A DEVOÇÃO DE ALFONSO X: ROSA DAS ROSAS · composição literária portuguesa, uma cantiga de...

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XIV Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Maringá-PR, 18 a 20/11/2015 1 A DEVOÇÃO DE ALFONSO X: ROSA DAS ROSAS Celia dos Santos Rosa 1 Keila Mara Fraga Ramos de Oliveira 2 Introdução As mulheres do século XII eram chamadas de damas, porque eram desposadas por um senhor. Essas damas de tempos longínquos não possuem “nem rosto nem corpo,” pois eram representadas simbolicamente por homens que, na sua maioria, eram clérigos ou escritores laicos. Desta forma, explica Duby (1995, p.5 e p.6) elas “nunca passarão de sombras imprecisas, sem contorno, sem profundidade, sem voz.” Essas mulheres são apresentadas como seres inferiores por descenderem de Eva, segundo a tradição cristã, instigadora do pecado. Essa situação de inferioridade se prolongou durante toda a Idade Média. Na primeira metade do século XII, a superioridade do homem sobre a mulher torna-se evidente e os argumentos sobre a inferioridade feminina são extraídos do direito romano, dos escritos paulinos e das obras de Santo Agostinho, São Jerônimo e Santo Ambrósio. No final do século XII, os estabelecimentos religiosos femininos cresceram consideravelmente. Quando casavam, nem sempre o amor era prioridade nas uniões, prevalecendo as formas de poder das relações feudo-vassálicas. O marido deveria ser tratado de “senior” (senhor) pela mulher, conservando o feudalismo que se reproduzia no meio doméstico. Para os religiosos, a mulher era vista como "naturalmente" inferior ao "sexo viril", ela era “meramente um reflexo da imagem masculina, uma imagem secundária.” Casados não se tornavam iguais, a mulher era “a responsável pela queda da humanidade no pecado, a dominação do esposo sobre ela e as dores do parto eram vistas como o seu castigo.” Assim para os clérigos “a direção ou o governo ficavam reservados ao homem, cabendo à mulher a submissão”, esclarece Macedo (1999, p.16, 19). 1 Graduada em Letras Português pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mestre em Letras pela mesma Universidade. Endereço eletrônico: [email protected] 2 Graduada em Letras Português/Francês pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mestranda em Letras pela mesma Universidade. Endereço eletrônico: [email protected]

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XIV Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Maringá-PR, 18 a 20/11/2015 1

A DEVOÇÃO DE ALFONSO X: ROSA DAS ROSAS

Celia dos Santos Rosa 1 Keila Mara Fraga Ramos de Oliveira2

Introdução

As mulheres do século XII eram chamadas de damas, porque eram desposadas por um

senhor. Essas damas de tempos longínquos não possuem “nem rosto nem corpo,” pois eram

representadas simbolicamente por homens que, na sua maioria, eram clérigos ou escritores

laicos. Desta forma, explica Duby (1995, p.5 e p.6) elas “nunca passarão de sombras

imprecisas, sem contorno, sem profundidade, sem voz.”

Essas mulheres são apresentadas como seres inferiores por descenderem de Eva,

segundo a tradição cristã, instigadora do pecado. Essa situação de inferioridade se prolongou

durante toda a Idade Média. Na primeira metade do século XII, a superioridade do homem

sobre a mulher torna-se evidente e os argumentos sobre a inferioridade feminina são extraídos

do direito romano, dos escritos paulinos e das obras de Santo Agostinho, São Jerônimo e

Santo Ambrósio.

No final do século XII, os estabelecimentos religiosos femininos cresceram

consideravelmente. Quando casavam, nem sempre o amor era prioridade nas uniões,

prevalecendo as formas de poder das relações feudo-vassálicas. O marido deveria ser tratado

de “senior” (senhor) pela mulher, conservando o feudalismo que se reproduzia no meio

doméstico. Para os religiosos, a mulher era vista como "naturalmente" inferior ao "sexo viril",

ela era “meramente um reflexo da imagem masculina, uma imagem secundária.” Casados não

se tornavam iguais, a mulher era “a responsável pela queda da humanidade no pecado, a

dominação do esposo sobre ela e as dores do parto eram vistas como o seu castigo.” Assim

para os clérigos “a direção ou o governo ficavam reservados ao homem, cabendo à mulher a

submissão”, esclarece Macedo (1999, p.16, 19).

