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    A desmaterializaodo corpo: da alma (analgica) informao (digital)Paula Sibilia1

    RESUMOApresenta-se aqui uma reflexo acerca da persistncia da visodualista do ser humano: a possibilidade de uma subjetividadedescarnada, uma idia perfeitamente datada, parece continuarvigente na sociedade contempornea. Se at pouco tempo atrsos corpos eram aprisionados pela alma (uma entidade opaca e

    analgica) hoje a informao digital que os amordaa e os

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    Aalma, priso do corpo, escreveu Michel Foucault (1977:31-32)em seu livro Vigiar e punir:Mas no devemos nos enganar: a alma, iluso dos telogos, nofoi substituda por um homem real, objeto de saber, de reflexofilosfica ou de interveno tcnica [...]. A alma, efeito e instru-mento de uma anatomia poltica; a alma, priso do corpo.

    Vou partir dessa frase to instigante sobre as curiosas relaesentre o corpo e a alma na civilizao ocidental para tentar res-ponder seguinte pergunta: o que e o que pode hojeumcorpo? Ser que o corpo contemporneo ainda prisioneirodessa alma tirnica da modernidade, aquela que interiorizavaas normas sociais para disciplinar e canalizar produtivamente aspotncias dos corpos na sociedade industrial? Ou, talvez, comtodas as transformaes que tm ocorrido nos ltimos anos, serque isso tambm mudou?

    O leque de respostas possveis para tais perguntas muitoamplo. A histria e a imensa diversidade humana mostram queo corpo da nossa espcie flexvel, e que sem dvida elepode muito. Graas s ferramentas culturais e sua plasticida-de natural, dentro das vastas fronteiras biolgicas demarcadaspela contextura da espcie, as possibilidades do corpo humanoso mltiplas e esto em aberto. E a cultura constitui um fa-tor primordial, tanto na definio desses limites corporais comonas chances de ultrapass-los. Na Idade Mdia, por exemplo, asidias e as imagens a respeito do corpo divergiam consideravel-mente das que vigoram entre ns. A alma desempenhava um

    papel fundamental, claro, mas aquela alma medieval no erauma entidade imaterial e separada do corpo (ou dele separvel).

    Ao contrrio, intimamente ligada carne, ela animava a vidaimpregnando as matrias orgnicas. Tanto que at o prprioDeus tinha encarnado em um corpo, o de Cristo, e s poderiaressuscitar reencarnando nessa idntica matria. Mesmo depoisde mortos, os corpos no se descolavam da alma que os insu-

    flara: ambos seguiam juntos, inseparveis, rumo ao Alm e,quem sabe, talvez ainda poderiam regressar ao lodo terreno. Atos fantasmas medievais distavam de serem etreos e invisveis:ao contrrio, eram bem carnais e perfeitamente visveis, j quenaqueles tempos a identidade corporal s podia ser eterna. Erainconcebvel, portanto, a mera idia de uma subjetividade de-sencarnada.

    A despeito do estranhamento inicial que parece contradizeras nossas idias preconcebidas sobre aquele perodo histrico,essa cosmoviso faz todo o sentido, pois ela pr-dualista: naIdade Mdia, corpo e alma eram manifestaes do mesmo ser,portanto a subjetividade crist no podia deixar de ser incorpa-da.2Lembremos, tambm, da caracterizao do corpo medievalcomo dionisaco, grotesco e carnavalesco, na linhagem do cr-tico russo Mikhail Bakhtin. Tal corpo no procurava disfarar e muito menos ultrapassar a sua condio orgnica e finita.

    Ao contrrio: as bases materiais da subjetividade se reafirmavamcotidianamente na vida medieval, tanto no convvio permanen-te com outros corpos (vivos e mortos, humanos e animais) comona intensa familiaridade com o perecvel. Uma tal mistura pa-recia ignorar certos conceitos fundamentais da cultura moder-na e contempornea, como as nossas acepes de lixo, sujeirae nojo.

    evidente, portanto, que as coisas mudaram muito nos l-timos sculos. Aludir a Ren Descartes inevitvel, pois foi elequem enunciou no sculo XVII a viso dualista que logoseria batizada com seu nome: aquela que cindiu de vez corpo

    e mente por serem duas substncias diferentes e separadas. Daem diante, o ser humano passaria a ser um misto de elementosmateriais e imateriais, curiosa amlgama na qual estes ltimosdetinham uma ntida superioridade ontolgica com relao aosprimeiros. Eu poderia supor no possuir um corpo, meditavao filsofo, mas no podia admitir a prpria existncia sem a pos-sibilidade de pensar (cogito ergo sum), que por sua vez era fruto

