A DIGNIDADE dos sem-nada - fe.uc.pt · I. Neoliberalismo e Neocolonialismo ... O mundo que surgiu...

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A DIGNIDADE dos sem-nada Histórias e relatos de esperança

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A DIGNIDADEdos sem-nadaHistórias e relatos de esperança

Em África e para além

de África: neoliberalismo

em questão, hoje.

Em África e para além de África:

o neoliberalismo em questão, hoje.

João Ferreira do Amaral (ISEG-UTL)

Pedro Bacelar de Vasconcelos (ED-UM)

José Luís Pio de Abreu (FM-UC)

João Alberto Sousa Andrade (FE-UC)

Dia 23 de Maio de 2007

Teatro Académico de Gil Vicente

Índice

I. Neoliberalismo e Neocolonialismo

I.1.Os custos sociais, económicos e políticos do neoliberalismo

I.2. A dívida externa como um meio moderno de dominação

II. Argentina: de Memória de um saque à A dignidade dos sem-nada

II.1. A dignidade do povo: uma viagem à Argentina, a verdadeira

II.2. A dignidade do povo

II.3. Cronologia de uma falência anunciada

II.4. Solidariedades argentinas A dignidade do povo

II.5. Sinopse: A dignidade dos Sem-Nada

II.6. Tu, Argentina, 5 anos depois

III. Instituições internacionais: os sinais do descontentamento

III.1. O Banco Mundial prestes a reabilitar o papel do Estado

III.2. FMI contra "Banco do Sul"

IV. Alguns esquemas de leitura da realidade económica e social argentina

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I. Neoliberalismo e Neocolonialismo

I.1.Os custos sociais, económicos e políticos do neoliberalismo

Os custos do neoliberalismo

Nicolas Bénies

CADTM

Fevereiro, 2000

O mundo que surgiu depois da queda do Muro de Berlim funciona com

ausência total de balizas, de regras claramente determinadas. A incerteza é a

palavra soberana deste novo mundo. Ninguém pode ter uma ideia de como será o

futuro das nossas crianças. A geração que agora tem trinta anos nunca atingirá —

com tudo o resto constante, apressam-se os economistas em sublinhar — o nível

de vida da geração "baby-boom" — a geração que começa a aparecer no final da

segunda guerra mundial. O mundo dessa altura era bem "mais certo". Hoje, a

ausência de futuro torna o passado sem sentido, sem nexo, e abre o caminho à

uma nova reescrita de que a extrema-direita e os fundamentalismos de toda e

qualquer espécie se alimentam. É o tempo "das identidades" fantasmagóricas. O

neoliberalismo propaga-se, provocando o "fecho sobre si mesmo" num ambiente

onde as grandes utopias de construção de uma outra sociedade desapareceram

ou são marginalizadas.

Os neoliberais contestam a própria noção de custos humanos. Só sabem

raciocinar apenas em termos de modelo empresarial. Tudo o que é bom para a

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empresa é bom para a economia. As consequências sociais desta lógica são

ignoradas. Os próprios custos sociais deixam de ter qualquer sentido,

desaparecem. O desemprego custa caro à sociedade? Que importa, desde que a

empresa aumente os seus lucros! Este raciocínio deixou de ser posto em causa, a

não ser pelo movimento social que tem tomado corpo a partir da grande

mobilização contra a OMC em Seattle (Novembro de 1999). Aí se exprimiu um

outro conteúdo da mundialização, o das cidadãs e cidadãos que se batem por

uma sociedade mais justa e mais "humana". É um momento decisivo.

O regresso do social?

Para os neoliberais, o terreno social — e mesmo de cidadania — não tem

realidade. Somente existem efeitos de evicção do mercado, sejam eles

temporários ou permanentes. Daqui decorre o conceito de "empregabilidade". Se

um assalariado não encontra emprego, então isso é por sua culpa. É

inempregável. Não tem as qualificações ou, ainda de forma mais vaga, não tem as

competências necessárias. O custo da prova pertence-lhe. Deve demonstrar que

possui as capacidades necessárias para ocupar o posto de trabalho. As

responsabilidades dos proprietários e dos governos esbatem-se. Não são nem

responsáveis, nem culpados.