1 Graduada em Letras Português pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mestre em Letras pela mesma Universidade. Endereço eletrônico: [email protected]

2 Graduada em Letras Português/Francês pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mestranda em Letras pela mesma Universidade. Endereço eletrônico: [email protected]

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No entanto, muitas vezes, essa mulher exercia um importante papel na economia, além

da função de procriadora. Le Goff (2005) explica que a mulher da classe camponesa

desempenhava seu trabalho de forma quase igual à dos homens, não sendo apenas uma

produtora, mas transformadora da matéria prima produzida. Mesmo as de classe superior

possuíam atividade econômica importante, ficavam à “frente dos gineceus” para atender as

necessidades vestimentárias do senhor e de seus companheiros. Muitas mulheres, “rompendo

as disposições dos costumes, exerceram os direitos de um senhor feudal.” Sendo assim,

cumpriam suas funções como verdadeiras líderes, com pouco ou muito, de acordo com a

extensão dos domínios que possuía, sendo “viúvas, eram tutoras dos filhos menores,” observa

Macedo (1999, p.31)

Nos séculos XII e XIII, o Cristianismo promove a mulher, inspira-se no culto à

Virgem e uma mudança de rumo na espiritualidade cristã ocorre. Tendo seu papel elevado

indiscutivelmente pelo cristianismo, fazendo-a, teoricamente, igual ao homem, a situação da

mulher “tinha sido precária na remota Idade Média, pois estava exposta ao misoginismo3 dos

autores eclesiásticos e às brutalidades dos homens a quem pertencia,” esclarece Lapa (1973,

p. 10). A mulher de condição nobre podia refugiar-se num convento, ficando livre da lavoura

e dos pesados trabalhos corporais, buscando nas letras um consolo contra as “tentações da

carne”.

A poesia trovadoresca e o culto mariano são contemporâneos. Lapa (1973) explica que

antes do “século XII já existia, senão um sistema de mística mariana, pelo menos o serviço de

Maria”. Para o cristão, a Virgem era a meiga medianeira entre o Céu e a Terra, a que ouvia a

prece do suplicante e a transmitia ao Senhor. De acordo com Lapa (1973), essa função de

mediadora foi transferida para a vida social. A razão profunda do trovadorismo se justifica no

porquê do trovador pedir à senhora e não ao senhor.

O paralelismo poético é efetivamente perfeito entre a atitude do cristão, prostrado aos

pés da Virgem e a do amador, ajoelhado aos pés da dona. A mulher foi divinizada e uma nova

concepção trovadoresca da vida se impõe, que “representa um desvio consciente ou

inconsciente da Igreja e dos ideais de vida que ela impunha uma gradual libertação do homem

medieval”, de acordo com Lapa (1973, p. 23, 24) “O trovador preferia a dona por intuitivas

3 Desprezo ou aversão às mulheres.

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razões de ordem social e estética e não em obediência a qualquer pensamento ou disposição

anticatólica.” Colocavam em um mesmo plano de adoração tanto a dona divinizada quanto

Deus humanizado, os valores eram iguais.

A importância desempenhada pela mulher no lirismo galego-português revela seu

caráter popular. As mulheres passam a desempenhar um importante papel nas grandes

cerimônias religiosas de Santiago de Compostela. O ofício de cantora e dançarina oficializara-

se e estava incorporado nas festividades da Igreja. Segundo Lapa (1973, p.106), “Com o

advento do trovadorismo separou em teoria o trabalho de composição e o da execução,

encarregando-se do primeiro o trovador e do segundo o jogral”.

