A Descrição Do Fenômeno Moral Em Schopenhauer e Tughendat

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  ethic@,  Florianópolis, v .3, n.2, p.163-176, Dez 2004. A DESCRIÇÃO DO FENÔMENO MORAL EM SCHOPENHAUER E TUGENDHAT LEO AFONSO ST AUDT Universidade Federal de Santa Catarina R esum o O artigo, na primeira parte, apresenta os pontos de convergência e divergência entre as concepções de moral de Arthur Schopenhaue r (1788-1860) e de Er nst T ugendhat (1930- ). A segunda parte consiste na análise da apresentação que Tugendhat faz, em Lições sobre ética, do que denomina de ética da compaixão de Schopenhauer. Aqui, o trabalho busca contrapor à crítica de Tugendhat o sentido do sentimento de compaixão em Schopenhauer como modo de apreender, de forma imediata, a unidade do ser que se encontra na pluralidade dos eus. Com isso, é possível uma aproximação da concepção do sentido da ação moral em Schopenhauer com o escrito de Tugendhat sobre a origem antropológica da religião e da mística. Palavras-chave:  Ética, Contratualismo moral, c ompaixão, m ística . 1 - As concepções de moral de A. Schope nhauer e E. Tugendhat. A aproximação de Tugendhat e Schopenhauer quanto à concepção de moral, em primeiro lugar, pode ser feita pela recusa de ambos da fundamentação tradicional, teológico-aut oritári a, da moral. Ernst Tugendhat, nas suas valiosas Liçõ es sob re ética , aponta como uma das razões do interes- se atual pela ética, e que remonta aos séculos XVIII e XIX, “a desorientação ética que resulta do declínio da fundamentação religiosa” 1 . Schopenhauer considera obra da filosofia kantiana a elimi nação do teísmo da filosofia, e justamente condena na ética kantiana os resquícios da moral teológica 2 . Desta forma, mesmo que alguns temas abordados pelos dois filósofos sejam comuns a tr adições religiosas e místicas, a posição filosófica de ambos se mantém independent e do teísmo e da teologia. O segundo ponto de aproximação é a divergência em relação ao fundamento kantiano da moral. Ambos querem interpretá-lo e corrigí- lo. Divergem de Kant quanto ao fundamento exclusiva- mente racional da moral e introduzem os afetos (sentimentos) na explicação do fenômeno e do funda- mento da moral. Schopenhauer critica o formal ismo do fundamento kantiano da ética 3 . Para Kant o princípio moral deve ser puro a priori e puramente formal e, pois, uma proposição sintética a priori, não tendo, por isso mesmo, nenhum conteúdo material e não podendo apoiar-se em nada empírico, isto é, nem em algo objetivo do mundo exterior nem em algo subjetivo na consciência, seja algum sentimento, inclinação ou impulso 4 . Desse modo, o imperativo categórico da razão prática é introduzido por Kant de um modo formal, por vias apriorísticas, por meio de uma dedução a partir de conceitos, sem qualquer conteúdo empírico. O imperativo categórico aparece como  resultado de um processo de pensamento. Ao abandonar t udo o que é empírico, tanto do ponto de vista objetivo, quanto subjetivo, só lhe resta a forma, como matéri a,

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  • ethic@, Florianpolis, v.3, n.2, p.163-176, Dez 2004.

    A DESCRIO DO FENMENO MORAL EMSCHOPENHAUER E TUGENDHAT

    LEO AFONSO STAUDTUniversidade Federal de Santa Catarina

    Resumo

    O artigo, na primeira parte, apresenta os pontos de convergncia e divergncia entre as concepesde moral de Arthur Schopenhauer (1788-1860) e de Ernst Tugendhat (1930- ). A segunda parteconsiste na anlise da apresentao que Tugendhat faz, em Lies sobre tica, do que denominade tica da compaixo de Schopenhauer. Aqui, o trabalho busca contrapor crtica de Tugendhato sentido do sentimento de compaixo em Schopenhauer como modo de apreender, de formaimediata, a unidade do ser que se encontra na pluralidade dos eus. Com isso, possvel umaaproximao da concepo do sentido da ao moral em Schopenhauer com o escrito deTugendhat sobre a origem antropolgica da religio e da mstica.Palavras-chave: tica, Contratualismo moral, compaixo, mstica.

    1 - As concepes de moral de A. Schopenhauer e E. Tugendhat.

    A aproximao de Tugendhat e Schopenhauer quanto concepo de moral, em primeirolugar, pode ser feita pela recusa de ambos da fundamentao tradicional, teolgico-autoritria, damoral. Ernst Tugendhat, nas suas valiosas Lies sobre tica, aponta como uma das razes do interes-se atual pela tica, e que remonta aos sculos XVIII e XIX, a desorientao tica que resulta dodeclnio da fundamentao religiosa1. Schopenhauer considera obra da filosofia kantiana a eliminaodo tesmo da filosofia, e justamente condena na tica kantiana os resqucios da moral teolgica2. Destaforma, mesmo que alguns temas abordados pelos dois filsofos sejam comuns a tradies religiosas emsticas, a posio filosfica de ambos se mantm independente do tesmo e da teologia.