Os sociólogos americanos foram o mais longe possível nesta via. Em "The Bell

Curve" — a curva de Gauss, em sino — os autores, Charles Murray e Richard

Herrnstein, quiseram demonstrar que os pobres são pobres porque o querem

efectivamente ser e porque as políticas de luta contra a pobreza os mantêm neste

estado. Ao fim de algumas 800 páginas, efectuam uma correlação entre a pobreza

e a imbecilidade, medida pelo quociente intelectual, o QI. A pobreza, a divisão da

sociedade em classes e "raças" — falso conceito por excelência — explica-se nos

Estados Unidos pela ausência de inteligência. É, por conseguinte, em vão, e é esta

a sua conclusão, querer lutar contra a pobreza.

Esta escola sociológica americana não terminou ainda de fazer os seus

enormes estragos. Encontram-se vestígios na Grã-Bretanha, na maneira como

Tony Blair trata a questão do desemprego, só defendendo o subsídio de

desemprego para os desempregados que já tenham trabalhado. Ao mesmo

tempo, propõe suprimir na Europa as regulamentações sociais que julga

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destrutivas de empregos. O Financial Times, por uma vez e sem exemplo,

respondeu na qualidade de defensor da protecção social, criticando a Comissão

Europeia por se preocupar apenas com os comportamentos económicos.

Na França, o MEDEF (novo nome dado à CNPF, organização do grande

patronato francês) apresenta propostas mais extremas: quer o fim do direito ao

trabalho, do direito à Segurança Social e retornar unicamente ao contrato de

trabalho mas sem intervenção do Estado, sendo esta a maneira de querer uma

ausência total de regras do jogo para justificar "o sempre mais para a entidade

mais patronal", a justificar uma maior intensidade do trabalho, e sempre cada vez

menos protecção do assalariado.

Porque falar de "custos humanos"?

Falar de custos humanos do neoliberalismo, é pois já uma tomada de posição

teórica e prática. É não compartilhar a crença nas virtudes mágicas dos

mecanismos do mercado para realizar o equilíbrio geral. É considerar que o papel

das formas de solidariedade colectiva é mais importante que o aumento dos

lucros; é considerar que a sociedade deve funcionar com base nos valores

colectivos e não sobre os do individualismo que nega o indivíduo que não se

baseie no poder do dinheiro. Esta propagação do neoliberalismo pervertendo

todas as relações humanas explica a aumento crescente da corrupção que polui

toda a esfera política. Explica também a crise política — seria necessário quase um

manifesto cultural, no sentido de uma crise de referências — que toca a todos os

governos que instauram políticas de austeridade atingindo cada vez mais um

maior número para o enriquecimento de uma minoria.

Recusar falar em custo humano leva a reduzir o mundo a um campo de

confrontos económicos que só visam a concorrência, que só visam aumentar as

quotas de mercado e, para o fazerem, a baixa do custo do trabalho e o aumento

da competitividade das empresas são os seus instrumentos. Este novo modelo

económico dá origem a uma nova forma de empresa, a empresa neoliberal cujos

interesses invadem todos os domínios da sociedade. Os interesses sociais

dissolvem-se, desaparecem. O abortado tratado do AMI (Acordo Multilateral sobre

os Investimentos), discutido no maior segredo na OCDE (Organização de

Cooperação e de Desenvolvimento Económico que reúne os 29 países mais ricos

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do mundo), aí está para mostrar o caminho que estes diferentes governos querem

assumir — e impor aos outros países — com o fim de se alcançar o máximo de

desregulamentação. Com este tratado, os governos decidiam dar todos os

poderes às empresas transnacionais, legitimando o lucro como o único critério

oponível a qualquer lei ou decreto. Assim, as transnacionais podiam atacar,

frontalmente, os órgãos jurisdicionais dum Estado culpado de regulamentações

que defendem, por exemplo, a saúde pública, mas que têm consequências

negativas para uma determinada empresa.

