A Difícil Arte de Ponderar o Imponderável

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1 A Difícil Arte de Ponderar o Imponderável: reflexões em torno da colisão de direitos fundamentais e da ponderação de valores 1 George Marmelstein Doutorando em filosofia do direito pela Universidade de Coimbra Portugal “Não há coisa nenhuma que não seja objeto de discussão, e sobre a qual os homens de saber não tenham opiniões contrárias. Nem mesmo a questão mais trivial escapa à controvérsia, e nas mais importantes somos incapazes de chegar a uma decisão certa. Multiplicam-se as discussões, como se tudo fosse incerto, e estas discussões são conduzidas com o maior entusiasmo, como se tudo fosse certo. Em toda esta agitação não é a razão que alcança o prêmio, mas sim a eloqüência; e ninguém deve jamais desesperar de conseguir prosélitos para a hipótese mais extravagante, contanto que seja suficientemente hábil para a apresentar com cores favoráveis. Não alcançam a vitória os soldados em pé de guerra, manejando a lança e a espada, mas sim os corneteiros, os tambores e os músicos do exército”. David Hume, Tratado da Natureza Humana 2 1 Apresentação do Problema; 2 A Inevitável Colisão de Direitos e a Técnica da Ponderação; 3 Algumas Críticas à Ponderação de Valores; 3.1 A Subjetividade dos Valores; 3.2 Incomensurabilidade ou Alquimia do Sopesamento; 3.3 Decisionismo ou Efeito Katchanga; 3.4 Enfraquecimento dos Direitos; 4 Uma Conclusão Decepcionante, mas Esperançosa 1 Apresentação do Problema Existe uma interessante experiência ética conhecida como “Dilema do Vagão” (“Trolley Dilemma”), que foi desenvolvida com o objetivo de investigar alguns aspectos misteriosos de nosso raciocínio ético 3 . Na experiência, pede-se que imaginemos duas situações hipotéticas envolvendo um suposto trem desgovernado. Em ambas as situações, somos estimulados a nos colocar na situação de um agente moral capaz de pensar e agir conforme nossas reflexões. As escolhas que serão tomadas pelo agente moral são consideradas como escolhas éticas na medida em que afetam diretamente outras pessoas de um modo intenso. 1 Dedico este artigo ao Professor José Manuel Aroso Linhares, da Universidade de Coimbra, que me ensinou, com seu exemplo vivo, que a humildade intelectual e a vontade de compartilhar idéias e de sempre aprender com o outro, respeitando as divergências e a multiplicidade de pontos de vistas, estão entre as principais qualidades morais de um ser humano virtuoso. 2 HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 19/20. 3 A primeira versão do “Trolley Dilemma” foi apresentada pela filósofa Phillippa Foot. Posteriormente, vários filósofos desenvolveram versões alternativas do mesmo problema, introduzindo elementos complicadores para tornar a discussão mais rica. Neste artigo, descrevo as duas situações mais conhecidas do “Dilema do Vagão”, tal como explorada em SANDEL, Michael. Justice: what’s the right thing to do?. Nova Iorque: Farrar, Straus and Giroux, 2009, pp. 21/24.

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Reflexões em torno da ponderação de valores e da colisão de direitos fundamentais

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A Difícil Arte de Ponderar o Imponderável: reflexões em torno da colisão de

direitos fundamentais e da ponderação de valores1

George Marmelstein

Doutorando em filosofia do direito pela Universidade de Coimbra – Portugal

“Não há coisa nenhuma que não seja objeto de discussão, e sobre a qual os homens de saber não tenham opiniões

contrárias. Nem mesmo a questão mais trivial escapa à controvérsia, e nas mais importantes somos incapazes de chegar a

uma decisão certa. Multiplicam-se as discussões, como se tudo fosse incerto, e estas discussões são conduzidas com o maior

entusiasmo, como se tudo fosse certo. Em toda esta agitação não é a razão que alcança o prêmio, mas sim a eloqüência; e

ninguém deve jamais desesperar de conseguir prosélitos para a hipótese mais extravagante, contanto que seja

suficientemente hábil para a apresentar com cores favoráveis. Não alcançam a vitória os soldados em pé de guerra,

manejando a lança e a espada, mas sim os corneteiros, os tambores e os músicos do exército”.

David Hume, Tratado da Natureza Humana2

1 Apresentação do Problema; 2 A Inevitável Colisão de Direitos e a Técnica da Ponderação; 3 Algumas Críticas à

Ponderação de Valores; 3.1 A Subjetividade dos Valores; 3.2 Incomensurabilidade ou Alquimia do Sopesamento;

3.3 Decisionismo ou Efeito Katchanga; 3.4 Enfraquecimento dos Direitos; 4 Uma Conclusão Decepcionante, mas

Esperançosa

1 Apresentação do Problema

Existe uma interessante experiência ética conhecida como “Dilema do Vagão” (“Trolley

Dilemma”), que foi desenvolvida com o objetivo de investigar alguns aspectos misteriosos de nosso

raciocínio ético3. Na experiência, pede-se que imaginemos duas situações hipotéticas envolvendo um

suposto trem desgovernado. Em ambas as situações, somos estimulados a nos colocar na situação de

um agente moral capaz de pensar e agir conforme nossas reflexões. As escolhas que serão tomadas

pelo agente moral são consideradas como escolhas éticas na medida em que afetam diretamente

outras pessoas de um modo intenso.

1 Dedico este artigo ao Professor José Manuel Aroso Linhares, da Universidade de Coimbra, que me ensinou, com seu exemplo vivo, que a humildade intelectual e a vontade de compartilhar idéias e de sempre aprender com o outro, respeitando as divergências e a multiplicidade de pontos de vistas, estão entre as principais qualidades morais de um ser humano virtuoso. 2 HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 19/20. 3 A primeira versão do “Trolley Dilemma” foi apresentada pela filósofa Phillippa Foot. Posteriormente, vários filósofos desenvolveram versões alternativas do mesmo problema, introduzindo elementos complicadores para tornar a discussão mais rica. Neste artigo, descrevo as duas situações mais conhecidas do “Dilema do Vagão”, tal como explorada em SANDEL, Michael. Justice: what’s the right thing to do?. Nova Iorque: Farrar, Straus and Giroux, 2009, pp. 21/24.

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No primeiro caso, o agente moral vê um vagão descontrolado se aproximando de um grupo de

cinco pessoas que estão trabalhando em um trilho abandonado. O vagão fatalmente atropelará os

cinco trabalhadores, pois eles não serão capazes de sair a tempo, nem será possível avisá-los da

aproximação do trem. A morte é iminente. No entanto, o agente moral pode alterar a história. Ele está

próximo de uma manivela que poderá modificar o curso do trem, fazendo com que ele se dirija para

outro trilho. Mas, nesse caso, o trem irá atropelar um trabalhador que também não conseguirá

escapar a tempo. Há, portanto, duas opções: (1) não fazer nada, situação em que o trem seguirá seu

curso normal e matará os cinco trabalhadores ou (2) mudar a rota do vagão, situação em que os cinco

trabalhadores serão salvos, mas outra pessoa será morta. Caso você fosse o agente moral, o que faria?

Você alteraria a direção do trem para salvar os cinco trabalhadores apesar da morte do outro

trabalhador?

O segundo caso é sutilmente diferente. Também envolve um trem desgovernado que irá se

chocar com cinco trabalhadores. Porém, dessa vez, não há alavanca para desviar o curso do trem, nem

há como avisar os trabalhadores. A única medida disponível para salvar aquelas pessoas é parando o

trem descontrolado. O agente moral está em cima de uma ponte que atravessa o trilho, no meio do

caminho entre o vagão e os trabalhadores. Ele deseja salvar aqueles trabalhadores, que certamente

possuem famílias e serão mortos se nada for feito. Por coincidência, há uma pessoa bastante gorda na

ponte, junto com o agente moral, que, se fosse jogada em direção aos trilhos, no momento em que o

trem passasse, seria capaz de diminuir a velocidade do vagão, fornecendo uma margem segura de

tempo para que os trabalhadores fossem salvos. O problema é que a pessoa que será jogada no trilho

fatalmente irá morrer. Há, portanto, duas opções: (1) não fazer nada, situação em que o trem seguirá

seu curso normal e matará os cinco trabalhadores ou (2) impedir o avanço do vagão, situação em que

os cinco trabalhadores serão salvos, mas outra pessoa será morta. Se você fosse o agente moral, o que

você faria? Jogaria aquela pessoa na frente do trem?

As duas situações ilustram a dificuldade de se construir justificativas éticas com consistência e

coerência. Cenários muito semelhantes geram reações completamente opostas. A maior parte da

população mundial, conforme pesquisa desenvolvida por psicólogos sociais norte-americanos,

desviaria o vagão no primeiro caso, justificando o ato com base na idéia de que vale a pena salvar

cinco pessoas mesmo que isso possa ceifar a vida de um trabalhador inocente que não seria morto se

o vagão seguisse seu curso normal. O senso moral comum acredita que a ação correta, nessa primeira

situação, é tentar evitar o máximo sofrimento do maior número de pessoas. Por outro lado, na

segunda situação, a grande maioria das pessoas não jogaria o gordinho de uma ponte para salvar os

mesmos cinco trabalhadores. O senso moral comum não considera correto causar a morte direta de

um inocente mesmo que isso seja capaz de salvar a vida de cinco seres humanos. Empurrar uma

alavanca para salvar cinco vidas, causando a morte de uma pessoa, é correto, mas empurrar uma

pessoa para salvar cinco vidas, causando a morte da pessoa empurrada, é moralmente errado, de

acordo o pensamento moral da grande maioria de pessoas. A rigor, o saldo final de ambas as situações

pode ser exatamente o mesmo a depender da escolha do agente moral, pois o que está em jogo é a

vida da mesma quantidade de pessoas. No entanto, há um forte apelo moral para abominar a idéia de

sacrificar uma vida no segundo caso. Como conciliar essas duas idéias?

O exercício mental proposto pelo “Dilema do Vagão” tem sido um campo fértil de pesquisa

para o desenvolvimento do conhecimento produzido pela filosofia moral, sendo aproveitado também

pela neurociência e pela psicologia social para estudar o comportamento e as escolhas éticas dos

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indivíduos4. Há inúmeras teorias concorrentes – teorias utilitaristas, teorias deontológicas, teoria do

duplo efeito, ética das virtudes, ética do afeto etc – que tentam fornecer explicações para lançar luzes

sobre dilemas éticos e justificar a tomada de posição acerca do que devemos fazer em cada situação.

Não pretendo, neste trabalho, avançar por este terreno. Meu objetivo é trazer a discussão para o

campo do pensamento jurídico, pois acredito que as perplexidades levantadas também podem ser

úteis para esclarecer algumas intrigantes questões presentes no mundo do direito.

Quase toda decisão judicial é, em última análise, uma decisão ética, na medida em que afeta

os interesses de outras pessoas além do próprio agente moral responsável pelo julgamento. Em muitas

situações, os juízes terão que realizar escolhas semelhantes ao do agente moral que pode desviar o

vagão para salvar a vida de cinco pessoas, mesmo que isso possa causar um grande mal a outras

pessoas, cujos interesses também precisam ser levados em consideração. Sobretudo diante da

exaltação das diferenças e da pluralidade cultural proporcionada pelo modelo democrático

contemporâneo, onde diversos valores morais antagônicos passaram a ser protegidos num grau

jurídico máximo pelos textos constitucionais e pelos textos das declarações internacionais de direitos

humanos, as respostas judiciais aos problemas jurídicos adquiriram um tom trágico. Em muitas

situações, a solução adotada pelos julgadores, qualquer que seja, poderá sacrificar valores

importantes que, a depender da perspectiva, mereceriam tanto ou até mais proteção do que o valor

oposto que findou por prevalecer na decisão final.

O presente artigo tem como objetivo discutir algumas dessas intrigantes questões envolvendo

os dilemas judiciais que surgem por ocasião daquilo que se convencionou chamar, no meio jurídico, de

colisão ou conflito de direitos fundamentais. Ocorre uma colisão de direitos quando dois ou mais

princípios constitucionais podem ser invocados para justificar soluções opostas para o mesmo

problema concreto. Em situações assim, qualquer decisão adotada pelos julgadores pode encontrar

uma norma constitucional que lhe dê suporte. Ou seja, há duas normas de igual hierarquia jurídica

capazes de fornecer soluções contraditórias para o mesmo problema. Como solucionar conflitos dessa

espécie? Qual o método sugerido pela teoria do direito e como os julgadores reais vêm utilizando esse

método? Que tipos de problemas decorrem da adoção de tal método? Eis algumas questões que

pretendo enfrentar.

Dividirei a análise do tema em duas partes.

Num primeiro momento, tentarei desenvolver uma explicação a respeito da origem da colisão

de direitos e da ponderação de valores a ela relacionada, defendendo a idéia de que esse fenômeno

está intimamente conectado com a ascensão do constitucionalismo ocorrida sobretudo a partir da

Segunda Guerra Mundial. Explicarei porque, inevitavelmente, surgem colisões de direitos

fundamentais em um modelo constitucional democrático e descreverei os elementos básicos da

4 Fiery Cushman, Liane Young e Marc Hauser, cientistas do Departamento de Psicologia da Universidade de Harvard, utilizaram dilemas morais semelhantes para estudar o papel do raciocínio ético e da intuição nos julgamentos morais. Para isso, desenvolveram o “Moral Sense Test” para analisar empiricamente o desenvolvimento da psicologia moral dos indivíduos, no intuito de “obter insights sobre as semelhanças e diferenças entre os julgamentos morais das pessoas de idades diferentes, de culturas diferentes, com diferentes formações e crenças religiosas, envolvidos em diferentes ocupações e expostas a diferentes circunstâncias”. Maiores informações sobre a experiência e os resultados obtidos podem ser consultados em: http://moral.wjh.harvard.edu/index.html. No que se refere ao “Dilema do Vagão”, quase todas as trinta mil pessoas consultadas, independentemente de idade, religião, gênero, formação ou país de origem, alterariam a rota do trem no primeiro caso, mas apenas um em cada seis entrevistados empurraria o homem de cima da ponta para salvar a vida dos cinco homens (CUSHMAN, Fiery, YOUNG, Liane, & HAUSER, Marc. (2006). The Role of Conscious Reasoning and Intuition in Moral Judgment: Testing Three Principles of Harm. Disponível On-Line: http://www.wjh.harvard.edu/~mnkylab/publications/recent/CushmanMoralPrinciplesPsySci.pdf).

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técnica de ponderação que, normalmente, é apresentada pelos juristas contemporâneos como o

método a ser adotado na solução de conflitos normativos dessa natureza.

Em seguida, avaliarei algumas críticas que podem ser feitas à técnica da ponderação – tal

como utilizada pela prática jurídica brasileira -, tentando demonstrar como ainda estamos longe de se

chegar a um método satisfatório para solucionar, com consistência, as colisões de direitos

fundamentais. Tentarei também fornecer algumas sugestões para minimizar os problemas que

decorrem do uso da ponderação de valores na atividade jurídica.

2 A Inevitável Colisão de Direitos e a Técnica da Ponderação

Veit Harlan (1899 – 1964) foi um cineasta alemão do século XX, que, no auge do regime

nazista, abraçou o nacional-socialismo e incluiu a ideologia anti-semita no contexto de suas produções

artísticas. Em 1940, por exemplo, a pedido do Ministro da Propaganda Nazista, Joseph Goebbels,

Harlan dirigiu o filme Jud Süß, que foi considerado como uma das mais odiosas e negativas

representações dos judeus no cinema. Com a queda do nazismo e o conseqüente processo de

desnazificação pelo qual passou a sociedade alemã, Veit Harlan foi processado e julgado por suas

ligações com o movimento anti-semita, mas foi inocentado. A sua cumplicidade com a ideologia

nazista, contudo, não foi apagada da memória dos judeus.