    O segundo ponto de aproximao a divergncia em relao ao fundamento kantiano damoral. Ambos querem interpret-lo e corrig-lo. Divergem de Kant quanto ao fundamento exclusiva-mente racional da moral e introduzem os afetos (sentimentos) na explicao do fenmeno e do funda-mento da moral. Schopenhauer critica o formalismo do fundamento kantiano da tica3. Para Kant

    o princpio moral deve ser puro a priori e puramente formal e, pois, uma proposio sintticaa priori, no tendo, por isso mesmo, nenhum contedo material e no podendo apoiar-se emnada emprico, isto , nem em algo objetivo do mundo exterior nem em algo subjetivo naconscincia, seja algum sentimento, inclinao ou impulso4.

    Desse modo, o imperativo categrico da razo prtica introduzido por Kant de um modo formal, porvias apriorsticas, por meio de uma deduo a partir de conceitos, sem qualquer contedo emprico. Oimperativo categrico aparece como resultado de um processo de pensamento. Ao abandonar tudo oque emprico, tanto do ponto de vista objetivo, quanto subjetivo, s lhe resta a forma, como matria,

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    para fundamentar a lei moral, e esta forma a sua legalidade. A legalidade consiste na sua universali-dade, em valer para todos. assim expresso: Age apenas de acordo com a mxima que possas aomesmo tempo querer que ela se torne a lei geral para todo ser racional.

    Tugendhat considera que Kant, ao excluir qualquer tentativa de fundamentao a partir debaixo, isto , pelas conseqncias empricas, o sentido de fundamentao no proporciona mais oque precisa.

    Kant pensou poder solucionar o problema como o ovo de Colombo, ao propor fundamentaro juzo moral em uma premissa que simplesmente representa a prpria idia do estar funda-mentado, a razo. Seria possvel resumir sua idia do seguinte modo, caso sejamos racionaisde um modo geral, ento deveramos reconhecer a validade dos juzos morais, respectiva-mente, daqueles juzos morais que Kant considera corretos. Veremos que esta idia, quetambm representada atualmente e um uma forma modificada pela tica do discurso, emverdade genial, mas um equvoco. Da idia do estar fundamentado enquanto tal, caso sepossa imaginar algo por isto, no pode derivar nada de contedo. Alm disto, tambmveremos que igualmente absurda no apenas a idia de um estar fundamentado de cima,no mais condicionado, mas tambm a idia de que o dever ou o ter-de moral possua umsentido no condicionado, que pesaria sobre ns de alguma forma absoluta, como uma vozsecularizada de Deus e a idia de Kant de uma razo no relativa conduz aproximadamentea isto no possvel.5

    Mas as semelhanas param a. A crtica de Schopenhauer moral kantiana rejeita toda moralde dever. A partir da dupla considerao do mundo, como representao e como vontade, no esta-belece relao entre agir racional e agir moral e apresenta a ao humana de valor moral como aquelaisenta de toda motivao egosta, isto , fora do plano da representao regido pelo princpio darazo. Do seu ponto de vista, a razo no pode determinar a vontade porque esta anterior razo.A faculdade racional, subordinada aos interesses da vontade, est a servio do egosmo. Este umpressuposto da metafsica da vontade de Schopenhauer. Quanto ao conceito de razo, diz que recorreao entendimento que dela se tem em todas as pocas e lnguas, ou seja, como faculdade de represen-taes gerais, abstratas e no intuitivas, chamadas conceitos. Embora esta seja a faculdade distintivado ser humano, e se chame de racional o homem que age de maneira refletida, conseqente e cautelo-samente, isto no implica retido e caridade.

    Pode-se pelo contrrio agir muito racionalmente, portanto refletida, prudente, conseqente,planejada e metodicamente, seguindo todavia as mximas as mais egostas, injustas e mes-mo perversas. Por isso que, antes de Kant, jamais ocorreu a algum identificar o comporta-mento justo, virtuoso e nobre com o comportamento racional6.

    Schopenhauer quer mostrar tambm que existe uma base emprica para a razo prtica. Asmximas kantianas, pelas quais eu posso querer que todos ajam segundo elas, tm no prprio egosmoo regulativo para determinar o que posso e o que no posso querer. Mostra, sobretudo com o exem-plo kantiano da ajuda ao necessitado, do ponto de vista ativo e passivo, de que o egosmo no esterradicado da tica kantiana. A formulao do imperativo no desinteressada, pois do mesmo modo

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    que agora parte ativa, poderia ser parte passiva amanh em condies idnticas e o que o seuinteresse agora quer como ao feita com outro, este mesmo interesse pode no querer depois comoalgo a padecer por ao de outro. apenas uma nova verso da antiga mxima moral egosta: Nofaas aos outros o que no queres que te faam. Desta forma, considera o imperativo categrico umprincpio de reciprocidade e de que convm ao egosmo que se transforme num compromisso (dever)moral7. Para Schopenhauer, a ordem moral no pertence ao fenmeno, nem procede de Deus ou darazo. A separao entre tica e egosmo est contido na expresso: se o mundo fosse s representa-o no existiria a tica. Ele pensou radicalmente uma possibilidade de uma tica livre de todo egos-mo. Este modo de viver que chama de tica pode apenas ser mostrado com exemplos, que localizadesde as mais antigas tradies da humanidade. Com mostrar ele entende a anlise de experinciasconcretas para exemplificar o modo imediato de intuir a vida, e a sua prioridade sobre o meramenteconceitual, racional e abstrato. O sentido moral se revela por si mesmo, direto e imediato, nasce docarter imutvel. E o modo de vida que mais se aproxima do tico a vida asctica. Como situa a ticano mbito da vontade, no se pode teorizar sobre ela. Por sua conotao mstica, indizvel. Por isto,o ascetismo, com a vida dos msticos e santos caracterizada pela mortificao da vontade, deve serentendido como uma ilustrao para o que entende por negao da vontade.

