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|1| Trabalho & Educação | Belo Horizonte | v.24 | n.1 | p. E00-E00 | jan-abr | 2015 A DIALÉTICA ENTRE O IDEAL E O MATERIAL: CONSIDERAÇÕES SOBRE O COMPLEXO CATEGORIAL DA POLÍTICA NA OBRA TARDIA DE LUKÁCS Dialectic between the ideal and material: consideration of the categorical complex policy in the later work of Lukács FORTES, Ronaldo Vielmi 1 RESUMO O artigo segue em direção a explicitar os principais pontos de interesse acerca da posição política madura do filósofo húngaro György Lukács. A importância de estudos nessa direção está em confrontar equívocos provocados, na maior parte dos casos, pela ausência de interesse e investigação das posições tomadas pelo autor. Para alcançar a densidade teórica da categoria política lukacsiana, foram realizadas a leitura e a análise imanente de sua obra Para uma ontologia do ser social, em especial dando ênfase aos capítulos que tratam da ideologia, da alienação e do estranhamento. O artigo se mostra como ponto de partida para elaborações mais profundas que se fazem necessárias. Aqui, nos ocupamos em demarcar as diretrizes que conduzem a humanidade em seu desenvolvimento histórico/social a promover a política como mediadora dos conflitos coletivos, envolvendo as possibilidades postas pela realidade concreta. Ao mesmo tempo, demonstra a centralidade da ação e escolhas humanas pelo conjunto de pores teleológicos nos processos políticos que orientam a organização da vida social. Ou seja, a partir da óptica lukacsiana, concentramo-nos em elucidar a potencialidade e os limites da política como categoria mediadora da vida social. Palavras-chave: Ontologia; Teleologia; Política. ABSTRACT The article goes towards to clarify the main points of interest on the mature political position of the Hungarian philosopher György Lukács. The importance of studies in this direction is to confront misconceptions caused, in most cases, lack of interest and research of the positions taken by the author. To achieve the theoretical density in the category of the lukacsian policy, activities including reading and the immanent analysis of his work to an ontology of social being have been made, especially emphasizing the chapters dealing ideology, alienation and estrangement. The article shows as a starting point for deeper elaborations that are necessary. Here we are concerned with demarcating the guidelines that lead humanity in its historical / social development to promote policy as a mediator of collective disputes, involving the possibilities offered by reality. At the same time, demonstrates the centrality of action and human choices by the set of teleological pores in policy processes that guide the organization of social life. That is, from the optical Lukacsian, we focus on elucidating the potential and limits of politics as mediator category of social life. Keywords: Ontology; Teleology; Policy. 1 Doutor e Mestre em Filosofia pela UFMG, com Pós-Doutorado pela Universidade de Buenos Aires e Graduação em Psicologia pela Fundação Mineira de Educação e Cultura. Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: <[email protected]>.

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    A diAlticA entre o ideAl e o mAteriAl: considerAes sobre o complexo cAtegoriAl dA polticA nA obrA tArdiA de lukcs

    Dialectic between the ideal and material: consideration of the categorical complex policy in the later work of Lukcs

    FORTES, Ronaldo Vielmi1

    resumoO artigo segue em direo a explicitar os principais pontos de interesse acerca da posio poltica madura do filsofo hngaro Gyrgy Lukcs. A importncia de estudos nessa direo est em confrontar equvocos provocados, na maior parte dos casos, pela ausncia de interesse e investigao das posies tomadas pelo autor. Para alcanar a densidade terica da categoria poltica lukacsiana, foram realizadas a leitura e a anlise imanente de sua obra Para uma ontologia do ser social, em especial dando nfase aos captulos que tratam da ideologia, da alienao e do estranhamento. O artigo se mostra como ponto de partida para elaboraes mais profundas que se fazem necessrias. Aqui, nos ocupamos em demarcar as diretrizes que conduzem a humanidade em seu desenvolvimento histrico/social a promover a poltica como mediadora dos conflitos coletivos, envolvendo as possibilidades postas pela realidade concreta. Ao mesmo tempo, demonstra a centralidade da ao e escolhas humanas pelo conjunto de pores teleolgicos nos processos polticos que orientam a organizao da vida social. Ou seja, a partir da ptica lukacsiana, concentramo-nos em elucidar a potencialidade e os limites da poltica como categoria mediadora da vida social.

    Palavras-chave: Ontologia; Teleologia; Poltica.

    AbstrActThe article goes towards to clarify the main points of interest on the mature political position of the Hungarian philosopher Gyrgy Lukcs. The importance of studies in this direction is to confront misconceptions caused, in most cases, lack of interest and research of the positions taken by the author. To achieve the theoretical density in the category of the lukacsian policy, activities including reading and the immanent analysis of his work to an ontology of social being have been made, especially emphasizing the chapters dealing ideology, alienation and estrangement. The article shows as a starting point for deeper elaborations that are necessary. Here we are concerned with demarcating the guidelines that lead humanity in its historical / social development to promote policy as a mediator of collective disputes, involving the possibilities offered by reality. At the same time, demonstrates the centrality of action and human choices by the set of teleological pores in policy processes that guide the organization of social life. That is, from the optical Lukacsian, we focus on elucidating the potential and limits of politics as mediator category of social life.

    Keywords: Ontology; Teleology; Policy.

    1 Doutor e Mestre em Filosofia pela UFMG, com Ps-Doutorado pela Universidade de Buenos Aires e Graduao em Psicologia pela Fundao Mineira de Educao e Cultura. Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: .

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    Pouco se escreveu sobre as elaboraes de Gyrgy Lukcs acerca da poltica em suas obras tardias. Os raros escritos que tratam do tema so tpicos e por vezes no fazem jus aos fundamentos estabelecidos pelo pensador magiar. A escassez de estudos mais aprofundados provavelmente a maior responsvel por atribuies imprecisas e concluses apressadas, responsveis por afirmar sem nenhuma demonstrao probante a inexistncia de reflexes mais depuradas no interior do pensamento tardio lukacsiano suficientes para estabelecer as bases demonstrativas que deem conta da esfera da poltica. Grande parte dessas acusaes, a nosso ver infundadas, baseia-se no fato de ser impossvel observar em Lukcs o tratamento direto e mesmo extenso de questes centrais do pensamento poltico, como por exemplo, a inexistncia em seu pensamento de uma teoria do Estado. A ausncia de tais elementos em suas reflexes induz afirmao, por parte de alguns comentadores, da irrelevncia ou insuficincia no tratamento dos temas a ela relacionados, uma vez que no encontramos em sua obra consideraes sistematizadas sobre o tema.

    Contra tais conjecturas, pretendemos demonstrar neste artigo como a leitura atenta da ltima grande obra lukacsiana Para uma ontologia do ser social permite extrair determinaes precisas, cruciais para demarcar a natureza precipitada e, s vezes, at mesmo mal-intencionada das consideraes sobre o desdobramento da temtica no pensamento tardio do filsofo hngaro. O modo pelo qual o autor estrutura a sua obra confere a falsa impresso de que ao tema so dedicadas pouco mais de quarenta pginas. No entanto, por mais que as referncias diretas ao tema estejam concentradas em um momento especfico de suas elaboraes em torno do tema da ideologia, a riqueza de determinaes e o complexo de problemas em torno da poltica transcendem em muito as fronteiras das determinaes estabelecidas nessas pginas. Grande parte das consideraes desenvolvidas sobretudo nos captulos finais de sua obra O ideal e a ideologia e O Estranhamento so atravessadas por determinaes condizentes ao problema da poltica. Tal procedimento parece indicar que a forma peculiar pela qual a questo da poltica tratada no corresponde a uma insuficincia em suas consideraes, mas condiz com a maneira especfica pela qual Lukcs determina a poltica no interior do quadro da totalidade do ser social. A elucidao da forma peculiar pela qual o problema tratado constitui o objeto deste artigo.

    O primeiro ponto a destacar a incongruncia do tratamento dado por Lukcs ao tema quando comparado com as tendncias dominantes da atualidade. A justa crtica feita pelo pensamento poltico ao economicismo que caracterizou sobremaneira o marxismo vulgar (em particular em sua vertente stalinista) foi substituda pela nfase demasiada na poltica, conduzindo toda a discusso para o extremo oposto, assumindo as feies de um voluntarismo poltico. Considerando os rumos assumidos pela filosofia poltica desde meados do sculo XX at nossos dias, verifica-se uma autonomizao da esfera poltica em face das demais dimenses da prtica social humana. A poltica compreendida como atributo central do prprio homem, assumindo a primazia no processo de determinao de seu ser e da dinmica societria em sua totalidade.

    Diante do edifcio categorial do pensamento marxiano, compartilhado de maneira evidente por Lukcs, tal forma de considerao no pode deixar de suscitar srios questionamentos. Tal nfase no vis poltico

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    dissocia, ao separar o social do econmico, o agente ativo e sensvel (o social) da prpria atividade sensvel (o econmico), o sujeito de seu prprio predicado, e s os religa pela mediao, tornada decisiva da atividade extrassensvel (a poltica). Em Marx as determinaes vo do complexo unitrio e fundante do socioeconmico, ou seja, da interatividade multilateral e contraditria da sociedade civil, para a arena poltica [...]. uma desvinculao ontolgica da atividade sensvel dos homens, reenfatizando a atividade suprassensvel, ou seja, h uma desobjetivao que proporciona uma reenfatizao terica da subjetividade e de um suposto carter arbitrrio ou aleatrio da lgica dos processos reais [...] (CHASIN, 2000, p.14).

    Contra essa perspectiva, na obra lukacsiana, a herana de Marx transparece com grande nitidez em suas postulaes, pois

    reconhece e sustenta a unidade indissolvel da esfera socioeconmica, ou seja, a efetividade da produo material como atividade vital dos indivduos sociais, ou seja, a inseparvel interatividade dos produtores, a determinao recproca entre homem, atividade e sociabilidade; o agente, sua capacidade ou predicado e o exerccio real deste so formas e modos da atualizao social (CHASIN, 2000, p.14).

