria irredutvel a uma nica ideia ou conceito (Derrida, 1976, p. 102 ss., 1989, p. 67 ss., 1982, p. 41 ss.).

    No difcil conjecturar analogias ou observar estmulos metodolgicos diretos entre a teoria des-construtiva de Derrida e outras doutrinas. Nesse con-texto, cabe a referncia teoria das falcias jurdicas e polticas de Bentham, da subverso contra o racionalis-mo moderno que deriva de Nietzsche, da ideia de Des-truktion para a qual a metafsica de Heidegger conduz o conceito de tempo, da dialtica negativa da Escola de Frankfurt, da arqueologia do saber, segundo a pro-posta epistemolgica de Foucault. Derrida vai alm da desconstruo, entendida como demolio ou dissolu-o, promove uma reconstruo alternativa das etapas sucessivas do saber fi losfi co, por meio da experincia do tempo. Esta conscincia histrica tem sido ofuscada pela metafsica, esquecendo o sentido original do ser como ser temporal. As etapas dessa desconstruo re-construtiva implicam uma referncia imediata histori-cidade dos conceitos fi losfi cos e dos textos literrios: a desconstruo contesta a ideia de completude, om-nicompreenso da obra fi losfi ca ou literria, porque o conceito de totalidade se dissolve quando se adquire conscincia de que um texto no pode ser apreendido como um todo, j que a escrita circula num movimen-to constante de remisso, que converte a totalidade em uma parte de uma totalidade maior que nunca est presente. Assim, impossvel enquadrar o texto, isto , criar um interior e um exterior.

    O sentido de um escrito fi losfi co ou literrio, a partir da perspectiva da desconstruo, aparece ne-cessariamente como algo indeterminado e, portanto, carece de univocidade e de obviedade. linguagem se atribui uma grande complexidade, equvocos e ambigui-dades. A partir da tica desconstrutivista se distinguem dois tipos de leitura: a lgico-gramatical, baseada em mensagem clara, precisa e inequvoca; e a desconstru-tiva, que postula a indeterminao dos signifi cados. A desconstruo nega a possibilidade de carter unvoco do texto. Diante da ditadura do cnone sustenta a democracia da polissemia, estabelecendo que o ato de leitura gera interpretaes infi nitas. Diante de um texto ser impossvel determinar uma nica leitura como boa.

    As leituras possveis sero infi nitas porque jamais leitura alguma alcanar o sentido correto, nico e defi nitivo (cf. Pealber, 1990, p. 36 ss.).

    As premissas metodolgicas desconstrutivistas projetaram-se tambm Teoria do Direito. Sua recep-o mais signifi cativa ocorreu na cultura jurdica estadu-nidense, particularmente nas doutrinas do movimento chamado Critical Legal Studies (cf. Prez Lled, 1996). As principais consequncias dessa abordagem metodol-gica podem ser sintetizadas nas seguintes tendncias: (a) a crtica desconstrutiva de uma suposta ontologia dos conceitos e categorias jurdicas separadas de sua temporalidade e, consequentemente, de sua incluso em contextos historicamente determinados; (b) con-testao de qualquer atitude formalista no Direito, pela insero do mundo jurdico em contextos culturais, so-ciais e polticos determinados, com a conseguinte crtica ao papel ideolgico das distintas verses do formalismo jurdico; (c) negao desconstrutiva do signifi cado un-voco pretendido das defi nies de palavras e exigncias legais, devido incerteza inerente a qualquer manifes-tao da linguagem jurdica; (d) o recurso ao paradoxo da diferena para oferecer uma viso do Direito en-tendida como um panorama feito de oposies hierr-quicas entre as instituies jurdicas e de subsequentes inverses provisionais de tais hierarquias, mostrando o que acontece quando o termo subordinado passa a ser o predominante, mas com plena conscincia de que a nova prevalncia pode ser invertida (cf. Balkin, 1987, p. 743 ss.; Cramer, 1991, passim).

    A desconstruo da lei na era da globalizao

    A metodologia desconstrutivista, esboada aqui, promove uma abordagem frtil para algumas das princi-pais mudanas operadas no sistema das fontes do Direi-to. Em particular, revela-se como uma escolha metodo-lgica til para o estudo quando afeta o real signifi cado e funo da lei dentro dos sistemas jurdicos, que ope-ram na era da globalizao.

    Vale recordar que o Estado de Direito tinha como um de seus valores jurdicos prioritrios a su-premacia da lei. Herdeiro ideolgico das aspiraes do Iluminismo jurdico, o Estado de Direito considerava a garantia da generalidade como um elemento constitutivo da lei e como um fundamento de sua primazia enquanto fonte jurdica. Do carter geral da lei resultou a sua pr-pria funo de garantia bsica para o status jurdico dos cidados em uma sociedade livre e democrtica. Esta generalidade se manifestava em dois nveis: a da criao

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    da regra que envolveu a substituio do legislador indivi-dual (o monarca) pelo legislador coletivo (Parlamento), ou seja, pela exigncia rousseauniana de que a lei o produto da vontade geral; e, por sua vez, generalidade nos destinatrios para assegurar a igualdade perante a lei, que as leis so iguais para todos com a conseguinte abolio das leis pessoais ou privadas (privilgios). Ou-tros elementos constitutivos do conceito moderno de lei foram os referentes ao seu carter necessariamente vinculante para aqueles que eram seus destinatrios, in-dependentemente de sua vontade de cumprir, ou seja, sua heteronmia; a dimenso coercitiva de seus precei-tos, cujo contedo deve ser aplicado inexoravelmente; e os requisitos de clareza e preciso de suas formulaes lingusticas como garantia da segurana jurdica dos pr-prios destinatrios de suas obrigaes, ou seja, dos cida-dos (cf. Prez Luo, 1994, p. 61 ss.).