Este projecto de tratado foi revelado pelas organizações civis americanas, que

o difundiram na Internet e assim provocaram uma reacção maciça — de cidadania

— face a esta recusa de justiça social e a este intuito de se fazerem as coisas em

segredo. Pôr em pleno destaque estas cláusulas foi o suficiente para fazer recuar,

sob a pressão das mobilizações sociais, os governos, nomeadamente o governo

francês. Esta necessidade de segredo é comum ao conjunto destas decisões,

como as tomadas na OMC. Nenhum governo quer dar conta aos seus cidadãos,

nenhum quer justificar as suas decisões que levantam ao mesmo tempo questões

económicas, sociais e de cidadania. O AMI apenas foi adiado para aparecer, mais

tarde, no âmbito da OMC. Há aqui um interesse paradoxal: quererem

desresponsabilizar-se das suas responsabilidades. Haverá então razão para que

nos surpreendamos pelo retrocesso da política? Com o descontentamento dos

cidadãos? Com a subida do abstencionismo? Com a crise política? De momento,

os efeitos de Seattle provocaram uma onda de choque que obriga o conjunto dos

líderes do mundo a interessar-se pelos cidadãos, pelo menos em palavras. Mesmo

o secretário-geral da OMC acusou o FMI de recusar considerar as consequências

sociais das políticas de ajustamento estrutural.

Combater a pobreza? Ou a exclusão?

A pobreza tornou-se um tema de moda. Não há, a nível oficial, uma

preocupação séria em combatê-la — os pobres são julgados demasiado

numerosos e a pobreza multiforme —, mas sim de a acompanhar para que os

pobres aceitem a sua situação. É este o sentido de todas as leis contra a exclusão

— termo tipo pastilha elástica, como o sublinha precisamente Serge Paugam, "na

exclusão, o estado dos conhecimentos" — que consistem em criar um nível

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mínimo de segurança e possibilitar aos pobres o acesso mínimo aos serviços

vitais, como a água, a electricidade ou o telefone. Por detrás desta posição perfila-

se a redução dos serviços públicos. É necessário abri-los à concorrência ou fazer

com que assumam, em grande escala, os critérios do sector privado: privatização

aberta — abertura directa ao mercado — ou privatização crescente — para baixar

a despesa pública obrigando os serviços públicos a funcionarem segundo um

modelo de gestão contrária aos seus objectivos. Esta lógica despreza os direitos

de tudo e de todos para se limitar a excepções para com os mais pobres, obriga a

definir limiares de rendimento para se ter direito a estes serviços. Ora, estes

"efeitos de limiar" são factores de caos social: podem traduzir-se em opções de

recusas de emprego, por medo de perder o benefício destes serviços gratuitos. O

discurso neoliberal encontra-se assim em contradição com a realidade.

O aumento progressivo da pobreza explica-se pela permanência de um

desemprego de massa que obriga os assalariados a aceitar condições de

trabalho, de emprego e de salários cada vez mais degradadas, tendo como

resultado um crescimento contínuo da precariedade. Esta precariedade tem

primeiramente atingido as mulheres, que são ainda as primeiras vítimas. Mas há

mais ainda. O emprego a tempo parcial, por exemplo, passou em França de 7% da

população activa (86% só de mulheres), nos anos 80, a 15% (80% só de

mulheres), nos anos 90; isto significa que a precariedade atinge mais as mulheres,

em números absolutos, mas que os homens também conhecem a situação de

emprego a tempo parcial. O movimento operário, tanto político como sindical, não

soube tomar a seu cargo a defesa dos direitos das mulheres. É, no entanto, uma

questão essencial. Os direitos das mulheres desenham os contornos de uma outra

sociedade. Não é por acaso que os fundamentalismos, qualquer que seja o seu

quadrante, centram os seus ataques sobre as mulheres. É tempo de compreender

o lugar central que a defesa e o alargamento dos direitos das mulheres devem

tomar em qualquer combate de emancipação.