Nos anos 50, Veit Harlan tentou retornar à indústria do cinema, dirigindo um romântico filme

chamado “Amada Imortal” (Unsterbliche Geliebte), que não tinha qualquer conteúdo anti-semita ou de

apologia ao nazismo. Ocorre que o nome de Veit Harlan ainda estava fortemente vinculado ao

nacional-socialismo. Por esse motivo, por ocasião do lançamento do filme “Amada Imortal”, vários

judeus de prestígio e de influência na mídia alemã resolveram boicotar o trabalho do cineasta alemão.

À frente do boicote, estava Eric Lüth, um judeu que presidia o Clube de Imprensa de Hamburgo.

Lüth escreveu um manifesto incisivo contra o cineasta, pedindo aos proprietários de salas de

cinema e empresas de distribuição de filmes que não incluíssem o “Amada Imortal” em sua

programação e conclamando os “alemães decentes” a não assistirem o referido filme. Eis suas

palavras:

“Depois que a cinematografia alemã no terceiro Reich perdeu sua reputação moral, um certo

homem é com certeza o menos apto de todos a recuperar esta reputação: Trata-se do roteirista e

diretor do filme ‘Jud Süß’. Poupemo-nos de mais prejuízos incomensuráveis em face de todo o

mundo, o que pode ocorrer, na medida em que se procura apresentar justamente ele como sendo

o representante da cinematografia alemã. Sua absolvição em Hamburgo foi tão somente uma

absolvição formal. A fundamentação daquela decisão (já) foi uma condenação moral. Neste

momento, exigimos dos distribuidores e proprietários de salas de cinema uma conduta que não é

tão barata assim, mas cujos custos deveriam ser assumidos: Caráter. E é um tal caráter que desejo

para a cinematografia alemã. Se a cinematografia alemã o demonstrar, provando-o por meio de

fantasia, arrojo óptico e por meio da competência na produção, então ela merece todo apoio e

poderá alcançar aquilo que precisa para viver: Sucesso junto ao público alemão e internacional”.

O manifestou foi veiculado em diversos meios de comunicação, a pedido de Lüth, e gerou

resultado. Por conta disso, o filme foi um fracasso de público, causando grande prejuízo aos

empresários que financiaram a sua produção e comercialização.

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Veit Harlan, juntamente com os empresários que estavam investindo no filme, ingressaram

com ação judicial alegando que a atividade de Eric Lüth violava o Código Civil alemão. Sustentaram que

todo aquele que causa prejuízo deve cessar o ato danoso e reparar os danos causados. O boicote

liderado por Lüth dificultava o livre exercício de uma atividade econômica legítima e atingia a honra de

Veit Harlan. Com isso, foi pedida uma ordem judicial que proibisse Eric Lüth de prosseguir com o

boicote.

A tese prevaleceu em todas as instâncias ordinárias. O Tribunal de Hamburgo, por exemplo,

entendeu que, uma vez “que Harlan por causa de sua participação no filme ‘Jud Süß’ fora absolvido,

tendo essa absolvição transitada em julgado, e em função da decisão no processo de desnazificação

(Entnazifizierung), segundo a qual ele não precisaria mais se submeter a nenhuma limitação no

exercício de sua profissão, essa atitude do reclamante (Eric Lüth) se chocaria com a ‘democrática

concepção moral e jurídica do povo alemão’”. O boicote, portanto, estaria embaraçando o retorno de

Veit Harlan ao mercado de trabalho e causando um sensível prejuízo financeiro às produtoras do filme.

Eric Lüth não se conformou com o resultado do processo. Para ele, como a Lei Fundamental

alemã garantia a liberdade de expressão, ele não poderia ser punido, já que estava apenas

manifestando uma opinião. Com base nisso, recorreu para o Tribunal Constitucional Federal alemão,

que concluiu que o boicote realizado pelo Sr. Lüth seria uma manifestação legítima do direito de

liberdade de manifestação do pensamento, razão pela qual não poderia ser proibido, mesmo que

estivesse causando prejuízo à produtora e à distribuidora do vídeo.

O caso Lüth5, julgado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão em 1958, teve uma

importância decisiva para o direito do pós-guerra. Nele, foram desenvolvidos alguns conceitos que

atualmente são as vigas-mestras da chamada teoria dos direitos fundamentais. De modo sintético, o

Tribunal Constitucional alemão decidiu que: (a) a Constituição não é ideologicamente neutra, já que

representa uma “ordem objetiva de valores” (“Objektive Wertordnung”), centrada na dignidade da

pessoa humana e nos demais direitos fundamentais, que deve orientar a atividade de todo agente

público, inclusive, logicamente, os juízes; (b) esses valores possuem, além de sua dimensão subjetiva,

uma dimensão objetiva que se irradia por todos os ramos do ordenamento jurídico; (c) as normas de

direito privado devem ser sempre interpretadas “à luz” dos direitos fundamentais; (d) os direitos

fundamentais também podem ser aplicados nas relações privadas, possuindo, além da eficácia

vertical, presente nas relações entre o Estado e os cidadãos, uma eficácia horizontal entre particulares

(“Drittwirkung”)6.

5 BVerfGE 7, 198 (1958).

6 A decisão pode ser lida em português: SCHWAB, Jürgen (Org: Leonardo Martins). Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão (Entscheidungen des Bundesverfassungsrichts). Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006, pp. 381/394. De acordo com Robert Alexy, na decisão do caso Lüth, há três idéias que serviram para moldar fundamentalmente o direito constitucional alemão: “A primeira idéia foi a de que a garantia constitucional de direitos individuais não é simplesmente uma garantia dos clássicos direitos defensivos do cidadão contra o Estado. Os direitos constitucionais incorporam, para citar a Corte Constitucional Federal, ‘ao mesmo tempo uma ordem objetiva de valores’. Mais tarde a Corte fala simplesmente de ‘princípios que são expressos pelos direitos constitucionais’. Assumindo essa linha de raciocínio, pode-se de dizer que a primeira idéia básica da decisão do caso Lüth era a afirmação de que os valores ou princípios dos direitos constitucionais aplicam-se não somente à relação entre o cidadão e o Estado, muito além disso, à ‘todas as áreas do Direito’. É precisamente graças a essa aplicabilidade ampla que os direitos constitucionais exercem um “efeito irradiante” sobre todo o sistema jurídico. Os direitos constitucionais tornam-se onipresentes (unbiquitous). A terceira idéia encontra-se implícita na estrutura mesma dos valores e princípios. Valores e princípios tendem a colidir. Uma colisão de princípios só pode ser resolvida pelo balanceamento. A grande lição da decisão do caso Lüth, talvez a mais importante para o trabalho jurídico cotidiano, afirma, portanto, que: “Um ‘balanceamento de interesses’ torna-se necessário”” (ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais, Balanceamento e Racionalidade. Ratio Juris. Vol. 16, n. 2, junho de 2003, p. 131-140).

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A tese forte do caso Lüth foi esta: diante de uma colisão de normas constitucionais, a

ponderação de valores é inevitável. Logo, é da essência da jurisdição constitucional estabelecer um

sopesamento entre valores colidentes para definir qual merece uma proteção maior.

A aparente simplicidade dessa tese esconde uma profunda mudança de paradigma ocorrida na

teoria do direito após a Segunda Guerra. O direito constitucionalizou-se, fazendo com que

considerações de natureza axiológica, que brotam das normas consagradoras dos direitos

fundamentais, fossem incorporadas explicitamente no método jurídico. Além disso, no que se refere

ao velho tratamento das fontes do direito, ocorreu um fenômeno que pode ser designado como

crepúsculo da legislação e, ao mesmo tempo, uma ascensão do constitucionalismo.

O crepúsculo da legislação pode ser descrito como um processo de enfraquecimento do poder

legislativo enquanto instância de tomada de decisões. Esse enfraquecimento decorreu de um

sentimento de desconfiança e mal-estar causado pela atividade legislativa dos parlamentos durante os

regimes nazifascistas. O poder legislativo, além de ter sido incapaz de cumprir a sua principal missão,

que é impor limites jurídicos ao governo, também foi, em grande parte, responsável pela criação de

um sistema normativo que serviu para dar um manto de legalidade às práticas mais atrozes praticadas

pelos governos totalitários. Descobriu-se, da pior maneira possível, que o legislador, mesmo

representando uma suposta vontade da maioria, pode ser tão opressor quanto o pior dos tiranos. Por

isso, na segunda metade do século XX, os juristas procuraram desenvolver alguns instrumentos

teóricos capazes de inserir no mundo do direito os valores éticos indispensáveis para a proteção da

dignidade humana que foram suprimidos durante essa fase sombria da história da humanidade.

A ascensão do constitucionalismo surge, então, como uma alternativa ao modelo clássico da

separação de poderes, numa tentativa de dificultar o desrespeito de alguns valores básicos por um

grupo majoritário que ocasionalmente conquiste o poder político. Buscando inspiração no modelo

norte-americano dos “freios e contrapesos” (“checks and balances”), onde a guarda da constituição é

uma atividade exercida, em última instância, por órgãos judiciais, houve um movimento de

fortalecimento da crença na normatividade constitucional e na idéia de controle jurisdicional de

constitucionalidade. Os debates jurídicos, em razão do aumento da importância dos valores

constitucionais, tornaram-se centrados na constituição, em cujo texto estão positivados os valores

mais importantes a serem doravante protegidos. Os direitos fundamentais transformaram-se no

fundamento de legitimidade de todo o ordenamento jurídico, de modo que nenhum ato poderá ser

conforme ao direito se for incompatível com o sistema de valores que compõe a declaração de

direitos. Os princípios constitucionais passam a ter uma importância estratégia, servindo como

autênticas fontes normativas capazes de embasar diretamente as decisões judiciais. Tudo foi

desenvolvido para que o jurista seja capaz de solucionar os problemas jurídicos de forma justa, sem

fugir da noção de “conformidade ao direito”, tão cara aos ideais de uma civilização que acredita no

princípio do “Estado Democrático de Direito”.

Por detrás desse discurso atual que idolatra os direitos fundamentais e enaltece a figura do

juiz, acreditando otimistamente (ingenuamente?) nas possibilidades emancipatórias da jurisdição,

existem inúmeros problemas que exigem uma abordagem mais crítica e mais profunda, não

necessariamente para negar os méritos dessa proposta, mas para que se possa, num passo seguinte,

torná-la mais sólida, caso isso seja possível.

Entre os diversos problemas que esse novo modelo é capaz de acarretar, certamente um dos

mais difíceis de serem enfrentados é aquele identificado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão

no Caso Lüth: o da colisão de direitos fundamentais, que é uma conseqüência direta do

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reconhecimento da força normativa dos princípios. Afinal, aceitar a utilização de princípios

constitucionais para solucionar problemas jurídicos pressupõe o reconhecimento de que, no caso

concreto, esses princípios podem se chocar.

Não há dúvida de que a teoria dos princípios já foi suficientemente explorada pela doutrina

jurídica brasileira, ainda que permeada de equívocos e imprecisões, por conta do sincretismo

metodológico denunciado por Virgílio Afonso da Silva, em que teorias incompatíveis são acolhidas

como se compatíveis fossem7. Dessa forma, não me parece ser necessário desenvolver com maior

profundidade todas as nuances que a distinção entre regras e princípios carrega, embora tal distinção

seja um ponto central na compreensão do fenômeno da colisão de direitos. Para os fins aqui

pretendidos, basta utilizar alguns pressupostos menos polêmicos em torno da natureza dos princípios,

que se incorporaram ao discurso jurídico brasileiro a partir das obras de Ronald Dworkin e Robert

Alexy. Ei-los: (a) os princípios, dado o seu caráter normativo, podem servir com fundamento das

decisões judiciais; (b) os princípios são normas jurídicas que não descrevem uma situação fática ou

prevêem uma conseqüência específica para o seu descumprimento, mas apenas indicam diretrizes

axiológicas e teleológicas a serem seguidas, cabendo aos juristas se esforçarem para construir soluções

concretas que proporcionem a efetivação dos princípios em sua máxima extensão possível; (c) os

princípios não são aplicados na base do tudo ou nada, pois o seu cumprimento está condicionado à

ocorrência dos pressupostos fáticos e jurídicos que permitam a sua otimização máxima. Acredito que

esses pressupostos básicos são suficientes para os fins aqui propostos8.

A idéia que desejo enfatizar refere-se à possibilidade de princípios diferentes fornecerem

direções diferentes para fundamentar a solução de problemas concretos. Essa idéia pode ser ilustrada

a partir da metáfora do mapa e da bússola, sugerido por Aroso Linhares, inspirando-se em Drucilla

Cornell e Adela Cortina9. De acordo com essa proposta, as regras jurídicas seriam como mapas, que

fornecem um itinerário mais ou menos pormenorizado a ser seguido. Já os princípios seriam como

bússolas, funcionando como guias de orientação do caminho a seguir.

Se os princípios são bússolas, que apenas nos indicam um norte a seguir, sem impor trilhas

pré-definidas, o que fazer quando dois princípios igualmente válidos nos levam a direções opostas? O

que fazer, por exemplo, quando, por um lado, um princípio como a liberdade de expressão nos mostra

o caminho da transparência, da livre divulgação de idéias, da ampla circulação de informações e, por

outro lado, um princípio como a proteção da personalidade nos indica a direção do segredo, da não-

transparência, do resguardo da imagem, do nome e da vida privada dos indivíduos? O que fazer

quando o princípio da livre iniciativa estimula uma economia de mercado em busca de lucros

financeiros, e o princípio da solidariedade exige condutas altruístas na distribuição dos recursos

sociais? Como decidir quando o direito de propriedade confere ao dono de um imóvel uma ampla

liberdade de disposição de seu bem, para fruir e gozar como bem entender, enquanto o princípio da

função sócio-ambiental da propriedade impõe a observância de limites intensos ao uso da

propriedade?

7 SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e Regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. In: Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais n. 1, jan/jun 2003, p. 607/630. 8 Para um aprofundamento do tema, não se pode deixar de sugerir a obra “Teoria dos Princípios”, de Humberto Ávila (ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. São Paulo: Malheiros, 2003), que conseguiu produzir um texto original e de excelência indiscutível mesmo diante da pobreza de idéias que costuma pairar no universo jurídico brasileiro. O seu livro mereceu elogios até mesmo da comunidade jurídico-filosófica internacional, tendo sido publicado, em inglês, na prestigiada coleção “Law and Philosophy Library”, da editora Springer (ÁVILA, Humberto. Theory of Legal Principles. Dordrecht-Netherlands: Spinger, 2007). 9 LINHARES, José Manoel Aroso. Jurisprudencialismo: uma resposta possível em tempo(s) de pluralidade e de diferenças?. Coimbra: Universidade de Coimbra (policopiado), 2008 – Conferência proferida em Ouro Preto.

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A doutrina constitucional recomenda que, em caso de colisão de direitos, deve-se, em

primeiro lugar, tentar equilibrar os interesses conflitantes, de modo que todos eles sejam preservados

pelo menos em alguma medida na solução adotada, dentro daquilo que se convencionou chamar de

“concordância prática”. O princípio da concordância prática, de acordo com o Tribunal Constitucional

alemão, “determina que nenhuma das posições jurídicas conflitantes será favorecida ou afirmada em

sua plenitude, mas que todas elas, o quanto possível, serão reciprocamente poupadas e

compensadas”10. Trata-se, portanto, de uma tentativa de equilibrar (ou balancear) os valores

conflitantes, de modo que todos eles sejam preservados pelo menos em alguma medida na solução

adotada. O papel do jurista consiste precisamente em tentar dissipar o conflito normativo através da

integração harmoniosa dos valores contraditórios.

Ocorre que há várias situações em que a harmonização será inviável, pois a proteção de um

determinado valor implicará no sacrifício total do outro valor colidente. De acordo com a doutrina

constitucional dominante, se não for possível harmonizar os direitos em colisão, parte-se para um

sopesamento em que será prestigiado o princípio mais importante e sacrificado o princípio

“perdedor”. E de fato, há várias situações em que o jurista se depara com dois princípios em rota de

colisão e, para solucionar esse conflito, necessariamente precisa sacrificar um desses princípios caso

não seja possível conciliá-los.