    Corolrio da separao de poderes, reputada, desde Montesquieu, como princpio informador do Es-tado de Direito, reserva-se lei, enquanto regra geral promulgada pelo Parlamento, a defi nio dos aspectos bsicos do status jurdico dos cidados (direitos e liber-dades fundamentais, responsabilidade penal, benefcios pessoais e patrimoniais...). Esta clusula de garantia tem seu complemento no princpio da hierarquia normativa pelo qual se estabelecia uma ordem de prioridades das fontes do Direito, destinada a impedir a revogao, al-terao ou violao das regras de maior categoria por aquelas que lhes esto subordinadas.

    A literatura jurdica atual prdiga em manifesta-es de preocupao e inquietude sobre a eroso destes traos informadores que defi niram o signifi cado da lei e avalizaram sua condio de fonte jurdica prioritria.

    Na metade do sculo passado, o professor fran-cs Georges Ripert (1949) considerou que se estava produzindo uma crise do Direito motivada pela perda da primazia e pelo consequente enfraquecimento das caractersticas informadoras da lei.

    Este texto pode ser considerado premonitrio de muitas manifestaes atuais de alarme, preocupao ou, simplesmente, de comprovao emprica de uma gradual degradao da lei. Hoje, de fato, poderia se for-mar uma biblioteca jurdica inteira de livros, monogra-fi as, ensaios e artigos que se referem a este assunto. Fenmenos como a descodifi cao (Irti, 1992), a desle-galizao e desregulamentao3, a legislao porosa ou a legislao dctil (Zagrebelsky, 1995)... esto no centro

    de relevantes manifestaes na cultura jurdica atual.Sintoma exemplar dessa problemtica a ex-

    presso com a qual Virgilio Zapatero rotula o segun-do captulo de seu interessante livro Arte de legislar, em que se refere ao fenmeno atual das leis sob suspeita (Zapatero, 2009, p. 45). A lei que, no paradigma jurdico da modernidade, havia assumido uma mxima garantia de segurana cvica, suscita na era ps-moderna uma radical suspeita sobre sua idoneidade e possibilidade de responder aos grandes desafi os a serem enfrentados pelo Direito nas sociedades de nosso tempo.

    No menos signifi cativa, em relao ao argumen-to aqui tratado, a investigao pelos professores de Filosofi a do Direito da Universidade de Oviedo, Luis Roldn Martnez, Jess A. Fernandez Suarez e Leonor Surez Llanos, intitulada La ley desmedida [A lei sem me-dida], que refl ete tambm o status quaestionis da situa-o jurdica do presente. Esta obra apresenta seu pro-psito na exposio, detalhada e rigorosa, do fenmeno do descrdito da legislao no mbito do Estado social de Direito. Nesta forma poltica, as exigncias de justi-a material implcitas nos valores, princpios e direitos constitucionais tm conduzido a crises do paradigma formalista-legislativo. A lei se multiplica descontrolada-mente e perde, com a conscincia ou inconscincia do legislador, suas garantias tcnicas. A situao atual da legislao se apresenta como uma realidade aparente-mente catica e confusa, embora supostamente ben-fi ca para a garantia material dos direitos de cidadania.

    O confl ito jurdico bsico do nosso tempo se expressa, assim, na luta entre as exigncias formais da legislao, que constituram a garantia da diviso de po-deres e da segurana jurdica, e as reivindicaes axio-lgicas da justia material (Martnez Roldn et al., 2007).

    Um enfoque necessrio para a compreenso adequada do fenmeno da metamorfose do signifi cado da lei e da perda de suas funes tradicionais, no campo das fontes do Direito, o que conecta essas circunstn-cias com o fenmeno da globalizao, dentro do qual se tm manifestado verses brandas de soft law e difusas de juridicidade.

    Francisco Laporta estima, a respeito, que em sua projeo jurdica a sociedade global propiciou a profu-so normativa do que tem sido denominado de soft law, ou seja, de um Direito suave. Esse Direito, que alcanou enorme difuso no campo das relaes e acordos inter-nacionais, implica numa tripla alternativa em comparao

    3 Na doutrina alem, a temtica da deslegalizao ou desjuridifi cao (Entrechtlichung/Verrechtlichung) foi objeto de um amplo debate doutrinal. Ver, entre outros, os trabalhos de Teubner (1984, p. 310 ss., 1985, p. 29 ss.), assim como a obra coletiva organizada por Kbler (1984), com trabalhos, entre outros, de Simitis e Teubner. Este fenmeno foi inclusive considerado um possvel sintoma de abandono ou despedida do Direito; ver, sobre isso, Voigt (1983). Entre a abundante bibliografi a anglo-sax sobre Delegalisation bastar recordar os aportes de Cotterrell (1991, p. 245 ss.) e Galanter (1980).

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    com o conceito tradicional da lei: (a) diante do carter estatal da lei, as normas suaves surgem, preferencial-mente, de entidades no estatais, emanam de agncias carentes de competncias legislativas no plano nacio-nal e internacional; (b) diante da exigncia de segurana jurdica de que a lei seja formulada em termos claros e precisos, o Direito suave frequentemente expresso em termos vagos e ambguos; (c) diante da dimenso coativa e da exigncia de cumprimento inexorvel, ele-mentos constitutivos da lei, as normas suaves no so vinculantes e condicionam seu cumprimento adeso voluntria e a outros meios de aplicao que no so ju-rdico-coativos. A globalizao, cujas consequncias sus-citam crescentes atitudes de desconfi ana e crtica, nos coloca, segundo se infere da anlise de Laporta, diante de um paradoxo inevitvel: os problemas jurdicos de-correntes da globalizao na ordem internacional so fortes enquanto que as regras jurdicas previstas para resolver essas questes so suaves. Laporta reivindica a funo de imprio da lei, que implica um Direito forte (hard law), baseado na exigncia de conformidade, para garantir sua efetividade e fazer da conformidade um fa-tor bsico da ordem internacional. Assim, contra a exi-gncia que decorre da necessidade de cumprimento do imprio da lei, o Direito suave faz depender sua efi ccia da aceitao voluntria e da conformidade dos fatores sociolgicos (presso social, a fora da sociedade civil...), em vez de enquadr-la em elementos normativos.4