    O resgate dessas determinaes do pensamento marxiano no significa de modo algum a aceitao das teses do marxismo vulgar em torno do tema. A Ontologia de Lukcs refuta de igual maneira o modo problemtico com que a poltica foi compreendida no edifcio conceitual do marxismo do sculo XX, destacando a necessidade de construir o termo mdio entre dois falsos extremos, qual seja, o do politicismo e do economicismo. O conjunto das determinaes lukacsianas em torno do problema

    representa uma ruptura com as duas correntes principais do marxismo vulgar, tanto com aquela que se atm a uma rigorosa determinidade do econmico ao estilo de Laplace, vislumbrando na ideologia uma superfcie meramente aparente, em ltima anlise, sem influncia, do acontecimento real rigorosamente necessrio, quanto com aquela oposio a essa concepo que proclama uma autonomia plena das ideologias, especialmente das superiores (filosofia, arte, tica, religio, etc.) em relao aos fundamentos econmicos do acontecimento histrico (LUKCS, 2013, p.490).

    visvel a preocupao em Lukcs de expor de maneira clara a interao de determinao de reflexo efetiva existente entre os fatores objetivos e os fatores subjetivos no interior de toda atividade da poltica. A perda do primeiro encarna a relevncia exagerada do segundo, expondo como ordem prioritria da atividade social humana o campo da poltica, porm essa tomada no em suas dimenses sociais reais, mas de maneira apartada da interatividade concreta com o campo da economia. Em contrapartida a nfase exagerada nos aspectos ideolgicos confere o efeito oposto, gerando uma perigosa negligncia da determinao dos fatores objetivos no curso da histria.

    A superao dessa ambivalncia constitui uma das centrais tarefas de sua obra ontolgica. Para tanto, preciso determinar a posio da poltica no quadro da atividade ideal dos homens; nesse sentido, a compreenso da dimenso prtica da politicidade passa a pressupor a determinao dos traos ontolgicos essenciais do ser social. Tal como Lukcs constata a necessidade de tratar o problema da tica acerca das reflexes fundamentais da ontologia nenhuma tica sem uma

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    ontologia2 , tambm a compreenso da prxis poltica pressupe a ontologia do ser social. Conforme ressalta Nicolas Tertulian, em sua obra Lukcs

    prope restituir poltica, ao direito, moralidade, tica o lugar que lhes corresponde na topografia da sociedade, demonstrando que a densidade e a complexidade do tecido social excluem toda codificao a partir de normas abstratas (TERTULIAN, 2007, p.39).

    A determinao da poltica formulada por Lukcs se encontra fundada sobre um largo conjunto de consideraes sobre a ontologia do ser social. Os princpios ontolgicos fundamentais permitem compreender os vnculos efetivos existentes entre a dimenso ideal da sociabilidade humana (nesse caso, a poltica enquanto ideologia) com a esfera material da reproduo da vida. A poltica no tem, portanto, o peso e a unilateralidade da autonomia categorial como aquele presente nas filosofias atuais. Para o filsofo hngaro, a considerao do processo gentico da atividade sensvel humana evita tomar os comportamentos ideolgicos como atividades puramente espirituais, como a essncia das prticas sociais, reduzindo a luta real dos homens reais por sua existncia condio de desprezvel submundo da existncia (LUKCS, 2013, p.501). O peso real, efetivo, da politicidade (assim como da ideologia em geral) somente pode ser determinado a partir da anlise dos complexos de problemas mais importantes do ser social, na devida interao desses complexos no interior da dinmica processual da sociedade. Somente por meio de tais determinaes recprocas se torna compreensvel o lugar da poltica no interior do quadro geral da espiritualidade humana.

    O desenvolvimento do tema da politicidade na obra tardia de Lukcs impe, desse modo, a compreenso daquilo que o autor descreve como a caracterizao mais geral de toda atividade humana, ou seja, o pr teleolgico. Nesse sentido, a poltica uma das tantas formas do pr teleolgico. A diferenciao entre os atos teleolgicos orientados diretamente natureza (caractersticos do trabalho) e os atos teleolgicos cujos fins objetivam influenciar outros indivduos a assumir determinados ideais e comportamentos serve como ponto de partida para situar a gnese da atividade ideolgica (TERTULIAN, 2008, p.118) na qual a poltica, como veremos, se inclui. Entre a poltica enquanto pr teleolgico e o trabalho, determinado por Lukcs como a forma originria do pr teleolgico, existem traos comuns. A compreenso da forma superior da prtica social impe, em um primeiro momento, a compreenso da forma originria para a determinao da estruturao mais geral de toda prtica social; em um segundo momento, a considerao das diferenas revela a natureza especfica da prxis poltica diante das demais. Nos termos do autor:

    o trabalho se torna o modelo de toda prxis social, na qual, com efeito mesmo que atravs de mediaes s vezes muito complexas , sempre se realizam pores teleolgicos, em ltima anlise, de ordem material. claro, como veremos mais

    2 Keine Ethik ohne Ontologie (LUKCS, 1994, p.110). O Esboo para uma tica onde se encontram reunidos um conjunto de anotaes esparsas escritas na primeira metade da dcada de 1960, constitui um dos documentos mais significativos da trajetria lukacsiana anterior a seus escritos sobre a ontologia do ser social. Ele contm anotaes escritas no exato momento em que Lukcs est concluindo sua esttica e rascunha elementos para seus estudos subsequentes, a tica. Como do conhecimento de muitos, o que estava previsto para ser uma simples introduo preparatria tica, adensa em volume de pginas e temas correlacionados, ganhando a feio de um problema autnomo e, em grande medida, prioritrio em relao ao tratamento da tica. O projeto da tica paulatinamente foi posto de lado e deu lugar s suas elaboraes acerca da ontologia do ser social.

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    adiante, que no se deve exagerar de maneira esquemtica esse carter de modelo do trabalho em relao ao agir humano em sociedade; precisamente a considerao das diferenas bastante importantes mostra a afinidade essencialmente ontolgica, pois exatamente nessas diferenas se revela que o trabalho pode servir de modelo para compreender os outros pores socioteleolgicos, j que, quanto ao ser, ele a sua forma originria (LUKCS, 2013, p.47).

    A anlise categorial do complexo trabalho demonstra como o processo de transformao da natureza empreendido pelo homem uma via de mo dupla: ao mesmo tempo em que o homem impe natureza movimentos que ela por si s no realizaria, ele se submete ao mesmo tempo s suas leis e suas necessidades. Do lado natureza temos a presena da causalidade enquanto princpio necessrio e insuprimvel, do lado do homem se encontram a vontade e a capacidade humana de apreender idealmente a malha causal da natureza para depois realizar sua transformao em conformidade a suas carncias e finalidades. A atividade prtica humana aparece assim como unidade entre a finalidade, a prvia ideao dos meios e a correta atuao sobre os nexos causais do elemento natural, ou, nos termos lukacsianos, implica a superao da heterogeneidade entre teleologia e causalidade. Na verdade tais categorias nada mais so do que componentes de um nico e mesmo processo, momentos especficos articulados em seu interior sob a forma da determinao de reflexo.

    O pr teleolgico no , nesse sentido, mera aspirao ou simples desejo. Pelo contrrio, consiste no xito adequado, na produo efetiva de uma objetividade. O termo pr tem o sentido da efetiva realizao de um telos e no de simples inteno ou da mera projeo de uma finalidade. No pode existir teleologia sem uma causalidade que a realize. O efetivo entendimento da ao da teleologia implica de modo necessrio a inter-relao indissocivel com a categoria causalidade. Sob esse aspecto, somente se pode falar de existncia real e concreta da teleologia enquanto teleologia posta, como realizao concreta da finalidade previamente estabelecida. O resultado do trabalho se configura como a sntese entre o movimento causal da natureza e o direcionamento teleologicamente estabelecido pela atividade do homem. O objeto produzido a expresso da superao da heterogeneidade entre teleologia e causalidade.

    A novidade ontolgica desse processo de diferenciao est sobretudo no fato de que o destacamento do homem do seu ambiente cria as condies necessrias para que na conscincia surja a reproduo ideal espelhamento daquelas propriedades dos objetos diretamente vinculadas atividade laborativa. Trata-se da capacidade de abstrao humana, da apropriao ideal ou possesso espiritual dos atributos e das propriedades pertencentes aos entes. A descoberta de novas combinaes passveis de serem realizadas um ato do sujeito que se apropria idealmente da malha causal que governa os objetos; o indivduo quem elabora e descobre novas articulaes possveis nos atributos do elemento natural, produzindo, desse modo, formas de objetividade completamente distintas daquelas existentes na natureza. A anlise do momento ideal constitui nessa medida o ponto central da tematizao lukacsiana acerca do pr teleolgico, pois, nesta atividade ideal, podem ser encontrados os elementos essenciais que estabelecem os princpios diferenciadores que delimitam a peculiaridade ontolgica do ser social. Obviamente

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    a nfase na preponderncia do momento ideal no exclui a determinao da inseparabilidade desse momento com o momento material. O trabalho entendido como a unidade entre o momento material (a atividade produtiva propriamente dita) e o momento ideal (prvia ideao, ou atividades preparatrias ideais) e apenas nessa medida constitui o fundamento da produo de objetividades radicalmente distintas daquelas presentes na natureza.

    Nas formas superiores da prtica, temos o predomnio de pores teleolgicos fundamentalmente distintos. Esses pores no se encontram mais diretamente voltados para a atividade cujo objeto primordial o elemento da natureza, mas tem como finalidade primeira levar outros homens a desempenhar funes especficas, a assumir ideias e comportamentos previamente ideados. A diferena entre as duas formas do pr diz respeito ao objeto sobre o qual a ao exercida. Os pores teleolgicos prprios da atividade laborativa primrios atuam de forma imediata sobre um objeto ou elemento natural, enquanto o outro tipo pores teleolgicos secundrios tem como finalidade a conscincia de outros homens, ou seja, visam levar outros homens a assumir e acatar em sua conscincia certas finalidades e determinadas aes com vistas realizao:

    Desse modo,

    Nas formas ulteriores e mais desenvolvidas da prxis social, destaca-se em primeiro plano a ao sobre outros homens, cujo objetivo , em ltima instncia mas somente em ltima instncia , uma mediao para a produo de valores de uso. Tambm nesse caso o fundamento ontolgico-estrutural constitudo pelos pores teleolgicos e pelas cadeias causais que eles pem em movimento. No entanto, o contedo essencial do pr teleolgico nesse momento falando em termos inteiramente gerais e abstratos a tentativa de induzir outra pessoa (ou grupo de pessoas) a realizar, por sua parte, pores teleolgicos concretos (LUKCS, 2013, p.83).