OS TROVADORES E SUAS CONTRIBUIÇÕES

No sul da França o ritmo de vida é favorável ao nascimento de uma cultura e de um

lirismo vulgar. No século XI aparece Guilherme IX duque da Aquitânia, o primeiro trovador

provençal, com sua poesia lírica, assim “na segunda metade do século XII vibra já no sul uma

verdadeira primavera de canções trovadorescas.” Começa assim uma nova época e uma nova

civilização na Europa Ocidental explica Lapa (1973, p. 10). A influência cultural da França

condicionou energicamente a poesia trovadoresca e é por isso anterior a ela e até mesmo à

fundação da nacionalidade portuguesa, com a vinda de D. Henrique para reger o condado

portucalense em 1094 ou 1095. Houve, então, a imitação da cultura francesa entre os galego-

portugueses, semelhanças que explicam mais por inevitável encontro de ideias e de expressão,

ensina-nos Lapa (1973, p. 117 e p. 124).

A produção literária medieval é dividida em duas épocas por Spina (1961, p.12): a

primeira refere-se ao instrumento linguístico galego-português de fins do século XII até 1434,

enquanto que a segunda época pode ser marcada de 1434 até o retorno de Sá de Miranda a

Portugal, inaugurando o Classicismo. O ano de 1198 foi a data provável da mais antiga

composição literária portuguesa, uma cantiga de amor, Cantiga da Ribeirinha, escrita pelo

trovador Paai Soares de Taveirós, dedicada a Maria Pais Ribeiro (a Ribeirinha), amante de

D.Sancho I.

A mais antiga mística popular da Idade Média nasceu entre a primeira e a segunda

cruzada (1099-1147), em uma época de alteração religiosa e econômica. Nesta cultura mística

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surgiu a canção de amor trovadoresca em sua forma clássica, justifica Lapa (1973, p. 5). A

civilização que encontrou a sensibilidade humana soube também encontrar o

(...) equilíbrio da alma e do corpo, do coração e do espírito, do sexo e do sentimento (...) reclamar a autonomia do sentimento e pretender que podia haver entre os dois sexos relações diferentes das do instinto, da força, do interesse e do conformismo, eram coisas em que havia algo de verdadeiramente novo. (LE GOFF, 2005, p. 352)

A lírica do trovador é “poesia de sociedade”, na qual até mesmo as experiências reais

têm de se revestir das formas fixadas pela moda predominante, pois poema após poema, a

senhora amada é exaltada nos mesmos termos, adornada com as mesmas qualidades,

representada como a encarnação da mesma virtude e da mesma beleza. Nesse sentido, todos

os poemas empregam as mesmas fórmulas retóricas, a tal ponto que se poderia pensar serem

todos obra de um só trovador, esclarece Hauser (1998, p. 128). Tão poderosa era essa moda

literária, tão indiscutíveis as convenções da corte, que fica a impressão que “os poetas tinham

em mente apenas um ideal abstrato, não qualquer mulher individual, de carne e osso, ou seja,

seus sentimentos seriam derivados mais de exemplos literários do que de qualquer pessoa

viva”.

Estava inteiramente fora de questão a dama retribuir o amor do trovador, uma vez

que, sua posição social era superior à do trovador, a mais remota sugestão de adultério teria

sido violentamente punida pelo marido. A declaração de amor era pretexto para o poeta

desfiar seus lamentos e queixumes a respeito da crueldade da mulher amada, e tais

lamentações eram concebidas, na realidade, como elogio à irrepreensível castidade da dama.

O amor trovadoresco e a poesia amorosa do trovador duraram tempo demais para que se

possa considerá-los mera ficção, comenta Hauser (1998, p. 219).