    2A medievalistaCaroline Bynun

    denuncia essesclichs to habituais

    nas teorizaescontemporneas

    sobre o corpo,que costumam

    banalizar todaa riqueza datradio filosfica

    ocidental dePlato a Descartes

    como sendosimplesmente

    dualista,esquecendo

    especialmente asnuanas do perodo

    medieval (Bynum1995a: 6).

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    do esprito incorpreo. Eis a grande novidade histrica: sourealmente distinto do meu corpo e posso existir sem ele (Des-cartes 1999: 76). O corpo no faz parte da essncia do sujeito; dispensvel, pois o pensamento dele independe.

    Outra referncia iniludvel John Locke. Os escritos des-te filsofo ingls tambm contriburam para a inaugurao danossa era, nos remotos primrdios da Modernidade: uma po-ca que conseguiu imaginar e entronizar uma subjetividadedesencarnada. Com a psicologizao da personalidade, o cerneda identidade de cada ser humano passou a residir na menteou na conscincia, livrando-se do vnculo outrora necessriocom a matria. Assim, paralelamente mecanizao do mundo,aos avanos da tecnocincia, do racionalismo e do capitalismoindustrial, entre os sculos XVII e XVIII nasceu esta viso dohomem cujo corpo equiparvel a uma mquina. Um meca-nismo de carne e ossos, habitado por uma entidade misteriosa

    com caractersticas vagamente divinas: chame-se alma, menteou conscincia, um fantasma capaz de animar aquela carca-a toscamente material o corpo. Apesar de todas as reviravoltase dos sedimentos acumulados nos ltimos sculos, de algumamaneira este personagem perdurou at hoje, e ainda habita onosso imaginrio e as nossas realidades: um sujeito cuja essn-cia imaterial.

    O breve percurso histrico dos pargrafos precedentes veioa desembocar, justamente, naquela alma opressiva que Fou-cault denunciara, aquela que to insidiosamente tem apri-sionado os corpos humanos. Mas qual era mesmo o lugar do

    corpo nesse quadro que emergira trs sculos atrs? Tradicio-nalmente desprezado por ser o plo material do par dualista,que enaltece as qualidades mais elevadas e etreas da mente eda alma, o corpo tem suscitado uma pertinaz desconfiana nassociedades ocidentais dos ltimos sculos. Baixa e impura, aindecorosa materialidade corporal passou a exigir novos tiposde purificao. Uma srie de mtodos foi implementada, com

    o objetivo de purificar os corpos que (tambm eles) deviam serabsolutamente modernos: higiene, normas de conduta, sade,disciplina, limpeza, ordem. Trata-se daquilo que Norbert Eliasdenominou processo civilizador e que o prprio Foucault es-tudou aplicando os conceitos de biopoder e biopolticas, a fimde mostrar o gradativo enquadramento do tempo, do espao edos corpos nas sociedades urbanas e industriais que ento nas-ciam e rapidamente se reproduziam. Mas no foi fcil imporessa catequese da higiene e da sade: a proeza demandou certaviolncia, com a interveno da polcia e outros dispositivos decontrole pouco amveis, porm muito eficazes em sua rigorosatarefa de disciplinamento e purificao. A tica protestante foium ingrediente fundamental desses processos de implantaodo esprito do capitalismo e seu credo cientificista, de acordocom as clebres anlises de Max Weber. As prticas ascticas,a moral do trabalho, a organizao racional da vida cotidiana,

    a valorizao da ordem e da autodisciplina contriburam paraconseguir algo nada fcil: ortopedizar os corpos a fim de ade-qu-los aos modos de vida urbanos e ao individualismo exigidopelo capitalismo industrial.