Essas situações são típicas de nosso tempo: um tempo de exaltação da democracia, do

pluralismo e das diferenças, em que, por um lado, deseja-se construir um projeto ético comum11, mas,

por outro lado, percebe-se que um código moral uniforme e único para toda a população não é apenas

inviável, mas até mesmo indesejável, por ser demasiado arrogante e totalitário. Tenta-se, então, pelo

menos um modelo que, sem deixar de celebrar a pluralidade, possa integrar os diversos valores

presentes na sociedade e harmonizá-los para possibilitar a convivência comunitária. Uma democracia

pluralista é um ambiente em que valores muito diferentes, e até mesmo antagônicos, tentam ocupar o

mesmo espaço geográfico e conviver harmonicamente no mesmo território. Uma constituição

pluralista tenta acomodar todos esses valores em um mesmo sistema jurídico de proteção, com a

pretensão de unidade e de coerência específica de um sistema jurídico12. Como nem sempre é possível

harmonizá-los ou protegê-los em igual medida, surgem os conflitos que se manifestam juridicamente

através da colisão de direitos fundamentais.

Uma colisão de direitos fundamentais é uma batalha do direito contra o direito, mais

precisamente é uma batalha do direito válido contra o direito válido, do justo contra o justo. É um

problema jurídico em que as duas partes em conflito possuem um argumento de peso – com

fundamento constitucional! – que ampara as suas pretensões. Nesses casos, têm-se normas de

hierarquia constitucional, publicadas ao mesmo tempo e com o mesmo grau de abstração, que, no

caso concreto, fornecem conseqüências jurídicas opostas. Os famosos critérios de solução de

antinomias (hierárquico, cronológico e da especialidade) não servem para solucionar o conflito ora

10 SCHWAB, Jürgen. Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão (Entscheidungen des Bundesverfassungsrichts). Org: Leonardo Martins Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006, p. 134. 11 Projeto este defendido por religiosos e não-religiosos: KÜNG, Hans. Projecto para Uma Ética Mundial (Projekt Weltethos, 1990). Trad. Maria Luisa Cabaços Meliços. Lisboa: Piaget, 1996; SINGER, Peter. Um Só Mundo: a ética da globalização (One World: the ethics of globalization, 2002). São Paulo: Martins Fontes, 2004; CHANGEUX, Jean-Pierre (dir.). Uma Mesma Ética para Todos? (Une Même Éthique pour tours?, 1997). Lisboa: Instituto Piaget, 1999. 12 “As características do conceito geral do sistema são a ordem e a unidade. Eles encontram a sua correspondência jurídica nas idéias de adequação valorativa e unidade interior do Direito” (CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito (Systemdenken und Systembergriff in der Jurisprudenz, 1983). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 279).

Page 9: A Difícil Arte de Ponderar o Imponderável

9

previsto! Quid iuris? Como decidir entre dois valores igualmente relevantes que estão ambos

contemplados na Constituição?

No âmbito da teoria dos direitos fundamentais, costuma-se dizer que todas as situações

envolvendo o fenômeno da colisão de direitos são de difícil solução (“hard cases”) e, por isso, tudo vai

depender das informações fornecidas pelo caso concreto, das argumentações apresentadas pelas

partes do processo judicial e da percepção ética do juiz. Tornou-se quase pacífico reconhecer que, em

situações assim, é preciso usar a técnica da ponderação para solucionar esse conflito, ou seja, é

preciso realizar uma análise de peso e importância dos valores em jogo e decidir qual merece

prevalecer13.

Até aqui não há grande dificuldade para compreender o problema. É quase intuitivo perceber

que as normas constitucionais entram em choque e que um balanceamento faz parte do fenômeno

jurídico (a balança é o símbolo da justiça!). A dificuldade maior de compreensão surge quando se

descobre que, seja qual for a solução adotada, será possível encontrar um suporte constitucional em

seu favor. A contrario sensu, sempre haverá um descumprimento parcial ou total de alguma norma

constitucional, já que, quando duas normas constitucionais colidem, fatalmente o juiz decidirá qual a

que “vale menos” para ser sacrificada naquele caso concreto. É justamente por isso que se questiona a

legitimidade da ponderação. Alega-se que a escolha sempre terá um forte viés subjetivo e, por isso,

será irracional e arbitrária, esvaziando por completo qualquer tentativa de se garantir a

previsibilidade, a certeza e a segurança na realização do direito, além de ser uma porta aberta para o

sacrifício de direitos fundamentais que, ao se flexibilizarem, ficariam ameaçados de desaparecerem no

turbilhão do sopesamento irracional14.

Em razão disso, essa técnica de julgamento tem sido alvo de inúmeros ataques doutrinários, já

que pode gerar decisões arbitrárias e contrárias à própria dignidade humana. Portanto, é hora de

analisar algumas críticas à técnica de ponderação para saber se elas têm fundamento.

3 Algumas Críticas à Ponderação de Valores

Para facilitar a compreensão do tema, dividirei as críticas à ponderação em quatro grupos: (a)

a subjetividade dos valores; (b) o problema da incomensurabilidade; (c) o decisionismo e (d) o

enfraquecimento dos direitos. Todas essas críticas são interligadas e possuem dificuldades ontológicas

e epistemológicas em comum. Ressalto ainda que há, dentro de cada uma dessas questões, teorias

mais sofisticadas que demandariam um aprofundamento maior para serem corretamente assimiladas.

Por isso, sugiro que os diversos argumentos não sejam julgados de forma apressada, pois eles

encobrem questões que nem mesmo as mentes mais sábias do planeta são capazes de resolver.

3.1 A Subjetividade dos Valores

“Os juízos do mundo são singulares e contraditórios” – Machado de Assis, “O Pai” (1866)

13 Sobre o tema, entre outros: BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 14 Nesse sentido: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade (Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskursstheorie des Rechits und des demokratische Rechitstaats, 1992). v. I. Trad: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, pp. 314 e ss.

Page 10: A Difícil Arte de Ponderar o Imponderável

10

Os seres humanos são diferentes em vários aspectos e possuem histórias de vida singulares e

irrepetíveis. Muitas de nossas opiniões morais e o peso que atribuímos a cada valor social podem

variar de acordo com as experiências por nós vivenciadas e do contexto cultural em que estamos

inseridos. A doutrinação moral a que fomos submetidos desde a infância, as crenças religiosas a que

aderimos, a atividade profissional que exercemos, a cultura geral (livros, filmes etc.) que assimilamos,

os fatos dramáticos que presenciamos: tudo isso afeta o nosso pensamento moral e pode consistir no

fiel da balança no momento em que estamos realizando um julgamento em que há valores em

conflito.

A verdade indiscutível dessas afirmações de certo modo óbvias levou alguns influentes

pensadores a defenderem a idéia do subjetivismo/relativismo/ceticismo éticos, que afeta em cheio a

pretensão de racionalidade da ponderação de valores e talvez até mesmo da jurisdição como um todo.

De acordo essa vertente, não seria possível estabelecer objetivamente quais as necessidades humanas

dignas de serem satisfeitas, muito menos a sua ordem de importância, já que não há, na tessitura do

mundo, fatos morais empiricamente demonstráveis. Por isso, essas questões não poderiam ser

respondidas racionalmente, já que representariam julgamentos de valor determinados por fatores

emocionais, contingenciais e de caráter meramente subjetivo, válidos apenas para o sujeito que julga

e, por conseguinte, relativos. Acreditar que todos os valores são subjetivos e relativos, isto é, que todo

juízo ético varia de pessoa para pessoa ou de cultura para cultura, retiraria das escolhas éticas o manto

de racionalidade ou de objetividade que muitos juristas acreditam existir.

Como se sabe, no campo da filosofia do direito, Hans Kelsen foi um dos principais defensores

dessa idéia15. Na filosofia geral, Ludwig Wittgenstein é um dos principais responsáveis pela divulgação

do relativismo ético e, mesmo sendo impenetrável para muitos, inclusive para mim, é relativamente

claro quanto ao papel que confere à ética. Partindo da premissa de que “acerca daquilo de que não se

pode falar, tem que se ficar em silêncio”, Wittgenstein conclui que “não pode haver proposições da

Ética. As proposições não podem exprimir nada do que é mais elevado. É óbvio que a Ética não se pode

pôr em palavras. A ética é transcendental. (A Ética e a Estética são Um)”16. Na sua “Conferência sobre

Ética”, proferida em Cambridge entre os anos de 1929 e 1930, Wittgenstein reforçou sua teoria de que

a ética não pode ser objeto da filosofia ou da ciência, pois não descreve fatos, mas apenas juízos de

valor e, como tais, inexprimíveis linguisticamente. Por isso, para ele, quem quer que tenha a tentação

de falar sobre ética está lutando inutilmente contra os limites da linguagem: “Esta corrida contra as

paredes de nossa jaula é perfeita e absolutamente desesperançada. A Ética, na medida em que brota

do desejo de dizer algo sobre o sentido último da vida, sobre o absolutamente bom, o absolutamente

valioso, não pode ser uma ciência. O que ela diz nada acrescenta, em nenhum sentido, ao nosso

conhecimento, mas é um testemunho de uma tendência do espírito humano que eu pessoalmente não

posso senão respeitar profundamente e que por nada neste mundo ridicularizaria”17.

Alfred J. Ayer, outro notável defensor do positivismo lógico, segue uma linha de pensamento

semelhante. Para Ayer, as opiniões éticas não passariam de simples expressão de emoções e, por isso,

não poderiam ser consideradas como falsas ou verdadeiras. Afirmar que algo (X) é bom significaria,

para Ayer, basicamente assumir uma atitude favorável perante X e, com isso estimular outras pessoas

15 Confira, por exemplo: KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado (General Theory of Law and State, 1945). São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 10; KELSEN, Hans. A Justiça e o Direito Natural. Trad: João Baptista Machado. Coimbra: Almedina, 2001, pp. 100/101. 16 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado Lógico-Filosófico (Tractatus Logico-Philosophicus, 1922). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 138. 17 O texto “Conferência sobre Ética”, de Wittgenstein, traduzido para o português por Darlei Dall’Agnol, pode ser consultado em: http://ateus.net/ebooks/acervo/conferencia_sobre_etica.pdf

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11

a “gostarem” de X: “the exhorations to moral virtue are not propositions at all, but ejaculations or

commands which are designed to provoke the reader to action of a certain sort”. Desse modo,

enunciados morais não poderiam fazer parte da filosofia ou da ciência. Um tratado estritamente

filosófico ou científico nunca poderia sugerir proposições éticas, já que tais proposições não poderiam

ser empiricamente calculadas, nem controladas pela observação, não passando de uma “misteriosa

‘intuição intelectual’”18.

Dentro dessa teoria, toda decisão axiológica seria fruto da preferência pessoal dos julgadores

e, portanto, um mero ato de vontade arbitrário. Afirmar que “X é justo” ou “Y é um bem” seria

equivalente a afirmar “gosto de X e de Y”, pois os princípios morais seriam escolhidos não por meio de

uma reflexão racional, mas por força de um sentimento caprichoso. Os juízos morais seriam

equivalentes a relatórios de sentimentos e tomadas de posição do próprio falante. Defender que a

liberdade de expressão é mais importante do que o direito à privacidade seria o mesmo que defender

que o sorvete de creme é melhor do que o sorvete de morango: uma mera questão de gosto pessoal.

Essa tese certamente causa um mal-estar entre os juristas e costuma ser logo repudiada nos

debates jusfilosóficos. Afinal, se é verdade que todas as discussões éticas são sem sentido, então

certamente boa parte daquilo que os juristas fazem é um completo disparate, especialmente quando

se trata solucionar casos em que há necessidade de sopesar valores.

E o mais desanimador é que a análise concreta dos julgamentos parece reforçar os argumentos

defendidos pelo relativismo ético. De fato, seria possível encontrar tribunais inteiros favoráveis à não-

criminalização do aborto e, num país ao lado, outros tribunais que entendem que o estado deveria

castigar a interrupção voluntária da gravidez. Há juízes que não hesitam em punir a prática da

eutanásia, e outros que reconhecem que existe um direito fundamental à disposição sobre o próprio

corpo e sobre a própria vida e, portanto, também haveria um direito de morrer dignamente. Várias

cortes constitucionais julgaram a favor do direito dos homossexuais e tantas outras negaram os

mesmos direitos. E mais: dentro de um mesmo tribunal, é muito freqüente haver posicionamentos

divergentes a respeito do mesmo assunto. Juízes com o mesmo grau de inteligência e com uma

formação acadêmica semelhante costumam decidir em sentidos diametralmente opostos. Não é raro

que os julgamentos mais polêmicos sejam decididos pela diferença de um único voto, como bem

demonstram os famosos julgamentos “5-4” nos Estados Unidos ou os menos famosos julgamentos “6-

5” no Brasil. Além disso, muitas vezes a jurisprudência de um determinado tribunal muda

completamente quando há uma mudança da sua composição. Em determinados casos, basta que um

juiz liberal se aposente e um juiz conservador passe a ocupar o seu lugar para que uma verdadeira

revolução possa ocorrer no conteúdo dos julgamentos19. O resultado de uma demanda pode ser

influenciado de modo decisivo pela distribuição aleatória do processo, como se a justiça fosse uma

roleta onde o fator sorte é preponderante: a depender do sorteio acerca do juiz que ficará responsável

pelo julgamento, a resposta judicial pode ser favorável ou desfavorável. Onde estaria a objetividade,

então? Que racionalidade seria esta onde a metade de um tribunal pensa de uma forma e a outra

metade pensa de uma forma diametralmente oposta a respeito de um mesmo assunto e de uma

18 AYER, Alfred Jules. Language, Truth and Logic. Londres: Penguin Books, 1971 (Primeira Publicação: 1936), pp. 104/112. 19 Essa observação foi desenvolvida por Richard Posner na introdução do seu “How Judges Think”. Na sua ótica, a regulação jurídica nos Estados Unidos é realizada não pelo direito, mas principalmente pelos juízes. Afinal, se a mudança dos juízes muda o direito, então não é possível saber exatamente o que o direito é (POSNER, Richard. How Judges Think. Cambridge: Harvard Press, 2008, p. 1). Essa visão foi originalmente desenvolvida pelo Realismo Jurídico (“Legal Realism”) que é a escola de pensamento jurídico mais influente dos Estados Unidos. Para obter uma visão geral do Realismo Jurídico, vale conferir os seguintes papers publicados no “Social Science Reserch Network”: “American Legal Realism”, de Brian Leiter; “The New Legal Realism”, de Thomas Miles e Cass Sunstein; e “Understanding Legal Realism”, de Brian Tamanaha.

Page 12: A Difícil Arte de Ponderar o Imponderável

12

mesma norma? Se a jurisprudência muda quando os juízes mudam, qual seria então a fonte do direito

senão a vontade subjetiva dos julgadores? Se isso ocorre, como acreditar que a ponderação de valores

possa ser uma atividade não-arbitrária? Não seriam as justificações apresentadas pelos julgadores

apenas um esforço sem sentido para impor seus próprios gostos pessoais de uma forma esteticamente

assimilável pelos demais?

Se não formos capazes de refutar com consistência o subjetivismo ético, a experiência daria

razão àqueles que defendem que tudo se resume a um jogo de forças ideológicas rivais, onde a

mentalidade dominante prevalece não por ser necessariamente a solução mais justa, mas por uma

mera questão de sorte ou de poder. E se tudo não passa de um jogo de poder, então todo o processo

judicial, com suas solenidades e simbologias tradicionais, não passaria de uma encenação; e todo

esforço dos juízes, em fundamentarem objetivamente suas decisões e se apresentarem como

imparciais e independentes, não passaria de um fingimento descarado, de uma dissimulação ética

(Castoriadis20) ou, pelo menos, de um auto-engano involuntário e ingênuo.