O novo culto do amor e o cultivo da nova poesia cortesã sentimental eram, preponderantemente, obra desse elemento flutuante na sociedade. Davam às homenagens que prestavam às damas a forma de canções de amor expressas em termos corteses mas não inteiramente “fictícios”; foram os primeiros a conceder um lugar ao serviço de sua dama, a par do serviço ao senhor; foram eles que interpretaram a lealdade feudal como amor e o amor como lealdade feudal. Ora, nessa tradução de uma situação econômica e social para termos eróticos, os motivos de caráter psicossexual também desempenharam um papel, se bem que tais motivos também estivessem sociologicamente condicionados. (HAUSER, 1998, p.221)

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Por volta de 1209, a produção trovadoresca foi transformada em uma literatura

dirigida pela Igreja. Foram os dominicanos que impuseram o culto a Maria como tema oficial

dos novos trovadores. A poesia lírica dos trovadores provençais não desapareceu,

contrariamente, raízes profundas haviam sido lançadas pelos países vizinhos, que se tornaram

discípulos da arte poética do Languedócio, ao mesmo tempo em que davam forma culta aos

temas de inspiração folclórica. Quando a poesia dos trovadores penetrou em terras germânicas

e italianas e ultrapassou as fronteiras ibéricas até a Galiza, já nessas populações vegetava uma

poesia primitiva, autóctone, que tinha por agente principal a mulher, e por irmãs a música e a

coreografia, elucida Spina (1996, p.26)

No estudo das Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, duas vertentes temáticas são

apresentadas: a profana e a religiosa. A poesia profana, ora lírica, ora satírica, constitui-se de

cantigas de amor e cantigas de escárnio e maldizer. A poesia religiosa, representada pelas

Cantigas de Santa Maria, é de teor lírico ou lírico-narrativo. Há ainda duas espécies de

poemas que integram o códice de cantigas dedicadas à Santa Maria: as cantigas de loor

(cantigas de louvor), manifestações do gênero lírico, e as cantigas de miragre (cantigas de

milagre), que pertencem ao gênero narrativo, mas que apresentam traços de lirismo

laudatórios, sobretudo, nos refrões e nos finais dos milagres.

Dentre as obras produzidas na corte de Afonso X, as três edições conservadas das

Cantigas de Santa Maria são, sem dúvida, as mais significativas. A universalidade dos

projetos culturais culmina em uma obra que reúne composições dedicadas à Virgem,

partituras musicais que compõem um dos repertórios mais importantes da Baixa Idade Média

europeia, e a arte pictórica das miniaturas que completam duas das edições escritas em língua

galego-portuguesa, documentos preciosos para o conhecimento da vida e dos costumes da

época.

Um dos aspectos mais originais das Cantigas de Santa Maria é a presença do rei nos

textos e nas imagens. Alguns exemplares referem-se a fatos ocorridos durante o reinado de

Afonso X ou mencionam a intervenção da Virgem em sua vida. Determinados poemas são

escritos em primeira pessoa ou fazem alusão clara à figura do rei. No que se refere às

imagens, o rei Sábio não só aparece nas cenas de apresentação com que abre o manuscrito e

acompanham o prólogo, como também em numerosas miniaturas, intervindo, sobretudo, nas

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cantigas de louvor, como intermediário entre as personagens divinas da Virgem ou de Cristo

acompanhados de cortesãos e súditos. Por esta razão, tem-se argumentado que as Cantigas de

Santa Maria, além de constituírem um tributo à Virgem, são também uma forma de

autobiografia poética.

LEITURA ANALÍTICA DA CANTIGA

Nas Cantigas de Santa Maria, especificamente nas cantigas de loor (cantigas de

louvor), a Virgem é amplamente louvada. Destacam-se nos textos uma "hábil diversificação

de sua métrica e a originalidade com que essas cantigas se apropriam de concepções temáticas

tradicionais e se constituam em pequenas obras-primas poéticas". (LEÃO, 2007, P.134).

A cantiga selecionada para o presente artigo, cantiga de número 10, “Esta é de loor de

Santa Maria, com’é fremosa e boa e á gran poder”. O refrão refere-se à Virgem como “Rosa

das rosas e Froe das frores / Donna das donas, Sennor da sennores” e sua respectiva

iluminura é o texto de abertura das cantigas de loor. O seu conteúdo se resume em "louvor e

compromisso, que se expressam em versos repassados de beleza e de emoção: louvor da

humanidade em geral e compromisso assumido por aquele que fala em nome dela, o rei Dom

Afonso". (LEÃO 2007, p. 135). O título da cantiga em prosa “Esta é de louvor a Santa Maria,

como é formosa e boa e tem grande poder”, segundo Leão (2007), enuncia o objetivo de

louvar Santa Maria, sua beleza, bondade e poder (com 'é fremosa e boa e a gran poder). Em

seguida, há o refrão, com rima em -ores, que "identifica a Virgem por quatro imagens, numa

forma especial de superlativo relativo, chamado superlativo bíblico". (LEÃO 2007, p. 136)

Rosa das rosas e Fror das frores,

Dona das donas, Sennor das sennores.