    A normatividade difusa, segundo Alfonso de Ju-lios Campuzano, foi consequncia dos processos de globalizao em que esses tipos de regras constituem a causa habitual para a regulao das relaes fi nanceiras e comerciais em escala internacional. A sociedade glo-bal se traduziu, no plano jurdico, em um panorama de normatividades transversais, nas quais as regras de ca-rter internacional, nacional e local se confundem e se diluem, os mbitos de validade jurdica se interpenetram: o Direito aparece como uma rede difusa de tramas nor-mativas. Este novo cenrio exige, segundo estima Julio Campuzano, um novo modelo jurdico capaz de fornecer uma explicao convincente desses novos processos pe-los quais passam os ordenamentos estatais e a ordem jurdica internacional. Estes processos levaram ao trans-bordamento das estruturas normativas tradicionais e de categorias tericas dirigidas ao seu estudo, razo pela qual urge construir um novo paradigma da cincia jurdi-ca capaz de assumir o comando da nova situao.5

    Os diagnsticos apresentados aqui constituem uma sucinta, porm relevante, mostra do status qua-estionis da Teoria do Direito em relao com a crise e com as transformaes da lei. A conexo expressa dessa problemtica com a metodologia desconstrutivista tem sido levantada dentro da nossa cultura jurdica por uma vigorosa e ampla investigao desenvolvida pelo traba-lhista Antonio Ojeda em sua obra A desconstruo do Direito do Trabalho. Neste livro, sustenta-se a tese de que a legislao trabalhista est passando por um processo de mudana profunda, algo que no estranho prpria evoluo deste ramo do Direito. O fenmeno resultou no protagonismo e na supremacia de certos elemen-tos das relaes de trabalho, que anteriormente eram subsidirios. Segundo Ojeda, no campo do Direito do Trabalho, apregoa-se que alguns elementos que eram considerados supra apresentam-se pela metodologia de Derrida como paradoxo de diferenciao. Produzem-se, assim, no Direito do Trabalho, novas caracterizaes e caractersticas funcionais das diferentes categorias e dos valores jurdicos, cujo signifi cado surge, precisamen-te, de suas relaes de interdependncia mtua. Essas mutaes que defi nem o estado atual do Direito do Trabalho obedecem depurao gradual imposta em seu seio por uma mudana poltica, ou seja, a sucesso de governos de diferentes orientaes ideolgicas de-termina a sobreposio de estruturas jurdico-laborais distintas cuja mistura gera solues por consenso ou, simplesmente, por acumulao. Ojeda conclui, com re-ferncia dicotomia diferena/deferncia de Derrida, que a culminao deste processo no implica apenas uma mudana de papis entre os termos de hierarquias normativas emanadas das opes polticas dominantes, mas tambm uma consequncia das relaes de opo-sio mtua e necessidade entre os atores laborais e as normas e categorias que regulam sua funo, como re-sultado do rastro que cada um desses elementos deixa. O Direito do Trabalho hoje est cortando um terno com os retalhos do anterior, que, assim, vai ser diferente dele mesmo (Ojeda, 2010, p. 28 ss.).

    Desconstruo e massifi cao da lei: hipertrofi a e hipostenia legislativas

    A metodologia desconstrutivista ajuda a explicar as mudanas hierrquicas e operacionais na lei, as mu-danas que ocorreram em seu ncleo signifi cativo e em

    4 Laporta (2007, p. 261 ss.). Em relao problemtica da legislao branda, ver, tambm, Zapatero (2009, p. 147 ss.).5 Julios Campuzano (2009, p. 91 ss., 2003). Garrido (2010) oferece um panorama geral muito completo das mudanas operadas nos sistemas jurdicos a partir da era da globalizao.

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    sua funcionalidade. H outro fenmeno igualmente im-portante que afeta a situao atual da lei como fonte de Direito e tambm pode ser objeto de uma abordagem, a partir da perspectiva da desconstruo. Este o proble-ma enfrentado pelos sistemas jurdicos mais avanados do nosso tempo e que se refere ao aumento da proli-ferao de normas jurdicas que operam dentro dele.

    Est-se produzindo, de fato, nos atuais ordena-mentos jurdicos um fenmeno que tem sido denomi-nado, com razo, hipertrofi a legislativa e, no mbito anglo-saxo, contaminao legislativa (Legal Polution). Essas expresses visam dar conta da crescente expan-so de normas legais, que tem conduzido a uma autn-tica superabundncia legislativa. A infl ao legislativa pode parecer paradoxal, isso se considerarmos que est constantemente fazendo aluso ao enfraquecimento e perda da supremacia da lei. A desconstruo da lei se manifesta aqui, portanto, como uma crise motivada por um crescimento desordenado dos materiais legais, e no como um processo de extino.

    A superabundncia legislativa tambm respon-svel por uma perda gradual de qualidade na concepo formal e na prpria estrutura tcnica das leis. Com isso, questiona-se e produz-se uma crise dos pressupostos que, desde a Modernidade, constituram o fundamento da arte de legislar (ver Atienza, 1987-1988, p. 435 ss.; Prez Luo, 1994, p. 61 ss.; Zapatero, 2009, p. 75 ss.).

    As refl exes desconstrutivistas sobre a inde-terminao, impreciso, ambiguidade e polissemia da linguagem, possuem especial relevncia no campo da linguagem legislativa. Nas sociedades tecnologicamente avanadas se produziu uma avalanche de leis. Esse cresci-mento excessivo e desordenado produziu uma situao de hipertrofi a legislativa, ou seja, que resultou em uma perda da funo do papel da lei no Estado de Direito.