A esse respeito, não se pode deixar de mencionar a crítica, certamente exagerada, mas

profunda, lançada por Nietzsche, que, apesar de se dirigir aos filósofos morais de um modo geral,

também se aplica ao mundo jurídico:

“O que nos incita a olhar todos os filósofos de uma só vez, com desconfiança e troça,

não é porque percebemos quão inocentes são, nem com que facilidade se enganam

repetidamente. Em outras palavras, não é frívolo nem infantil indicar a falta de

sinceridade com que elevam um coro unânime de virtuosos e lastimosos protestos

quando se toca, ainda que superficialmente, o problema de sua sinceridade. Reagem com

uma atitude de conquista de suas opiniões através do exercício espontâneo de uma

dialética pura, fria e impassível, quando a realidade demonstra que a maioria das vezes

apenas se trata de uma afirmação arbitrária, de um capricho, de uma intuição ou de um

desejo íntimo e abstrato que defendem com razões rebuscadas durante muito tempo e,

de certo modo, bastante empíricas. Ainda que o neguem, são advogados e

freqüentemente astutos defensores de seus preconceitos, que eles chamam

‘verdades’”21.

Embora seja indiscutível que as decisões judiciais nem sempre sejam inspiradas por razões

eticamente fundadas, é um exagero pensar que todo pensamento moral não passa de preconceito

empacotado de forma esteticamente apresentável, como defendeu Nietzsche. Além disso, o fato de

haver fortes divergências em assuntos éticos e de existirem juízes que adotam escolhas morais

antagônicas em suas decisões judiciais não parece ser motivo suficiente para tanto ceticismo

epistemológico acerca do conhecimento ético. Pelo contrário. Considerando que a ética é o que há de

mais fundamental no ser humano, o esforço intelectual para produzir cada vez mais informações que

possam levar a um avanço ético torna-se ainda mais necessário, apesar de todas as dificuldades de

uma tal empreitada.

Sobre a célebre passagem de Wittgenstein que recomenda o silêncio em assuntos “dos quais

não se pode falar” e de que “só se deve dizer o que pode ser dito”, merece ser mencionado o

igualmente célebre comentário de Schrödinger: “mas é justamente nessa altura que vale a pena

20 CASTORIADIS, Cornelius. A Dissimulação da Ética. In: Encruzilhadas do Labirinto IV: a ascensão da insignificância. Trad. Regina Vasconcelos. Sao Paulo: Paz e Terra, 2002. 21 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do Bem e do Mal ou Prelúdio de uma Filosofia do Futuro (Jenseits Von Gut Und Böse). Curitiba: Hemus, 2001, p. 14.

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13

falar!”. A resposta de Schrödinger se aplica com muito mais razão no campo da ética, que é uma área

que afeta diretamente as nossas vidas e que, por isso mesmo, exige um debate consciente, aberto,

transparente e racional. O silêncio diante do sofrimento, da crueldade e da barbárie não é nem nunca

será uma atitude correta. O conformismo diante da injustiça nunca pode ser estimulado. O papel

moral de qualquer ser humano, seja um cientista, seja um filósofo, seja um jurista, seja um cidadão, é

combater, com as armas argumentativas e profissionais de que dispõe, as condutas e os regimes

eticamente opressores e lutar por um mundo melhor, ainda que para isso tenha que tentar

compreender a lógica e a razão prática, nem sempre cartesiana, por detrás dos juízos de valor.

A idéia de que toda concepção ética é relativa, de que qualquer coisa serve, de que tudo não

passa de um jogo de poder ou de emoções e de que as questões de justiça são equivalentes às escolhas

gastronômicas têm sido refutadas veementemente por diversos filósofos contemporâneos, tanto por

razões lógicas quanto por razões ideológicas22. O argumento lógico contra o relativismo radical é auto-

evidente: se todo juízo de valor é relativo, então haveria pelo menos uma idéia universal, que é o

próprio relativismo e isso, por si só, já seria suficiente para destruir a tese de que tudo é relativo.

Qualquer pessoa que acreditasse verdadeiramente no ceticismo radical sequer se daria ao trabalho de

tentar justificar essa idéia, pois estaria sendo contraditória consigo mesma23.

22 Sobre o tema, entre outros: RACHELS, James. Elementos de Filosofia Moral (The Elements of Moral Philosophy, 2003). Lisboa: Gradiva, 2004, especialmente os capítulos 2 (“O desafio do relativismo cultural”) e 3 (“O Subjetivismo em Ética”); ODERBERG, David S. Teoria Moral: uma abordagem não-conseqüencialista (Moral Theory: a non-consequecislist approach, 2000). Parede: Princípia, 2009, p. 88. Fora do campo da filosofia moral, essa idéia também tem sido combatida: NAGEL, Thomas. A Última Palavra (The Last Word, 1997). Trad: Desidério Murcho. Lisboa: Gradiva, 1999; POPPER, Karl. The Myth of Framework: in defense of science and rationality. London: Routledge, 1993; BOUDON, Raymond. O Relativismo (Le Relativism, 2008). Lisboa: Gradiva, 2008. No campo da Filosofia do Direito: DWORKIN, Ronald. La Justicia con Toga (Justice in Robes, 2006). Madrid: Marcel Pons, 2008; KAUFMANN, Arthur. Derecho, Moral e Historicidad (Naturrecht und Geschichtlichkeit Recht und Sittlichkeit, 1957). Madrid: Marcial Pons, 2000. Vale ressaltar que todos esses autores divergem profundamente entre si acerca de pontos fundamentais da ética, mas todos concordam que nem tudo é relativo, ou seja, que há uma base de objetividade na ética que pode ser analisada racionalmente. 23 Aliás, há aqui uma questão curiosa: somente a própria objetividade é capaz de revelar as suas fraquezas e limitações. Para eu chegar à conclusão de que “nada é objetivo”, preciso deixar de lado o meu próprio ponto de vista e analisar a questão de forma que essa conclusão seja válida não apenas para mim, mas para todas as outras pessoas. Ao fazer isso, já estou raciocinando de forma objetiva! Sobre isso: MURCHO, Desidério. Pensar Outra Vez: filosofia, valor e verdade. Apartado: Quasi, 2006. Defendendo a objetividade: RACHELS, James. Elementos de Filosofia Moral (The Elements of Moral Philosophy, 2003). Lisboa: Gradiva, 2004, especialmente os capítulos 2 (“O desafio do relativismo cultural”) e 3 (“O Subjetivismo em Ética”); ODERBERG, David S. Teoria Moral: uma abordagem não-conseqüencialista (Moral Theory: a non-consequecislist approach, 2000). Parede: Princípia, 2009, p. 88. Fora do campo da filosofia moral, essa idéia também tem sido combatida: NAGEL, Thomas. A Última Palavra (The Last Word, 1997). Trad: Desidério Murcho. Lisboa: Gradiva, 1999; POPPER, Karl. The Myth of Framework: in defense of science and rationality. London: Routledge, 1993; BOUDON, Raymond. O Relativismo (Le Relativism, 2008). Lisboa: Gradiva, 2008. No campo da Filosofia do Direito: DWORKIN, Ronald. La Justicia con Toga (Justice in Robes, 2006). Madrid: Marcel Pons, 2008; KAUFMANN, Arthur. Derecho, Moral e Historicidad (Naturrecht und Geschichtlichkeit Recht und Sittlichkeit, 1957). Madrid: Marcial Pons, 2000; HEINEMAN, Fritz. A Filosofia no Século XX (De Philosophie Im XX Jahrhundert, 1963). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008; WILLIANS, Bernard. Moral: uma introdução à ética (Morality, 1972). Trad. Remo Mannarino Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Vale citar que todos esses autores divergem profundamente entre si acerca de pontos fundamentais da ética, mas todos concordam que nem tudo é relativo, ou seja, que há uma base de objetividade na ética que pode ser analisada racionalmente e justificada a partir de critérios inteligíveis. Além disso, nem todos os que defendem o subjetivismo dos valores, por acreditarem que não há fatos morais objetivos, não são necessariamente indiferentes quanto à utilidade do debate ético. John L. Mackie, por exemplo, que é um defensor do subjetivismo ético ou, nas suas palavras, do ceticismo moral, sustenta uma refinada teoria ética subjetivista, em que não está totalmente excluído o debate normativo “de primeira ordem”. Seus argumentos em favor do ceticismo moral são estes: “primeiramente, a relatividade ou variabilidade de alguns importantes pontos de partida do pensamento moral e sua aparente dependência em relação aos modos de vida reais; em segundo lugar, a peculiaridade metafísica dos supostos valores objetivos, já que eles teriam que ser intrinsecamente guias da ação e motivadores; em terceiro lugar, o problema de como tais valores poderiam ser consecutivos com respeito a aspectos naturais, ou supervenientes a eles; em quarto lugar, a correspondente dificuldade epistemológica de explicar, em termos de vários padrões diferentes de objetivação, vestígios do que permanece na linguagem e nos conceitos morais, e como, mesmo se esses valores objetivos não existissem, as pessoas não apenas teriam suposto sua existência, mas também teriam persistido firmemente em tal crença” (MACKIE, J. L. A Subjetividade dos Valores (“The Subjectivity of Values”). Disponível on-line:

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O argumento ideológico é mais importante: se não houver um consenso mínimo em torno de

valores básicos que encontrem um referencial ético acima da psicologia das massas, então tudo seria

permitido (“anything goes”) e tudo estaria justificado, até mesmo o nazismo, por exemplo. Em outras

palavras: a total irracionalidade dos juízos de valor daria aos seres humanos uma margem ilimitada de

escolhas sobre o que é bom/correto/justo, o que certamente não é desejável, pois a função da ética é

precisamente delimitar, do modo mais racional possível, o que é ruim/incorreto/injusto – e há vários

“modelos”, inclusive o nazismo, que se encaixam com elevado grau de certeza nessa descrição. Desse

modo, até por uma questão de opção ideológica (e ética), é muito melhor acreditar na idéia de que é

possível alicerçarmos as nossas opiniões éticas em argumentos racionais e que, portanto, vale a pena

discutir essas questões, não apenas para convencer as pessoas a aceitarem nossas preferências, mas,

especialmente, para ser convencido sobre os interesses dos outros.

O fato incontestável de que “sociedades diferentes possuem códigos morais diferentes” não

nos permite concluir que não possam existir algumas regras éticas que todas as sociedades

compartilham, até como pressuposto da própria existência social. Por exemplo, pode-se afirmar com

elevado grau de certeza que nenhuma sociedade humana viável tenha como objetivo de existência a

busca da infelicidade de seus membros ou a busca de sua própria destruição. A busca da felicidade e

da auto-preservação é um elemento universal presente em todas as sociedades viáveis. Do mesmo

modo, nenhum indivíduo mentalmente capaz aceitaria ser submetido à escravidão ou gostaria de viver

em um ambiente de violência injustificada, se tivesse opção de escolher uma vida melhor. A opressão,

o arbítrio e o desrespeito são intrinsecamente errados independentemente do contexto cultural. A

crueldade deveria causar indignação onde quer que seja praticada. Existem, portanto, alguns valores

básicos que estão acima de qualquer ideologia, ainda que os meios para se alcançar esses valores

variem enormemente.

Além disso, ainda que não se tenha pretensão de se encontrar valores uniformemente válidos

para todas as sociedades em todas as épocas e ainda que não existam verdades éticas absolutas, é

inegável que, numa perspectiva local e contextualizada, é possível descobrir as melhores soluções

éticas para um dado problema específico, através de um exercício argumentativo racional, com base

nas informações até então disponíveis. Dificilmente alguém conseguiria, nos dias de hoje, reunir

razões capazes de convencer que o genocídio ou o preconceito racial, por exemplo, são condutas

eticamente aceitáveis, por mais persuasivos que sejam os argumentos em favor dessa esdrúxula tese.

Existem alguns valores éticos que já se incorporaram ao patrimônio racional da humanidade, fazendo

parte daquilo que se pode chamar de “núcleo duro” da ética. Esses valores só podem ser afastados por

meios irracionais (manipulação da opinião pública, idolatria, disseminação do medo, repressão,

divulgação de informações truncadas e falsificadas, propaganda e doutrinação de ódio etc), como

tristemente se verificou com os regimes totalitários do século XX, em especial com o nazismo. O sono

da razão produz monstros, como bem alertou Goya. É nesse contexto, para impedir que o sono da

razão produza monstros, que se defende que os princípios éticos podem e devem ter uma base de

racionalidade capaz de orientar a escolhas humanas, inclusive as decisões judiciais.

Porém, mesmo que o subjetivismo ético seja uma teoria falsa, auto-refutante, conformista,

perigosa ou, no mínimo, inútil, há um aspecto por ela enfatizado que ninguém pode negar: nenhum

juízo ético dispensa a existência de sujeitos capazes de dizer (e decidir) qual o padrão axiológico

correto e, portanto, sempre haverá um componente subjetivo em qualquer escolha valorativa. A

http://www.criticanarede.com). Para Mackie, esse tipo de ceticismo não deveria levar a uma indiferença quanto aos valores, nem mesmo a uma validação automática de qualquer prática ou teoria moral, pois isso não afeta em nada as discussões éticas de primeira ordem.

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questão é saber se é possível que os sujeitos que irão tomar decisões dessa natureza são capazes de

“sair” completamente de seu próprio “sistema de crenças” e se colocar numa posição moralmente

eqüidistante para obter “the view from nowhere”24 ou então “the point of view of the Universe”25.

Conforme já dito, as escolhas valorativas que fazemos costumam ser influenciadas fortemente

por fatores aleatórios que fogem do nosso controle. A atribuição de pesos a determinados valores

varia de acordo as crenças de cada indivíduo, uma vez que, muitas vezes, as nossas opções morais são

resultado da cultura em que nossas personalidades são formadas, como conseqüência de muitos

fatores contingenciais (influência dos pais, dos amigos, dos professores, do meio ambiente físico e

cultural etc.). Assim, para um católico, o valor “vida humana”, com toda a sua dimensão espiritual

pressuposta, teria um peso diferente do que é dado por um ateu mais radical, por exemplo, para quem

a vida nada mais é do que um aglomerado de genes egoístas lutando para se perpetuar26. Do mesmo

modo, um jornalista atribui um valor à liberdade de expressão muito maior do que qualquer outra

pessoa. Um empresário coloca a livre iniciativa acima dos valores de solidariedade; um ambientalista,

por sua vez, trata a proteção ambiental como algo muito superior ao direito de propriedade privada e

assim por diante. Como encontrar alguém suficientemente neutro/imparcial/impessoal para atribuir os

pesos corretos a cada um desses valores em conflito?