    Para Tugendhat, uma moral se define como o conjunto de juzos morais de que algum ou umgrupo dispe8. Dos diversos usos da palavra moral, pretende ficar mais perto do que considera ser oentendimento comum, de acordo com o qual moral apenas aquilo que tenha um carter de obriga-o9. Este conceito de moral tem uma origem sociolgica e a pessoa moral tambm definida pelasua condio de indivduo social, e no de simples situao de indivduo isolado.

    Tugendhat, ao ter os juzos morais como o elemento central do conceito de moral, tem nadeterminao normativa o fim da moral e a sua justificao, diante das outras normas sociais, devecontemplar a validade universal e imparcial e englobar tambm um conceito de bem ou de boa pessoa.Ao contrrio de Kant, para Tugendhat, na justificao dos juzos morais esto imbricados os elemen-tos racional e emocional. Ele reconhece que a moral, como obrigao, tem como base o ato davontade de querer. Com isto ele abandona o ideal de uma fundamentao absoluta. Considera insufi-ciente e julga que tambm no funciona a perspectiva kantiana da derivao do imperativo categricoda razo prtica. A perspectiva racional de fundar os juzos morais num exigir mtuo de respeitouniversal e imparcial dos interesses de todos, de comportar-se a partir da perspectiva de qualquer um,tem que estar acompanhada do sentimento, que tem a funo de fazer valer os juzos morais para mim,de querer ou no querer ser moral, de aceitar ou no fazer parte de uma comunidade moral. A sanopara o no cumprimento da norma moral tambm est no plano do sentimento: indignao e vergonha.Com esta idia de sano interna, assumida em base de um conceito geral de ser-bom, torna possvel,para Tugendhat, uma tica do dever independente de sanes externas, como, por exemplo, de re-compensa e punio da moral religiosa. Em suma, a moral faz parte da autocompreenso do homemcomo membro de uma comunidade10. O indivduo, como membro de uma comunidade moral, livre-

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    mente escolhe uma concepo de moral. Esta a base da fundamentao moderna da moral emTugendhat, diferente da fundamentao tradicional baseada na autoridade e mais eficaz que o puroformalismo kantiano.

    Habermas chama ateno que Tugendhat no quer substituir o jogo moral da linguagem comotal, mas apenas a base religiosa de sua validao11. Habermas, no captulo I do livro A incluso dooutro, analisa as concepes de moral de Tugendhat e as inclui nas teorias empricas. O caractersticodo empirismo moral s levar em considerao as razes pragmticas e entender a razo prticacomo sendo razo instrumental. O especfico de Tugendhat est em buscar uma linha contratualista dereconstruo da convivncia justa. Habermas apresenta e justifica algumas objees s idias deTugendhat. A primeira, que uma teoria normativa de moral no pode ser justificada base de senti-mentos (simpatia, confiana), prpria da psicologia moral. No resolve, por exemplo, a questo darelao de sentimentos para com estranhos. O contratualismo moral, continua Habermas, tambm no apropriado para fundamentar uma moral universalista, de respeito igual para com todos. Nesteponto, ele critica a idia de sano interna pela infrao das normas em lugar das sanes impostas defora, presente na concepo de Tugendhat.

    Esta tentativa de explicao fracassa, porm, prima facie, devido dificuldade de explicarracionalmente os sentimentos de autopunio. No pode haver um motivo racional paraquerer ter sanes internas. Mesmo a partir de motivos conceituais, no pode ser racionalpara mim levar a srio, sem question-lo, um peso na conscincia e torn-lo simultaneamen-te objeto de uma reflexo prtica, ou seja, question-lo. Na medida em que agimos moralmen-te, o fazemos porque achamos que isto certo ou bom, e no, por exemplo, porque queremosevitar sanes internas12.

    certo que, para Tugendhat, os sentimentos morais tem a funo, do ponto de vista subjetivo dosmembros cooperativos de uma comunidade moral, de assegurar a observncia das normas. Alm domais, para ele a manifestao dos sentimentos morais pressupe a conscincia das regras morais, isto, cada participante sabe o que bom e mau em cada caso. Tambm no abre mo da autonomia, isto, da capacidade de agir orientado por regras. Ento o sentimento de culpa e vergonha advm daconscincia da pessoa de no ser bom parceiro ou membro cooperativo de um grupo social.