    Verifica-se, nas formas superiores, a autonomizao e a ampliao das categorias e dinmicas intrnsecas ao complexo originrio. Essas passam a se realizar atravs de um processo de crescente diferenciao e distanciamento com a estrutura originria. Esse distanciamento no implica entretanto a negao ou a separao radical da base originria aqui entendida como a relao inexorvel entre homem e natureza. Na perspectiva lukacsiana, necessrio compreender que a crescente diferenciao ocorre sempre sobre essa base, transformando as formas com que so estabelecidas essas relaes, tornando-as mais complexas e mais socialmente mediadas. H nesse sentido uma descontinuidade na continuidade, na medida em que as formas mais complexas no pr da prxis poltica contm traos essenciais do complexo originrio, contudo, apresentam diante destes outros traos peculiares distintivos. Em termos mais sucintos, pode-se falar de uma igualdade e de uma diversidade entre os dois grandes grupos de pores teleolgicos:

    A igualdade baseia-se em que, tanto no metabolismo com a natureza como na influncia dos pores teleolgicos de outras pessoas, o pr s pode se tornar efetivo quando pe em marcha pessoas, foras etc. reais como seu objeto intencional. Correspondendo diferena entre os dois tipos de pores teleolgicos, o coeficiente de incerteza, como sabemos, no s bem maior no segundo grupo, como tambm de uma grandeza que reverte para o plano qualitativo. Essa diferena, contudo, no

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    anula o fundamento ontolgico comum recm-determinado: a necessidade de incidir no ser. Todavia, isso vlido s dentro de certos limites, inclusive no metabolismo com a natureza: por um lado, um pr jamais poder ser efetuado com o conhecimento pleno e adequado de todos os momentos do seu surgimento; por outro lado, essa exigncia se restringe sempre ao fim imediato do trabalho. Ora, essa restrio torna ainda mais evidente o carter qualitativo da diferena. No s o permetro do no conhecido incomparavelmente maior no caso de decises polticas, mas a peculiaridade qualitativa da diferena se expressa tambm no fato de que, no metabolismo com a natureza, as legalidades fundamentais do objeto apenas podem ser conhecidas, enquanto o desenvolvimento social, justamente em virtude dessa exigncia, capaz de produzir a partir de si mesmo novas formas, novas legalidades (LUKCS, 2013, p.509-510).

    Se no mbito do trabalho os nexos causais aparecem de forma mais direita e imediata, na medida em que esto em jogo as leis da natureza, no campo da poltica a matria sobre a qual incide as aes dos homens mais fluida e inconstante. A objetividade nesse plano da atividade humana corresponde a formas sociais de interao entre os homens, formas essas que guardam uma relao, ainda que em ltima instncia, com a dimenso econmica da sociabilidade. Nesse sentido, a poltica aparece como a prevalncia dos pres teleolgicos secundrios cuja primazia, em ltima instncia, volta-se para o complexo social da reproduo, ou seja, para a esfera econmica. Nesse preciso sentido da interao do campo da idealidade com a esfera da reproduo material da sociedade, o que no se pode em momento algum perder de vista a determinao da necessidade de incidir no ser. O pr teleolgico da prxis poltica apresenta de igual modo finalidades que devem necessariamente atuar sobre a realidade social, por meio da compreenso da malha causal postas em jogo nos processos sociais.

    Guardadas as devidas diferenas, a mesma relao geral entre o momento ideal e o material3 se mantm nessa dimenso mais complexa da prtica, mas sofre uma elevao no grau de complexidade, apresentando modificaes importantes com a forma originria. No captulo O Ideal e a Ideologia, Lukcs apresenta o divisor de guas do duplo mbito das investigaes em torno do complexo ideal: a preocupao central destacar as diferenas entre o momento ideal enquanto componente indissocivel do complexo trabalho e a forma da sua realizao naquelas instncias da atividade social que se pem para alm da esfera material. Essas questes funcionam no interior de seu raciocnio como elementos de transio de um patamar de reflexo para outro, ou seja, so os elementos de passagem que levam da elucidao do ideal no processo da gnese do ser social at a determinao dos desdobramentos do momento ideal nas formaes superiores da prtica social.

    Essa parte da obra decisiva para nossa anlise, pois nela esto expostas determinaes concernentes aos processos de formao das concepes de mundo, das formas ideais fundamentais na deciso dos rumos e das diretrizes do desenvolvimento do ser social. Os homens, com o objetivo de operacionalizar a prpria existncia, precisam responder a problemas postos em sua vida prtica cotidiana. As formaes ideais tm neste mbito papel relevante no direcionamento da dinmica social. Compreender a

    3 Importante observar a mudana no uso de categorias operadas de um modo no consciente assim nos parece por Lukcs no decurso de suas elaboraes. Nos primeiros captulos a duplicidade sempre apresentada pela relao dialtica entre momento material e momento ideal [des Materiellen und des Ideellen], j nos captulos III e IV, em diversos momentos Lukcs j no fala mais de momento material, mas de momento real, para ser mais preciso de uma Dialektik des Ideellen und Reellen (LUKCS, 1986, p.II, 300).

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    maneira pela qual elas se formam e a maneira como agem no seio dos desdobramentos sociais imprescindvel no apenas para determinar o modo como elas direcionam os rumos da dinmica social, mas tambm para entender a forma como elas interferem no prprio processo de conhecimento da realidade.

    No se pode, entretanto, incorrer no equvoco de pressupor o ideal como uma dimenso extrnseca economia, identificando de maneira direta as relaes econmicas como o momento material. As prprias relaes da economia carregam em seu interior a dimenso do momento ideal, na medida em que so elas tambm processos em cuja base est o pr teleolgico.

    Na esfera da economia se encontra presente as duas formas do pr teleolgico, tanto aqueles que visam diretamente ao sobre a natureza quanto aqueles que visam conscincia de outros indivduos. Na economia no existe um automovimento das coisas, mas atos da prxis humana que movem as prprias coisas. As consideraes de Marx so retomadas como forma de demonstrar que o movimento da economia sempre pressupe atos econmicos dos compradores ou ento dos vendedores (LUKCS, 2013, p.359). Por mais que as tendncias dessa esfera possam vir a se constituir como formas de objetividade que atuam independentemente das conscincias dos indivduos, elas so fruto dos conjuntos das aes desses indivduos. Para Lukcs, as tendncias mais gerais da economia so resultantes da indissolvel concomitncia operativa entre o homem singular e as circunstncias sociais em que atua (LUKCS, 1986, p.I, 618), em suma, so a sntese dos inmeros pores teleolgicos singulares efetivados no processo histrico de desenvolvimento da humanidade. Ressalte-se aqui singulares, pois o processo no possui telos, um fim ltimo para o qual caminha arrastando consigo as individualidades. O processo dinmico da economia fruto dos pores teleolgicos singulares assumidos pelos indivduos que determinam, por suas decises prticas imediatas, a diretriz do processo, sendo simultaneamente determinados pela totalidade do complexo do ser social desse modo constituda. A legalidade nas prticas superiores da sociedade nasce dos prprios atos singulares dos indivduos; esses, ao decidirem entre alternativas postas em suas prticas singulares, pem em movimento outras determinaes sociais gerais que transcendem a imediatidade de suas decises, produzindo outras alternativas de estrutura anloga e fazem surgir sries causais cuja legalidade termina por ir alm das intenes contidas nas alternativas (LUKCS, 1986, p.I, 618).

    O momento ideal compe de maneira necessria a prpria esfera da economia, porm no se restringe apenas a essa dimenso. Nos desdobramentos da processualidade social, o ideal perfaz uma complexidade sempre crescente, assumindo dimenses mais fluidas e relativamente autnomas, muito embora em ltima instncia, mas somente em ltima instncia jamais perca o vnculo com essa base. O complexo da ideologia expresso cabal dessa especificidade do ideal, como figura mais sutil, mais mediada, do momento ideal na dinmica da sociabilidade.

    A ideologia determinada como formaes ideais diversas por meio das quais os homens organizam suas aes e reaes ao mundo como forma de conscientizar e equacionar a resoluo dos conflitos de sua prxis social. Aparece desse modo definida como uma funo social, e no como uma teoria do falso socialmente necessrio

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    que age como dominao no mbito da sociabilidade como de costume se pensa a ideologia. Rompe-se assim com a ideia da ideologia como contedo estanque, assim como se refuta a ideia da ideologia como atributo especfico de elementos fixos da prtica social. A ideologia constitui um momento ideal da ao prtica dos homens; qualquer reao ou resposta sejam elas produzidas pela cincia, filosofia, religio, tradio, etc. , construdas pelos indivduos como forma de atuar sobre os problemas postos pelas situaes histrico-sociais, pode se tornar ideologia, quando fornece elementos e condies para conscientizar, enfrentar e operacionalizar conflitos surgidos na prtica social. O que determina se dado conjunto de ideias ou no ideologia a sua funo social e no o seu carter de falsidade, pois

    a mais pura das verdades objetivas pode ser manejada como meio para dirimir conflitos sociais, ou seja, como ideologia, j que ser ideologia de modo algum constitui uma propriedade social fixa das formaes espirituais, sendo, muito antes, por sua essncia ontolgica, uma funo social e no um tipo de ser (LUKCS, 2013, p.564).

    Por vias de consequncia:

    Nem um ponto de vista individualmente verdadeiro ou falso, nem uma hiptese, teoria etc., cientfica verdadeira ou falsa constituem em si e por si s uma ideologia: eles podem vir a tornar-se ideologia, como vimos. Eles podem se converter em ideologia s depois que tiverem se transformado em veculo terico ou prtico para enfrentar e resolver conflitos sociais, sejam estes de maior ou menor amplitude, determinantes dos destinos do mundo ou episdicos (LUKCS, 2013, p.467).

    No so necessrias muitas palavras para demonstrar como de modo evidente a poltica se circunscreve como momento especfico no interior dessa atividade ideal, determinada em termos gerais como ideologia. A incurso da poltica como forma especfica da ideologia, e no como uma dimenso paralela a esta, tem inspirao no prprio Marx:

    A transformao da base econmica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alteraes necessrio sempre distinguir entre a alterao material que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa das condies econmicas de produo, e as formas jurdicas, polticas, religiosas, artsticas ou filosficas, em resumo, as formas ideolgicas pelas quais os homens tomam conscincia deste conflito, levando-o s suas ltimas consequncias (MARX, 1971, p.9-10).