O emprego a tempo parcial aumenta, conduzindo à proliferação da pobreza.

Doravante, em França como nos países anglo-saxónicos é possível ser-se pobre e

ter um emprego. Os números da pobreza são utilizados para transmitir uma

angústia social vivida de maneira individual por todos os assalariados, quer

tenham ou não um emprego. Esta angústia tem efeitos económicos e sociais.

Primeiro, explica, e em muito, o forte consumo dos diversos e variados

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medicamentos que permitem sobreviver neste tipo de sociedade. Seguidamente,

traduz-se em constrangimentos nas empresas e interiorizados pelos assalariados:

é necessário respeitar os prazos, é necessário que a empresa seja competitiva,

etc., e daqui resulta um certo sofrimento no trabalho. Todos os estudos recentes

realizados em França sublinham esta nova realidade. Os assalariados vão para

trabalho mesmo doentes. O conceito do just-in-time que reina na maior parte das

empresas transforma o cliente em contramestre da empresa. É necessário

satisfazer o cliente a tempo, se não a empresa perderá o mercado. Se o

assalariado está ausente, são os outros que verão o seu volume de trabalho

aumentar. Assim, o "taylorismo" continua a ser o modelo de organização

dominante, apesar da terceira revolução tecnológica, permitindo aumentar a

intensidade do trabalho. Esta maior intensidade do trabalho, num contexto de

guerra económica e de fraco aumento do mercado final (o consumo) — ou mesmo

de diminuição para certos mercados — conduz a uma espiral descendente,

abrindo a porta a novas reestruturações e a novas supressões de empregos, que

elas mesmas se traduzirão numa intensidade de trabalho reforçada para os

restantes assalariados. Assim, as condições gerais de emprego e de trabalho

degradam-se para os assalariados que conservam um emprego, enquanto o

desemprego de massa, o subemprego que é o trabalho a tempo parcial e os

empregos precários se expandem, levando isto a um aumento da violência nas

relações de trabalho.

Os movimentos sociais actuais em França sobre a redução do tempo de

trabalho exprimem esta recusa da intensificação. Podem estar na origem da

mudança por parte dos empregadores, tomando consciência que foram

demasiado longe. Cada vez mais, os quadros encontram-se entre o martelo da

direcção e a bigorna dos assalariados e ficam doentes, eles também, desta

doença social ligada à vontade contínua de reduzir o custo do trabalho.

Neoliberalismo e pensamento único

Simultaneamente, as reestruturações contínuas, começando nos Estados

Unidos e difundindo-se depois ao conjunto dos países capitalistas desenvolvidos

— os exemplos franceses e italianos são mais recentes — traduzem-se em

supressões de empregos que, por sua vez, se traduzem em angústia social que

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mata à nascença qualquer contestação ou reivindicação. A concentração do

capital que resulta destas reestruturações induz a políticas de redução dos custos

do trabalho. É necessário que todas as empresas satisfaçam os seus accionistas,

para os manter, e tanto mais quanto estes accionistas são cada vez mais os

fundos de pensões que só se preocupam com os seus lucros imediatos ou a curto

prazo. Se assim não for os accionistas desertam, vão-se embora, provocando quer

a baixa das cotações de uma empresa na Bolsa, quer, para um país, a queda dos

seus mercados financeiros e o agravamento da recessão como a única resposta

possível a esta saída maciça de capitais.

As causas deste desemprego em massa e, por conseguinte, desta pobreza e

desta precariedade, que se espalham por todos os países capitalistas

desenvolvidos, são ocultadas. O neoliberalismo é teórica e praticamente — sendo

um custo humano enorme — a negação da liberdade de pensar diferente. Todos

os modelos sociais desaparecem na paisagem:

1. O modelo social japonês do emprego para toda a vida para uma parte dos

assalariados — promovendo a solidariedade familiar — é posto também em causa.