    Neste sentido, podemos dizer que aquilo que Tugendhat entende por pessoa moral se aproxi-ma daquilo que Schopenhauer entende por pessoa de honra. Mas, ao mesmo tempo que identificamosesta relao, a exposio de Schopenhauer sobre o sentimento de honra marca tambm as diferenas.Para Schopenhauer, a origem da honra reside na opinio dos outros sobre o nosso valor13. Relacio-na o sentimento de vergonha com a falta de honra, ou a honra perdida. A honra negativa, isto , estpresente no indivduo quando no lhe faltam as qualidades que se pressupe que deva ter. As qualida-des da honra so aquelas que so exigidas de todos os que se encontram nas mesmas condies, outambm, as qualidades que todos podem atribuir a si mesmos publicamente14. Vergonha, pelo con-trrio, o sentimento da falta dessas qualidades. Com esta concepo, o sentimento de vergonha no tido como uma sano interna, mas tem justamente sua origem na opinio dos outros sobre nosso

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    valor e no temor dessa opinio.No homem de honra, Schopenhauer reconhece um valor, mas este no puramente moral,

    pois se baseia mais no que representa do que naquilo que o indivduo , e no sentimento de honratambm encontra resqucios de motivao egosta. Em ltima instncia, sempre repousa em considera-o de utilidade.

    A raiz e a origem dos sentimentos de honra e vergonha, inerentes a todo homem que no totalmente corrompido, e o supremo valor atribudo ao primeiro reside no que vem aseguir. O homem, por si s, consegue muito pouco e um Robinson abandonado:apenas em comunidade com os outros ele e consegue muito. Ele se d conta de talsituao a partir do momento em que sua conscincia comea, de algum modo, a sedesenvolver, e logo que nasce nele a aspirao por ser considerado um membro til dasociedade, algum capaz de cooperar pro parte virili [como homem pleno] e, por conse-guinte, tendo os direitos de participar das vantagens da comunidade humana. Ele oconsegue realizando, em primeiro lugar, aquilo que se exige e espera em geral de cadaum, depois realizando aquilo que se exige e espera dele na posio especial que ocupa.Mas logo ele reconhece que, nesse caso, o importante no o que ele representa na suaprpria opinio, mas na opinio dos outros. Por conseguinte, tal a origem da suaaspirao zelosa pela opinio favorvel de outrem, e assim tambm surge o valor supre-mo nela depositado. Esses dois elementos aparecem na espontaneidade de um senti-mento inato, chamado sentimento de honra e, de acordo com as circunstncias, senti-mento de pudor (verecundia). este que ruboriza as suas faces quando acredita tersubitamente perdido na opinio dos outros, mesmo sabendo-se inocente15.

    Dos diversos gneros de honra, originadas dos diversos tipos de relaes entre os indiv-duos, destacamos a chamada honra burguesa (civil), ela consiste na pressuposio de que ob-servamos de modo incondicionado os direitos de cada um e, por conseguinte, jamais nos servire-mos de meios injustos ou ilcitos com vistas nossa vantagem16. A concepo de moral que MaxHorkheimer concebia como uma categoria burguesa e que considerava que tinha sua melhorexpresso no imperativo categrico pode ser relacionada com o sentido de honra burguesa acimareferido. Pressupe uma sociedade de indivduos isolados, e no consegue sua plena realizaode entrelaamento dos interesses particulares com as necessidades da comunidade nas condiesda sociedade burguesa17. Tugendhat, ao conceber a moral como um sistema de obrigaesintersubjetivas18, incorpora o sentido da moral como categoria burguesa. Em Schopenhauer, notemos uma moral de obrigaes, de normas. Por isso lhe alheia a fundamentao da moral nareciprocidade. A moral no est no que cada um representa ou faz, mas naquilo que ele . Nestesentido, o sentimento, que imediato, reflete o carter, e anterior conscincia. O plano darelao com os outros o campo da poltica, da representao. A as relaes esto submetidasao princpio da razo e a linguagem exerce grande influncia. A separao entre os campos damoral e da poltica tambm a resposta da questo de Tugendhat de que Schopenhauer no viuo entrelaamento entre compaixo e moral contratualista19. A idia de contrato s tem lugar,para Schopenhauer, na teoria poltica20.

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    2 - Contratualismo moral, compaixo e mstica.

    Tugendhat se afasta da oposio entre ao com valor moral e egosmo, quando em Comodevemos entender a moral (In.: Tugendhat, 2002, p. 25-50 apresenta o contratualismo, que emLies sobre tica era descrito como lack of moral sense, como uma justificao vlida de moral, oua mais plausvel entre as diversas concepes de moral21. No contratualismo, uma moral consiste emum sistema de exigncias recprocas22. A justificao s feita pela vontade dos indivduos envolvi-dos. A autonomia no mais do indivduo, mas uma autonomia recproca em que cada um d vontade de todos os outros um peso to grande quanto d a sua prpria23. Esta a forma noautoritria, mas recproca, de justificao de sistemas morais.

    A reciprocidade, por sua vez, tambm a base do conceito de bom, e este por sua vezcontempla j um conceito de justia. Quem age de acordo com o sistema normativo consideradobom pelos outros24. Ou numa outra formulao que expressa melhor a idia de uma justificaorecproca e igualitria: bom o que bom em igual medida para todos25.