    Assim, aquela mistura impudica que imperava no universomedieval, grudando uns corpos aos outros e ao cosmos, foi ardua-mente conquistada pelos ideais modernizadores de separao,ordem, limpeza e pureza. E os corpos foram os protagonistasdesses rduos processos: apesar da histrica desconfiana comrelao ao plo material do dualismo cartesiano, na moderni-dade ele se tornou um objeto primordial de ateno, alvo privi-

    legiado dos saberes e dos poderes que procuravam atravess-lo.Foucault chegou a afirmar, at mesmo, que o corpo teria nasci-do na segunda metade do sculo XVIII, ao se tornar ao mesmotempo objeto e efeito dos exames mdicos e das indagaes dascincias humanas e sociais (Foucault 2003).

    J em anos mais recentes, o corpo humano vem despertandouma renovada ateno. Chegamos, ento, aos confusos dias de

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    hoje, uma era na qual o corpo se converteu em um dos alvos pre-diletos de cientistas, filsofos e artist as que pretendem esmiu-lo e compreend-lo, e tambm dos cidados de todas as classes,idades e estilos, que olham para os corpos prprios e alheios comcrescente interesse. Pois hoje o corpo se apresenta como a gran-de ncora da subjetividade: na superfcie corporal onde cadaum exibeas suas verdades. Essa nfase nas aparncias corporaisemerge como uma caracterstica marcante da nossa poca, e soimensas as implicaes desse deslocamento do foco. Pois a cres-cente proeminncia do aspecto fsico complementa um outrofenmeno igualmente relevante no mundo atual: a crise da in-terioridadesubjetiva.

    Os indcios desse colapso no cessam de proliferar: estariase esvaziando aquele espao secreto, ntimo e privado, locali-zado dentro de cada indivduo, onde costumava se ocultar aessncia de cada um (Bezerra 2002: 229-239). Por aconche-

    gar zelosamente tamanho tesouro, tal espao interior consti-tura o objeto sobre o qual se debruara um campo de saberfundamental nos dois ltimos sculos: a psicologia, um com-ponente imprescindvel dos processos civilizadores. Primorosa-mente cultivada ao longo da era moderna, a vida interior foio eixo em torno do qual as subjetividades se definiam, numaminuciosa tarefa cotidiana que visava a fortalecer esse magofrtil, porm sempre oculto nas prprias profundezas. Mas oque ocorre hoje em dia? Essas enigmticas essncias parecemter perdido seu peso e seu valor na hora de revelar o que cadaum . As verdades j no se escondem dentro de cada um: elas

    esto flor da pele, so visveis ou, pelo menos, se esforampor atingir o cobiado campo da visibilidade. Em pleno decl-nio do modelo sentimental que marcou uma poca, o corpoe a sua superfcie epidrmica assumem um papel primordial,pois na prpria imagem corporal que cada sujeito mostra averdade sobre si cada vez mais est a, vista de todos, aquiloque se .

    O que significa tudo isto? Estaramos nos aproximando deuma libertao, rompendo enfim com o velho dualismo quecondenara o corpo humano a ser um eterno prisioneiro dessaentidade gasosa e moralmente superior, a alma? As potnciasdo corpo estariam, enfim, livres e soltas para agirem no mundo?Infelizmente, a resposta no parece assim to simples. Ao con-trrio, h sinais de que talvez estejam nascendo novas formas deum dualismo radical; uma verso mais sutil e complexa, pormto corrosiva como aquela que fincara suas razes na mais purametafsica ocidental. Isto , novas prises etreas para os nos-sos corpos. Agora, de acordo com esta perspectiva reciclada, averdadeira essncia do sujeito residiria na informaoque otorna quem realmente . Segundo certos saberes emanados pelatecnocincia contempornea, esses dados vitais e singulares,prprios de cada um que definem, portanto, a identidade doindivduo , esto alojados no cerne do seu substrato biolgico.

    Mas eis que surge aqui um curioso paradoxo, pois as entidadesencarregadas de hospedar essa valiosa informao so quase et-reas: os circuitos cerebrais e o cdigo gentico.

    Trata-se, portanto, de uma subjetividade que torna a repousarsobre bases imateriais. De acordo com essa redefinio do dua-lismo clssico que se encontra em andamento, so as prpriasmolculas orgnicas do corpo humano que se desmaterializampara se converter em energia vital. E essa energia adquire umrosto bem atual: o da informao.3Trata-se de uma substnciaimaterial, porm comodamente compatvel com a aparelhagemdigital que hoje comanda o mundo, e da qual os laboratrios e

    os profissionais da sade dependem cada vez mais para efetuardiagnsticos e tratamentos sobre os nossos corpos.