    A poltica se caracteriza como a incidncia direta sobre a imediatidade da vida social (TERTULIAN, 2008, p.118). A complexidade da prxis poltica, enquanto momento ideal diretamente vinculado necessidade de responder a questes e problemas concretos do hic et nunc social, transparece de maneira evidente na riqueza e no emaranhado de mltiplas determinaes provenientes dos mais diversos mbitos, somente passveis de serem elucidados com a anlise marxiana da dialtica entre essncia e fenmeno. Isso porque, diferentemente daquilo que se apresenta no metabolismo homem/natureza, na dimenso da esfera ideolgica (na qual a poltica se encontra inserida),

    essa constelao ontolgica de cunho geral experimenta, no mbito do ser social, uma intensificao qualitativa perante as formas mais simples do ser. Isso tem por base, em primeiro lugar, como j do nosso conhecimento, a gnese e a determinidade de

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    todos os seus momentos por meio de pores teleolgicos, que como desencadeadores de cadeias causais reais unem em si a essncia operante real e o fenmeno que surge realmente numa interao de tipo diferente do que costuma se dar em complexos que surgiram de modo meramente causal. Em segundo lugar, eles fazem surgir forosamente formas objetivadas, alienadas e desencadeiam, em suas sequncias ulteriores, outras objetivaes e alienaes mais. Surge da uma ligao totalmente nova em comparao com os tipos de ser mais simples entre os dois complexos elementares-fundamentais do ser social: entre a totalidade real de cada sociedade e a totalidade igualmente real dos homens singulares que a constituem (LUKCS, 2013, p.491).

    H dois aspectos decisivos nessas consideraes. Quanto ao primeiro j discutido acima, convm apenas reforar: a essncia existente na esfera economia obra dos homens, porm a totalidade constituda pela sntese dos pores teleolgicos singulares aparece diante aparece como um conjunto de foras e diretrizes independentes das finalidades conscientes dos indivduos. O segundo aspecto complementa a dinmica complexa da totalidade social aqui em causa, ao destacar que sobre essa base erguida outro denso conjunto de objetivaes e de momentos que se circunscrevem em um plano ideal pertinente ao dos homens singulares, membros ativos dessa sociedade. Os conflitos e as tenses de dados perodos histricos se manifestam de maneira imediata no plano da vida cotidiana. Tais conflitos e tenses so interiorizados pelos indivduos sob a forma de questionamentos que os interpelam de modo imediato exigindo deles respostas e decises para as suas devidas resolues. Configuram-se dessa maneira duas dimenses, ou melhor, dois polos no interior dessa totalidade: a totalidade real da sociedade com as tendncias e foras que atuam independentemente da conscincia dos homens e a totalidade dos homens que, mediante a elaborao ideal, procuram agir de forma a orientar o curso de suas prprias vidas (na qual se encontra inserida prioritariamente a esfera da reproduo material da existncia).

    A base conflitiva da interao entre a essncia e o fenmeno decorre do fato de no poder haver um vnculo direto e imediato entre um plano e outro. As respostas operadas pelos indivduos no mbito de sua prtica social respondem quele conjunto de conflitos e tenses manifestos no plano mais imediato da vida cotidiana. No entanto, atuar sobre a esfera fenomnica da vida no significa que tais aes culminem em meros epifenmenos ou simples consequncias passivas da instncia mais decisiva. No plano ontolgico, essncia e fenmeno constituem um complexo unitrio; desse modo, atuar sobre a dimenso fenomnica pode conduzir a mudanas na prpria essncia. A independncia da esfera essencial, das foras e tendncias nela presentes no deve ser entendida como uma determinao unilateral e necessria, como algo que conduz de maneira cega e inviolvel todos os atos dos homens no interior da sociabilidade. Nesse sentido, os pores determinados [...] pelo desenvolvimento da essncia no so simples mediaes com o auxlio das quais aquilo que necessariamente deve acontecer acaba acontecendo em conformidade com a necessidade. Pelo contrrio, eles influenciam direta ou indiretamente na deciso da essncia, ao ajudarem a determinar o como do mundo fenomnico, sem a corporificao real do qual a essncia jamais poderia alcanar a sua realidade plena, existente para si (LUKCS, 2013, p.494).

    Por isso,

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    de modo algum podemos considerar o mundo dos fenmenos como produto simples, passivos, do desdobramento da essncia, mas que, muito antes, essa inter-relao de essncia e fenmeno constitui um dos fundamentos reais mais importantes da desigualdade, da contraditoriedade no desenvolvimento social. Porm, seria uma simplificao extremamente equivocada se, reconhecendo essa contraditoriedade, fssemos simplesmente identificar essncia com economia, fenmeno com superestrutura. Pelo contrrio. A linha divisria entre essncia e fenmeno atravessa pelo meio da esfera puramente econmica. Esse fato pode ser facilmente autenticado mediante um fenmeno econmico fundamental, j do nosso conhecimento (LUKCS, 2013, p.491-492).

    Isso significa que no se pode estabelecer uma relao direta e simplificadora na qual se identifique a essncia com a base econmica e a manifestao fenomnica com a superestrutura ideolgica. A diviso entre essncia e fenmeno atravessa do incio ao fim a prpria esfera da economia. No mbito da economia, para ilustrar a possibilidade do desenvolvimento desigual, adverte Lukcs (2013, II, p.492), basta pensar na grande disparidade do desenvolvimento agrrio e da agricultura capitalistas na Inglaterra e na Frana. Em termos mais diretos, essas diferenas expressam formaes distintas no interior de tendncia que levam ambos os Estados a assumirem em suas bases a forma caracterstica da economia capitalista.

    A esfera da economia resultado dos pores teleolgicos, age e se dinamiza por meio dos pores teleolgicos, porm toda essa articulao interna de seus processos cria uma condio bastante peculiar:

    Se recordarmos os aspectos da similaridade ontolgica de base e superestrutura, demonstrados no incio deste captulo, ou seja, que ambas esto baseadas em pores teleolgicos e em suas cadeias causais, j no soar to chocante se dissermos que, na realidade social, os limites entre essncia e fenmeno muitas vezes se tornam fluidos, que as diferenas realmente existentes s podem ser constatadas com alguma preciso a posteriori, com o auxlio de anlises conceituais, cientficas (LUKCS, 2013, p.492).

    Em torno disso, Lukcs chega a uma concluso de suma importncia:

    Caso se queira apreender o processo global em sua totalidade, fica claro que o movimento da essncia independente do querer humano de fato constituir a base de todo ser social, mas, nesse contexto, base significa simultaneamente: possibilidade objetiva. Com essa constatao Marx demonstrou que toda ideia de utopia irreal. Mas ele mostrou simultaneamente que por isso mesmo os prprios homens fazem a sua histria, que o desenvolvimento da essncia, independente dos seus pensamentos e da sua vontade, no uma necessidade fatal, que determina tudo de antemo, que simplesmente sucederia com eles. Entretanto, essa necessidade resulta num ininterrupto novo surgimento de constelaes que resultam no nico campo de ao real para a prxis humana, que o que existe em cada caso concreto. O crculo dos contedos que os homens podem pr como fins nessa prxis real determinado enquanto crculo desse tipo pela necessidade de desenvolvimento da essncia, mas realmente enquanto crculo, enquanto campo de ao para os pores teleolgicos reais nele possveis, no como determinao geral, inevitvel, de todo contedo da ao. Dentro desse campo de ao, cada pr teleolgico sempre surge s na forma alternativa possvel exclusivamente para ele, o que j exclui a predeterminao, o que faz com que a necessidade da essncia forosamente assuma para a prxis dos homens singulares a forma de possibilidade (LUKCS, 2013, p.494).

    A necessidade presente nas tendncias postas pela esfera da economia est

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    em estreita relao com o campo de possibilidades gerado pela essncia, e precisamente nessa dimenso que as decises dos homens incidem sobre a essncia, determinando-a. A esfera da economia concede e prescreve o campo de possveis realizaes dinmica social, delimita as fronteiras do territrio das atuaes humanas. A dimenso poltica, por sua vez, em sua relativa autonomia, atua por meios prprios em questes especficas de seu campo de ao, suportada pela dimenso da produo e reproduo da vida e precisamente nessa medida pode influir sobre as tendncias mais essenciais da dinmica social.

    Cai por terra a ideia do determinismo unilateral dos nexos sociais e econmicos sobre as aes dos indivduos. As concepes de mundo constitudas pelos indivduos ao longo de sua vida social, assim como suas convices e decises, so elementos-chave no andamento do processo. A determinao homem como um ser que responde se contrape ideia do indivduo como algum que simplesmente reage a condicionamentos provenientes de fora. Dentro do campo de possibilidades concretamente existente, sempre o indivduo quem decide entre as alternativas que ele capaz de perceber e de criar em sua prtica social. Mesmo nas prticas econmicas os elementos da subjetividade no so meros contedos adjacentes, simples componentes de segunda ordem no interior dos processos. Os vrios projetos e necessidades a serem executados na atividade econmica so, antes do incio de qualquer processo, submetidos avaliao do pr, no qual quem decide pela execuo ou no execuo do projeto so sempre os indivduos a atuantes; desse modo, eles operam decisivamente nos rumos do prprio processo econmico.

    Lukcs conclui de forma arrebatadora:

    O desenvolvimento da essncia determina, portanto, os traos fundamentais, ontologicamente decisivos, da histria da humanidade. Porm, ela s obtm a sua forma ontologicamente concreta em decorrncia de tais modificaes do mundo fenomnico (tanto da economia como da superestrutura); mas estas s podem concretizar-se como consequncias dos pores teleolgicos humanos, entre os quais tambm a ideologia ganha expresso enquanto meio de enfrentar e resolver os respectivos problemas e conflitos (LUKCS, 2013, p.495).

    Os elementos do momento ideal (poltica, direito) so alados ao mesmo patamar de importncia que os elementos e condies postas pela objetividade social. A determinao de reflexo, aqui, no tem o carter de mera meno protocolar, mas demonstrado o processo de sua gnese e os vnculos inexorveis entre os dois polos nos desdobramentos histricos da sociabilidade. Assim como no trabalho, tambm nessa dimenso da atividade humana, os elementos da subjetividade e da objetividade formam um par indissocivel. O pr teleolgico da poltica tambm pressupe a realizao da finalidade, ou seja, a capacidade de influir de maneira efetiva sobre o curso dos processos objetivos do ser social. Os nexos causais da objetividade social fornecem o campo de possibilidades para as aes e decises dos indivduos. Suas respostas no so resultados mecnicos dessa base, mas tomadas de decises sobre as alternativas concretamente existentes; tais decises, dentro do campo de possibilidades, podem ser respostas que simplesmente reproduzem ou mantm os rumos das tendncias em vigor ou mesmo respostas inusitadas que pem novos rumos a esses processos.