    Assiste-se tambm ao fenmeno de mistifi cao legislativa, que se refere prtica de determinados res-ponsveis polticos que, diante da necessidade de abor-dar as questes econmicas e sociais graves, no lugar de fornecer solues imediatas, apontam para a futura promulgao de uma disposio legal com o nico pro-psito de deixar sine die a soluo dos problemas. Na esfera do Direito Penal, fez-se aluso a certas experin-cias denominadas de legislao penal simblica. Com esta expresso, alude-se s tentativas de o legislador penal aumentar a lealdade e a confi ana do pblico em relao aos autores de poltica criminal na luta contra as formas de criminalidade que suscitam grave alarme so-cial. No entanto, a falta de recursos e as transformaes econmicas e sociais necessrias que exigem a plena efi ccia dessas normas acabam condenando-as ao fra-

    casso. Assim, a legislao simblica possui um signifi cado oculto e manipulador. Aqueles que fi zeram disso uma realidade fi ccional produziram uma falsa conscincia sobre a adequao dos meios legais para salvaguardar a segurana pblica. Mas eles tambm so vtimas de um autoengano, porque os polticos e legisladores que acreditam nesse tipo de legislao acabam acreditando na virtualidade das respostas polticas que so puramen-te simblicas (ver Prez Luo, 2010a, p. 68 ss.).

    A hipostenia legislativa constitui a reao anti-ttica correlativa ao fenmeno da hipertrofi a, da conta-minao, do mito e da verso simblica da lei. A exten-so do corpo legislativo levou a um dfi cit acentuado na intensidade de sua efi ccia. Isso resultou em uma srie de fenmenos de representao da lei formal por nor-mas regulamentares, assim como no enfraquecimento e na desconfi ana da legalidade como marco de soluo dos confl itos sociais.

    A mistifi cao da lei e sua reduo a um mero smbolo tm como consequncia sua ulterior desmisti-fi cao, na medida em que se tem destacado as falhas do aparato legal para tratar de forma adequada algumas das principais questes sociais. A cidadania, quando se tor-nou clara a inefi ccia jurdica para resolver efetivamente os problemas mais urgentes da convivncia, passou por uma atitude gradual de desconfi ana nas potencialidades da lei para resolver problemas cvicos. A mistifi cao e o carter simblico da lei levaram, num tempo relati-vamente curto, ao descrdito e perda de prestgio e credibilidade social da lei.

    Crises da participao cvica no processo legislativo e suas alternativas: teledemocracia e normatividade popular. Os fenmenos de deslegalizao, desregulao e autorregulao

    Uma das grandes conquistas jurdico-polticas da modernidade foi a consagrao do princpio de que o poder legislativo emana da soberania popular e exer-cido atravs de formas de democracia direta ou de democracia representativa. Este postulado foi um dos recursos informadores bsicos do Estado de Direito, as-sim como o fundamento de sua legitimidade (ver Prez Luo, 2010b, p. 189 ss.). Aqui, um dos graves problemas que afetam a legislao o afastamento de seus desti-natrios. Muitas vezes, a infl ao legislativa e a estrutura formal da lei, cada vez mais sofi sticada e formalizada, tm produzido efeitos negativos como rigidez, burocra-

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    tizao e inefi ccia. Uma maneira de responder a esse descrdito legislativo consiste em argumentar sobre a necessidade de mecanismos, procedimentos e reformas institucionais para tornar o Direito mais acessvel e mais til para o maior nmero de cidados.

    Representa, portanto, um importante desafi o para os Estados de Direito de inequvoca orientao democrtica recuperar e promover a participao real e consciente dos cidados no processo legislativo. Essa pretenso democratizadora do Direito conta com nu-merosos antecedentes. Ao declinar do sculo XIX, o fi lsofo de Direito alemo Rudolf Ernest Bierling desen-volveu a teoria do reconhecimento (Anerkennung). Esta teoria, inspirada em premissas contratualistas, defendeu a tese de que o Direito aquilo que os homens que vivem numa comunidade reconhecem reciprocamente como norma e regra de sua vida em comum (Bierling, 1961, p. 19 ss.).

    Uma tese semelhante foi sustentada nos primei-ros anos do sculo XX, na Espanha, por Joaqun Costa. A concepo jurdica costiana representa uma verso da teoria do reconhecimento, ao fazer a obrigatoriedade da lei depender de sua aceitao pelos destinatrios. Em sua opinio, que projetada para sustentar uma leitura pessoal da fi losofi a do Direito clssico de orientao democrtica, a aceitao popular elemento essencial da lei. Somente na condio de que as pessoas sancio-nem expressamente com seu voto, ou tacitamente aco-modando suas aes, a lei adquire a natureza de Direito, tornando-se lei viva, Direito positivo, e deixa de o ser no momento em que as pessoas deixam de us-lo. Con-clui que, para que as leis sejam cumpridas pelo povo, o legislador as promulga sempre, tacitamente, ad refe-rendum. Costa considera inalienvel o direito do povo a no aceitar, a no cumprir e a deixar de usar as leis. Quando uma lei contrria aos interesses ou s con-venes populares, o povo, na condio de senhor do Direito, a desusa e cria outra para si mesmo na forma de costume (Costa, 1957, p. 89 ss.).

    Nas sociedades avanadas do presente, o desen-volvimento tecnolgico e, em particular, a disseminao da Internet permitem formas de participao plebisci-tria direta dos cidados na aprovao dos textos nor-mativos. Essas possibilidades constituem o objeto de novos marcos de estudos como a cibercidadania ou a teledemocracia. Vittorio Frosini, em sua obra La democra-zia nel XXI secolo, incentiva um aumento da participao dos cidados nas sociedades democrticas no processo de criao do Direito. Atravs das Novas Tecnologias (NT), os cidados sero capazes de dar sua opinio e, assim, contribuir para a formao da vontade legislativa

    do Estado. Os projetos de leis elaborados pelos gover-nos, pelas associaes ou pelos grupos polticos, ou pela prpria iniciativa legislativa popular, podero ser sub-metidos a um referendo imediato, o que ir torn-los leis aprovadas diretamente pela maioria dos cidados. A legislao deixar de ser uma questo tcnica, mono-polizada pelos juristas que, majoritariamente, integram os partidos representados nos parlamentos. O princpio democrtico, que concebe a lei como expresso da von-tade popular, no ser mais um mero postulado ideal e contrafactual, na medida em que refl etir a participao real e efetiva dos cidados na aprovao das leis (Frosini, 1997, p. 81 ss.).