    No por acaso que o softwareconstitui uma metfora pri-vilegiada na hora de aludir aos engenheiros genticos que edi-tam as cadeias de DNA para criar organismos transgnicos oupara praticar ajustes no cdigo de uma pessoa doente, por exem-plo, como se cada ser vivo estivesse animado por um programa

    3Sobre os processossemnticos e

    polticos que vmdesmaterializando

    a informao aolongo da histria

    recente, ver asanlises de Hayles

    (1999).

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    de computador que pode ser alterado e reprogramado. Por suavez, a metfora do microchip fartamente utilizada para descre-ver a tarefa dos neurocientistas, que pretendem compatibilizaros sinais cerebrais com os mais diversos circuitos eletrnicos paradevolver os movimentos aos paraplgicos, a viso aos cegos e aalegria aos deprimidos. Embora sendo uma pea de hardware e portanto to material como o prprio crebro o microchips ganha seus mgicos poderes se for animado por um sistemaoperacional. Isto , novamente: software, informao imaterial.

    Parece coincidir, portanto, o grande sonho dessas duas reasprivilegiadas das novas cincias da vida a engenharia genticae as neurocincias que hoje tecem as grandes narrativas hege-mnicas sobre o corpo, a subjetividade e a vida: ambos tipos desaberes procuram desvendar os cdigos, sinais e circuitos pelosquais trafega a informao vital dos seres humanos, para podermanipul-la vontade, corrigindo eventuais defeitos e efe-

    tuando melhorias de acordo com as preferncias do usurio-portador-consumidor. Em ambos os casos, o foco aponta para ainformao. Estendendo a metfora digital, trata-se de decifrare intervir no sistema operacional que comanda a essncia decada sujeito, seja sua programao gentica ou seu mapa ce-rebral. Hoje, portanto fazendo um upgradena nossa ilustreherana cartesiana , o valioso software humano que recebeateno prioritria: ou seja, a informao que anima cada corpopara torn-lo aquilo que .

    As implicaes desta nova perspectiva para as longamentecastigadas potncias do corpo so to nocivas como as que ema-

    navam de suas verses ancestrais. Se o ser humano considera-do uma criatura fundamentalmente cerebral e geneticamentedeterminada pois na informao contida no seu crebro eno seu DNA que reside a prpria identidade , o resto do seucorpo um mero ornamento desse ncleo identitrio. E eis omais importante: esse corpo pode ser modificado sem que taismudanas coloquem em risco as suas razes individuais e a sua

    personalidade. Mas embora se trate de uma pea secundria,no h dvidas quanto sua importncia, pelo menos em um as-pecto: o corpo est a para ser mostrado e exibido, portanto deveter uma boa aparncia. Sua principal funo parece ser precisa-mente a de ostentar um bom visual. Pois hoje o corpo , maisdo que nada, uma imagem. E, como apregoam a tecnocincia, amdia e o mercado, tal substncia dcil e plstica: recorrendos mais diversas tcnicas venda, o corpo-imagem de cada umpode (e deve) ser aprimorado.

    Como a identidade do sujeito est inscrita em regies re-cnditas e quase virtualizadas do seu crebro e do seu capitalgentico, justamente a que a sua verdadeira essncia seconcentra. O mundo, o ambiente, os outros e a prpria carneparecem alheios a essas essncias confinadas nas ntimas mo-lculas imaterializadas. neste contexto que o corpo humanose torna descartvel ou melhor, moldvel. Ele pode ser es-

    culpido com a mirade de produtos e servios de reformataocorporal oferecidos no mercado, da musculao aos cosmti-cos, dietas e cirurgias estticas. Um corpo-imagem, enfim, quepode (e deve) ser reciclado. Mas a linguagem traioeira: comsuas conotaes tridimensionais e de luta contra a matria queresiste, termos como moldar, esculpir e plasticidade noconseguem dar conta do fenmeno. Pois o corpo atravessa umprocesso de bidimensionalizao: cada vez mais, ele tratadocomo uma imagem que deve ser retocada ou redesenhada. Ouat mesmo editada, como se tambm neste caso se tratasse deuma pea de softwareentregue ao bisturi clean(e supereficaz)

    do Photoshop e outras ferramentas de edio digital de foto-grafias.