Justamente por ser muito difícil alcançar uma situação de plena objetividade, é que, no meu

entender, o esforço de Robert Alexy para desenvolver a sua engenhosa “fórmula-peso”, com o

objetivo de dar uma explicação racional ao processo de ponderação, possui pouca utilidade prática,

sobretudo se a adotarmos como ferramenta metodológica, que, talvez, não tenha sido a intenção de

Alexy27. Alexy, como se sabe, defende que a ponderação é, apesar de tudo, uma atividade racional e,

para isso, tentou encontrar uma fórmula matemática capaz de justificar sua hipótese. Desenvolveu,

então, a chamada “fórmula peso”, que sintetiza a estrutura formal da ponderação. A fórmula completa

é a seguinte:

24

NAGEL, Thomas. The View From Nowhere. New York: Oxford, 1986. Ressalte-se que Nagel, no referido livro, defende a possibilidade de uma perspectiva objetiva, ainda que nossas visões sejam fragmentadas e imperfeitas: “It is necessary to combine the recognition of our contigency, our finitude, and our containment in the world with an ambition of transcendence, however limited may be our success in achieving it. The right attitude in philosophy is to accept aims that we can achieve only fractionally and imperfectly, and cannot be sure of achieving even to that extent. It means in particular not abandoning the pursuit of truth, even thought if you want the truth rather than merely something to say, you will have a good deal less to say” (p. 11). 25 A expressão é de Henry Sidgwick: SIDGWICK, Henry. The Methods of Ethics. 4a ed. London: Macmillan and Co., 1890, p. 382. 26 Estamos, naturalmente, fazendo alusão à Richard Dawkins (DAWKINS, Richard. O Gene Egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007). Dawkins defende que a seleção natural não operaria no nível dos indivíduos, nem dos grupos, nem das espécies, e sim dos genes. Em outras palavras: seriam os genes que lutam para sobreviver e que estão na base da teoria evolutiva. Os seres vivos seriam projetados para agir de forma a aumentar a probabilidade de que seus genes, ou cópias de seus genes, sobrevivam e se reproduzam. Para Dawkins, os organismos seriam meras máquinas de sobrevivência – robôs cegamente programados para preservar as moléculas egoístas chamadas genes, que fazem tudo para se perpetuar. Somente o gene egoísta seria capaz de sobreviver, pois se o gene for altruísta o suficiente para permitir que outro gene sobreviva em seu lugar, certamente esse gene altruísta deixará de existir. Dawkins diz ainda que o egoísmo do gene seria uma característica boa, no sentido de que facilitaria a sobrevivência. O gene egoísta seria mais apto a vencer a luta pela vida. Todo gene estaria programado para sobreviver e se reproduzir e fará o que for preciso para se perpetuar. No nível dos genes, não haveria espaço para o altruísmo. 27 A “Fórmula Peso” foi desenvolvida no texto “Die Gewichtsformel”, disponível em português: ALEXY, Robert. A fórmula peso. In: Constitucionalismo Discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 131/153. Pode ser vista também, na sua versão mais simples, em castelhano: ALEXY, Roberto & ANDRÉS IBAÑES, Perfecto. Jueces y Ponderación Argumentativa. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2006, especialmente pp. 1/10.

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Para Alexy, havendo dois princípios em colisão, o julgador deve levar em conta todos os

fatores envolvidos, tentando dar um peso específico para cada um deles. No final, a ponderação vai

pender para o lado que obtiver a pontuação maior. Esses fatores que influenciarão o resultado da

atividade ponderativa correspondem, basicamente, a três aspectos pelo menos: (a) o peso abstrato de

cada princípio, (b) a importância do cumprimento do princípio “vencedor” e (c) a intensidade do

prejuízo do princípio “perdedor”. Daí a “lei da ponderação”: quanto mais alto é o grau do não-

cumprimento ou prejuízo de um princípio, tanto maior deve ser a importância do cumprimento do

outro.

Por mais engenhosa que seja essa formulação (que, na verdade, é muito mais simples do que

parece à primeira vista), ela não consegue atingir sua principal finalidade, que é demonstrar a possível

racionalidade da técnica da ponderação. Com ou sem a fórmula alexyana, a ponderação continua com

o mesmo grau de subjetividade de sempre. O mais complicado, dentro da atividade ponderativa, é

atribuição dos pesos que cada fator envolvido terá. A fórmula em nada ajuda quanto a isso. Através

dela, qualquer solução pode ser encontrada, bastando que o jurista “manipule”, conforme seus

interesses e ideologia, o peso de cada variável. Se o jurista for contra o aborto, basta que ele atribua

um valor bem elevado para a vida do feto e um valor irrisório para a liberdade de escolha da mulher. E

o inverso também é verdadeiro. Se o resultado não agradar, eleva-se a pontuação dos critérios que o

julgador considera que deva prevalecer até chegar à solução de sua preferência (pode-se aqui invocar

a máxima do humorista Groucho Marx: “those are my principles, and if you don’t like them… well, I

have others”). A fórmula, portanto, será como um caderno de colorir que o jurista poderá preencher

com as suas cores favoritas. Assim, o processo decisório continuará tão arbitrário quanto antes, com a

única diferença de ser escrito com uma linguagem mais fria, impessoal e supostamente lógico-racional.

Um defensor de Alexy poderia argumentar que a fórmula parte do pressuposto de que o

julgador é sincero e não irá manipular o resultado28. Mesmo assim, ainda resta uma dúvida: como

descobrir que os valores que fundamentam e orientam nossas escolhas e ações resultam de uma

racionalidade ética sincera ou, pelo contrário, decorrem dos nossos preconceitos e tradições nem

sempre compatíveis com a um padrão axiológico válido? Se até mesmo pessoas virtuosas e sábias,

como Aristóteles e Platão, por exemplo, foram capazes de defender atos que hoje reputamos

abomináveis, como a escravidão e o infanticídio, quem pode garantir que também os nossos juízos

morais não serão censurados pelas gerações que virão? Como podemos ter certeza de que as nossas

crenças morais sobre, por exemplo, o status ético dos animais ou dos estrangeiros ou sobre o valor da

vida humana ou sobre a sexualidade etc., decorre de uma profunda reflexão ética ou, pelo contrário,

de uma doutrinação cultural a que fomos submetidos desde a infância e não somos capazes de

28 A preocupação com a sinceridade argumentativa está presente em diversas regras de argumentação da Teoria da Argumentação Jurídica de Alexy: “todo orador só pode afirmar aquilo em que de fato acredita” (1.2); “todo orador só pode afirmar aqueles julgamentos de valor ou de obrigação em dado caso os quais está disposto a afirmar nos mesmos termos para cada caso que se assemelhe ao caso dado em todos os aspectos relevantes” (1.3’); “toda pessoa que fizer uma afirmação normativa que pressuponha uma regra com certas conseqüências para a satisfação dos interesses de outras pessoas tem que ser capaz de aceitar essas conseqüências, mesmo na situação hipotética em que esteja na posição dessas pessoas” (5.1.1); “as regras morais subjacentes à visão moral do orador devem suportar o exame crítico nos termos de sua gênese individual. Uma regra moral não suporta esse exame se tiver apenas sido adotada por razões com algumas condições justificáveis de socialização” (5.2.2) e assim por diante (ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica (Theorie der Juristischen Argumentation). Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001, pp. 293/295).

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enxergar suas fraquezas (ou não fazemos questão de enxergá-las)? Sabendo que temos a tendência

natural de dar mais valor àquilo que nos agrada, como não usar a fórmula como um mero espelho de

nossas próprias preferências ainda que inconscientemente? Como saber que estamos levando mesmo

em consideração, com a importância devida, os interesses daqueles que seguem valores que não são

compartilhados por nós, já que não estamos acostumados com o pensamento divergente? Tendo

consciência de que somos facilmente influenciados por teorias que apelam para o nosso sentido moral

e, infelizmente, não somos suficientemente críticos para questioná-las, como podemos saber que o

nosso raciocínio ético está mesmo nos levando à direção correta29?

Voltarei a essas questões mais à frente. Por enquanto, basta dizer que, apesar de nossas

limitações intelectuais e da constante presença da falibilidade em nossas reflexões morais, não se

pode dizer que a imparcialidade no julgamento é impossível. Há vários exemplos reais que

demonstram que nem sempre os agentes morais em geral e os juízes em particular estão apenas

refletindo a mentalidade dominante do grupo a que pertencem, nem decidido em causa própria para

se beneficiar ou beneficiar os de seu grupo. Isso não significa naturalmente que todas as decisões são

motivadas por nobres propósitos de justiça, nem mesmo que os interesses de classe nunca interferem

no processo decisório. Longe disso. O que desejo enfatizar é que a imparcialidade é, apesar de tudo,

possível, ainda que nem sempre seja obtida.

3.2 Incomensurabilidade ou Alquimia do Sopesamento

Mesmo que seja possível acreditar que os juízes são capazes de tomar decisões imparciais e

racionais, que é uma condição necessária, ainda que insuficiente, para se alcançar soluções justas, a

técnica da ponderação de valores é bombardeada com outra crítica de difícil refutação: o problema da

incomensurabilidade. Explico.

A ponderação de valores pressupõe uma espécie de cálculo onde são comparados valores

antagônicos que serão colocados em uma balança para serem “sopesados”. O problema, para aqueles

que defendem a incomensurabilidade, é que a pluralidade, a diversidade e a heterogeneidade das

necessidades e dos desejos humanos não podem ser objeto de comparação nem podem ser reduzidos

a um padrão de moralidade comum. Além disso, a própria Constituição, que confere força normativa

aos valores e criou mecanismos para a sua proteção, não teria feito qualquer tipo de escalonamento

entre os direitos indicando qual teria prevalência em caso de colisão30. Logo, qualquer tentativa de

hierarquizar valores seria não só arbitrária e despida de base jurídica, mas, o que é pior, arrogante. A

simples tentativa de superação da fragmentação axiológica já seria totalitária e, ao longo da história,

foi fator de discórdia e combates sangrentos31. Os que aceitam essa tese costumam questionar: como

29 Como se pode perceber, a construção dessas perguntas foi influenciada pelo pensamento de David Hume: HUME, David. Tratado da Natureza Humana (A Treatise of Human Nature, 1888). Trad. Serafim da Silva Fontes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. 30 No Brasil, Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins defendem essa idéia: DIMOULIS, Dimitri & MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 224/232. 31 Aliás, como bem identificado por Aroso Linhares, há nisso uma situação paradoxal que claramente atinge as “teorias” contemporâneas do direito: as propostas que tentam superar a perda da unidade axiológica causada pelo pluralismo e buscam uma “linguagem comum”, plausível, conciliatória e integradora, são acusadas de serem alternativas totalizantes, como se estivéssemos inevitavelmente condenados pela fragmentação “pós-moderna e pelos resultados devastadores ocasionados pelos freqüentes confrontos entre propostas rivais daí decorrente. Com a renúncia da tentativa de se buscar uma linguagem comum, corre-se um risco talvez muito pior: cair no esoterismo, na incomunicabilidade, na impotência – e na própria renúncia da humanidade” (LINHARES, José Manuel Aroso. Jurisdição, Diferendo e ‘Área Aberta’: a caminho de uma ‘teoria’ do direito como moldura?. Coimbra: policopiado, 2008).

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colocar a liberdade e a igualdade numa mesma balança? Com base em que critério pode-se dizer que a

vida vale mais do que a liberdade de escolha ou vice-versa? Como decidir entre a liberdade de

expressão e os direitos de personalidade, se ambos merecem consideração e são igualmente

importantes para uma vida comunitária? Como buscar uma unidade axiológica no meio da

fragmentação ético-cultural exigida e provocada pelo pluralismo com a sua multiplicidade de espectros

de vozes inconciliáveis?

De acordo com os que defendem a tese da incomensurabilidade, isso seria impossível, já que

os direitos fundamentais são heterogêneos e isso impediria um sopesamento que só seria possível

entre elementos comensuráveis, ou então, se fosse estabelecido um padrão de comparação, que não

existe no momento.

Quando comparamos, por exemplo, dois objetos totalmente distintos, como um lápis e um

carro, só podemos avaliar qual é o mais importante se estabelecermos um padrão específico de

medida que possa ser aplicado a cada um desses bens (por exemplo, o preço monetário). Assim, tendo

em vista o valor de compra, dificilmente alguém discordaria que o carro vale mais do que o lápis. Com

relação aos direitos fundamentais, esse tipo de comparação seria inviável, pois os direitos

fundamentais, em regra, não podem ser quantificados. Somar a liberdade de expressão com o direito

de propriedade ou então dividir a proibição de discriminação pelo direito ao contraditório seria um

absurdo lógico.

Não seria possível comparar dois valores heterogêneos – como a vida do feto e a liberdade de

escolha da mulher, por exemplo – sem apelar para um padrão comum de medição. Como não existe

esse padrão comum de medição, não haveria como estabelecer uma relação de importância entre

eles. A própria metáfora de ‘pesar’, ‘sopesar’, ‘balancear’, ‘ponderar’ etc. reivindicações morais rivais

não seria apenas inadequada, mas até mesmo enganosa, já que não poderiam existir critérios

uniformes para medir o ‘peso’ dos valores em questão, dada a sua heterogeneidade e

incomensurabilidade32. Caso essa tese seja verdadeira, seria absurdo colocar coisas diferentes em uma

balança e medir o seu “peso e importância” como se fossem coisas idênticas.

Uma forma de escapar dessa crítica seria tentar mirar em padrões de avaliação que possam

servir como medida de comparação entre valores antagônicos. Assim, o peso de cada valor seria

medido em relação a padrões aceitos em um dado contexto. Por exemplo, poderia ser adotado, como

critério de medição, o nível de contribuição de um dado valor para o aumento do bem-estar social ou

para a redução das desigualdades ou para o aumento da riqueza e assim por diante. Certamente, isso

não resolve o problema mais sério de definir que padrões seriam estes, quem deve defini-los e como

calculá-los, mas pelo menos teria o mérito de superar o problema da incomensurabilidade.

3.3 Decisionismo ou o Efeito Katchanga

“Os juízes, que são obrigados a dar uma sentença decisiva a favor de uma das partes, muitas

vezes ficam embaraçados e não sabem como decidir; são forçados a proceder pelas razões

mais frívolas do mundo”, David Hume, Tratado da Natureza Humana33

32 A esse respeito: MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude (After Virtue). Tradução: Jussara Simões. São Paulo: Edusc, 2001, p. 413. 33 HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

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Com o reconhecimento da força normativa da Constituição34 e a conseqüente possibilidade de

aplicação direta e imediata dos direitos fundamentais35, somadas à institucionalização, em nível

máximo, do princípio da infastabilidade da tutela jurisdicional, tem-se admitido que os juízes

busquem, na própria Constituição, as soluções para os problemas concretos que precisam resolver.

Ocorre que o texto constitucional é redigido com uma estrutura semântica extremamente

aberta, contendo expressões vagas como “devido processo”, “livre desenvolvimento da

personalidade”, “estado democrático e social” etc., que estão servindo como fonte direta para a

justificação das decisões judiciais. A partir da interpretação de tais expressões constitucionais, estão

sendo fornecidas, pelos órgãos de jurisdição constitucional, respostas normativas concretas que, a

rigor, não estão claramente previstas no sistema de leis aprovadas pelo parlamento.

Ressalte-se que, por enquanto, a referida observação não deve ser lida como uma crítica, pois,

no momento, não é esta a minha intenção. O que desejo assinalar é o fato indiscutível de que os juízes

estão extraindo significados importantes de normas constitucionais bastante imprecisas e

fundamentando seus julgados nessas normas.

A título de exemplo, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal, a partir de uma interpretação do

princípio da dignidade da pessoa humana, deduziu e estabeleceu regras minuciosas sobre o uso de

algemas por autoridades policiais e judiciais, em todo território nacional36. Do mesmo modo,

invocando o abstrato princípio do estado democrático de direito, foram criados mecanismos

detalhados para estimular a fidelidade partidária, prevendo-se, inclusive, a possibilidade de perda de

mandato parlamentar em determinadas situações37.