    Os defensores da teledemocracia legislativa esto cientes de que a participao cidad, em todos os m-bitos da legislao das complexas sociedades democr-ticas do presente, seria disfuncional e, inclusive, invivel. Entendem, portanto, que a apelao direta cidadania deveria ser limitada s leis que pretendam regulamentar as questes candentes, que a doutrina italiana chama-da temi caldi, da vida poltica contempornea. Questes como a disciplina normativa do aborto, da eutansia, do terrorismo, da violncia domstica, da poluio ambien-tal e do domnio da qualidade de vida... so matrias que suscitam uma ampla inquietude e debate pela opinio pblica. Trata-se de questes vitais em que se expressam os valores, as tradies e as vises de mundo dos mem-bros de cada sociedade e cuja regulamentao no deve fi car restrita a um grupo de especialistas.

    Ao lado do ingrediente importante de legitima-o democrtica que a participao direta dos cidados outorgaria legislao teledemocrtica, a mesma re-dundaria tambm numa maior dose de efi ccia. Um dos grandes problemas analisados pela sociologia jurdica do presente reside no dfi cit de vigncia social de impor-tantes setores da legislao. Os cidados, margem do processo legislativo, no se sentem solidrios com de-terminados textos legais, e isso difi culta notavelmente a garantia de seu cumprimento. A teledemocracia refor-aria a efi ccia normativa da legislao, pois depende de uma atitude de coerncia nos cidados legisladores; pois parece lgico que aquele que de forma direta e expres-sa manifestou sua vontade de apoio a um texto legal se considera comprometido a respeit-lo (ver Prez Luo, 2004, p. 80 ss.).

    Em determinados estudos sociojurdicos do pre-sente, analisam-se as possibilidades de criar novas cau-sas normativas e novas instituies para que operem de um modo menos formal, margem dos requisitos impostos pela estrita legalidade. Como corolrio dessas circunstncias est se desenvolvendo cada vez mais uma

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    tendncia no sentido da deslegalizao, defi nida como subtrao do controle das regras e procedimentos le-gais de alguns confl itos e relaes jurdicas, que passam a ser regulados por outras fontes normativas.

    Nos pases em desenvolvimento, a eroso da lei se manifesta atravs de fenmenos de normatividade extralegal, que denunciam a incapacidade desses Esta-dos em atender por causas jurdicas formais as neces-sidades bsicas da sociedade. Em tais circunstncias, a sociedade civil est condenada a suprir a falta ou a in-competncia do Estado, tentando compensar a falta de um Direito legal judicializvel com normas extraestatais, cuja garantia exclusivamente social, com consequente disfuno e incertezas jurdicas.

    Os pressupostos do fenmeno de deslegalizao guardam estreita colaborao com os fenmenos de desregulao e autorregulao, que hoje esto no cen-tro de interessantes experincias prticas e que so ob-jeto de crescente interesse doutrinrio, dos quais aqui apenas possvel uma breve referncia. No obstante, importa observar que as semelhanas entre essas trs noes, que de forma imprpria tem proporcionado certa confuso, no permitem o esquecimento de suas diferenas. A deslegalizao implica substituir a regulao legal de determinadas matrias por sua disciplina atravs de outras fontes jurdicas (jurisprudenciais, principiais, consuetudinrias...); a desregulao implica o xodo e o abandono da regulamentao legal de determina-dos mbitos, antes legislados, que agora esto fora da normatividade estatal; e a autorregulao comporta de-legar setores antes regulados pela lei a normas aut-nomas produzidas por agentes sociais ou econmicos.

    O fenmeno da desregulamentao, e o seu auge experimentado nas ltimas dcadas, em grande parte se deve ao desenvolvimento da cultura neoliberal e sua penetrao na esfera jurdica. A partir dessas premissas, tende-se a corroer a onipresena do intervencionismo jurdico estatal por zonas livres dessa interferncia.

    Diante de um Direito taxativo de mandatos e proibies, reivindica-se um mbito cada vez maior de permissividades tcitas, ou seja, sem que se requeira a necessidade da promulgao de normas permissivas.

    A partir de determinados enfoques da sociolo-gia contempornea, alude-se tambm aos denominados casos de no direito. Trata-se de todo um amplo seg-mento de vida social desenvolvido margem da juridici-dade. A partir de tais premissas, advoga-se por reinter-pretar o aforismo latino tradicional: ubi societas, ibi ius.

    De acordo com esta nova interpretao, toda realidade social no implica necessariamente uma regulamentao jurdica, mas sim implica qu o direito surge da socieda-de, porm no estende sua normatividade para todas as esferas da experincia social.

    A questo da autorregulao o resultado de es-tmulos culturais variados: alguns de carter poltico (te-orias da subsidiariedade e os organismos intermdios, o socialismo autogestionrio...) e outros de inspirao jurdica (institucionalismo, pluralismo jurdico, Direito alternativo...). A partir dos enfoques tericos que hoje defi nem a autorregulao, pode-se dizer que a lei, em vez de mero produto da vontade ou de comandos do legislador, deve ser entendida como a expresso con-creta das formas de vida social. Ao monoplio estatal da juridicidade se opem as faculdades autnomas, ou seja, autonormativas dos distintos grupos sociais nas esferas que lhes so prprias. O fenmeno da globalizao tem contribudo para o aumento da proeminncia de alguns procedimentos de autorregulao: a lex mercatoria, con-junto de regras extraestatais que regulam as transaes comerciais devidas aos prprios agentes mercantis; a difuso dos tribunais arbitrais e de outras formas de mediao... Todos esses fenmenos so positivos por ter ajudado a construir formas normativas mais fl exveis, adequadas e prximas organizao, gesto e resoluo dos novos desafi os da experincia jurdica no mundo globalizado. Contudo, frente ao entusiasmo excessivo dos defensores mais fervorosos da autorregulao, cabe opor o risco de incerteza e de insegurana jurdica, in-ferida a partir de algumas de suas propostas. Qui, o principal obstculo com o qual estas abordagens coli-dem especifi car as caractersticas e exigncias das en-tidades sociais que so suscetveis de possuir faculdades de autorregulao. Vale lembrar que, na fase de maior apogeu do institucionalismo, produziram-se respostas ambguas no tocante s suposies de que era possvel avaliar a qualidade de instituies, dotadas de atribui-es autonormativas e de criar, portanto, seu prprio ordenamento jurdico. Assim, por exemplo, no deixou de suscitar perplexidade doutrinria a tese de um jurista italiano que defendeu a possibilidade de reconhecer a uma nica pessoa jurdica a qualidade de instituio e de elaborar seu prprio ordenamento.6

    Portanto, discutvel se essa revalorizao de pautas normativas consuetudinrias, ou de regras pac-tuadas no mbito privado baseadas na negociao, na mediao e no compromisso, acarreta uma extenso

    6 impossvel dar conta aqui da vastssima bibliografi a sobre esses fenmenos de desconstruo da lei; como exemplo, ver Sousa Santos (1985, p. 299 ss., 1995, 1998, 2003). Ver tambm a bibliografi a citada na nota 3.