    Paradoxalmente, a carne ou, insistindo nas metforasdigitais, o hardwaremais duramente material e at grosseira-mente orgnico que torna a apresentar sua flexibilidade. Deacordo com as narrativas mais pregnantes do imaginrio con-temporneo, a carne pode (e deve) ser trabalhada como uma

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    imagem. Pois a sua principal funo , precisamente, a de servirde carto de visitas para expor a prpria subjetividade: o quese deseja exibir a respeito de si mesmo. E numa era na qual asdiferenas entre aparncias e essncias se desvanecem, o carterse torna externo e cada um passa a seraquilo que mostrade si.O corpo, neste novo contexto, revela-se como um lastro dema-siadamente carnal e na maioria dos casos incomodamenteinadequado, devendo portanto ser depurado e aperfeioado emseu aspecto visual, como uma bela imagem para ser exposta aosolhares alheios.

    Com o apagamento da interioridadepsicolgica um terre-no sempre obscuro e opaco, que resiste s sondagens tcnicas epossui caractersticas analgicas, a identidade se desloca rumoa entidades aparentadas com o universo digital: os circuitos ce-rebrais e a programao gentica de cada um e, tambm, a suaimagem visvel. Basta conferir, a ttulo de ilustrao, o estrondo-

    so sucesso atual dos desfiles de moda e, sobretudo, das mode-los. Curiosamente, no so as roupas a principal atrao desseseventos to contemporneos, os desfiles de moda. Ao contrrio,so festivais de corpos. Corpos-modelo. Mas de que corpo se tra-ta? Que corpo esse que desfila nas passarelas e encandeia osolhares desafiando o brilho dosflashes, um corpo destinado a serinfinitamente reproduzido nas telas e nas pginas das revistas?O fascnio da maioria decorre do perfil longilneo e anorxicodas manequins, arrisca Nelson Ascher, e o ponto fsico ondeconvergem as aspiraes femininas de renascer esteticamentecoincide com aquele que nos remete ao nascimento original: o

    umbigo (Ascher 2004). Assim como em outros tempos o ac-mulo de gordura no abdome das mulheres era apreciado comoum sinal de abundncia e fertilidade, os ventres lisos, secos etorneados das modelos de hoje evidenciam outras qualidades,repelindo os excessos da sociedade contempornea medianteum trabalho disciplinado sobre as formas do corpo: estoicismo,fora de vontade, ambio e sorte. Alm de encarnar esses va-

    lores mais prximos do ideal apolneo que do dionisaco, maisperto do ascetismo que do hedonismo , tais corpos so dese-nhados, exibidos, copiados e consumidos como imagens. Solampejos visuais que pretendem atingir uma pureza imaterial,afastada de todo lastro carnal e notavelmente aparentada com ouniverso digital.

    Repetindo, ento, a pergunta que abriu este ensaio: o que e o que pode hojeum corpo? No obstante todas as turbu-lncias que nos ltimos anos o tm sacudido e, sem dvidaalguma, o esto transformando , o corpo humano no pareceter se libertado das dolorosas amarras que ao longo dos temposo confinaram. Ao contrrio, novas e mais poderosas foras so-cioculturais emergem dispostas a escraviz-lo apesar da diver-sidade de experincias subjetivas e das estratgias individuaise coletivas que sempre desafiam tais tendncias. Mas o corpocontinua sendo um prisioneiro da alma? Ainda vigora, entre

    ns, a interiorizao das normas e daqueles rigores disciplinaresexplicados por Foucault, frutos da vigilncia e da moral minu-ciosa da era industrial? Ou talvez, agora, considerando a criseda vida interior e o desenvolvimento do capitalismo ps-in-dustrial com seus saberes digitalizantese seu canto ao indivi-dualismo triunfante e s benesses do consumo, o corpo vivo ecarnal teria se tornado prisioneiro do seu prprio crebro? Oudos enigmas cifrados em seu cdigo gentico? Ou, por ventura,estaria submetido aos ardilosos feitios da imagem ideal, umanova norma que rege as aparncias cada vez mais obrigatrias etortuosamente inatingveis?