    A pergunta que permanece na exposio de Tugendhat, e que Schopenhauer responde com ateoria do carter inteligvel e o mistrio da compaixo, sobre o que faz os indivduos abandonar onatural egosmo em favor do altrusmo normativo? O altrusmo espontneo, no qual inclui a compaixo,tem lugar nesta justificao da moral a partir do contratualismo? Tugendhat responde que o contratualismobem compreendido no contesta que reduz a moral e o altrusmo ao egosmo (no pr-moral, mas umegosmo elevado), mas acrescenta que o altrusmo espontneo rompe os limites do contratual e donormativo, e que possvel integr-lo, e at pode ajudar a fortalecer, no contratualismo simtrico.

    H um altrusmo no normativo com respeito s pessoas com as quais ns nos identificamossentimentalmente. Sejam elas pessoas prximas ou mesmo todos os homens e at os seressensveis, mas esse no um altrusmo moral, se entendemos a moral como um sistema demtuas exigncias. No se pode entender o altrusmo, que uma exigncia moral, como umalargamento da simpatia. Que um altrusmo normativamente exigido, se ele deve ser entendi-do como autnomo, tenha de ser fundado no egosmo, no exclui a existncia de altrusmosespontneos. Segundo a posio contratualista corretamente entendida, uma moral compre-endida autonomamente somente pode ser colocada em marcha egoisticamente, mas isso noapenas no exclui os altrusmos espontneos, como precisa conduzir a que esses altrusmossejam includos na moral mediante alta valorizao social26.

    Neste ponto, ficam expostos os princpios, o conceito de bem e o carter normativo, a partirdos quais Tugendhat apresenta a concepo de tica em Schopenhauer. Antecipa na quarta lio, dassuas Lies de tica, o que objeto da nona lio:

    [...] um sentimento natural apenas alcana exatamente at onde ele alcana; em alguns, ele mais forte e desenvolvido de modo mais geral; em outros so os sentimentos opostos deprazer na crueldade e de satisfao no mal alheio que so mais desenvolvidos. E se a gentequisesse estabelecer uma ordem, que a compaixo dever ser referida a todos os seres humanosque sofrem, ou tambm a todos os animais, ento este dever no poder ser extrado do prprio

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    sentimento. De modo algum pode-se esclarecer o carter de obrigao da moral o ter de a partir de um sentimento natural. Significativamente neste conceito nem sequer ocorre oconceito de bem. Portanto, a afirmao que aqui est fundada uma moral precisa ser recusa-da27.

    A sua abordagem da tica de Schopenhauer fica restrita ao que denomina tica da compai-xo e centraliza a anlise na relao entre razo e sentimento como motivao e fundamentao damoral. Tugendhat, que dedica especial importncia aos sentimentos morais na sua concepo de tica,na sua abordagem da compaixo em Schopenhauer apresenta uma concepo desta categoria datica unicamente no mbito da representao, como motivao, e da afirmao da vontade e conclui asua crtica de que a perspectiva da moral da compaixo no apenas no fundamentao plausvel demoral, mas nem uma concepo moral. A razo que apresenta que nela no se encontra umaconcepo de bem e a sua perspectiva emprica, parte de uma emoo (Affekt) natural, no permitea necessria universalizao. Desta forma, Tugendhat julga a concepo de moral de Schopenhauer apartir de uma perspectiva da tica normativa, justamente objeto da crtica do primeiro. Realmente osfenmenos a partir dos quais descreve a negao da vontade (vida dos santos, dos ascetas) no falamdo justo e do bem, mas da renncia ao mundo e aos prazeres. Schopenhauer tambm no teve apretenso de exigir o sentimento de compaixo de todos os seres humanos. Pelo contrrio, considerao egosmo a atitude natural da vontade manifestada no indivduo. Neste sentido, no um procedimen-to de Schopenhauer tentar extrair uma obrigao moral universal do sentimento de compaixo. Amoral no procede da filosofia, muito menos da sua prpria doutrina. No h prescries, mas simplesexposio e explicao do fenmeno tico da natureza humana. Este o sentido emprico da moralque ele ressalta em O fundamento da moral, para contrapor ao formalismo da concepo kantianada moral. Schopenhauer no diz que cada um deve suspender todo querer, se abster de todos osprazeres ou abraar voluntariamente a pobreza e a castidade. Alm do mais, Tugendhat reduz a moralem Schopenhauer a um desinteressado altrusmo. Com a caracterizao de altrusmo ele aproxima acompaixo com o simples sentimento humanista com os que sofrem. Caracteriza a compaixo a partirde um exemplo de Schopenhauer do pargrafo 19 de O fundamento da moral e desconsidera total-mente a dimenso metafsica, a dupla considerao do mundo, o mundo como representao e omundo como vontade. A estrutura do escrito O fundamento da moral e a crtica moral kantiana quenele predomina na primeira parte condicionam o julgamento de Tugendhat da tica de Schopenhauer.Na realidade, para Schopenhauer, no o emprico que justifica o metafsico, mas o objeto da filosofia o metafsico e os exemplos da histria so apenas ilustrativos. A compaixo no uma exignciamoral, mas o nome da experincia (conhecimento intuitivo) de que todas as coisas fora de mim sotambm vontade e sofrem dores como eu sofro. Atravs do sentimento da compaixo o indivduodeixa de estar submetido ao princpio de individuao, o vu de Maya. O conceito de sentimento nose refere s aos afetos, mas engloba todos os movimentos de nosso interior, e os movimentos interio-res so, para Schopenhauer, estados da vontade. E do sentir, ao contrrio do pensar, s se consci-ente intuitivamente. O sentimento ope-se naturalmente ao saber: o conceito que designa a palavra