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    do sistema jurdico para esferas antes abandonadas a seu mero uso, ou, melhor, implique sua reduo, ainda que pessoalmente me incline pelo primeiro. O que indiscutvel que esses fenmenos esto se refl etindo no declnio da importncia da lei como fonte de Direi-to. Constituem tambm um sintoma exemplar desses processos de desconstruo que ameaam o conceito tradicional da lei.

    Desformalizao e desconstruo da lei

    Se eu tivesse que descrever a posio dominan-te nas correntes metodolgicas da teoria e da prtica do Direito nas ltimas dcadas, poderia tomar como ponto de referncia o ttulo da obra do socilogo esta-dunidense da cultura Morton White, The Revolt against Formalism (1952).7 A revolta contra o formalismo tam-bm encontrou o seu ponto de refl exo no campo das fontes do Direito. Assim, a desformalizao uma das exigncias que hoje so feitas aos sistemas normativos por parte dos defensores de uma maior fl uidez e fl exi-bilidade de instrumentos jurdicos e canais jurdicos de resoluo de confl itos sociais. Alm disso, White teve a oportunidade de indicar supra que a crtica ao for-malismo tem sido um dos aspectos caractersticos das projees jurdicas da desconstruo.

    Imediatamente aps a Segunda Guerra Mundial, em meados do sculo passado, houve uma difusa, mas persistente, reao aos dogmas da sujeio absoluta para julgar o Direito positivo, bem como concep-o mecnica da aplicao judicial do Direito. O as-salto foi resolvido em duas frentes: poltica e terica. Desde o incio, as trgicas consequncias, em termos de perverso do sistema jurdico,8 que, nos sistemas totalitrios, se derivam da manuteno da devoo in-transigente do culto legalidade positiva condensado no princpio Gesetz ist Gesetz, motivaram a sua reviso completa.

    Ao mesmo tempo, as crticas ideologia da fun-o judicial, propiciadas no mais das vezes a partir de abordagens marxistas, enfatizaram que a neutralidade da justia, na sua aplicao supostamente assptica da lei, esconde, consciente ou no disso, a defesa ideolgica de interesses polticos.

    Estas novas coordenadas ajudaram a potencializar de tal modo o protagonismo do juiz na elaborao do Direito, que passaram a caracterizar a situao jurdica do presente como representao do Direito legal (Gesetzes-recht) pelo Direito judicial (Richterrecht). A crise do papel da lei como nica fonte do Direito promoveu uma reno-vada dimenso pretoriana da produo jurdica, a ponto de levantar um debate aberto sobre os chamados juzes legisladores (Arndt, 1963, p. 1273 ss.).9 Mas esse proces-so, com suas luzes, em termos de uma melhor adaptao dos sistemas jurdicos s exigncias de sociedades em constante transformao, comporta as sombras de seu custo na eroso da segurana jurdica.

    Na rbita dessas tendncias desformalizadoras tambm deve ser colocada a observao de Peter H-berle (1993, p. 30-31) quando aponta que o protagonis-mo bsico dos princpios, positivos ou suprapositivos, nos sistemas jurdicos atuais determina que a lei e sua importncia na teoria das fontes do Direito passe a ocupar, no melhor dos casos, um lugar secundrio, se no a converte, em ltima anlise, em algo puramente tangencial [...] a existncia de algo que vai se desenvol-vendo no ritmo dos complexos estados que surgem na criao e na exegese de textos jurdicos, quando neles participam muitos envolvidos, assim o sugere.10

    A anlise desconstrutiva, em suas projees ao Direito, tem sido uma das rebelies mais fortes contra as diversas doutrinas do formalismo jurdico, presentes na teoria do Direito contemporneo. Reformulando certas teses do realismo jurdico americano e escan-dinavo, os desconstrutivistas responsabilizam o forma-lismo por haver oferecido uma viso deformada e de-formadora dos sistemas normativos. Em primeiro lugar, porque omite em sua anlise e investigao do Direito todos os dados histricos, culturais, polticos e sociais que estruturam o Direito. Em segundo lugar, porque ele desenha um mapa de categorias jurdicas e conceitos que, por prescindir desses dados contextuais, implicam uma distoro da realidade jurdica. Em suma, os des-construtivistas jurdicos denunciam o carter no cien-tfi co das teorias e metodologias formalistas, as quais, com o objetivo de descrever a ordem jurdica, formulam um conjunto de postulados lgicos, abstratos, puramen-te convencionais e alheios a toda a prtica efetiva dos sistemas normativos (ver Kennedy, 1973, p. 351 ss., 1976, p. 1685 ss.; Unger, 1983, p. 563 ss.).

    7 Para uma exposio geral das projees jurdicas do formalismo, ver Llano Alonso (2009, p. 15-18).8 Die Perversion von Rechtsordnungen o ttulo de um relevante livro de Fritz von Hippel (1955) em que se analisam as funestas consequncias do nazismo na experincia jurdica alem.9 Em relao aos juzes legisladores, ver Bachof (1977, p. 177 ss.) e Cappelletti (1984).10 Ver, em relao a essas ideias de Hberle, meu trabalho El Derecho Constitucional Comn Europeo en la concepcin de Peter Hberle (Prez Luo, 2009c, p. 489 ss.).