Neste refrão são encontrados os sintagmas nominais em que “cada um dos

substantivos nucleares, Rosa, Fror, Dona, Sennor se expande sucessivamente, numa forma de

genitivo plural à moda latina: das rosas, das frores, das donas, das Sennores". Esse

“superlativo bíblico” é um recurso estilístico usado tanto na linguagem oral quanto na escrita.

Que mostra o grau máximo uma qualidade específica da Virgem, que de forma absoluta

afirma os atributos que esse ser possa ser dotado. Assim, a rosa das rosas é um "superlativo

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totalizante é a mais bela, a mais fresca, a mais brilhante, a mais perfumada, etc., entre todas as

rosas.” (LEÃO 2007, p. 137)

A rosa, de acordo com sua simbologia, é um atributo consagrado na tradição mariana.

Os outros sintagmas são constituídos pelo mesmo molde sintático-semântico: a fror das frores

(a flor das flores), flor única pela sua perfeição, entre todas as flores; o mesmo com a

expressão a dona das donas, que se refere a uma mulher superior pelas suas qualidades e a

todas as mulheres na expressão a Senhor das senhores, que pelos seus dons, não tem igual

entre todas as outras senhoras. Após o refrão, existem quatro estrofes, cada uma vem seguida

de um quarto de verso que rima com o refrão. "Essa estrutura poemática se inicia por um

refrão em forma de dístico monórrimo e prossegue com quadras compostas de três versos

monórrimos que variam de uma estrofe para outra, mais um quarto verso que retoma a rima

do refrão, constituindo-se, segundo a poética medieval em uma “volta” ou “glosa.” A

sequência das estrofes, nessa cantiga, nos mostra uma progressão no seu envolvimento afetivo

com a Sennor". A primeira estrofe apresenta a Virgem e seus atributos, no início de cada

verso repetem-se os núcleos dos sintagmas nominais do refrão, fazendo, assim, uma expansão

sintática que justifica esses núcleos:

Rosa de beldad'e de parecer e Fror d'alegria e de prazer, Dona em mui piedosa seer,

Sennor em toller coitas e doores.

Nesta estrofe, Santa Maria é rosa, pela sua beleza e boa aparência; é flor, pela alegria e

pelo prazer que dá aos seus seguidores; é dona, pela piedade que tem; é senhora, pelo poder

de tirar aflições e dores. A Virgem, nessa estrofe, apresenta-se sem a presença do ser humano

e sem a presença de verbos. São apenas "sintagmas nominais soltos, com função sintática

ambígua, já que poderiam ser analisados ou como vocativos dirigidos à Virgem ou como

expressões que a descrevem, dirigidas aos ouvintes". Observa-se que nas outras três estrofes

há a presença do ser humano, "mostrando-o, nas suas relações com Santa Maria, através de

uma progressão decrescente, que vai do geral ao particular, do universal ao individual, da

humanidade como um todo ao Poeta como ser único". (LEÃO 2007, p. 138)

Na segunda estrofe existe o início de uma progressão incluindo agora o gênero

humano com a Virgem.

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Atal Sennor dev'ome muit'amar, que de todo mal pode guardar, e pode-ll'os pecados perdõar,

que faz no mundo per maos sabores.