Por exemplo, o Presidente de Sony, Nobuyuki Idéï, não somente anunciou, no

início Março 1999, o encerramento de uma quinzena de fábricas no mundo e a

supressão de 17.000 empregos em quatro anos, como também anunciou uma

metamorfose no modelo social, com o abandono do emprego para toda a vida e a

adopção do modelo neoliberal que implica a "tirania do accionista".

2. O modelo social alemão (o famoso "modelo renano" oposto ao "modelo

anglo-saxónico"), que servia de referência à União Europeia, está a queimar os

seus últimos cartuchos. Oskar Lafontaine, o ex-ministro das Finanças que se

demitiu a 11 de Março de 1999, parecia ser um dos últimos a defendê-lo,

justificando as reivindicações salariais dos sindicalistas alemães. As suas

referências encontravam-se mais do lado de Keynes, que sempre pensou a

economia como ligada ao social, do que do lado dos liberais. O BCE — o Banco

Central Europeu —, respondendo aos imperativos dos mercados financeiros, fez

pressão para dele se desembaraçar e para impor ao governo Schröder uma

política neoliberal clássica. A guerra na Sérvia chegou numa boa altura para

permitir a Schröder tornar-se presidente do SPD e impor esta política que rompe

com o seu programa eleitoral. Este consistia em privilegiar a divisão dos "frutos do

crescimento" para assegurar a coesão social, o que passava pela satisfação das

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reivindicações dos assalariados relativas, simultaneamente, à redução do tempo

de trabalho e ao aumento dos salários. A partir daí, o discurso e a prática

alteraram-se. Os empresários alemães querem, como todos os outros, diminuir

drasticamente o custo do trabalho para aumentar a competitividade e ganhar

partes de mercado sobre os concorrentes, num ambiente fortemente marcado pela

sobreprodução e por conseguinte pela baixa dos preços.

Estes "modelos sociais" desestruturados não são substituídos. O

neoliberalismo não constrói. Destrói. É uma das razões do regresso em força do

passado mistificado para preencher um presente ao qual falta o futuro. O "No

future" de que todos falam provém directamente deste ambiente neoliberal,

incapaz de construir um futuro. Para utilizar um chavão, o nosso presente é feito

apenas de um passado ultrapassado e fantasmagórico. Aí, os partidos de extrema-

direita e os fundamentalismos instalam-se sobre esta situação para proporem o

regresso à uma "idade de ouro"... que nunca existiu! São os únicos a proporem o

sonho... mesmo se se transformar em pesadelo. Os outros partidos já não ousam

propor sequer. É um erro. As utopias têm um papel estruturante das colectividades

e desempenham um papel de tomada de consciência das realidades, dando uma

possibilidade de se lhes escapar.

Os critérios do tratado de Maastricht, incluídos no "Pacto de Estabilidade e

Crescimento" de Amesterdão, conduzem simultaneamente a uma política estrutural

de austeridade e a uma possível fragmentação da União Europeia. Os ricos

pretendem não querer pagar mais para os pobres. Estes critérios, como o

demonstram as equipas de economistas que trabalharam com Jean-Paul Fitoussi no

seu primeiro Relatório sobre o Estado da União Europeia, não são de modo nenhum

cooperativos. Pelo contrário, representam forças centrífugas. Este diagnóstico é

corroborado por Jacques Mazier em "As grandes economias europeias". Parece,

pois, necessário avançar um passo na construção europeia, com o estabelecimento

de um federalismo fiscal e uma harmonização social "pelo topo" — ou seja, não ao

contrário e permitindo a emergência real de uma coesão social europeia. Se não for

assim, o lançamento do euro não se traduzirá num progresso da construção

europeia, mas em possíveis crises originadas por um sentimento nacional que está

longe de ter desaparecido. As crises da Europa encontrarão aí, se não se fizer nada,

uma capacidade de alimentação permanente, como o mostrou a cimeira do primeiro

trimestre de 1999 que poderia ter tropeçado na redução da contribuição alemã e na