    Pode ser interessante retornar aqui, brevemente, quelesprocessos civilizadores que alguns sculos atrs comearam aagir sobre os corpos, a fim de purific-los, organiz-los e disci-plin-los de acordo com os ideais modernizadores. Junto comeles, desenvolveu-se um certo refinamento da sensibilidade,em concordncia com os decoros e bons modos burgueses queestavam se tornando hegemnicos (Rodrigues 2001: 76). Mas

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    essa sofisticao sensorial teve um efeito colateral digno denota: parece ter gerado um pavor da carne bem mais intensodo que aquele que vigorara nos sombrios tempos medievais.Instalou-se uma progressiva rejeio no que tange matriaorgnica e perecvel, especialmente quela que conforma ocorpo humano. Aps o desencantamento que o atingiu junto

    Natureza, o corpo no se converteu apenas em uma mqui-na; pois nas bordas e salincias de suas engrenagens, os meca-nismos corporais secretam turvos humores, e essa viscosidadeorgnica logo iria assumir qualidades nojentas. Se os antigoscristos sabiam-se eternamente condenados pela maldioda carne e aprenderam a viver sob a ameaa desses horrores tanto no que diz respeito a tentao como a corrupo ca-beria concluir que hoje essa histria est se repetindo comocorresponde, isto , em tom de farsa.

    Em ambos os momentos histricos anteriormente contem-

    plados, os pavores suscitados pela carne envolvem conflitos dendole moral, social, cultural e poltica. Mas se antes o dramatinha uma fisionomia claramente religiosa, envolvendo pecadose expiaes divinas, a nova verso recicla as antigas culpas parareorganiz-las em torno de um eixo que da ordem das aparn-cias. Assim, o mercado desbanca a Igreja, e hoje a carne inco-moda porque tambm tende s tentaes (alimentos proibidos,drogas, sedentarismo) e corrupo (flacidez, rugas, gordura).Porm tais mazelas no se expressam nas nebulosas trevas daalma (na interioridade), mas no aspecto visual do corpo (na suaexterioridade). E mais: alm de ter perdido seu significado ale-

    grico profundo e toda a velha simbologia da transcendncia, opavor atual parece ser mais intenso porque a condenao no necessariamente universal e eterna. E a ansiedade cresce at oparoxismo, pois a salvao hoje pode ser comprada. A tecnocin-cia vende a promessa de que uma boa gesto de si permitiriasuperar ou, pelo menos, contornar de maneira transitria po-rm efetiva os problemas acarretados pela nossa indigna con-

    dio carnal. Recorrendo s mais diversas tcnicas e saberes venda, nos dito que tais obstculos podem ser ultrapassados,eliminados, lipoaspirados. A salvao individual e pode seradquirida em prestaes, aqui e agora porm, logicamente, preciso pagarpor ela.

    A despeito das prodigiosas potncias do corpo humano, en-

    to, e de toda a sua plasticidade fsica e cultural, as narrativascosmolgicas que procuram explic-lo e defini-lo nas diversaspocas e, cada vez mais, tambm as imagens que o modelame tipificam parecem constituir os mais rgidos limites para arealizao de suas potencialidades. Assim, nos alvores do scu-lo XXI, o corpo humano incrivelmente aprisionado por umasrie de crenas e valores cada vez mais tirnicos. Por isso tonecessrio resgatar aquele olhar crtico que Michel Foucault en-sinou a lanar sobre o presente, banhando com uma luz de es-tranheza aquilo que costuma parecer to serenamente familiar,

    e questionando a atualidade com perguntas argutas e incisivas.A verdade, dizia Foucault, uma espcie de erro que tem a seufavor o fato de no poder ser refutada porque o longo cozimen-to da histria a tornou inaltervel (Foucault 1979: 19). Talvezseja preciso descolar dos corpos contemporneos essas verdadesmentirosas que a histria mais recente est tatuando em suaspeles. Talvez seria possvel (e, certamente, desejvel) libertar acarne dessas etreas prises que o longo cozimento da histriainsiste em fabricar para amordaar os corpos. Ontem foi a alma(uma entidade opaca e confessadamenteanalgica); hoje ain-formaodigital, uma substncia etrea porm manipulvel por

    meio das tecnologias mais variadas. Essa informao imaterialque atualmente comanda os corpos, apresenta-se em diversasverses: o cdigo gentico, os circuitos cerebrais e a imagem docorpo perfeito. Enfim: novas e velhas, porm etreas (e eter-nas?) prises da carne.

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