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    A prxis poltica subentende, pois, a unidade contraditria presente na relao entre fenmeno e essncia. Lukcs assim se pronuncia a respeito:

    Do ponto de vista imediato dos pores teleolgicos com inteno poltica, a unio indissolvel e a unidade de essncia e fenmeno so tanto seu ponto de partida inescapvel como seu fim necessariamente posto. Porm, justamente por causa dessa unidade imediatamente dada de essncia e fenmeno, a prxis poltica , em sua relao com a essncia, que decide quanto sua efetividade em ltima anlise, mas s em ltima anlise, uma prxis mediada. Por essa razo, essa forma imediata da unidade no anula as contradies existentes. Engels tem razo ao alegar que, nos casos singulares concretos, a poltica pode muito bem tomar um rumo oposto ao exigido pelo desenvolvimento econmico efetivo naquele momento, observando ainda com razo que, em tais casos, depois de fazer desvios, sofrer prejuzos etc., a realidade econmica acaba se impondo (LUKCS, 2013, p.503).

    Essa intrincada inter-relao entre essncia e fenmeno elucidada por meio da referncia relao entre a infraestrutura econmica e a superestrutura jurdica:

    Em casos de conflitos generalizados, a prxis poltica muitas vezes volta-se para uma reforma da superestrutura jurdica. Contudo, xito ou fracasso dependem de se e como uma reformulao do sistema de direito positivamente vigente influencia a prpria economia, se e como ela capaz de, por esse desvio, promover aquele elemento positivo que, na economia, impulsiona para diante. Este apenas um dos tipos de entrelaamento entre os mundos da essncia e do fenmeno (LUKCS, 2013, p.503).

    Apresenta-se aqui um dos critrios essenciais da prxis poltica, o da eficcia da deciso entre as alternativas assumidas pelos indivduos. Tal como no trabalho, a categoria da realizao cumpre aqui papel decisivo. Decises e escolhas entre alternativas que no modificam, de uma forma eficiente, os processos sociais terminam por se reduzir a meras proposituras, simples volies incapazes de alcanar a prpria realidade.

    claro que as aes polticas no precisam apreender idealmente todo o amplo leque de determinaes postos pelas tendncias essenciais, sua eficcia consiste em atuar sobre os fenmenos sociais mais imediatos e nessa medida atingir de modo efetivo os rumos da sociedade. Nos termos do autor:

    A prxis poltica de fato est direcionada simultaneamente para a unidade de fenmeno e essncia da realidade social como um todo, mas s pode apreender essa realidade em sua imediatidade, o que ao menos comporta em si a possibilidade de que tanto o objeto intencionado como o objeto atingido pelo pr teleolgico permanea direcionado para o mundo do fenmeno que mais encobre que revela a essncia. Por essa razo, o fenmeno total da prxis poltico no seria esgotado se, durante a anlise, a sua efetividade imediata fosse considerada como critrio exclusivo, embora esta inquestionavelmente constitua um momento importante e at indispensvel da sua totalidade. Com efeito, uma resoluo poltica, a concepo poltica que est na sua base etc. deixam de ser politicamente relevantes quando lhes falta qualquer efetividade (LUKCS, 2013, p.507).

    O importante nesse contexto, insistimos, o fato de essas ideias, independentemente de verdadeiras ou falsas, serem capazes de atingir de maneira correta os meandros da dinmica social, de atuar de maneira eficaz sobre os nexos sociais objetivos. Precisamente por isso, o significado real da ideologia, sua funo social,

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    no reside na correo cientificamente objetiva do seu contedo, como espelhamento fidedigno da realidade, mas no modo e na direo do seu impacto sobre as tendncias que puseram o desenvolvimento das foras produtivas na ordem do dia (LUKCS, 2013, p.505).

    Convm enfatizar: a preponderncia no recai sobre o critrio gnosiolgico como fundamento da ideologia. No entanto, e precisamente aqui advm a necessidade da elucidao da determinao decisiva da ideologia, no se deve exagerar tal considerao a ponto de tornar completamente incuo o critrio da correo no campo ideolgico, pois, conforme Lukcs demonstra logo em seguida, a poltica deve agir corretamente sobre os nexos causais pondo em movimento elementos decisivos do campo das possveis efetivaes postas pela realidade social. A poltica enquanto pr teleolgico implica a eficcia da atividade, aspecto que compreende a apreenso efetiva dos nexos objetivos sobre os quais a ao teleolgica quer delinear seu curso. Assim como nas formas mais primitivas do trabalho podiam estar presentes ideias mgicas, mticas, coexistindo com representaes ideais efetivas sobre os nexos causais da natureza, a poltica, muito embora no envolva um conhecimento pleno de todas as determinaes em curso, deve apreender corretamente aqueles nexos que permitem uma atuao eficiente sobre esses processos.4 A no apreenso e a incapacidade de pr em curso a malha objetiva dos processos sociais (incluindo aqui os processos da prpria economia) correspondem falncia da atividade e, portanto, correspondem a uma atividade que no atinge a condio de um efetivo pr teleolgico permanecendo uma simples volio. Nas palavras do autor, tanto no metabolismo com a natureza como na influncia dos pores teleolgicos de outras pessoas, o pr s pode se tornar efetivo quando pe em marcha pessoas, foras etc. reais como seu objeto intencional (LUKCS, 2013, p.509).

    A ideia de Lenin sobre o elo mais prximo da corrente ilustra o elemento da eficcia como critrio fundamental da poltica. Por meio de tal elo, Lenin fazia referncia queles momentos centrais presentes nas tendncias postas em curso, cuja ao direta sobre eles geram efeitos decisivos sobre a totalidade dos acontecimentos da ordem social. A ao poltica de Lenin no decurso da revoluo sovitica elucida a natureza peculiar do elo mais prximo.

    Lenin no tinha nenhuma dvida de que condies objetivas para uma revoluo socialista estavam dadas com a derrocada do czarismo em fevereiro. Ele inclusive sempre proclamou essa sua convico, mas no teria podido realiz-la nem com a melhor propaganda a favor dessa perspectiva se no tivesse identificado o elo da corrente da etapa dada do desenvolvimento no anseio por paz entre todos os trabalhadores e no desejo de ter terra entre os agricultores. As duas palavras de ordem terra e paz podiam ser tidas como realizveis se consideradas apenas segundo o seu teor puro e simples tambm na sociedade burguesa (LUKCS, 2013, p.505).

    No entanto, Lenin d outro curso a esses anseios. A atuao de Lenin apresenta a genialidade de pr em curso e intensificar as contradies e conflitos existentes na prpria base da sociedade russa de seu tempo. No necessariamente as resolues polticas em torno da queda do czarismo levariam a uma transformao explosiva da sociedade. No entanto, ao pr em evidncia os anseios mais profundos da

    4 A falsidade de todo o iderio nazista no deixou de corresponder aos anseios e s expectativas de grande parte do povo alemo, diante das condies histricas e sociais de seu tempo.

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    classe dos trabalhadores pela paz e dos agricultores pela terra , aguou o antagonismo dessas reivindicaes com os interesses da burguesia russa. A inconciabilidade entre os anseios dos trabalhadores e a proposta reformista dos partidos pequeno-burgueses provocou uma situao explosiva, tornando possvel que a Revoluo Socialista viesse a ser realizada.

    No exemplo de Lenin, Lukcs procura demonstrar o mbito das resolues conscientes tomadas diante das condies imediatas enfrentadas na dimenso da poltica, nos quais os nexos mais decisivos da malha causal do contexto scio-histrico russo foram corretamente apreendidos, elaborados e transformados. Nesse caso em particular, a finalidade real se afigurava claramente ao poltico que a realizaria. No intuito de abarcar o amplo leque das variantes presentes no mbito da esfera da politicidade, outro exemplo apresentado. Por meio dele se procura apresentar um caso em que as aes polticas, mesmo de forma no consciente, mesmo sem o pleno conhecimento das tendncias essenciais de dado contexto social, respondendo s condies e conflitos imediatos da prxis social tambm podem pr em curso as tendncias essenciais do contexto histrico. O caso de Otto Bismark e do longo processo que leva unificao da Alemanha no sculo XIX, referido na sequncia, demonstra uma situao em que o critrio da eficcia preserva a sua validade tambm quando uma noo to adequada da finalidade no est presente (LUKCS, 2013, p.506).

    Passando em revista posteriormente os trs primeiros quartos do sculo XIX, o impulso, tanto objetivo como subjetivo, para a criao do Estado da nao alem parece irresistvel. Em outros contextos, at j apontamos para o fato de que os seus fundamentos econmicos h muito j estavam lanados na aliana aduaneira prussiana, sem que algum (incluindo Bismarck) tivesse compreendido adequadamente essa conexo. O elo da corrente, nessa situao, consistiu de duas guerras: contra a ustria, visando manter intactas contra a interferncia externa as fronteiras da unio aduaneira, que eram a base econmica real da unidade alem, e contra a Frana, para assegurar a unidade poltica a partir de dentro e a partir de fora (LUKCS, 2013, p.505).

    O recurso a fatos da histria alem nesse contexto de sua anlise tem a inteno de demonstrar o mbito das respostas assumidas no decurso de determinada situao histrica relacionando de maneira direta a conflitos oriundos da esfera da reproduo material da sociedade. No caso da Alemanha pr-unificao, as tendncias e as possibilidades para a criao de um Estado unificado foram postas pela primeira vez de maneira efetiva pela criao da unidade alfandegria criada em 1930. As presses internacionais sofridas pelos Estados membros desse acordo levaram deciso da guerra contra a ustria, em um primeiro momento e, posteriormente, contra a Frana. A defesa das fronteiras alfandegrias assegurou a unidade poltica a partir de dentro e a partir de fora e, consentaneamente, criou por meio da guerra as condies tanto objetivas quanto subjetivas para a unidade alem. Condies objetivas, pois estabelecem as bases econmicas para a integrao material da sociedade. As condies so subjetivas na medida em que fomentam nos indivduos o sentimento do nacionalismo e a identificao em torno de um projeto comum da criao da nao germnica. Ainda que os objetivos no estivessem claramente delineados no plano imediato das decises tomadas, as respostas s situaes circunstanciais daquele perodo colocaram em movimento

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    nexos objetivos favorveis, produzindo o meio profcuo para o desenvolvimento de tendncias que levam ao processo de unificao, pondo em curso ainda que de maneira no consciente o prximo elo da corrente.

    Em ambos os casos, as decises entre alternativas o ideal por meios distintos atuam de maneira efetiva sobre as tendncias e possibilidades postas pelo momento objetivo da dinmica social.