34 Sem dúvida, aqui no Brasil, a defesa da força normativa da constituição foi muito influenciada pelo texto “Die normative Kraft der Verfassung” (“A Força Normativa da Constituição”), do jurista alemão Konrad Hesse, publicada no Brasil no início dos anos 90: HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição (Die normative Kraft der Verfassung, 1959). Tradução: Gilmar Mendes. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1991. 35 No Brasil, a Constituição Federal de 1988 determinou expressamente que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” (artigo 5º, §1º). A positivação desse preceito foi influenciada pelo direito alemão, português e espanhol, que possuem cláusulas semelhantes. A Lei Fundamental de Bonn de 1949, por exemplo, prevê que “os direitos fundamentais aqui enunciados constituem preceitos jurídicos diretamente aplicáveis, que vinculam os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário” (no original: “Die nachfolgenden Grundrechte binden Gesetzgebung, vollziehende Gewalt und Rechtsprechung als unmittelbar geltendes Recht”). Na Constituição espanhola de 1978 há norma semelhante: “los derechos y libertades reconocidos em el Capítulo segundo del presente Título vinculan a todos los poderes. Sólo por ley, que em todo caso deberá respetar su contenido esencial, podrá regularce el ejercicio de tales derechos u libertades, que se tutelarán de acuerdo com lo previsto em el artículo 161, 1, a”. Por sua vez, a Constituição portuguesa de 1976 estabelece que “os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”. Sobre esse tema, confira: GEBRAN NETO, João Pedro. A Aplicação Imediata dos Direitos e Garantias Individuais. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2002. 36 Sobre o assunto, o Supremo Tribunal Federal aprovou a seguinte súmula vinculante: “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado” (Súmula Vinculante 11/2008). O referido julgamento lembra, em muitos aspectos, o famoso caso Miranda v. Arizona (384 U.S. 436), decidido pela Suprema Corte norte-americana em 1966, no qual ficou decido, com base na genérica cláusula do devido processo (due process of law), que a validade de confissões incriminatórias dependeria de uma série de requisitos estabelecidos pela corte, como por exemplo, que o acusado fosse informado de seu direito de permanecer calado, de que qualquer coisa que dissesse poderia ser usada contra ele, de que teria o direito à presença de um advogado, e de que, se não pudesse pagar o advogado, teria direito a um fornecido pelo Estado. Como se vê, a “fórmula Miranda” (Miranda Warnings), construída judicialmente, diz muito mais do que uma simples leitura despretensiosa da constituição norte-americana poderia sugerir. Não se trata uma mera interpretação da cláusula do devido processo. É, no fundo, uma criativa normatização das garantias penais do acusado desenvolvida no âmbito da jurisdição constitucional que, hoje, já se incorporou à tradição estadunidense. 37 STF, ADI 3999, rel. Min. Joaquim Barbosa, julgado em 12/11/2008. Vale esclarecer que, no referido julgamento, o órgão jurisdicional que disciplinou a perda do cargo eletivo e o processo de justificação da desfiliação partidária foi o Tribunal Superior Eleitoral. O Supremo Tribunal Federal limitou-se a reconhecer a validade constitucional das resoluções aprovadas

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Existem vários outros exemplos, pelo mundo afora, que comprovam a tese de que os juízes

estão desenvolvendo, a partir da interpretação de princípios constitucionais, regras minuciosas a

serem observadas pela sociedade, exercendo uma função muito parecida com a função legiferante.

Não há propriamente uma crítica quanto a isso, pois, em muitos casos, a solução adotada pelos juízes

tem sido uma solução com forte aceitação social e com um inquestionável apelo ético. Exemplo

emblemático disso foi o julgamento realizado pela Suprema Corte norte-americana, em 1954, no caso

Brown v. Board of Education38, onde se decidiu que a segregação racial nas escolas públicas seria

contrária à cláusula da igualdade.

A questão que quero enfatizar aqui não diz respeito à qualidade ética das decisões, mas sim à

qualidade da própria justificação apresentada pelos julgadores. Há vários anos analiso decisões

judiciais proferidas em várias partes do mundo envolvendo direitos fundamentais. Tenho visto muitas

decisões socialmente benéficas e outras nem tanto; decisões que se preocupam sinceramente em

respeitar, proteger e promover os direitos fundamentais e outras que se aproveitam da

indeterminação dos valores para impedirem o avanço da liberdade ou da igualdade. Porém, o que há

em comum em inúmeros julgados, sejam eles legítimos ou não, é a baixa consistência dos argumentos

utilizados pelos juízes para justificarem suas opções valorativas.

Se, atualmente, admite-se que o juiz pode buscar na própria Constituição a solução para os

problemas que tem que resolver (ou até mesmo fora da Constituição!), é natural reconhecer que a

“moldura normativa” ganhou dimensões bastante amplas. Dificilmente, será possível estabelecer

antecipadamente quais são os limites da resposta judicial no caso concreto, já que a solução

dependerá, em grande medida, do poder criativo do juiz (e da mediação do caso concreto), algo que

sempre houve, mas nunca com tanta intensidade. Assim, em muitas questões, a atividade dos juízes se

assemelhará à atividade de um “intérprete de nuvens”, que não vê limites à sua criatividade. Isso dá

margem ao florescimento do chamado “decisionismo judicial“39, que nada mais é do que a atitude do

magistrado que julga com base em suas próprias convicções pessoais sem se preocupar em buscar

uma objetividade decisória. No fundo, o juiz, pelo menos potencialmente, pode decidir como quiser,

ainda que tenha que fundamentar a sua escolha no sistema normativo-constitucional, que, afinal de

contas, aceita quase tudo.

Daniel Sarmento, analisando a realidade brasileira, sugeriu, em um tom bastante crítico, que

estaria havendo um abuso por parte dos juízes na utilização das ferramentas fornecidas pela teoria dos

princípios. Ele chamou o fenômeno de “oba-oba constitucional”. Em suas palavras:

“muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de, através deles, buscarem a justiça – ou o que entendem por justiça -, passaram a negligenciar do seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta ‘euforia’ com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com os seus jargões grandiloqüentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os

pela Justiça Eleitoral, assinalando que existiria um dever constitucional de observância do princípio da fidelidade partidária, como conseqüência do princípio democrático, e que não faria sentido o Judiciário reconhecer a existência de um direito constitucional sem prever um instrumento para assegurá-lo. Daí porque as resoluções aprovadas pelo TSE mereceriam vigorar, pelo menos transitoriamente, como instrumento para salvaguardar a observância da fidelidade partidária enquanto o Poder Legislativo, órgão legitimado para resolver as tensões típicas da matéria, não se pronunciar. 38 Brown v. Board of Education of Topeka, 347 U.S. 483 (1954). On-line: http://laws.findlaw.com/us/347/483.html 39 Carl Schmitt se auto-atribui a autoria da expressão “decisionismo judicial” (SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. Minas Gerais: Del Rey, 2007, p. 67).

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princípios constitucionais, neste quadro, converteram-se em verdadeiras ‘varinhas de condão’: com eles, o julgador de plantão consegue fazer quase tudo o que quiser”40.

Uma análise da jurisdição constitucional praticada no Brasil poderia nos levar à conclusão de

que todas as críticas que geralmente são feitas à técnica da ponderação – por ser irracional, pouco

transparente, arbitrária, subjetiva, antidemocrática, imprevisível, insegura etc.– são, em grande

medida, procedentes diante da nossa realidade. No fundo, a idéia de ponderação não está sendo

utilizada para reforçar a carga argumentativa da decisão, mas justamente para desobrigar o julgador

de fundamentar41.

Virgílio Afonso da Silva conseguiu captar bem esse fenômeno no seu texto “O Proporcional e o

Razoável”. Ele apontou diversos casos em que o Supremo Tribunal Federal, valendo-se da idéia de que

os direitos fundamentais podem ser relativizados com base no princípio da proporcionalidade,

simplesmente invalidou o ato normativo questionado sem demonstrar objetivamente porque o ato

seria desproporcional. Para ele, “a invocação da proporcionalidade *na jurisprudência do STF+ é, não

raramente, um mero recurso a um tópos, com caráter meramente retórico, e não sistemático (…). O

raciocínio costuma ser muito simplista e mecânico. Resumidamente: (a) a constituição consagra a

regra da proporcionalidade; (b) o ato questionado não respeita essa exigência; (c) o ato questionado é

inconstitucional”42.

Aliás, esse não parece ser um problema exclusivo do Brasil. Já em 1956, J. D. March havia feito

uma crítica às decisões da Suprema Corte norte-america muito semelhante a ora formulada. Ao

analisar a conhecida norma constitucional que diz que “ninguém será privado da sua vida, liberdade ou

propriedade sem o devido processo legal”, March, com muita ironia, defendeu que o artigo é muito

claro. Basicamente, ele significa que “nenhum W será X ou Y sem Z, sendo que W, X, Y e Z podem

assumir quaisquer valores dentro de um extenso conjunto”43. Em sentido semelhante, o juiz Hugo

Black dizia com bom humor: “the layman's constitutional view is that what he likes is constitutional

and that which he doesn't like is unconstitutional”.

Talvez exista uma explicação para essa baixa consistência argumentativa nas decisões judiciais.

É sabido que, na atual fase de evolução do direito, vigora a regra da proibição da denegação de justiça,

ou seja, os juízes devem julgar todos os conflitos que lhes são submetidos, mesmo que não estejam

seguros sobre qual é a melhor solução. Em outras palavras: o juiz não tem apenas o poder de julgar,

mas também uma obrigação de decidir os casos a ele submetidos. A utilidade prática da proibição

“non liquet” é inegável. Se o juiz se eximisse de proferir uma decisão toda vez que estivesse em

dúvida, haveria grande probabilidade de o sistema entrar em colapso, pois são muitas as situações em

que isso ocorre.

Por não poder demonstrar ou confessar ignorância, o juiz, inconscientemente, transforma essa

obrigação de julgar tudo em uma falsa crença de que sabe tudo e que é, portanto, capaz de ser o

40 SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Lúmen Juris, 2006, p. 200. 41 O curioso é que, no Brasil, as limitações argumentativas do discurso judicial foram expostas com muito mais clareza a partir do momento em que o Supremo Tribunal Federal, numa louvável atitude de transparência, passou a transmitir os seus julgamentos em rede nacional pela internet e pela TV Justiça. Vários setores da sociedade, que não fazem parte do meio jurídico, passaram a acompanhar os julgamentos mais polêmicos para tentar compreender os argumentos utilizados pelos juízes. Quando se analisam os comentários às decisões judiciais feitos por pessoas mais esclarecidas que não fazem parte do setor jurídico, percebe-se que, muitas vezes, as justificações apresentadas costumam ser ridicularizadas, seja pela erudição exagerada adotada nos votos, seja porque, nos assuntos não estritamente legais, os argumentos são fracos, baseados em premissas ultrapassadas ou que não fazem o menor sentido. 42 SILVA, Virgílio Afonso. O Proporcional e o Razoável. In: Revista dos Tribunais v. 798. São Paulo: RT, 2002, p. 31. 43 A citação foi extraída de HART, Herbert. O Conceito de Direito (The Concept of Law). Trad. Armindo Ribeiro Mendes, 5ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 12.

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senhor onipresente e onisciente da verdade e da justiça. Essa falsa crença talvez seja a primeira causa

da arrogância que comumente costuma-se associar à figura do juiz, e também talvez seja responsável

pelo “isolamento cognitivo” tão presente no discurso jurídico, baseado num ultrapassado dogma de

que o conhecimento dos textos legais é suficiente para solucionar corretamente todos os problemas

jurídicos.

Ao lado do “non liquet”, foram desenvolvidos, ao longo da história do direito, mecanismos

para reduzir o arbítrio que naturalmente resulta dessa arrogância intelectual. O mais importante, sem

dúvida, é o dever imposto aos juízes de justificarem as decisões. O magistrado tem que apresentar, na

sua sentença, as razões do seu convencimento e expor os motivos de sua decisão. Para muitos, o

dever de fundamentar as decisões judiciais é o elemento capaz de fornecer a base de legitimidade

para o exercício da jurisdição. Como afirmou Aarnio Aulis, “la responsabilidad del juez se ha convertido

cada vez más en la responsabilidad de justificar sus decisiones. La base para el uso del poder por parte

del juez reside en la aceptabilidad de sus decisiones y no en la posición formal de poder que pueda

tener”44.

Ora, mas como justificar com objetividade as escolhas se muitas vezes os próprios juízes não

sabem com certeza o que motivou a sua decisão, nem possuem tempo nem estrutura material para

elaborar uma solução consistente? Como apresentar razões se, em muitas situações, a escolha judicial

é fruto de um sentimento introspectivo que o juiz não sabe expressar com clareza? Aliás, como

fundamentar racionalmente uma escolha valorativa se o próprio conhecimento moral encontra-se

fragmentado e diluído em uma multiplicidade de perspectivas nem sempre coerentes entre si45?

Por causa disso, muitos juízes acabam desenvolvendo técnicas argumentativas que servem

para todas as situações, mas, no fundo, não justificam nada. Criam-se palavras mágicas e frases de

efeito que não passam de subterfúgios utilizados pela prática judicial para dar ao juiz uma

possibilidade de “justificar” o julgado sem apresentar argumentações consistentes46. “Julgo de tal

modo porque essa é a solução mais razoável”. “Decido assim, pois é a solução mais compatível com

interesse público”. “Determino isso, em razão dos bons costumes”. “Sentencio nesse sentido em nome

do bom senso”. Essas expressões – razoável, proporcional, bom senso, interesse público, bem comum,

prudência, bons costumes etc. – são como as previsões dos astrólogos: explicam tudo, justificando

todo e qualquer resultado que se queira encontrar, e não há nada que possa refutá-las, já que seu

conteúdo é aberto o suficiente para se amoldar a todas as situações, conforme os interesses pessoais

de quem as cita. No fundo, tais expressões são meros placebos argumentativos auto-ministrados pelos

juízes para aliviarem psicologicamente a angústia de não serem capazes de encontrar argumentos

44 AULIS, Aarnio. Lo Racional como Razonable: un tratado sobre la justificación jurídica (The Rational as Reasonable. A treatise on Legal Justification). Madrid: Centro de Estudios Constitucinoales, 1991, p. 29. 45 Alasdair MacIntyre, nesse sentido, sugeriu que o conhecimento ético-filosófico contemporâneo é tão fragmentário, desordenado e confuso que parece ter sido produto de uma catástrofe avassaladora que, hipoteticamente, teria destruído boa parte do conhecimento moral até então produzido. É como se tivéssemos perdido bibliotecas inteiras de informações e só tivesse nos restado meros fragmentos de um esquema conceitual ou meros simulacros de moralidade. (MACINTYRE, Alasdair. After Virtue: a study in moral theory (1981). 3ª Ed. Indiana: University of Note Drame, 2007, p. 2; na tradução portuguesa: p. 15). Nesse contexto, seríamos “platônicos perfeccionistas”, recompensando generosamente os conquistadores de medalhas nos jogos olímpicos; “utilitaristas” em muitas circunstâncias da vida, em que se trata de distribuir recursos raros; “lockeanos”, quando afirmamos o valor absoluto do direito de propriedade; “cristãos”, quando reconhecemos a importância da caridade, da compaixão e da igualdade de todos os seres humanos como valor moral; enfim, somos “kantianos”, exigindo que se funde a moral na autonomia pessoal (CANTO-SPENCER, Monique & OGIEN, Ruwen. Que devo fazer? A filosofia moral (La Philosophie Morale). Tradução: Benno Dischinger. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2004, p. 62). 46 Em ambientes mais informais, tenho chamado esse fenômeno de “efeito katchanga”, em alusão a um fictício jogo de cartas em que os participantes não sabem quais são as regras e quem distribui as cartas define quem ganha sem explicar os motivos. A idéia da “katchanga” foi desenvolvida no texto “Alexy à Brasileira e o Jogo da Katchanga”, disponível em meu site pessoal: http://direitosfundamentais.net.

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racionais para tudo. O problema é que, apesar de serem meros placebos, essas expressões possuem

efeitos colaterais sérios. O mais grave é, sem dúvida, a transformação da argumentação jurídica em

uma técnica vazia de sentido e, portanto, arbitrária, tudo o que o direito historicamente combateu.

Por isso, esse tipo de atitude também precisa ser combatido.

Outro aspecto semelhante, e talvez muito mais grave, é o uso retórico de certas palavras de

legitimação que costumam rechear o discurso jurídico para manipular e seduzir a platéia. Existem, de

fato, algumas palavras que servem como instrumento retórico para a legitimação de ações, pois

induzem intuitivamente a um juízo de valor positivo ou negativo sobre um determinado objeto. Ética,

democracia, justiça, liberdade, direitos humanos são exemplos de palavras de legitimação com

conteúdo positivo. Opressão, dominação, injustiça, crueldade, autoritarismo são exemplos de palavras

de legitimação com conteúdo negativo. Muitas outras poderiam ser citadas, mas, para os fins ora

pretendidos, esses exemplos são suficientes.