Surge nesta estrofe o gênero humano, representado, segundo Leão (2007, p. 138) pelo

"pronome indefinido neutro – ome- sujeito indeterminado de deve, comparável ao on francês,

o que explica o seu funcionamento exclusivo como sujeito". No primeiro verso, colocado em

ordem direta, explica que o homem deve amar muito tal Senhora (Atal Sennor dev'ome

muit'amar); pois Ela pode protegê-lo contra todo o mal (que de todo mal pode guardar); e

pode perdoar-lhe os pecados (e pode-ll'os pecados perdõar); pois são os pecados que comete

aqui na terra, por maus instintos (que faz no mundo per maos sabores). "O Poeta não aparece

aí por si mesmo, mas apenas diluído na espécie humana, através da expressão genética ome, a

quem ele lembra o dever de amar aquela que o protege."(LEÃO 2007, p. 139)

Na terceira estrofe, o trovador coloca junto a Virgem os pecadores que devem amá-la

e servi-la.

Devemo-la muit'amar e servir,

ca punna de nos guardar de falir; des i dos erros nos faz repentir,

que nos fazemos come pecadores.

Nessa estrofe, a primeira pessoa do plural está no seu início, apontando para nós,

"sujeito de valor coletivo que inclui o eu do Poeta". Dom Afonso solicita que devemos amá-la

e servi-la muito (Devemo-la muit'amar e servir), pois ela se empenha em nos afastar do

pecado (ca punna de nos guardar de falir), e arrependermo-nos dos erros (des i dos erros nos

faz repentir) que cometemos, como pecadores que somos (que nos fazemos come pecadores).

"O Poeta aparece aí como porta-voz de todo o gênero humano, relembrando o dever de amar e

servir aquela que o afasta do erro". (LEÃO 2007, p. 140)

Na quarta estrofe encontramos a Virgem com seu trovador D. Afonso.

Esta dona que tenno por Sennor

e de que quero seer trobador, se eu per ren poss'aver seu amor, dou ao demo os outros amores.

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Nesta estrofe, o poeta assume a primeira pessoa do singular, destacando-se da

humanidade e apresentando-se sozinho diante da Virgem, considerando-se seu servo (Esta

dona que tenno por Sennor), e quer ser o seu Trovador (e de que quero seer trobador); quer

ser amado por ela. E, se isso ocorrer, (se eu per ren poss'aver seu amor) entregará ao diabo os

outros amores, isto é, as mulheres que teve e que poderia ainda ter (dou ao demo os outros

amores). A Virgem possui um valor altamente expressivo nos sentimentos do poeta, pois ele a

coloca em primeiro lugar em sua poesia (vida), assim confirma-se a devoção que ele tem por

ela. Vale ressaltar o modo como o trovador apresenta a Virgem no refrão e prepara, na outras

estrofes, o seu encontro pessoal com ela. Na primeira estrofe, a vemos sozinha, em sua beleza

e misericórdia. Nas três outras, Santa Maria encontra-se com a humanidade diante de si.

Porém, ela é apresentada pouco a pouco, "em gradação descendente, até chegar ao Poeta: 2ª

estrofe, ome (…); 3ª estrofe, nós (…); 4ª estrofe, eu, Dom Afonso, entendedor da Virgem, isto

é seu namorado". No terceiro estágio o poeta se coloca em uma relação amorosa, quando se

encontra frente a frente com ela. Nesse momento de elogios e admiração por sua dona, ele em

"garantia de exclusividade amorosa, entrega ao demônio as mulheres que amou e que não

foram poucas. Esse é o compromisso que assume com a dona que é sua senhor.” (LEÃO

2007, p. 141)

Na pesquisa das duas formas diferentes de arte,

o verbal (o texto poético) e o não verbal (a iluminura),

comprovamos estruturas próprias de significação e

apreensão particular do real para reconstruí-lo na obra.

Para Silveira (2009, p. 98, 99), as imagens constituem-

se em um precioso documento de arte literária e

iconográfica, fontes históricas de inigualável

conhecimento dos hábitos, costumes e mentalidade da

Idade Média.

A iluminura (Figura 1, CSM: 10 Fl18r) que

acompanha a cantiga 10 é constituída de seis vinhetas

sequenciais não possuindo uma correspondência

biunívoca com as quatro estrofes que compõem o texto

da cantiga, dando, desse modo, independência à

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narrativa visual, proporcionando a ampliação e o detalhamento em relação à narrativa verbal.