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correspondente diminuição da PAC — a Política Agrícola Comum. Este debate

prosseguiu, dado ser necessário diminuir os fundos estruturais no que diz respeito a

Espanha e a Portugal, em proveito dos países da Europa do Leste1. Mas eram, no

entanto, contrapartidas necessárias para a política de austeridade seguida por

estes países para fazer parte do primeiro grupo de países da moeda única. Todas

as políticas de austeridade, de privatizações e de desregulamentações são

justificadas pela mundialização da economia e pela globalização dos mercados

financeiros. Em resumo, pela guerra económica.

A mundialização?

A mundialização não é tão simples como a sua imagem neoliberal o pretende.

O mundo, o do após guerra-fria e da coexistência pacífica, é um mundo

economicamente compartilhado em três:

1. Os Estados Unidos dominam as duas Américas — através nomeadamente

da NAFTA, o Acordo de Comércio Livre da América do Norte, assinado com o

Canadá e o México — e modelam a sua região. Têm tendência a lançar-se à

conquista do mundo, querendo demonstrar que são os únicos a poder construir

uma nova ordem mundial — e com a guerra do Golfo e da Sérvia fizeram a União

Europeia passar por um anão político. Daqui resulta, igualmente, a recusa

americana em ver nascer uma defesa europeia independente.

2. A Alemanha instala-se como potência dominante na Europa, moldando a

sua própria zona, que inclui, simultaneamente a Europa do Oeste e a do Leste.

Tem tendência a apresentar-se como a potência económica e política, fazendo

passar a França para segundo plano. Não é certo que a classe dirigente francesa o

aceite facilmente. As crises europeias podem também desenvolver-se a partir

deste processo, pondo em causa a divisão de tarefas do tratado de Roma — a

Alemanha voltava a ser a potência industrial, enquanto a França voltava a ter o

lugar político preponderante. Os desafios de uma maior integração política na

Europa aumentaram fortemente.

3. O Japão, apesar da recessão que quase sem interrupção não o larga desde

1993, tenta, também ele, moldar a sua zona, que é aquela que sofreu mais

1 Veja-se sobre esta matéria o livro L’Euro, une monnaie sans politique?, de Bertrand Martinot. Trata-se de um livro de "leitura obrigatória" para quem se interesse pelas questões de economia europeia [N. do T].

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duramente o processo de desenvolvimento da especulação financeira. A sua

recessão agrava a dos outros países da zona, o que, por sua vez, impede o Japão

de encontrar mercados externos. A guerra económica exacerba-se entre o Japão e

os Estados Unidos. O aumento das exportações japonesas para os Estados

Unidos, graças à baixa do iene, acentua o défice da balança comercial americana

e traduz-se num racismo anti japonês importante.