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    O Tribunal Constitucional espanhol tambm tem mostrado a sua hostilidade ao formalismo. Na sua jurisprudncia, encontram-se afi rmaes to contun-dentes como esta: as normas que contm requisitos formais tm de ser aplicadas tendo sempre presente o fi m perseguido ao estabelecer certos requisitos, evitan-do qualquer excesso formalista (STC 17/1985, de 9 de fevereiro, FJ 2); tambm visa evitar uma manipulao puramente formal sobre a admissibilidade do amparo (STC 6/81 de 14 de julho, FJ 1). Em relao natureza do amparo, o TC o defi niu como um recurso conce-bido em termos pouco formalistas (STC 28/1982, de 26 de maio, FJ 1); geralmente se refere a um rigor for-malista contrrio jurisprudncia desta Corte (STC 81/1983, de 10 de outubro, FJ 1).

    Entretanto, essas atitudes antiformalistas se de-frontaram nos ltimos anos com a tendncia de proce-dimentalismo. No se deve esquecer que, em relevante obra coletiva, Critical Legal Thought, que vem a ser, para os anos 90, o que na dcada de 70 representou o Con-gresso de Catnia sobre o Uso Alternativo do Direito, Rudolf Wiethlter defi niu a tarefa a ser realizada nos anos prximos pela teoria crtica do direito como a procedimentalizao de categorias jurdicas (Wiethl-ter, 1989, p. 501 ss., 1986, p. 221 ss.; cf. Martin et al., 1989, p. 244 ss.). Essa tarefa foi realizada, na prpria obra, por Erhard Denninger, num esforo para garantir o proce-dimento atravs de um equilbrio de posies entre os membros da sociedade democrtica, nas relaes entre particulares e entre estes e os poderes pblicos. Esse status activus processualis, que completaria a teoria dos status elaborada por Jellinek, constitui um fator-chave dos Estados de Direito para assegurar o exerccio pleno de todas as liberdades. Tal status processual se concebe como o reconhecimento de cada pessoa de participar ativamente e assumir sua prpria responsabilidade nos procedimentos que a afetam, assim como nas estruturas organizativas. No plano das fontes do Direito, em par-ticular as que afetam o estatuto dos direitos fundamen-tais, deve-se acolher formas de participao dinmicas e ativas por parte dos interessados nos procedimentos que tendem formao de atos jurdicos (Denninger, 1989, p. 461 ss.).

    Ecoando essa preocupao, que no tem razes para sugerir uma recada no formalismo, o Tribunal Constitucional espanhol reconheceu que: Para a orde-nao adequada do processo existem imposies, for-mas e requisitos processuais que, por afetar a ordem pblica, so de necessria observncia por sua racio-

    nalidade e efi ccia, mas sem que isso acarrete aceitar a validade de obstculos processuais que sejam pro-dutos de um desnecessrio formulismo e que no se coadunam com o direito justia (STC, 95/1983, de 14 de novembro, FJ 5; vide tambm em sentido anlogo as SSTC, 3/1983, de 25 de janeiro, FJ 1; 19/1983, de 14 maro, FJ 4; 65/1983, de 21 de julho, FJ 4).

    Sob o signo de Oknos: processos construtivos e desconstrutivos da lei

    Deve-se ao historiador do Direito suo Johann Jakob Bachofen o estudo da simbologia das escritu-ras funerrias da antiguidade clssica. Das suas inves-tigaes, ganhou notoriedade a referente ao mito de Oknos. Trata-se da representao de um ancio que tece uma corda enquanto do outro lado um asno a morde e a devora. A imagem deste mito, alm da di-versidade de suas interpretaes, parece simbolizar o eterno confl ito entre os esforos para tranar, tecer e moldar a realidade e as foras destrutivas e anuladoras da criao. Trata-se do confl ito interno permanente que o potencial humano teve como objetivo fazer e desfazer e, fi nalmente, construir ou desconstruir.11

    Estas tendncias construtivas e desconstrutivis-tas que marcam a evoluo da cultura foram conside-radas por Norberto Bobbio um constante ciclo expli-cativo dos sucessivos perodos de formao e crise da fi losofi a. Sob seu lcido esquema fi losfi co explicativo, a partir do horizonte intelectual do nosso tempo, tal evoluo tem sido traduzida na apario de diversas di-rees fi losfi cas. Esses movimentos e escolas tm se sucedido de modo incessante, seguindo o gosto efme-ro e passageiro de modas culturais, mas sem que nenhu-ma delas tenha logrado se impor como dominante. Seria errado, no entanto, acreditar que este fenmeno seja privativo do presente. Bobbio sugeriu que a sucesso de etapas criativas e de crises algo inerente ao prprio surgimento do pensamento fi losfi co. Assim, entende que h um desenvolvimento cclico do pensamento fi lo-sfi co que se refl ete em trs etapas bsicas: (i) posio crtica; (ii) posio metafsica; e (iii) posio agnstica (Bo-bbio, 1949, p. 15-16). A primeira fase caracterizada pela anlise e pela proposta de critrios metodolgicos; a segunda pela elaborao de grandes sistemas; enquanto a terceira envolveria o questionamento e a construo de solues sistemticas. O predomnio do trabalho de fundamentao e construo prprio das primeiras

    11 Ver, sobre tudo isso, Ortega y Gasset (1983, pp. 593 ss.). No plano literrio adquiriu merecida celebridade a remisso a este mito por parte de Luis Cernuda (1977).

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    etapas se v contrariado pela subsequente e inevitvel etapa agnstica da desconstruo.

    Ao longo das refl exes anteriores, tivemos a oportunidade de fazer referncia a distintos fenmenos desconstrutivos que caracterizam a situao atual da lei como fonte do Direito. A literatura jurdica com essa funo, de diferentes enfoques dessas circunstncias desconstrutivas que contextualizam hoje o signifi cado da lei torna-se til, pois refl etem o status quaestionis das fontes de Direito no presente. No entanto, reconhecer o fenmeno no signifi ca ter que trat-lo como ideal.