    Com tais determinaes, como o autor adverte, foi circunscrito s o primeiro critrio, o critrio imediato para a prxis ideolgico-poltica, aquele que diz como um conflito real, de causas em ltima instncia econmicas, pode ser enfrentado e resolvido com meios polticos (LUKCS, 2013, p.505). No prprio exemplo de Bismark j se encontra contido outro critrio to decisivo quanto para a prxis poltica: a durao. A eficcia das aes assumidas dentro de determinados contextos assume um curso de continuidade, perfazendo desdobramentos que perduram em sequncias causais desencadeadas pela deciso poltica em cada caso concreto, em que seus reflexos e repercusses aparecem como tendncias duradouras na dinmica social. Vale esclarecer que o critrio da durao no se refere a um lapso de tempo abstrato, determinvel em termos quantitativos,

    mas questo referente a se os novos momentos causais postos em marcha no pr teleolgico, no importando com que grau de conscincia isso seja feito, influem efetivamente nas tendncias econmicas decisivas que entraram em crise (LUKCS, 2013, p.507).

    Em suma,

    a durao pode proporcionar um critrio para uma deciso poltica somente na medida em que suas consequncias atestarem claramente que ela, no importando com que fundamentao ideolgica, foi capaz de incidir em certas tendncias reais do desenvolvimento social, se e como as cadeias causais desencadeadas por ela influram efetivamente nesse desenvolvimento. Est claro que, quanto maior for a divergncia que surgir nesse ponto, tanto menor ser a durabilidade contida de modo geral na deciso mesma. Sendo assim, a efetividade da ao poltica s se torna completa na durao. esta que indica que o xito atual no s conseguiu produzir um agrupamento momentneo e fugaz de foras, que parecia suficiente para enfrentar e resolver de modo imediato uma situao de crise, mas tambm simultaneamente deu um impulso efetivo s foras essenciais que atuavam por trs das decadncias agudas (LUKCS, 2013, p.507-508).

    Rumos especficos assumidos diante de determinadas decises polticas podem agir de forma a acelerar ou mesmo desviar e retardar o curso das tendncias mais gerais, todavia as diretrizes efetivamente operantes dos processos socioeconmicos se impem na dinmica concreta da sociabilidade, prevalecem sempre as alternativas postas pelo campo de possibilidades dadas pelo processo histrico-social. Basta pensar, exemplifica o autor, no caso da Revoluo Francesa de 1789 que, com o esfacelamento do feudalismo, liberou o caminho para o desdobramento do capitalismo, agindo de maneira eficaz e sobrepujando as proposies polticas contrapostas da restaurao. A durao dessa prxis poltica corresponde, portanto, capacidade de pr em curso tendncias j presentes no mbito da economia, ocasionando desdobramentos que favorecem ainda mais os desempenhos dessas diretrizes no mbito da sociedade. A ao contrria a essas tendncias e o projeto

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    da restaurao culminam em uma derrocada efetiva na medida em que deixam de corresponder ao campo das novas possibilidades de realizao, tornando-se anacrnicos em face dos novos ordenamentos, das novas possibilidades postas pelo desdobramento do campo da reproduo material da sociedade.

    O exemplo da Revoluo Francesa demonstra, portanto, a unidade prenhe de contradies da determinidade social objetiva e da influncia marcante das pessoas mobilizadas para a atividade sobre o ser-propriamente-assim da estrutura e dinmica sociais da resultantes (LUKCS, 2013, p.508). No entanto, cabe a advertncia, no h nesse contexto a afirmao da unilateralidade determinativa dos fatores objetivos, pois tudo isso no aconteceu simplesmente com as pessoas, mas, a despeito de toda a sua necessidade objetiva, tambm fruto de seus prprios atos. Novamente fundamentando suas teses na realidade histrica, o autor acrescenta: sem o choque provocado pelas jornadas de junho, supostamente no teria surgido nenhum segundo imprio na Frana, mas quem agiu foram justamente as pessoas que vivenciaram esse choque (LUKCS, 2013, p.508).

    A demarcao acima decisiva, pois demonstra a relao importante entre os fatores objetivos e subjetivos ou, para ser mais rigoroso ainda no uso dos termos, a unidade de momentos diferenciados no interior do complexo. As condies objetivas colocam questes s individualidades, e estas, por sua vez, ao buscarem respostas para os problemas e conflitos sociais de seu tempo, ao refletirem ativamente sobre as condies postas por sua realidade social, pem em marcha o curso das situaes concretas de sua sociedade. Objetividade e subjetividade aparecem aqui em uma reciprocidade determinativa inexorvel.

    A dupla direo determinativa acentuada por Lukcs de maneira decisiva:

    O carter humano-social da gnese, do caminho encetado por um movimento, determina tambm a direo e o contedo da prxis posterior. O homem enquanto ser que responde nunca independente da questo que a histria lhe coloca, mas de igual maneira o movimento social que se tornou objetivo jamais pode se tornar independente de sua gnese humano-social, poltico-moral (LUKCS, 2013, p.509).

    No se pode negligenciar o papel do fator subjetivo na ao de dirimir os conflitos sociais. Nesse sentido, as observaes lukacsianas apontam para o reconhecimento de que o campo de ao real em que aparece o fator subjetivo sempre est circunscrito pelo desenvolvimento socioeconmico (LUKCS, 2013, p.518).

    A justificao de falar em separado sobre um fator subjetivo se deve meramente mas esse meramente constitui um complexo inteiro e sumamente efetivo ao fato de toda pergunta s se tornar uma pergunta autntica mediante a sua formulao que leva a uma resposta e no se restringe a um estado eventualmente difcil de suportar, mas que o contedo, a direo, a intensidade etc. da resposta possa adquirir um significado decisivo para o resultado do enfrentamento dos problemas ocasionados pelo desenvolvimento objetivo. Os rumos que o desenvolvimento tomar em decorrncia de uma crise dependem sem, todavia, serem capazes de anular a necessidade essencial do desenvolvimento econmico amplamente da resposta que tem origem no fator subjetivo (LUKCS, 2013, p.518-519).

    A poltica implica sempre a relao da subjetividade diante da objetividade social de determinada poca, de dado contexto social, desse modo, como todo pr

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    teleolgico implica a alternativa, o conhecimento dos nexos postos em causa e subsequentemente a deciso dos indivduos.

    Quando Marx aponta nas pginas de A ideologia alem (MARX, 2007, p.41-42) para a contradio entre desenvolvimento das foras produtivas e incapacidade de subsistncia das formaes sociais em face desses desdobramentos da base econmica, enfatiza no contexto de suas consideraes o elemento objetivo dos grandes processos de transformao. Mas, em ltimo caso, quem decide ou no pelo ato de transformar radicalmente as bases da estrutura social so sempre os indivduos. Portanto, ressaltar a necessidade da existncia de condies objetivas que viabilizem aes revolucionrias no significa negligenciar o papel dos indivduos e do papel das classes sociais revolucionrias no interior desses processos. Nesse sentido, todas as grandes transformaes ocorridas na histria da humanidade no so jamais simples decorrncias mecnicas instauradas e postas em curso pelo desenvolvimento das foras produtivas, como efeito por si s destituidor das relaes de produo e por essa via da formao social em seu conjunto. Essas grandes transformaes igualmente dependem do fator subjetivo historicamente constitudo, uma vez que a grande lio histrico-mundial das revolues que o ser social no s se modifica, mas reiteradamente modificado (LUKCS, 2013, p.524).

    Os dois lados da processualidade social so ressaltados: por um lado, os processos objetivos implicam movimentos tendenciais postos preponderantemente pela esfera da economia nesse sentido, ele se modifica; por outro lado, a ao dos indivduos e das classes sociais, nas diretrizes desse processo, apresenta papel ativo, sendo capaz de conduzir os rumos do processo nas mesmas linhas dominantes de dados momentos ou at mesmo de modific-los, conferindo a esses processos o carter de uma inflexo nesse sentido, so modificados. No se trata de duas dinmicas divergentes que operam de forma paralela, uma ao lado a outra, porm da interpenetrao de duas dimenses distintas constituintes de uma mesma unidade.

    A passagem abaixo destrincha a importncia do fator subjetivo sem subjugar o fator objetivo:

    A consequncia histrica necessria dela que o desenvolvimento econmico pode at criar condies objetivamente revolucionrias, mas ele de modo algum produz simultaneamente em conexo obrigatria com elas o fator subjetivo ftica e praticamente decisivo. As circunstncias histrico-sociais concretas precisam ser investigadas concretamente em cada caso singular. De modo universalmente ontolgico, elas esto baseadas, em ltima anlise, no carter alternativo de toda resoluo humana, cujo pressuposto necessrio que os mesmos acontecimentos sociais influem diferentemente sobre os diferentes estratos e, em seu mbito, sobre os diferentes indivduos (LUKCS, 2013, p.524).

    Duas concluses importantes so extradas dessas elaboraes: a primeira ressalta o fato de que, do ponto de vista poltico, no existe situao sem sada, mas tal determinao aponta tambm para o fato da impossibilidade de existir uma resposta ou soluo a essa situao que seja mecanicamente favorvel. Por isso necessrio insistir com Lukcs:

    As grandes transformaes histricas jamais constituem, portanto, decorrncias apenas mecanicamente necessrias do desenvolvimento das foras produtivas, de seu efeito

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    diruptivo sobre as relaes de produo e, atravs dessa mediao, sobre toda a sociedade (LUKCS, 2013, p.524).

    A segunda concluso, to importante quanto a primeira, consiste na grande lio histrico-mundial das revolues, segundo a qual o ser social no se modifica, mas reiteradamente modificado. Nesse sentido, o desenvolvimento econmico pode at criar condies objetivamente revolucionrias, mas ele de modo algum produz simultaneamente em conexo obrigatria com elas o fator subjetivo ftica e praticamente decisivo (LUKCS, 2013, p.524).

    Merece destaque o inexorvel embasamento das respostas e resolues construdas pelos indivduos nos aspectos objetivos da realidade social. essa mesma objetividade social que cria as condies para o desenvolvimento de subjetividades efetivamente transformadoras da realidade. Pense-se no caso da possibilidade de superao da formao capitalista na qual o desenvolvimento econmico, a ampliao das capacidades produtivas humanas, a criao cada vez mais ampliada de foras produtivas aparece como pressuposto imprescindvel para a edificao de uma sociabilidade ps-capitalista. Mediante tais condies, torna-se possvel estabelecer as bases efetivas para as respostas e resolues capazes de realizar a transformao social necessria para a emancipao humana, para o pleno desenvolvimento dos indivduos em conformidade com a generidade historicamente construda. Condio de possibilidade dada pelas condies objetivas:

    S o desenvolvimento das foras produtivas pode colocar os homens diante de tais alternativas ideolgicas. Aqui, porm, aparece de modo ainda mais ntido do que at ento na histria da humanidade a situao ontolgica que repetidamente expusemos: a necessidade do desenvolvimento econmico que cria um campo de ao de possibilidades para as decises ideolgicas dos homens (LUKCS, 2013, p.533).