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    sentimento tem um contedo absolutamente negativo. Ele quer dizer simplesmente que existe qualquercoisa atualmente presente na conscincia que no um conceito, nem uma noo abstrata da ra-zo28. O sofrimento que desperta o sentimento da compaixo, de forma intuitiva e imediata, osofrimento como essncia da vida, universal e irredutvel, que faz abandonar qualquer caminho que noleve supresso do querer. O fato que Tugendhat no aceita o pessimismo e o sentido msticoessenciais na concepo moral de Schopenhauer. Quanto ao pessimismo, para Schopenhauer, o sofri-mento da constituio metafsica do mundo, o por isto o sofrimento e o prejuzo dele decorrente nopressupem a norma moral como afirma Tugendhat29. Igualmente, a bondade e a crueldade resultamdo carter inato e inaltervel, e a idia de um ser humano compassivo no resulta da educao moral,nem a compaixo pode ser desenvolvida pela educao moral. A genuna compaixo espontnea,ela no deriva e no est sujeita a qualquer regra, sejam morais ou simplesmente pragmticas.

    Encontramos, em Tugendhat, a tentativa de fundamentar de forma no autoritria a tica nombito do inevitvel egosmo que motiva a ao humana, em que a tica no se ope, mas estprxima, teoria poltica. Desta forma, a ao humana de valor moral, alm de defender os direitosdos indivduos, promove o bem-estar da comunidade. O contraste, tanto no ponto de partida quantonos resultados, com a concepo de Schopenhauer claro. Mas podemos perguntar: possvel umamoral ao mesmo tempo individualista e igualitria? Como resolver a questo dos direitos individuaiscom o bem-estar coletivo? Podem as idias da relativizao do eu e da unidade mstica tudo um se contrapor a este dilema iluminista da moral? Ou a partir da concepo cosmolgica e antropolgica,que denomina de mstica, este dilema se dissolve, confirmando que a categoria da moral que expe selimita s condies da sociedade burguesa e a moral, empregando a terminologia schopenhaureana,tem lugar no mundo dos fenmenos?

    Tugendhat, em As razes antropolgicas da religio e da mstica (2002, p. 93-111), tematizaa origem da religio e da mstica com as frustraes (m-sorte), como busca do sentido, da unidade,portanto, enfatiza a sua raz antropolgica. A mstica um estado de conscincia de unidade comtodos os seres, com a totalidade. Tudo um. O relacionar-se a uma unidade fundamental comum atodos os sistemas msticos. O ponto mais importante a relativizao ou desaparecimento do eu. Emvez da busca da reciprocidade em meio a interesses comuns e conflitantes de indivduos isolados ousociais, na concepo mstica, o sujeito se separa do seu eu quero, o sujeito deixa de estar submetidoaos seus desejos. Assim a ao deixa de ser determinada pelos motivos, entra no vazio (nada).

    Tugendhat apresenta a concepo mstica do taosmo, porque, segundo ele, ela no est fun-dada na religiosidade como a mstica crist. Tambm prefere o taosmo por ser mais acessvel e porrejeitar o pessimismo metafsico e a idia da paz da alma como algo fora da multiplicidade da vida,conforme defende o budismo. O sbio taosta no se desprende de suas emoes, mas se relaxanelas30. A unidade fundamental no faz o sbio sair da sua condio concreta de existncia, a suavontade no se desprende de seus objetos normais mas se relaxa. A idia da unidade dos opostos, fazcom que a frase tudo um adquira o seguinte sentido: em primeiro lugar, significa que para cada

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    pessoa suas experincias positivas e negativas devem ser vistas como pertencentes umas s outras. Eisto tem como conseqncia que todos os entes no mundo so um, precisamente por terem estamesma estrutura de nascer e morrer31.

    Tugendhat tambm aponta como caracterstica do taosmo, que o distingue da mstica crist edo budismo, que o relaxamento no significa que o homem no deva ser ativo, mas que deve fazer oque tem que fazer sem exagero e empenho, e em particular sem o fazer para ganhar fama ou prest-gio32.

    Por fim, Tugendhat apresenta que a paz da alma no o retorno espontaneidade animal, mas,a partir da capacidade deliberativa, alcanar uma espcie de conscincia superior, melhor em que omais importante no mais o eu, mas abrir-se ao mundo e ver-se como uma partcula dentro dele.

    O aspecto deliberativo leva a um egosmo especfico humano que se distingue do egosmoanimal: o animal no est preocupado com seu ego. Naturalmente a idia dos taostas nopode ser entendida como uma tentativa de voltar a ser de fato como um animal ou um beb.Ao contrrio, o homem s pode acercar-se da espontaneidade animal se d outro passoreflexivo alm de sua reflexo deliberativa; na conscincia do cu e na conscincia explcitada unidade dos opostos do tao que o homem reencontra a paz de alma em que podedesfazer-se de seu emaranhamento consigo prprio. A reflexo que ocorre na deliberaotem como conseqncia que o homem se v a si como o ltimo ponto que lhe importa, comoum absoluto neste sentido; mas a mesma capacidade de reflexo que lhe permite fazer umsegundo passo atrs e relativizar-se a si prprio33.