Cada uma destas três zonas poderia "autonomizar-se" relativamente às outras

duas, uma vez que a maioria das trocas de cada um dos países se efectua

dentro da sua zona. É por exemplo o caso dos países da União Europeia: cada

Estado-membro realiza dois terços das suas trocas com os outros catorze

países, o que poderia permitir — o condicional impõe-se — as políticas de

recuperação concertadas, em vez destas políticas de austeridade que minam

lenta mas continuamente a legitimidade da própria construção europeia, abrindo

assim a porta a importantes recessões. Neste mundo, o dólar afirma a sua

superioridade relativamente ao iene e ao euro, como resultado da força

reencontrada da economia americana. Neste novo mundo, os Estados Unidos

têm um lugar de gendarme internacional, consentido pela quase totalidade dos

governos do mundo inteiro. A viagem — uma das últimas da sua presidência —

de Clinton à Índia e ao Paquistão (Março de 2000) demonstra-o: é pretendido

por ambas as partes como o árbitro da guerra larvar entre os dois países. Os

únicos mercados realmente internacionalizados são os mercados financeiros,

que todos os governos sucessivamente têm decidido desregulamentar, o que

aconteceu, para os países da Europa Ocidental (da CEE), a 1 Julho de 1990,

data em que os mercados de capitais foram liberalizados totalmente. Esta data

assinalou o fim do controlo de câmbios — controlo de entradas e saídas de

divisas — e marcou o advento da convertibilidade externa das moedas

europeias. Todos os governos do mundo fizeram o mesmo — através da

assinatura do tratado de Marraquexe — salvo algumas excepções, entre as quais

a Índia e a Malásia. Esta desregulamentação, mais ou menos geral, explica o

desenvolvimento dos movimentos de capitais a curto prazo que se deslocam de

uma praça financeira para outra, em função das possibilidades de lucros ou dos

temores quanto ao futuro económico de um país ou de uma empresa. Os

operadores financeiros dispõem todos dos mesmos indicadores que evoluem de

acordo com os contextos. Mas são todos eles o resultado do pensamento único

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neoliberal. Daí decorre um comportamento de imitação que acentua tanto as

subidas como as descidas.

Ao mesmo tempo, esta internacionalização induz, simultaneamente, uma

inversão. No funcionamento clássico do modo de produção capitalista, a finança

está ao serviço da indústria. Sempre assim foi. Permite acelerar a rotação do

capital e por conseguinte aumentar os lucros. Mas durante a crise — ou a

transição — da fase de acumulação, as relações entre a finança e a indústria

inverteram-se. A partir daí, é a finança que dita a sua lei à indústria. Os

economistas falam de "financiarização". Aceleram as reestruturações. É necessário

continuamente aumentar os lucros totais para permitir o funcionamento desta

esfera financeira. As reestruturações sucedem às reestruturações para responder a

este imperativo. O investimento produtivo é o esquecido desta história. Supõe um

raciocínio a médio prazo que a esfera financeira deixou de conhecer. A taxa de

acumulação tem tendência a reduzir-se. De imediato, trata-se, para os capitalistas,

de aumentar a mais-valia sob a sua forma absoluta. Assim se explica a

intensificação das condições de trabalho. Esta "financiarização" é também a

indicação de uma crise não resolvida do regime de acumulação, da forma da

criação das riquezas. Como o "fordismo" tinha sido o regime de acumulação dos

"trinta gloriosos", o modo de produção neocapitalista tem necessidade de definir

um novo regime para renovar o crescimento contínuo. É, por conseguinte,

necessário fazer nascer uma nova combinação duma norma de produção, duma

norma de consumo e duma nova forma de Estado adaptada.

A norma de produção começa a criar-se por via do alargamento da nova

revolução científica e técnica, a da informática e da electrónica. A queda do

Nasdaq (e outros "Novos Mercados"), onde são cotados os valores ditos da "Nova

Economia" (as empresas ligadas directamente à Internet) não permitiu a

continuação do alargamento desta revolução ao conjunto das empresas e aos

ramos de produção. Ao mesmo tempo, esta queda mostra as possibilidades de

crise económica e a reversão do "ciclo dos negócios" — as evoluções da

conjuntura — contidas na internacionalização sem regulação dos mercados

financeiros. Em contrapartida, a nova organização de trabalho que deveria

substituir o "taylorismo" tem dificuldades em aparecer. Muitas esperanças tinham

sido postas no "toyotismo", esperanças que desmoronaram com a recessão que

atingiu a economia japonesa, ligada ao rebentar da "bolha financeira". Depois, as

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empresas retornaram classicamente ao "taylorismo", que se alarga aos sectores

dos serviços graças à informática, com o aumento do trabalho ao domicílio.