    No entanto, a determinao de reflexo entre o fator objetivo e o fator subjetivo dos processos sociais explicitado de forma cabal e demonstrado de forma precisa na sequncia:

    O prprio processo econmico no determina mais se as respostas so dadas no sentido recm-indicado ou em sentido contrrio, mas isso consequncia das decises alternativas dos homens que so confrontados com elas por esse processo. Portanto, o fator subjetivo na histria , em ltima anlise, mas s em ltima anlise, produto do desenvolvimento econmico, pelo fato de as alternativas com que ele confrontado serem produzidas por esse mesmo processo, mas ele atua, num sentido essencial, de modo relativamente livre dele, porque o seu sim ou o seu no esto vinculados com ele s em termos de possibilidades. Nisso est fundado o grande papel historicamente ativo do fator subjetivo (e, junto com este, da ideologia) (LUKCS, 2013, p.531).

    No h teleologia no desdobramento processual da realidade social, caracterizao que ficaria evidente se e somente se aqui estivesse presente a afirmao dos processos de desenvolvimento como responsveis por engendrar as modificaes necessrias para a criao dos fatores subjetivos da revoluo.

    Retomamos aqui, aps as devidas mediaes, as afirmaes anteriores que destacavam a gnese do fator subjetivo a partir das condies objetivas dos processos histrico-sociais. Fica evidente no se tratar de um determinismo

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    mecnico da esfera econmica. A prpria possibilidade de assumir esses processos no plano da conscincia j destaca o campo da liberdade das efetivaes humanas, qual seja, atuando sobre os nexos objetivos de sua prtica social poder dar orientaes aos desdobramentos e acontecimentos histricos, obviamente, dentro do campo das possibilidades postas. Assim como no trabalho, onde o homem, agindo sobre aquilo que independente de sua conscincia, se torna capaz de produzir um mundo completamente novo em relao quele oriundo dos processos espontneos da natureza; no campo da ideologia, da poltica em particular, a ao da conscincia pode mediante os nexos objetivos da sociabilidade dar rumos e orientaes especficas, gui-los e orient-los em conformidade s finalidades estabelecidas. Para Lukcs, a liberdade das aes humanas na conduo do processo no antagnica s determinaes objetivas, mas por meio dessas determinaes descobrem-se possibilidades para empreender a marca de suas decises sobre os rumos da dinmica social.

    Por fim, no poderamos deixar de tratar de um aspecto decisivo das determinaes lukacsianas: a contraposio ideia da universalidade da poltica no quadro dos atributos essenciais do homem. Todas as consideraes que se seguem remontam necessria crtica dos princpios mais gerais da filosofia poltica contempornea ao autor.

    O pensamento fetichizado da cincia oficial est sempre direcionado de modo confesso ou encabuladamente tcito para transformar a historicidade ontologicamente relevante dos comportamentos humano-sociais tpicos numa eternidade, numa perenizao do contedo, na qual a continuidade dinmica do processo real se petrifica numa substncia, em ltima anlise, sempre idntica. No polo oposto da mesma mentalidade, por exemplo no historicismo ao estilo de Ranke ou no atual estruturalismo, por seu turno, as etapas singulares petrificam-se fetichizadas numa singularidade esttica sem gnese nem enfrentamentos geradores de mudanas, o que mostra a profunda averso dos cientistas diferenciados em especialistas sujeitos a uma extrema diviso do trabalho a reconhecer como existentes os complexos dialeticamente contraditrios da realidade. Aqui preciso romper com tais preconceitos, como se existisse alguma poltica que tenha preservado sem alteraes desde o comeo at agora os traos decisivos de sua essncia ou como se a poltica fosse simplesmente um momento de cada estrutura concreta, cuja caracterstica no poderia ser aplicada de maneira alguma a outras estruturas (LUKCS, 2013, p.510-511).

    Contra a ideia da perenizao da poltica encontramos a afirmao do carter histrico da constituio de seus contedos e formas, pois, se a poltica constitui uma dimenso na qual se enfrenta os problemas concretos de dada efetividade histrico-social, ela no pode permanecer sempre a mesma. Na medida em que a base da reproduo social muda de maneira significativa, necessariamente os problemas e conflitos oriundos dessa base precisam ser respondidos e equacionados em conformidade s novas configuraes assumidas. A continuidade na descontinuidade reporta-se de modo direito historicidade das formas da poltica.

    O conjunto das determinaes expostas demarca de maneira clara a posio distinta que o tema da poltica assume no interior das reflexes lukacsianas. No h uma considerao da poltica como dimenso autnoma do ser social, mas ela aparece em meio a um processo de recproca determinao com os outros complexos da sociabilidade. Nessa medida a determinao da poltica no pode conter um carter

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    universalizante, mas deve ser observado como critrio decisivo a historicidade da prxis poltica. A crtica a essas tendncias diretamente explicitada pelo pensador magiar:

    O pensamento fetichizado da cincia oficial est sempre direcionado de modo confesso ou encabuladamente tcito para transformar a historicidade ontologicamente relevante dos comportamentos humano-sociais tpicos numa eternidade, numa perenizao do contedo, na qual a continuidade dinmica do processo real se petrifica numa substncia, em ltima anlise, sempre idntica (LUKCS, 2013, p.510).

    Desse modo,

    preciso romper com tais preconceitos, como se existisse alguma poltica que tenha preservado sem alteraes desde o comeo at agora os traos decisivos de sua essncia ou como se a poltica fosse simplesmente um momento de cada estrutura concreta, cuja caracterstica no poderia ser aplicada de maneira alguma a outras estruturas (LUKCS, 2013, p.511).

    Coloca-se em face dessas consideraes o problema do sentido em se falar da poltica em geral diante da forma mutvel da sua existncia histrico-social. O problema analisado luz da ideia marxiana da abstrao razovel. Marx trata do problema em seus rascunhos de 57, Grundrisse, quando analisa o significado de se falar da produo em geral. Conforme o prprio Marx afirma, no existe produo em geral, mas por meio dessa abstrao so sintetizados os traos mais gerais, so apreendidos aqueles elementos que se apresentam enquanto contnuos no processo concreto de seu evolver histrico. Nesse sentido a generalizao que se processa toma como referncia a continuidade do prprio processo real. Trata-se acima de tudo de uma abstrao, porm no sob a forma de uma construo aleatria do conceito, pelo contrrio, essa abstrao pressupe a anlise das formas particulares de sua realizao. A abstrao razovel poupa e fixa o elemento comum, poupando-nos assim da repetio. Na sequncia o pensador alemo adverte para a necessidade de tomar a produo a partir das formas concretas de sua realizao: entretanto, esse Universal, ou o comum isolado por comparao, ele prprio algo multiplamente articulado, cindido em diferentes determinaes (MARX, 2011, p.41). A efetiva anlise da produo, em Marx, exige o trabalho da intensificao analtica, instante em que as diferenas especficas em relao a esse universal, a esse comum s vrias formas, revelam a natureza concreta de seu desenvolvimento.

    As consideraes de Marx so oportunas na medida em que demonstram os possveis erros de tomar tais abstraes dos traos comuns como princpios universais da prpria produo:

    Nenhuma produo possvel sem um instrumento de produo, mesmo sendo esse instrumento apenas a mo. Nenhuma produo possvel sem trabalho passado, acumulado, mesmo sendo este trabalho apenas a destreza acumulada e concentrada na mo do selvagem pelo exerccio repetido. O capital, entre outras coisas, tambm instrumento de produo, tambm trabalho passado, objetivado. Logo, o capital uma relao natural, universal e eterna; quer dizer, quando deixo de fora justamente o especfico, o que faz do instrumento de produo, do trabalho acumulado, capital (MARX, 2011, p.41).

    O silogismo universalizante prtica comum dos economistas criticados por Marx,

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    Carey, por exemplo. Da afirmao nenhuma produo possvel sem um instrumento de produo, chega-se concluso da perenidade da forma capital, pois, se o capital tambm instrumento de produo, ele est presente em todo processo de produo. O particular, a forma especfica da figura capital na sociedade capitalista elevada condio de universal, conferindo a todas as formaes anteriores o carter de formas pr-capitalistas cujo decurso a explicitao cada vez mais clara e definitiva da sua essncia universal: o capital. Do mesmo modo a poltica, em sua forma atual de realizao na sociedade capitalista, elevada ao patamar da forma universal de o poltico, da plena realizao de sua essncia (Hegel e grande parte da filosofia poltica contempornea seriam exemplos claros desse procedimento).

    Os resultados a que chega Lukcs ao utilizar a anlise marxiana da abstrao razovel poderiam ser expressos por meio de uma parfrase importante determinao marxiana: Se no h produo em geral, tambm no h igualmente produo universal; Lukcs diria: Se no h poltica em geral, tambm no h igualmente poltica universal.

    O campo da poltica apresenta uma peculiaridade ainda mais fluida em relao possibilidade da determinao da poltica sob a forma de uma abstrao razovel:

    O fato de o conflito a ser enfrentado e resolvido desenrolar-se no mbito da unidade de essncia e fenmeno, de a sua forma de soluo inevitavelmente imediata ser a apreenso do prximo elo sempre concreto da corrente, mostra claramente que o traado dos limites de uma poltica em geral muito mais restrito do que o da produo em geral. Onde se disseram coisas profundas e geniais sobre a poltica, como em Maquiavel, o que foi dito possui um carter essencialmente concreto, a generalidade tem um cunho mais de parbola que de abstrao (LUKCS, 2013, p.512-513).

    A poltica em seu sentido geral uma abstrao razovel, e neste caso em particular de natureza muito mais sutil e limitada do que no caso da dita abstrao produo em geral. Seu carter tnue, mais diretamente ancorado nas condies histricas e sociais de dados contextos, ou seja, na totalidade formada pelo par categorial inexorvel essncia-fenmeno, torna essa dimenso da prxis mais mutvel tanto em intensidade como em profundidade. Por esse motivo,

    impossvel expor detalhadamente as diferenas qualitativas da resultantes na estrutura e dinmica da prxis poltica para isso seria necessrio escrever uma histria universal economicamente fundamentada ; s o que se pode fazer aqui mostrar com o auxlio de alguns exemplos marcantes que a extenso, o contedo, o carter, a tendncia etc. dessas diferenas qualitativas sempre foram e so determinados de modo diverso pelo que Marx chamou de a estrutura econmica de uma sociedade (LUKCS, 2013, p.513).