O que essas palavras têm em comum é a sua falta de precisão semântica. É difícil definir com

rigor se um determinado regime político é democrático ou não; se uma determinada conduta é ética

ou não; se uma decisão judicial é justa ou não, mesmo porque há várias teorias sobre a democracia,

sobre a ética e sobre a justiça. Por serem palavras ambíguas, são facilmente manipuláveis e, com certa

freqüência, são usadas como mero pretexto para encobrir práticas abomináveis. O mais opressor,

desumano e autoritário ditador pode se auto-intitular “democrático” para tentar dar uma aparência

de legitimidade ao seu governo. Com muita freqüência, argumentadores pouco escrupulosos, notando

o efeito sedutor dessas palavras de legitimação, tentam se aproveitar do efeito de deslumbramento

por elas proporcionado e as invoca mesmo em situações onde elas, originalmente, não se aplicariam:

uma prática cruel é rotulada de “humanitária”, um regime opressor é chamado de “revolucionário” e

assim por diante. Os documentos oficiais que mais desrespeitam os direitos fundamentais costumam

tecer louvores à liberdade e à igualdade, mesmo quando a sua proposta é justamente neutralizar esses

direitos. A título de exemplo, no Brasil, o Ato Institucional n. 5 (AI-5), de 1968, que é considerado o

mais abominável instrumento de perseguição adotado pela ditadura militar por ter suprimido

inúmeras garantias fundamentais, utilizou, em seus considerandos, expressões como “autêntica ordem

democrática”, “baseada na liberdade”, “no respeito à dignidade da pessoa humana”, “reconstrução

moral do país” etc.

Deve-se sempre desconfiar da sinceridade com que são proclamadas belas palavras de

legitimação, sobretudo por parte daqueles que se beneficiam do discurso que as invoca47. É preciso

questionar se existe uma coincidência entre a palavra e a vontade, entre a retórica e a prática. A mera

análise “textual” da “face visível” discurso jurídico não releva tudo o que está por detrás das decisões

judiciais. Sem dúvida, há omissões – conscientes e inconscientes – na fundamentação jurídica que são

extremamente relevantes para a correta compreensão dos julgamentos.

Expressar louvores à democracia, à liberdade, à ética, à justiça e aos direitos fundamentais é

extremamente fácil. O difícil é colocar tais idéias em prática e viver de acordo com o discurso. Por isso,

é preciso estar constantemente atento quanto à falta de sincronia entre os ideais humanitários e o

que, em seu nome, é transformado em realidade. Há “lobos em pele de cordeiro”, como bem ensina a

inteligência popular. Os discursos mais progressistas podem esconder intenções conservadoras. Vale

47 “As motivações reais dos protagonistas do conflito, ainda que invoquem a ‘justiça’, se localizam imediatamente a outro nível – ou a outros níveis: econômico, político, cultural etc.” (NEVES, A. Castanheira. A Revolução e o Direito. In: In: Digesta: escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, a sua Metodologia e outros. v. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 187). A questão é: será que as motivações dos juízes também não estão suscetíveis a esse tipo de influência?

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lembrar que o grito de liberdade das revoluções burguesas conviveu muito bem, por muito tempo,

com a existência de uma quantidade considerável da população humana vivendo em regime de

escravidão. A proclamação da igualdade foi seguida de medidas de segregação em relação a negros,

mulheres e vários outros grupos sociais que ainda sofrem com a discriminação histórica a que foram

submetidos ao longo dos séculos. A consagração da fraternidade e da solidariedade parece não ter

abalado nem um pouco as estruturas de um sistema econômico ganancioso, egoísta e destruidor, que

é a causa de tantos males ainda nos dias de hoje e talvez seja a mola propulsora de um colapso

ambiental que se aproxima a passos largos48.

É um erro, contudo, culpar essas palavras de legitimação pelas desgraças humanas e sempre

achar que elas estão sendo manipuladas para fins opressivos. Liberdade, democracia, ética, justiça etc.

são conceitos importantes. Os valores que eles representam são aspirações legítimas que devem ser

implementadas de verdade. Não é pelo fato de serem manipulados que deixam de ser relevantes,

desde que saibamos distinguir a mera retórica do argumento sincero. (Logicamente, estou plenamente

ciente de que esse argumento também pode se voltar contra o meu próprio discurso). A grande dúvida

é saber se é possível não apenas pensar humanisticamente, mas também agir da mesma forma. Dito

de outra forma: é possível partir do discurso para a ação sem se contaminar pelos jogos de poder,

pelas tentações ideológicas ou até mesmo pelos preconceitos inconscientes? Existe algum discurso

que seja tão sincero ao ponto de ser totalmente livre de interesses ocultos e possa ser colocado em

prática com toda a sua pureza e boa vontade? Há chances reais de se decidir e agir eticamente sem

dissimulação? Nenhum argumento é capaz de sustentar a veracidade de qualquer resposta afirmativa

às perguntas acima, já que o próprio argumento poderá estar contaminado. Portanto, não são nas

palavras que se devem buscar as respostas, mas nas escolhas e nas ações reais de seres humanos

concretos.

3.4 Enfraquecimento dos Direitos

Tornou-se lugar comum, entre os teóricos do direito, afirmar que os direitos fundamentais são

relativos (no sentido de restringíveis) e, por isso, podem ser limitados em determinadas situações.

Embora essa afirmação contenha um fundo de verdade, pois, como se viu, o choque entre direitos é,

muitas vezes, inevitável em uma democracia plural, a forma banalizada e distorcida que se tem

adotado esse pensamento está dando margem ao surgimento de um discurso pouco comprometido

com os direitos fundamentais, que ameaça diretamente a idéia de dignidade humana. Nesse contexto,

um uso distorcido da técnica da ponderação pode servir e tem servido para enfraquecer a proteção

dos direitos fundamentais e esvaziar o seu sentido maior que é estabelecer freios ao poder.

48 Dentro dessa mesma linha, e tratando especificamente do uso manipulador dos direitos humanos, Costas Douzinas, com um misto de ironia e rancor, atacou a distância que separa o discurso e a prática com a seguinte observação: “o pensamento e a ação oficiais quanto aos direitos humanos têm sido entregues aos cuidados de colunistas triunfalistas, diplomatas entediados e abastados juristas internacionais em Nova Iorque e Genebra, gente cuja experiência com as violações dos direitos humanos está confinada a que lhe seja servido vinho de uma péssima safra” (DOUZINAS, Costas. O Fim dos Direitos Humanos (The End of Human Rights). Trad: Luzia Araújo. São Leopoldo: Unisinos, 2007, p. 25). Para Douzinas, os direitos humanos teriam perdido a sua razão de ser, uma vez que deixaram de servir como um instrumento de resistência contra a dominação e a opressão para se tornarem um chavão retórico dentro da política oficial das nações hegemônicas, inclusive servindo de pretexto para as suas guerras imperialistas. É preciso compreender corretamente esse tipo de raciocínio. É lógico que Douzinas não é inimigo da liberdade nem da democracia. O que ele critica é a manipulação do discurso. A sua estratégia, portanto, é atacar os direitos humanos para combater a demagogia. Confesso que não considero essa estratégia muito promissora.

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Esse fenômeno pode ser presenciado em vários julgamentos reais. Assim, por exemplo, com o

pretexto de que os direitos fundamentais são relativos e “sopesando” a proteção à integridade física e

psicológica com a necessidade de se garantir a segurança contra atos terroristas, alguns tribunais têm

flexibilizado o conceito de “tortura” a fim de camuflar práticas policiais nitidamente desumanas, tal

como fez a Alta Corte de Justiça de Israel e a Corte Européia de Direitos Humanos, ao entenderem que

não constitui tortura a colocação de sacos na cabeça durante o interrogatório de presos acusados de

terrorismo, a submissão a sons elevados, a privação de sono, comida e bebida e outros procedimentos

igualmente cruéis49.

Tal fato poderia ser comprovado, inclusive, no berço de origem “judicial review”. Uma rápida

análise crítica da história da Suprema Corte norte-americana seria suficiente para desmistificar a idéia

de que o Poder Judiciário norte-americano sempre cumpriu adequadamente seu papel de guardião

dos direitos. Se voltarmos nossos olhos para o passado, perceberemos que a Suprema Corte dos

Estados Unidos passou por longos períodos de conservadorismo, servindo nitidamente como

instrumento de manutenção de estruturas sociais e econômicas excludentes, intercalados por

momentos relativamente curtos de avanços elogiáveis. Na verdade, só vamos encontrar decisões

realmente favoráveis aos direitos fundamentais a partir dos anos 50 do século passado, sob o

comando do Chief Justice Earl Warren. Antes disso, a Suprema Corte era conservadora e

discriminatória, barrando inúmeros avanços sociais conquistados na via legislativa por grupos

desfavorecidos e decidindo sempre em favor do “status quo”. Os juízes eram comprometidos em

proteger os interesses de uma classe economicamente privilegiada, até porque também faziam parte

de um grupo privilegiado. A jurisdição constitucional norte-americana, até meados do século passado,

era nitidamente anti-direitos fundamentais.

Eis alguns exemplos de decisões que confirmam essa hipótese: o caso Dred Scott50, de 1857,

que negou cidadania aos negros e declarou a inconstitucionalidade de uma lei abolicionista sob o

argumento de que tal lei violaria o direito de propriedade dos donos de escravos51; o caso Plessy v.

Ferguson52, de 1896, que deu suporte constitucional às leis segregacionistas, observando a lógica do

49 Sobre isso: PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 276/277. 50

Dred Scott v. Sandford, 60 U.S. (19 How.) 393 (1857). On-line: http://laws.findlaw.com/us/60/393.html 51 Ressalte-se que, no referido julgamento, iniciou-se a construção do chamado substantive due process. A cláusula do devido processo foi adotada para declarar a inconstitucionalidade do “Missouri Compromise”, que proibia a escravidão em novos territórios existentes acima de determinada latitude nos Estados Unidos. O fundamento citado pelo juiz Taney, relator do caso, foi este: “um ato do Congresso que priva um cidadão dos Estados Unidos de sua liberdade ou propriedade meramente porque ele foi ou levou sua propriedade para um território específico dos Estados Unidos, e que não cometeu nenhuma ofensa contra as leis, dificilmente poderia ser dignificado como devido processo legal”. No Brasil, é costume no meio jurídico elogiar a construção “substantiva” da cláusula do devido processo como se fosse o melhor instrumento para barrar as leis materialmente irrazoáveis. Talvez seja mesmo. Mas o que poucos sabem é que essa idéia não foi criada para anular uma lei substancialmente injusta. O propósito, pelo menos no caso Dred Scott, foi o de invalidar uma lei que era totalmente a favor dos direitos fundamentais, já que proibia a escravidão em determinados territórios. 52 Plessy v. Ferguson, 163 U.S. 537 (1896). On-line: http://laws.findlaw.com/us/163/537.html. No referido caso, a Suprema Corte, com apenas um voto contrário, decidiu que a reserva de acomodações “separadas, mas iguais” para negros nos transportes ferroviários seria compatível com o princípio da igualdade, já que essa teria sido a intenção dos legisladores que aprovaram a cláusula da igualdade. Os fatos que deram origem ao processo judicial, pelo menos em sua versão mais conhecida, foram estes: um senhor chamado Homer Plessy, que tinha ascendência negra, comprou uma passagem de trem na primeira classe. Quando já estava no vagão, a polícia foi chamada, pois aquela área era privativa de pessoas brancas. Plessy se negou a sair do vagão e, por isso, foi preso e condenado por violar a lei estadual que autorizava a reserva de áreas exclusivas para brancos em transportes coletivos. No caso em questão, a Suprema Corte confirmou a punição sofrida pelo senhor Plessy (informações obtidas a partir de: IRONS, Peter. A People's History of the Supreme Court: The Men and Women Whose Cases and Decisions Have Shaped Our Constitution. New York: Viking, 1999). O único juiz da Suprema Corte que não concordou com o julgamento foi Jonh Harlan, que, além de ter afirmado que a Constituição é cega quanto a cor dos indivíduos (”color-blind“), foi profético ao assinalar no seu voto: “Na minha opinião, o julgamento que hoje se concluiu se mostrará, com o tempo, tão pernicioso quanto a decisão tomada neste tribunal no Caso Dred Scott. A presente decisão não

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“equal but separate”, com base na idéia de que “se uma raça é socialmente inferior a outra, a

Constituição não pode colocá-los no mesmo plano” (conforme voto condutor); e o caso Lochner v. New

York53, de 1905, que deu início a uma série de decisões contrárias ao reconhecimento de direitos

trabalhistas, sob a alegação que tais leis violavam o direito de liberdade econômica. Pode-se

acrescentar a esse rol de decisões censuráveis a que foi proferida no caso Korematsu v. United

States54, de 1944, que reconheceu a constitucionalidade de uma política de segurança adotada pelo

governo federal norte-americano que ordenava o encarceramento de japoneses, em campos de

concentração construídos em pleno solo norte-americano, durante a Segunda Guerra Mundial.

As referidas decisões, hoje, estão ultrapassadas, pois foram revogadas posteriormente pelo

mesmo Tribunal ou então por emendas constitucionais. Mesmo assim, algumas delas vigoraram por

longos períodos e foram responsáveis pela consolidação de um sentimento de discriminação que ainda

hoje marca a sociedade norte-americana. É difícil estabelecer até que ponto as referidas decisões são

responsáveis por essa mentalidade ou se são apenas reflexo dela. Apesar disso, não há dúvida de que

quando o principal órgão jurídico do país despreza a dignidade de seres humanos por causa da cor de

sua pele ou de sua raça, avaliza práticas discriminatórias e opressivas, impede o reconhecimento de

direitos sociais trabalhistas, autoriza o envio de seres humanos a campos de concentração, tudo isso

fornece um inegável suporte argumentativo para justificar o desrespeito aos mais básicos direitos dos

indivíduos, seja por agentes estatais, seja por particulares. E a Suprema Corte dos Estados Unidos fez

tudo isso durante boa parte de sua existência, demonstrando que a jurisdição constitucional norte-

americana nem sempre foi tão virtuosa quanto se imagina.