    A apresentao da concepo da mstica por Tugendhat, embora com diferenas em relao tradio oriental abordada por Schopenhauer, espera ter deixado claro o sentido da metafsica e datica em Schopenhauer e sinalizado para as diferenas em relao s teorias ticas atuais de tradionormativa. Entendemos que Tugendhat no estabelece relao entre a sua concepo de moral com assuas abordagens da mstica crist e do taosmo, porque o conceito de moral, oriundo da etnologia, noest de acordo com a concepo do universo e da existncia da mstica crist e do taosmo. Por outrolado, a concepo tico-metafsica em Schopenhauer no se reduz a questes de juzos morais, nofaz da harmonizao entre os interesses individuais e o bem-estar geral o ncleo da tica, e com isto asua abordagem ultrapassa o mbito da sociedade moderna. No situa a tica no plano do relativismodo mundo como representao. Fundamentado na sua concepo geral do mundo e da existncia nolocaliza o sentido moral na afirmao da vida, mas na negao de todo querer viver. A compaixo amotivao moral e o caminho para a negao da vontade. No sentimento que possa fundamentar aobrigao moral, nem base para um princpio de reciprocidade, mas da unidade. Da o cartermstico da tica em Schopenhauer. Para ele a tica no est marcada pela relao com os outros, poisa salvao (Erlsung) resulta de um ato do indivduo, e diz relao ao todo, unidade. O msticoconcentra o fundamento (Urquel) nele mesmo.

    Tugendhat apresenta razes para no considerar o que identifica como a perspectivaschopenhaureana da moral da compaixo como fundamentao plausvel da moral, e, ainda mais, parano consider-la como uma concepo de moral. Por outro lado, a partir da perspectiva tico-metafsicade Schopenhauer poderamos tambm dizer do contratualismo moral de Tugendhat o que Schopenhauer

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    j dissera da moral kantiana do imperativo categrico, de que ele no atinge o sentido moral da aohumana. certo que as diferenas entre as duas concepes da moral refletem a diferena da prpriaconcepo de filosofia. Schopenhauer, com a sua metafsica, apresenta a tica a partir de uma concep-o geral da existncia e do mundo e o sentido moral da ao humana tambm o sentido moral domundo. Os escritos sobre a moral de Tugendhat parecem traduzir a preocupao do autor em apre-sentar uma resposta vlida para o problema da sociedade moderna da desorientao tica que resultado declnio da fundamentao religiosa34. com este objetivo que apresenta a moral da compaixo elogo descarta a validade de tal perspectiva para os seus propsitos. interessante notar que a suaconferncia As razes antropolgicas da religio e da mstica o aproxima das idias de Schopenhauer,e o que ali diz do homem e do mundo est to distante das suas idias sobre moral, quanto estasltimas esto da concepo de tica de Schopenhauer.

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    Notas

    1 E. Tugendhat 1997, p.14.2 Para Schopenhauer as expresses lei moral, dever incondicionado e obrigao absoluta so vazias em Kantporque foram separadas do contexto teolgico do qual receberam o seu significado original. Elas s tem sentido paraa moral teolgica. Schopenhauer estava convicto do engano de Kant e de que a forma imperativa era apenas umainverso da moral teolgica e de que as formas abstratas so apenas um disfarce. Ironicamente conclui que compa-raria Kant, naquela automistificao, com um homem que, num baile de mscaras, corteja toda a noite uma beldademascarada, na iluso de ter feito uma conquista. At que, no final, ela tira a mscara e se d a conhecer como suamulher. (SW III, p. 698 [FM, p. 81] O sentido da analogia com o baile de mscaras o de que as idias teolgicasainda continuam a influenciar Kant nos seus escritos ticos, especialmente a doutrina do imperativo categrico.3 Schopenhauer estabelece uma distino entre o princpio (ou proposio fundamental) de uma tica e o fundamen-to de uma tica. O princpio a expresso mais concisa que prescreve nas ticas de forma imperativa ou ento deacordo com a qual se reconhecem as aes de valor moral. Diz apenas o qu da virtude. O fundamento deve dizer oporqu da virtude. Reconhece que o fundamento da tica o velho problema das doutrinas morais e a sua busca difcil e, por isto, tomado como a procura da pedra filosofal. A expresso que melhor resume o princpio dosdoutrinadores morais : no faas mal a ningum, mas ajude antes a todos que puderes. O princpio sem umfundamento se pode tornar mera frmula vazia. Contra o formalismo kantiano Schopenhauer busca o fundamento datica pelo caminho emprico, investigando se h aes s quais podemos atribuir autntico valor moral. ParaSchopenhauer, em ltima instncia, o fundamento metafsico e se situa na teoria do carter inteligvel do homem.4 SW III, p. 664 [FM p.42].5 E. Tugendhat, 1997, p. 25-5.6 SW III, p. 677 [FM, p.57].7 Esta interpretao de egosmo racional do imperativo categrico que John Rawls quer evitar na sua concepo deJustia como eqidade, no mbito da filosofia moral e poltica: Schopenhauer afirmava que, ao argumentar em favordo dever de ajuda mtua em situaes de infortnio (o quarto exemplo em Grundlegung), Kant apela para aquilo queagentes racionais, enquanto seres finitos dotados de necessidades, podem coerentemente desejar que seja a leiuniversal. Em vista de nossa necessidade de amor e compaixo, ao menos em certas ocasies, no podemos desejarum mundo social em que os outros sejam sempre indiferentes a nossos apelos em tais ocasies. Em funo disso,Schopenhauer afirma que, no fundo, a viso de Kant egosta, de onde se segue que ela , afinal, apenas uma formadisfarada de heteronomia (J. Rawls 2000, p. 150).8 E. Tugendhat, p. 34.9 E. Tugendhat 2002, p. 29.10 A formao da conscincia moral resulta da vontade (deciso) de fazer parte da comunidade moral e da internalizaoda vergonha. Estabelece esta relao entre vergonha e indignao como sano para a ao contrria da exignciarecproca o ter de: na vergonha da pessoa em questo e na correlativa indignao dos outros (e mediante talcorrelao pode-se distinguir conceitualmente a vergonha moral da no-moral). Com isto se esclarece agora o quequeria dizer por sano interna. Somente sensvel determinada sano de indignao quem a internalizou navergonha. Pode-se chamar isto tambm de formao da conscincia moral (Gewissen). (E. Tugendhat 1997, p. 63).11 J. Habermas 2002, p. 35. Esta simples contraposio quanto justificao da moral, e no da moral mesma,encontramos expressa em O problema da moral, de Tugendhat. Na minha opinio, existem dois e somente doistipos de justificao recproca de normas: o religioso e o relacionado aos interesses dos membros da sociedade. Oprimeiro pode ser denominado de justificao vertical (ou autoritria), e o segundo de justificao horizontal. (E.Tugendhat 2003, p. 17)12 J. Habermas 2002, p. 26.13 SW IV, p. 431 [ASV, p. 74]14 SW IV, p. 466 [ASV, p. 116]15 SW IV, p. 431/2 [ASV, p. 74/5]16 SW IV, p. 433 [ASV, p. 76]17 Como se tentou demonstrar acima, o imperativo categrico, nesta sociedade de indivduos isolados, se acha na