    A remisso a passagens da obra marxiana permite a Lukcs demonstrar as mudanas significativas do contedo da poltica e ao mesmo tempo apontar para a continuidade na descontinuidade: apesar de histricas, essas mudanas mantm intacto seu trao abstrato mais geral, isto , o movimento ideal de resoluo das questes oriundas da base econmica. Porm, isso apenas uma abstrao razovel. A verdadeira determinao da prxis poltica subentende a investigao das formas concretas de sua realizao do decurso histrico do desenvolvimento da humanidade.

    Essas determinaes do o curso necessrio das posteriores elaboraes de Lukcs, ou seja, indicam a necessria considerao de algumas das formas histricas da

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    realizao da prxis poltica. Quanto Idade Mdia, as consideraes demarcam a natureza peculiar da politicidade erguida sobre os pilares dessa formao social especfica: o contedo material do Estado posto por intermdio de sua forma; cada esfera privada tem um carter poltico ou uma esfera poltica; mais frente, na Idade Mdia, a constituio poltica a constituio da propriedade privada, mas somente porque a constituio da propriedade privada a constituio poltica; ou ainda, em termos comparativos com o Estado Moderno, a Idade Mdia o dualismo real, a modernidade o dualismo abstrato (MARX, 1975, p.437). Os traos demarcatrios da especificidade medieval que contrastam com as mudanas da prxis poltica advindas com a Revoluo Francesa so estabelecidos por meio de uma remisso direta a outra obra de Marx, Sobre a questo judaica. Lukcs transcreve diretamente a passagem:

    A revoluo poltica que derrubou esse poder do soberano e alou os assuntos de Estado condio de assuntos de toda a nao, que constituiu o Estado poltico como assunto universal, isto , como Estado real, desmantelou forosamente o conjunto dos estamentos, corporaes, guildas, privilgios, que eram outras tantas expresses da separao entre o povo e seu sistema comunitrio. Desse modo, a revoluo poltica superou o carter poltico da sociedade burguesa. Ela decomps a sociedade burguesa em seus componentes mais simples, ou seja, nos indivduos, por um lado, e, por outro, nos elementos materiais e espirituais que compem o teor vital, a situao burguesa desses indivduos (MARX, 2010, p.52).

    Citar essa contraposio permite demonstrar como a mudana socioeconmica, a transformao radical de uma formao social em outra, conduz a dimenso poltica a contedos completamente inusitados, ainda que, em um plano mais geral, mantenha inalterados seus princpios, qual seja, a orientao para o enfrentamento e resoluo de conflitos oriundos da base material da sociedade. Aps referir-se diretamente aos textos de Marx, o autor comenta:

    Citamos essa contraposio para mostrar que a mudana estrutural de cunho socioeconmico da sociedade de uma formao para a outra no s confere novos contedos poltica, permanecendo inalterados os princpios. Mudanas da estrutura como as que a se tornam visveis resultam em constelaes totalmente novas para a prxis que se estendem do tipo social do poltico e seus seguidores at cada objetivo concreto da ao e o mtodo usado para alcan-lo (LUKCS, 2013, p.514).

    A dinmica de transformaes ocorridas nos contedos da poltica no se reduz s grandes modificaes caractersticas das revolues sociais, ou seja, passagem de formaes socioeconmicas para outras, mas tambm a modificaes no interior das mesmas bases sociais de dadas formaes. Embora mais restritas e localizadas, por isso mesmo de mais difcil identificao, essas demarcam o carter mvel do campo da poltica, porm no de uma mobilidade aleatria, simplesmente pragmtica, mas como reflexo da prtica efetiva voltada de maneira direta resoluo de conflitos concretos formados essencialmente pela base material da reproduo da vida da sociedade.

    Assim, a transformao da estrutura feudal muitas vezes comea, de acordo com a sua forma exterior, como luta no interior do feudalismo, valendo-se de meios preponderantemente feudais, e atinge sua figura genuna s em estgios posteriores; assim, a separao e autonomizao capitalista da sociedade burguesa se manifestam

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    primeiramente como realizao do laissez faire, para posteriormente moldarem um forte intervencionismo estatal pense-se no New Deal , que, todavia, nada mais tem em comum com modos anteriores de vinculao entre Estado e sociedade etc. (LUKCS, 2013, p.515).

    Lukcs conclui:

    Tambm no caso de tais mudanas qualquer tentativa de sistematizao formalista induz a erro. A nica maneira de compreender as modificaes de modo concretamente ontolgico-social, enquanto momentos determinados do grande processo, cujo contedo formado pelo afastamento da barreira natural, pela crescente socializao da sociedade etc. (LUKCS, 2013, p.515).

    O peso das obras de Marx nos argumentos trabalhados por Lukcs a respeito da historicidade da poltica decisivo. Grundrisse e Sobre a questo judaica so as obras que desempenham papel crucial na construo de suas demonstraes. Desenvolver aqui todas as consequncias extradas por Lukcs sairia completamente dos propsitos desse artigo. Cumpre aqui to somente chamar a ateno para duas caracterizaes por meio das quais so demonstradas especificidades da poltica na sociabilidade do capital.

    Na antiguidade clssica observa-se, mediante a desagregao socioeconmica aps perodos de grande prosperidade social (Grcia antiga, como exemplo), a tendncia de uma prxis poltica cujo fundamento apoia-se em um estar-voltado-para-trs, ou seja, toda a reforma que se leva a srio direciona-se tanto instintiva como conscientemente para a restaurao do estado timo do passado (LUKCS, 2013, p.517). Por contraste, aps a descrio da caracterizao da base material dessas sociedades, a peculiaridade da sociabilidade do capital ressaltada por Lukcs a partir das determinaes de Marx presentes nos Grundrisse:

    O capitalismo a primeira formao econmica, cujo processo de reproduo no possui um vnculo desse tipo com coisas passadas, no qual pela primeira vez na histria os fins postos pelos pores teleolgicos que perfazem a prxis poltica, segundo o seu teor poltico, no podem ser direcionados para a restaurao de algo passado, mas devem ser direcionados para a instaurao de algo futuro (LUKCS, 2013, p.517).

    Sobre questo judaica, texto dirigido contra as postulaes do livro A questo judaica de Bruno Bauer, ilustra outro aspecto importante das formas da poltica na contemporaneidade: a separao citoyen (cidado em francs) e homem privado. Enquanto na feudalidade a sociedade burguesa possua um carter poltico imediato na medida em que a posse ou a famlia ou o modo do trabalho, foram elevados condio de elementos da vida estatal nas formas da suserania, do estamento e da corporao (MARX, 2010, p.52), a nova constituio estrutural da conscincia produzida pela economia do capitalismo cinde o indivduo em homme e citoyen, em que o homem real s chega a ser reconhecido na forma do indivduo egosta, o homem verdadeiro, s na forma do citoyen abstrato (MARX, 2010, p.52). Enfim, na sociabilidade do capital, a poltica ergue-se sob a condio peculiar do indivduo no qual eles figuram como abstratamente iguais perante a lei e efetivamente desiguais em sua vida concreta.

    Por fim, cumpre encerrar dando voz ao prprio autor. Em um texto escrito por

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    Lukcs no mesmo perodo em que trabalhava em sua Ontologia, intitulado O processo de democratizao, as diferenas do pensamento da politicidade em Marx aparecem contrastando de forma direta a tradio filosfica.

    As teorias polticas influenciadas ideologicamente pela cincia natural, pelo menos em suas manifestaes imediatas, acostumaram-se desde sempre a considerar como realidades as formas estatais, as foras e as tendncias sociais que se apresentam sob formas lgico-gnosiolgicas de carter universal. Essas orientaes metodolgicas conseguem facilmente se converter em hbitos espontneos, na medida em que se supe que elas sejam referendadas por venerandas tradies. Aristteles e Rousseau, por exemplo, parecem favorecer tal concepo do nosso problema a democracia como forma ideal adequada precisamente por trat-la nestes termos universais (LUKCS, 2008, p.83-84).

    Em Marx o procedimento investigativo assume outras feies:

    Para a teoria e para a prxis, o conhecimento da legalidade particular deste ser-precisamente-assim to importante quanto o das determinaes e legalidades universais. Alm do mais, para a prxis, que s pode se realizar precisamente no hic et nunc concreto de uma situao histrico-social, a compreenso adequada do ser-precisamente-assim possui at mesmo uma ineludvel prioridade. Os manipuladores e os fetichistas das necessidades universais abstratas erram quando julgam poder se valer de Marx (LUKCS, 2008, p.84).

    O resgate das principais determinaes de Marx em torno da poltica, contra todo o edifcio das teorias marxistas que mais obscureceram suas reflexes do que contriburam para aclar-las, junta-se tarefa inadivel da redescoberta do pensamento marxiano. Conforme observa Nicolas Tertulian, um dos mais importantes comentadores de Lukcs, a Ontologia prope realizar a reconsiderao das principais determinaes das categorias da ontologia clssica, intenciona reexamin-las luz da experincia terica do marxismo (TERTULIAN, 1980, p.89-90), visando restituir ao marxismo a dignidade de uma filosofia de grande classe. As consideraes lukacsianas em torno da poltica tm, portanto, essa tarefa fundamental, de resgate autenticidade do pensamento de Marx diante dos descaminhos dos tericos marxistas do sculo XX. Obviamente suas consideraes partem dos princpios fundamentais das reflexes marxianas, assumindo desdobramentos prprios na medida em que aprofunda suas reflexes sobre a condio da prxis poltica de seu tempo.

    O exposto neste artigo de modo algum abarca todo o conjunto das consideraes de Lukcs em torno da poltica. Restringimo-nos aos aspectos mais relevantes de suas determinaes, sem considerar, por exemplo, todo o desdobramento realizado no ltimo captulo de sua obra, onde o problema da prxis poltica caracterstica da atualidade desenvolvido. Consideraes importantes sobre o capitalismo manipulatrio e as formas necessrias para suplantar os atuais conflitos e estranhamentos advindos dessa forma da sociabilidade so apresentadas como apontamentos dos caminhos a serem adotados por uma posio poltica revolucionria. O tema do fator subjetivo, como elemento decisivo para a revoluo socialista, recebe profunda anlise do pensador hngaro. Restaria ainda acompanhar as anlises de realidade realizadas por Lukcs no apenas na fase tardia de sua vida (por exemplo, o importante estudo O processo de democratizao), como diversos

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    outros artigos e livros redigidos ao longo de sua multifactica carreira intelectual. A anlise meticulosa da determinao da poltica em Lukcs uma tarefa ainda no realizada. Este artigo pretende contribuir tracejando os aspectos mais importantes presentes em sua Ontologia. Resta ainda um longo caminho pela frente.

    refernciAs

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