    Convm advertir que estes fenmenos descons-trutivos de deslegalizao, de hipostenia ou debilidade no garantem, em si mesmos, um Direito melhor para os cidados. No considero, portanto, que existam mo-tivos para se aderir complacncia com que, a partir de alguns enfoques doutrinrios, se sadam as manifesta-es da legalidade porosa (que seria melhor qualifi car de vaporosa), ou de uma normatividade difusa (eu-femismo que encobre, muitas vezes, uma normatividade confusa).

    No que diz respeito tenso entre as abordagens antiformalistas e procedimentais da legislao, entendo que uma postura mediadora seja desejvel. Cabe pedir aos atuais empenhos tericos e prticos sobre a signifi ca-o das fontes de Direito um esforo de mediao entre um antiformalismo, corolrio do desejo de argumentar e decidir em termos de justia material, e um procedimen-talismo entendido como respeito s garantias proces-suais que so inerentes ao Estado de Direito. Devemos recordar, alm disso, que as mais recentes e estimulantes reivindicaes de procedimentalismo no pretendem retornar aos velhos postulados formalistas, sem garantir por via de procedimento a imparcialidade e a simetria de posies da participao intersubjetiva na consecuo dos grandes valores ticos, jurdicos e polticos.

    Entendo, em suma, que aceitar sem cautelas a cri-se da lei para substitu-la por uma pluralidade de fontes vaporosas e confusas no representa um avano no de-senvolvimento da experincia jurdica. Especiais reservas suscitam aquelas doutrinas que, amparadas num radical antiformalismo e na desconstruo da lei, propugnam politizar a aplicao do Direito. Infundem alarme com as teses que denunciam que as condies atuais em que se desenvolve o trabalho dos tribunais, assolados por mil instncias sociais, polticas e econmicas que os pressio-nam para a obteno de suas demandas e pretenses, determinam que a discusso terica e a prpria argu-mentao dos juzes sobre a legislao aplicvel vai por um lado e a realidade por outro. Esta imagem pode evo-car a fbula de um dos nossos clssicos literrios do fi -

    nal do sculo XVIII, Francisco Gregorio de Salas. Refi ro-me sua poesia satrica sobre a astcia de um soldado que, exausto e faminto, chega a um local onde lhe negam alimentos pela sua falta de recursos. Ento, fi nge olhar com ateno umas pedras que esto num crrego pr-ximo pousada em que se encontra e as pede, pois h muitas. A dona da casa, curiosa, pergunta o motivo e ele afi rma que sabe fazer um timo ensopado de pedras. Ela duvida, mas proporciona os ingredientes que ele solicita: carne, ovos, azeite, etc. Em seguida, ele comea a comer vorazmente estes mantimentos ao lado as pedras. Em seguida, a dona da casa pergunta intrigada:

    Por que voc deixou as pedras?E ele respondeu com graa:So deixadas de lado, j que os outros condimentos deram a substncia (Salas, 1953, p. 535-536).

    Hoje, muitos juristas pensam que as teorias mais sofi sticadas que pretendem dar conta do sentido da lei se movem num plano terico e de abstrao. A partir des-sas premissas, alega-se que, em numerosas ocasies, os argumentos judiciais mais elaborados e longos so, como na fbula de Salas, pedras que se escondem no decisio-nismo judicial e so abandonadas depois de terem dado a substncia; isto , depois de terem servido de tela para esconder atos de vontade poltica. Estas queixas relati-vas a casos em que os juzes argumentam a partir do resultado, ou seja, na tentativa de revestir com remis-ses a legalidade do que decidiram, a partir de um prin-cpio, como falha de processo, no so gratuitas. Porm, no modo como se formam, correspondem a verdades parciais e contradizem fatos notrios. Pois a existncia de abusos deve ser considerada excepcional frente ao que corresponde atitude majoritria do Judicirio, que realiza um exerccio de racionalidade prtica visando deciso formal e materialmente correta. Este raciocnio orientado e controlado pelo conjunto de fontes norma-tivas que integram os sistemas jurdicos dos Estados de Direito (ver Prez Luo, 2009a, p. 151ss., 2010a, p. 73 ss.).

    Estamos assistindo, defi nitivamente, a um assalto teoria tradicional da legislao, na medida em que esta teoria era parte do arsenal de meios de segurana ju-rdica prpria dos Estados de Direito. A transformao dos valores e dos pressupostos sociais e polticos que serviram de contexto ao Estado de Direito e motivaram suas sucessivas triagens no podia deixar de se manifes-tar num de seus mecanismos jurdicos bsicos. Portanto, o Estado de Direito, que uma das grandes conquistas da modernidade, encontra-se comprometido com uma cultura como a nossa qualifi cada de ps-moderna. Con-

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    forme indicado no incio dessas refl exes, o assdio modernidade o termo que se destina ao fenmeno do relativismo cultural e ao auge dos particularismos antiuniversalistas prprios da fase histrica atual (Sebre-li, 1992). Uma vez que os ideais de modernidade, que formaram a base da legislao dos Estados de Direito, foram os valores ilustrados da razo, da liberdade, da igualdade e da fraternidade universal, devemos estar cientes de que a negao ps-moderna da tradio ilus-trada compreende um abandono dos valores que per-manecem bsicos. Habermas tem razo quando afi rma que a modernidade um projeto inacabado, e, em vez de abandonar o projeto como uma causa perdida, deve-mos aprender com os erros desses programas extrava-gantes que tentaram ou tentam negar a modernidade.12 Alguns erros em relao ao problema atual da lei tentei mostrar nas refl exes anteriores, e elas aconselham a optar por um programa de reabilitao de legislao, de acordo com as exigncias das mudanas jurdicas no presente, em vez de renunciar s pressas ao papel que as leis tm desempenhado e ainda cabe a elas como garantia cidad nas sociedades democrticas.

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    12 Habermas (1988, p. 279 ss.). Ver tambm Habermas (1989). Sobre as repercusses jurdicas da ps-modernidade, ver sua obra Faktizitt und Geltung (Habermas, 1992, p. 256 ss.).

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    Submetido: 01/06/2014Aceito: 20/06/2014