Das seis vinhetas que compõem a iluminura, quatro limitam-se a ilustrar apenas o refrão:

Rosa das rosas e Fror das fores / Dona das donas / Sennor das sennores, conforme podemos

observar nos títulos de cada vinheta que compõe a iluminura, exaltando, dessa forma, as

características da Virgem Maria face as demais donas e sennores.

A primeira vinheta, cujo título é Como Santa Maria é Rosas das rosas, ilustra a

Virgem Maria sentada ao centro de um canteiro de rosas vermelhas, emoldurado por um

semicírculo de fundo claro, tendo na parte superior da miniatura as casas do povoado. As

rosas que estão abertas são compostas por sete pétalas, indicando o número bíblico da

perfeição e o que fora expresso na primeira parte do refrão: Rosa das rosas. O canteiro

apresenta-se repleto de rosas (abertas e fechadas), com galhos maiores e menores, com folhas

semelhantes a de rosas que preenchem a moldura, abraçam a Virgem Maria. As cores dourado

e branco e a coroa sobre a cabeça da Virgem Maria indicam a realeza e a beleza da Santa Mãe

de Deus.

A segunda vinheta, no entanto, dando continuidade ao que é expresso no refrão (Fror

das frores) ilustra a Virgem sentada no centro de um canteiro de flores variadas, tendo

destaque o lírio que, na tradição popular católica, é o símbolo da pureza e da beleza perfeita,

remetendo-nos à expressão latina lilium inter spinas (lírio entre espinhos) citada na Ladainha

de Nossa Senhora de Loreto de 1578 (SÁ FREIRE, 2010). É por isso que nessa vinheta

observamos a Virgem Maria segurando em suas mãos uma das flores do canteiro.

A terceira vinheta retrata a Virgem Maria, ao centro, em um plano mais elevado,

sentada entre seis damas que se vestem como nobres, com uma das mãos voltada para si,

indicando ser ela a Dona das donas, cujo dado é reafirmado pelo título da vinheta: Como

Santa Maria é Donas das donas. Na parte superior, pendendo do teto, há uma cortina que se

abre sobre a Virgem e é presa aos dois lados das colunas, apontando a santidade da Virgem

Maria. Ao centro da cortina uma cruz em tons vermelho e azul. O manto da Virgem,

diferentemente das duas primeiras vinhetas que apresentavam as cores dourado e branco,

agora carregam as cores azul e vermelho, representando, respectivamente a pureza, a

santidade e o poder de Santa Maria face as demais mulheres (donas). Na quarta vinheta,

encerrando a ilustração do refrão, observamos A Virgem sentada ao centro entre seis damas

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coroadas como rainha, afirmando o título: Como Santa Maria é Sennor das senores. Ao fundo

da terceira e quarta vinhetas o miniaturista retrata o teto das casas do povoado local.

Já a quinta e a sexta vinhetas ilustram e representam aquilo que já fora dito no interior

das quatro estrofes da cantiga: [...] Sennor em toller coitas e doores; [...] e pode-ll’ os pecados

perdoar; [...] dou ao demo os outros amores. Na quinta miniatura, observa-se Santa Maria, de

pé, de mãos abertas, recebendo, curando e aliviando as aflições e as dores de vários doentes

que a ela foram levados por dois anjos, conforme retrata o miniaturista, com longas asas,

vestes brancas e detalhes dourados na gola, nas mangas e na auréola, representando aquilo

que fora expresso no último verso da primeira estrofe da cantiga: Sennor en toller coitas e

dores. Todas os seres representados neste quadro, fitam seus olhares em Santa Maria, pois ela

é a Senhora que tem o poder de perdoar os pecados e de curar todas as dores e aflições

daqueles que a ela se confiam, bastando, para isso, um simples toque ou olhar, conforme

afirma a segunda e a terceira estrofes da cantiga: [...] e pode-ll’ os pecados perdoar; [...]