O que se nota é que a invocação de valores, com freqüência, tem sido utilizada pelos juízes

para encobrir preconceitos conscientes ou inconscientes. Geralmente, os valores divergentes

incomodam o establishment e, portanto, aqueles que defendem idéias contrárias à moral particular

dos juízes costumam ser os primeiros a terem os seus direitos fundamentais restringidos sob o

fundamento de que estão ultrapassando os limites da proteção jurídica. Para demonstrar isso, basta

observar que, ao longo de todo o século XX, o pensamento dominante defendeu que a ideologia

comunista era destruidora da paz social e perigosa para a segurança do estado, razão pela qual os

direitos de liberdade (política, de expressão, de reunião, de associação etc) não se aplicariam a quem

defendesse tais idéias. Mesmo governos supostamente democráticos, que exaltavam em seus textos

apenas estimulará a discriminação e a agressão contra os negros como também permitirá que, por meio de normas estatais, sejam neutralizadas as benéficas conquistas aprovadas com as recentes mudanças constitucionais”. Desde então, como bem profetizou o juiz Harlan, várias medidas segregacionistas foram adotadas por diversos Estados e reconhecidas como válidas pela Suprema Corte. Pode-se mencionar, por exemplo, o caso Berea College v. Kentucky (1908), onde foi aceita uma lei do Estado de Kentucky que proibia que as escolas particulares admitissem brancos e pretos na mesma instituição, bem como o caso Gong Lum v. Rice (1927), que equiparou as crianças de origem chinesas aos negros para fins de matrícula escolar. No caso Corrigan v. Buccley (1926), a Suprema Corte disse que não violava o devido processo nem o princípio da igual proteção, uma cláusula contida em contrato de compra e venda de imóvel que proibia o aluguel ou a transferência do imóvel para qualquer pessoa negra. 53 Lochner v. New York, 198 U.S. 45 (1905). On-line: http://laws.findlaw.com/us/198/45.html. Nesse caso, a Suprema Corte anulou uma lei do Estado de Nova Iorque que limitava a jornada de trabalho dos padeiros. A lei atacada reconhecia que os padeiros tinham o direito de trabalhar no máximo 60 horas por semana ou 10 horas por dia. E ainda assim foi declarada inconstitucional, pois os juízes entenderam que qualquer interferência estatal no contrato de trabalho não seria razoável. Para a Corte, a adoção de leis que protegiam os trabalhadores representava uma interferência indesejada na vontade livre das partes contratantes, violando um suposto “economic substantive due process”. Diversos casos foram julgados seguindo essa lógica. No caso Hammer v. Dagenhart (1918), por exemplo, foi declarada a inconstitucionalidade de uma lei que proibia o trabalho de crianças abaixo de 14 anos em fábricas. No Caso Adkins v. Children’s Hospital, julgado em 1923, a Suprema Corte invalidou uma lei que reconhecia pisos salariais mínimos para mulheres e crianças. Nesse período, a Suprema Corte norte-americana ficou conhecida como o Tribunal do “Laissez-Faire”, pois os valores do liberalismo econômico foram alçados à categoria de dogma constitucional. Esses exemplos foram extraídos de: SUNSTEIN, Cass R. The second bill of rights: FDR’s revolution and why we need it more than ever. New York: Basic Books, 2004. 54 Korematsu v. United States, 323 U.S. 214 (1944). On-line: http://laws.findlaw.com/us/323/214.html

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constitucionais o direito de manifestação do pensamento, não tiveram qualquer pudor em “ponderar”

os valores em jogo para, em nome dos princípios “mais importantes” da pátria, da família e da

propriedade, sacrificar o direito daqueles que defendiam o marxismo55.

O grande problema é que toda ponderação é, em última análise, uma escolha que resulta no

sacrifício de um valor importante em nome da proteção de um valor alegadamente ainda mais

importante. O peso de cada valor é atribuído pelo julgador que pode, eventualmente, dar pouca

importância às liberdades individuais ou a outros valores que não se harmonizem com a sua tradição e

estilo de vida. O juiz pode achar que a livre discussão de idéias, sobretudo aquelas mais incômodas ao

establishment, é uma grande bobagem e pode ceder com facilidade quando se chocar com outros

valores supostamente mais valiosos, como a integridade moral do governo, o respeito às instituições

existentes ou as concepções moralistas dominantes, por exemplo. E esse mesmo juiz poderá tomar

decisões que reflitam o seu pensamento construindo um convincente discurso de legitimação onde

invocará diversas passagens do direito positivo, inclusive do direito constitucional vigente, para

demonstrar que a sua decisão representa a “autêntica vontade geral” e não apenas a sua própria

ideologia. Além disso, incrementará seus argumentos com palavras de ordem e frases de efeito, como

a segurança nacional, a defesa da pátria e da civilização, o interesse social, a moral e os bons

costumes, o bem coletivo e assim por diante, que funcionarão como elemento de persuasão para

convencer um público mais incauto que acredita, sem pestanejar, em palavras deslumbrantes, que, no

fundo, são vazias de significado. E o juiz fará isso com tal convicção que até ele próprio acreditará que

sua decisão é a encarnação da justiça, tornando-se como o poeta fingidor de Fernando Pessoa, que

finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.

O mais assustador de tudo isso é que nós próprios estamos sujeitos a cometer o mesmo tipo

de engano. Pessoas extremamente virtuosas e sábias, cujas ações e palavras inspiraram inúmeras

gerações de seres humanos no mundo todo, foram capazes de construir elaborados discursos morais

para defender o preconceito vigente em sua época. O exemplo de Aristóteles, ao defender a

escravidão, é notório. Aliás, quando se lê a defesa aristotélica da escravidão, é possível sentir uma

sensação de estar lendo um pedido de desculpas aos escravos. Nota-se que Aristóteles se constrange

ao negar aos escravos a condição de pessoa merecedora de igual respeito e consideração, tanto que

sugere a existência de um “reconfortante” dever de tratar bem os escravos. Para alguém que, como

nós, vivemos em uma sociedade onde a escravidão é condenada e que jamais seria capaz de tentar

justificar a escravidão em termos éticos, ler aquelas palavras é como ler a tentativa desesperada de

uma pessoa bem intencionada que é incapaz de fugir da cultura de maldades em que está inserido. E

se usarmos esse exemplo como espelho, podemos também nos questionar se as nossas crenças

morais também não serão julgadas de modo tão implacável pelas gerações futuras.

Infelizmente, não há fórmula segura para escapar dos enganos morais. Não temos como saber

se o nosso raciocínio moral está sempre nos levando para o caminho correto da justiça. Às vezes, nem

mesmo a segurança trazida por uma deliberação coletiva é capaz de impedir os erros de avaliação. Os

55 São inúmeros os exemplos históricos de repressão ao pensamento marxista. Destaco, pela notoriedade, o marcatismo norte-americano, que assombrou o país após a Segunda Guerra Mundial. Mas também não podemos esquecer a própria atitude tomada pelo governo brasileiro, com o aval do Poder Judiciário, que não tinha qualquer escrúpulo em perseguir o pensamento divergente. Paradigmática, nesse sentido, foi a decisão do Supremo Tribunal Federal brasileiro no caso Olga Benário, de 1936, que permitiu a extradição de uma mulher grávida, de origem judaica, para a Alemanha, em pleno regime nazista. Olga acabou sendo morta no campo de concentração de Bernburg. Podem ser mencionadas outras decisões do nosso STF, proferidas no início do século XX, que autorizavam a perseguição de dissidentes políticos, especialmente anarquistas e comunistas, e negavam aos trabalhadores o direito de se reunirem e de realizarem greves ou protestos por melhores condições de trabalho. Para uma análise bastante rica da história do Supremo Tribunal Federal, recomenda-se a leitura dos quatro tomos da “História do Supremo Tribunal Federal”, de Lêda Boechat Rodrigues.

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já mencionados exemplos de julgamentos da Suprema Corte norte-americana bem demonstram isso:

em Dred Scott, por exemplo, a maioria dos juízes preferiu o direito de propriedade dos donos de

escravos à liberdade conferida pelas leis abolicionistas; no caso Lochner, quase todos os juízes optaram

pela liberdade contratual em detrimento dos direitos trabalhistas; no caso Korematsu, a segurança

nacional justificou o encarceramento de japoneses em campos de concentração e assim por diante. De

acordo com os padrões éticos atuais, tais julgamentos são tratados como erros claros de avaliação

moral.

Se é possível pensar em algum tipo de princípio-guia, que possa servir como uma bússola

geral, ainda que muito limitada, de nossas ações e decisões, creio que a idéia de expansão do círculo

ético é um bom começo. A idéia da expansão do círculo ético foi desenvolvida por Lecky, no seu “A

History of European Morals”, de 186956. Recentemente, o filósofo Peter Singer retomou a mesma idéia

para defender com mais ênfase a inclusão dos animais não-humanos no círculo ético57.

Trazendo essa idéia para o direito, é possível defender que, quando a decisão contribui para a

expansão do círculo ético, permitindo a construção de uma comunidade moral mais inclusiva, ela

tende a ser legítima (ainda que, por razões culturais, possa não conseguir ser eficaz, já que a

“consciência moral geral” evolui progressivamente no seu próprio ritmo). Por outro lado, quando a

jurisdição impede a expansão do círculo ético ou reduz o círculo ético ela certamente é ilegítima, por

mais que receba o aplauso da maioria da população e até mesmo da “consciência jurídica geral”.

Afinal, o que faz com que, hoje, nós sejamos capazes de reconhecer a decisão do caso “Brown

v. Board of Education” como uma decisão legitima, justa, correta e, pelo contrário, a decisão do caso

“Dred Scott” como uma decisão opressiva e arbitrária? Por que hoje nós somos capazes de criticar a

não extensão do direito de voto pelas mulheres ou então a própria escravidão? Por que as atrocidades

praticadas pelo nazismo nos causam tanta perplexidade e, por exemplo, a matança de animais para

alimentação não nos choca tanto? Por que nos indignamos com a morte brutal de alguém próximo,

mas não sofremos uma dor tão forte quando uma guerra ocorre do outro lado do mundo e mata

milhares de inocentes? A resposta mais simples, a meu ver, é esta: cada vez mais, o nosso círculo ético

vai se expandindo e, na medida em que ele vai se expandindo, nós passamos a incluir categorias de

pessoas que até então não estavam inseridas nas nossas preocupações morais. Quando o círculo ético

se expande e a “consciência ética geral” acompanha essa evolução, não é mais possível “voltar para

trás” sem violar a dignidade daqueles que já fazem parte do círculo ético. Por outro lado, sempre que

se dá um passo para frente para se ampliar o círculo ético, é um sinal de que se está caminhando na

direção correta, ainda que a “consciência ética geral” demore para acompanhar essa evolução.

Acredito que a atividade jurisdicional está impregnada de valores, e que a tarefa responsável

dos juristas é tentar fazer com que o direito cumpra a sua necessária intenção ética, sem a qual o

poder judicial se torna um mero instrumento do arbítrio. Isso significa, em termos práticos, que os

critérios de justificação para as decisões judiciais deverão ser selecionados e desenvolvidos pelos

julgadores muito mais pelo seu poder de convencimento ético (fundamento axiológico) do que pela

sua formal positividade (imposição estatal) ou por outros critérios técnico-instrumentais que não

respeitem a dignidade dos sujeitos éticos atingidos pelo julgado. É isso que chamo de “transformar

56 “At one time, the benevolent affections embrace merely the family, soon the circle expanding includes first a class, then a nation, then a coalition of nations, then all humanity and finally, its influence is felt in the dealings of man with the animal world. In each of these stages a standard is formed, different from that of the preceding stage, but in each case the same tendency is recognised as virtue” (LECKY, W. E. Hartpole. History of European morals - From Augustus to Charlemagne. v. 1, 3a ed., New York and London: D. Apleton and Company, 1917, p. 100/101). 57 SINGER, Peter. The Expanding Circle: Ethics and Sociobilogy. Oxford: The Clarendon Press, 1981.

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ética em direito”, que também pode funcionar como critério de medição do grau de legitimidade da

atuação dos juízes: tanto mais será legítima a jurisdição quanto mais essa atividade contribuir para a

expansão do círculo ético e para o alargamento do conceito de respeito ao outro. O fundamento

“jurídico” para essa proposta não pode ser fornecido por normas legais positivadas, nem por normas

constitucionais nem declarações de direitos, por mais bem intencionadas que sejam, pois até mesmo

esses documentos formais podem ser ilegítimos à luz da idéia de “círculo ético”. Daí o sentido forte da

expressão “transformar ética em direito”.

4 Uma Conclusão Decepcionante, mas Esperançosa

Ao longo deste artigo tracei um quadro geral dos problemas filosóficos em torno da colisão de

direitos e da ponderação de valores. É provável que, para muitos, o quadro não tenha sido tão

animador. Temo que minhas conclusões sejam frustrantes para aqueles que estivessem esperando

certezas absolutas ou soluções definitivas para o problema que me propus a enfrentar. Mas não

poderia ser diferente diante da natureza essencialmente insolucionável dessas questões

fundamentais. Por certo, minha pretensão não foi colocar um ponto final no assunto. Mas também

não me parece correto simplesmente engavetar o problema ou jogá-lo para debaixo do tapete, como

atualmente se faz, talvez por medo do desconhecido.

É provável que este texto, caso seja lido por alguém, seja interpretado como uma grande

crítica à jurisdição constitucional dos direitos fundamentais ou ao novo constitucionalismo que tem

sido tão enaltecido pela comunidade jurídica brasileira. Prefiro, porém, não me colocar ao lado dos

críticos da jurisdição constitucional, especialmente se a proposta de superação do novo

constitucionalismo seja um retorno ao velho sistema de legislação baseado em um consentimento

político tradicional, com todas as falhas de um processo eleitoral corrompido e que apenas favorece

grupos de poder, cujos interesses não são necessariamente éticos. Na verdade, acredito na idéia de

que não há poder legítimo que não passe por algum tipo de filtro ético, onde as decisões devem ser

tomadas com base no princípio de que toda pessoa afetada pelo exercício do poder merece igual

respeito e consideração. Se o modelo de jurisdição constitucional tal como praticada na atualidade

está muito longe de atingir um grau razoável de legitimidade e de alcançar o desiderato ético aqui

desejado, não há dúvida de que esse modelo já representou algum avanço em relação ao modelo

anterior onde o poder legislativo era completamente livre para agir como bem entendesse. E como

não há uma terceira via à vista, só nos resta desenvolver critérios para que a jurisdição em favor dos

direitos fundamentais possa ser exercida de forma mais legítima.

De qualquer modo, não serei totalmente pessimista na minha colocação final. Acredito que

muito já foi feito e muito ainda pode ser feito para tornar as decisões judiciais menos arbitrárias e mais

comprometidas com uma ética de respeito ao outro. Se nossa tarefa consiste em construir um modelo

jurídico que possa permitir a expansão do círculo ético e a ampliação do sentido de respeito ao outro,

temos que seguir alguns passos necessários. Ei-los:

O primeiro passo é embutir nos juristas uma cultura de humildade intelectual e moral. Como

qualquer participante de um debate onde a busca das melhores soluções seja a meta, os juristas

precisam submeter as suas valorações pessoais a uma constante autocrítica a fim de que a sua

perspectiva do problema não se torne o único fator, nem o fator preponderante, da decisão judicial.

Page 30: A Difícil Arte de Ponderar o Imponderável

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Em seguida, como decorrência do que vem sendo defendido, é necessário alargar ainda mais a

razão jurídica para que os debates judiciais possam ser enriquecidos com outras fontes do saber, além

do estrito conhecimento produzido pelos próprios juristas. A metáfora do “ponto cego”, lembrada por

Marcelo Neves58, serve para ilustrar esse aspecto: embora nós não sejamos capazes de enxergar o

“ponto cego”, é possível que outra pessoa consiga. Assim, o nosso campo de visão se amplia

consideravelmente a partir do momento em que estejamos dispostos a ouvir o que o outro tem a dizer

e não simplesmente querer impor a nossa própria visão de mundo na base da força e da arrogância.

Afinal, não há nenhuma pessoa ou grupo social que seja capaz de ter uma visão tão privilegiada e tão

abrangente de determinado problema que possa se arrogar no direito de impor a sua própria solução

às outras pessoas sem levar em conta o que elas têm a dizer.

Além disso, é preciso popularizar, na prática jurídica, a teoria da argumentação e da ética do

discurso, para fortalecer a idéia de sinceridade, coerência e respeito às regras do bom debate, sem

construções falaciosas ou frases de deslumbramento vazias de significado. Há uma clara necessidade

de desenvolver fundamentos e critérios que possam melhorar a qualidade da argumentação jurídica,

buscando dar mais racionalidade ao processo de justificação do julgamento.

Finalmente, é fundamental desenvolver um forte senso ético nos agentes jurídicos, sobretudo

nos julgadores, pois, em última instância, a qualidade da prestação jurisdicional está intimamente

ligada à própria capacidade moral dos juízes. Ehrlich já dizia no início do século passado que “não há

nenhuma outra garantia para a administração da justiça senão a que está na personalidade do juiz”59.

Como qualquer frase reducionista, certamente a afirmação de Ehrlich é sujeita à crítica. Porém, ela

possui uma boa dose de verdade, na medida em que enfatiza a necessidade de se reforçar a estrutura

moral dos julgadores, que são, em última análise, os principais, ainda que não sejam os únicos,

responsáveis pelos resultados produzidos pela função jurisdicional.

58 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. 59 EHRLICH, Eugen. Escritos sobre Sociología y Jurisprudencia. Barcelona: Marcial Pons, 2005, p. 73 (Tradução livre).