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    impossibilidade de realizar-se com pleno sentido. Por isso, a mudana desta sociedade sua conseqncia necess-ria. Com ela deveria tambm desaparecer exatamente aquele indivduo para o qual est voltado o imperativo e cujaformao parece ser seu nico objetivo. A moral burguesa leva abolio da ordem que primariamente a tornapossvel e necessria. Se os homens querem agir de forma que sua mxima sirva de base para a lei universal, devemproduzir um mundo onde esta ponderao no permanea to questionvel como nos casos citados por Kant, masonde seja realmente aplicada segundo estes critrios. A sociedade deve, ento, constituir-se de maneira que lhepermita descobrir de forma racional seus prprios interesses e, certamente, os de todos os seus membros: somentenesta hiptese tem sentido, para o indivduo que se encontra envolvido subjetiva e objetivamente num tal plano,ajustar sua vida de acordo com isto. (Max Horkheimer, 1990, p. 67/8).18 Tugendhat 2003, p. 13.19 Tugendhat 2003, p. 27.20 O dever moral repousa verdadeiramente sobre a reciprocidade, por isso que simplesmente egosta e querecebe do egosmo sua interpretao, como sendo aquilo que, sob a condio de reciprocidade, prudentemente seentende como um compromisso. Isto seria apropriado para a fundamentao do princpio de unificao do Estado,mas no para a do princpio moral. SW III, p. 687 [FM, p. 67]21 A mais plausvel estar fundamentado melhor que qualquer outra que pode ser proposta concretamente. No lugarda fundamentao absoluta, busca razes de plausibilidade, uma fundamentao que resulta de discusso comoutros conceitos. isto que considera possvel. Vocs poderiam sentir isto como desapontador, mas, como filso-fo, no devemos nos desculpar diante da conscincia moral existente, por no podermos fazer isto mais forte do que; veremos, particularmente, que uma fundamentao mais forte no apenas no est disponvel, seno que seriaabsurda. (E. Tugendhat 1997, p. 31).22 E. Tugendhat 2002, p. 36.23 Ibidem.24 Ibidem, p.39.25 Ibidem, p. 42. A idia do contrato moral em que o bom tido como o que satisfaz uniformemente os interesses detodos os participantes s compreensvel pressupondo um racionalismo extremo, formal e idealista. Esse cartermatemtico (algbrico) o torna tambm indeterminado.26 E. Tugenghat 2002, p. 38.27 E. Tugendhat 1997, p. 77.28 SW I, p. 95 [MVR, p. 73]29 A questo que Tugendhat formula contra Schopenhauer se lograr algum sem que a pessoa saiba lhe causariasofrimento no atinge o ncleo da questo tica de Schopenhauer. O ponto principal no o sofrimento que algumcausa, pois o sofrimento universal provm da sua metafsica e no das aes exteriores das quais se consciente ouno. Por isso, compaixo e sofrimento no pressupem uma norma moral. Alis, para ele a moral no consiste emnormas, deveres, obrigaes.30 E. Tugendhat 2002, p. 106.31 E. Tugendhat 2002, p. 106.32 Ibidem.33 E. Tugendhat 2002, p. 109.34 Tugendhat, 1997, p. 14

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