Devemo-la muit’amar e servir, / ca punna de nos guardar e falir.

Por fim, a sexta e última vinheta que compõe esta iluminura apresenta a Virgem Maria

sentada em seu trono sobre o altar, tendo ao colo o Menino Jesus e, ajoelhado aos seus pés, na

escadaria do altar, Dom Alfonso X que, com uma das mãos, aponta à Virgem Maria e com a

outra, afasta de si as outras mulheres, entregando-as ao demônio, conforme relato da quarta

estrofe da cantiga: Esta dona que tenno por Sennor / e de que quero seer trobador, / se eu per

ren poss’aver seu amor, / dou ao demo os outros amores. Dessa feita, ao entregar ao demônio

as outras mulheres, este, pintado em negro pelo miniaturista e contrastando com o colorido do

quadro, domina as mulheres que acabara de receber do Rei Sábio, mantendo-se à porta da

capela, onde nem o demônio e tampouco as mulheres podem entrar. Nesse sentido,

literalmente Dom Alfonso dá ao diabo as mulheres que outrora havia amado, dedicando seu

trovar e sua vida à Virgem Maria.

Ao concluir a ilustração da cantiga, na última vinheta, o Rei Sábio já tem por

convicção o amor da Virgem. Tanto que, diferentemente do que é representado nas demais

iluminuras, onde o altar é ornado com flores estilizadas ou cruzes, nesta cantiga é

representado, de forma alternada, quadrículos com a imagem de um leão dourado sobre um

fundo branco e de um castelo dourado sobre o fundo vermelho, ou seja, as armas do brasão

dos reinos de Leão e Castela, símbolos dos reinos de Dom Alfonso X. A mudança na

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decoração do altar surge como uma resposta afirmativa da Virgem Maria à proposta do Rei

Sábio: renunciar aos amores terrenos, entregando suas amantes ao demônio e doando-se

integralmente à Santa Maria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Afonso X, de origem espanhola, é chamado de o rei sábio, mostrou-se um trovador de

destaque no movimento trovadoresco. Escreveu as Cantigas de Santa Maria, num total de

430 composições musicadas, que contavam os prodígios da Virgem Santíssima. No entanto,

nas cantigas de louvor, ele ressalta a figura da mulher sublimada, cujo modelo é a Virgem

Maria, que intercede e livra os homens dos males e dos pecados, resgatando-os aos céus e a

Deus. Utilizou o galego-português para expressar suas cantigas, pois esta era a língua de

prestígio da época. (SPINA, 1961, p.46) A “Provença não exportou para as terras galego-

portuguesas a sua língua, mas a influência benéfica e purificadora de sua poesia sobre aquelas

que já cantavam as populações rústicas e burguesas de Entre Douro e Minho.” (SPINA, 1996,

p.43).

Referências:

DUBY, G. Damas do Século XII. Tradução de COSTA, T. Lisboa: Teorema, 1995. LAPA, M.R. Lições de Literatura Portuguesa- época medieval. Coimbra: Coimbra Editora 8ªed., 1973. LE GOFF, J. A civilização do Ocidente Medieval. Tradução MACEDO J. R. S. Paulo: Edusc, 2005. MACEDO, J. R. A Mulher na Idade Média. São Paulo:Contexto,1999. SPINA, S. Presença da Literatura Portuguesa. S. Paulo: Difusão Européia do Livro, 1961. AFONSO X, O Sábio. Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann. 4 volumes. Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1959-1972. HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. Mestre Jou, 1982.

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SÁ FREIRE, Rita de Cássia Pinho França de. Nossa Senhora auxílio dos cristãos: títulos, orações e devoções. São Paulo: Editora Petrus, 2010. SILVEIRA, Josilene Moreira. O perfil das mulheres religiosas em Cantigas de Santa Maria e Miniaturas. 2009. 182 f. Dissertação de Mestrado – Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2009. LEÃO, Angela Vaz. Cantigas de Afonso X a Santa Maria. Belo Horizonte: Veredas e Cenários: 2011.