Do lado da norma de consumo, as questões acumulam-se. Seria necessário

encontrar as vias e os meios de um aumento contínuo do mercado de consumo

final. A "Nova Economia" tem disso necessidade, tal como a antiga economia. Ora,

as políticas económicas — orçamental como monetária — e as políticas

empresariais traduzem-se na baixa dos custos do trabalho, seja do salário directo

ou do salário indirecto. A tendência é para a sobreprodução. Em dado momento, a

produção encontrar-se-á face a um mercado final de consumo em regressão,

como foi o caso, em 1993, no Japão e na Alemanha. Na verdade, a economia

americana resistiu ao choque da crise da Ásia do Sudeste de 1997-98, graças à

política monetária inteligente de Alan Greenspan — o presidente do Banco de

Reserva Federal Americano — e ao crescimento do mercado de consumo final,

que se explica por um "efeito de riqueza" devido a um aumento das cotações da

Bolsa que justificam o disparar da dívida das famílias americanas que atingiram o

nível de um ano de rendimento. Os temores de uma reversão brutal — "crash

landing" — encontram aí a sua origem. Se as cotações da Bolsa se reduzem

brutalmente, as famílias deixarão de continuar a endividarem-se e o mercado de

consumo final corre o risco de desmoronar, abrindo a porta à uma nova crise

(reversão do ciclo curto). Esta conjuntura — como aquela que conheceram os

países da Ásia do Sudeste — mostra a possibilidade de crise decorrente dos

mercados financeiros não regulamentados. Indica também que a fase de

acumulação ainda não está totalmente estabilizada.

Por último, a forma de Estado está profundamente em crise, sem que novas

formas apareçam. O Estado-nação é posto em causa pela transformação da

arquitectura do mundo, que exige diferentes modalidades de estruturação. Esta

crise traduz-se na crise da esfera política que se tem tornado estrutural no

capitalismo de hoje. O retrocesso do direito — da lei em proveito do contrato — é

ao mesmo tempo um dos sintomas e uma das causas desta crise. Como escreveu

Alain Supiot, "o traço comum de todas as transformações do contrato consiste em

inscrever as pessoas na área de exercício do poder de outro... O desenvolvimento

destas relações de fidelidade é acompanhado da transgressão da distinção do

público e do privado e duma fragmentação da figura do garante dos acordos." É,

pois, necessário desfazermo-nos das ilusões de "tudo em contratos". Longe de

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designar a vitória do contrato sobre a lei, "a contratualização da sociedade "é antes

o sintoma da hibridação da lei e do contrato e da reactivação das formas feudais

de tecer a relação social." E assim se pode concluir quanto à necessidade "de

manter sólidas as relações do direito, sem as quais nem o Homem nem a

sociedade se podem manter de pé." Isto é uma outra forma de dizer que as

políticas assentes na regressão do direito e nas desregulamentações estão

ansiosas por um regresso a um passado que se acreditava estar ultrapassado.

A transição de um modo de acumulação para outro não está terminada. O

capitalismo ainda não encontrou o modo de regulação que permite estabilizar a

sua forma de criação de riquezas. Para dizê-lo de modo diferente, o mundo pós

guerra-fria está ainda à procura de encontrar as regras do jogo. Esta crise do

modo de acumulação explica ao mesmo tempo o lugar do neoliberalismo —

segundo o qual é necessário destruir o regime antigo que passa pelo silenciar dos

modelos sociais — e do desenvolvimento do desemprego de massa e da pobreza.

É necessário compreender estes mecanismos, estas leis de funcionamento, para

determinar as formas do combate a efectuar contra a pobreza, contra o

desemprego e contra a precariedade, verdadeiro cancro declarado nas nossas

democracias ditas "desenvolvidas".

Tradução de: Nicolas Bernies, “Coût humain du neoliberalisme”, CADTM, Fevereiro de 2000. Artigo disponível em http://www.cadtm.org/article.php3?id_article=193.

I.2. A dívida externa como um meio moderno de dominação

A dívida do Terceiro Mundo?

Damien Millet

CADTM, França

Dezembro, 2006

A dívida é uma catástrofe para a humanidade, mantendo na mais extrema

pobreza regiões inteiras que possuem, no entanto, importantes riquezas materiais

e humanas. É uma tragédia subjacente, que provoca a jusante uma multitude de

dramas insuportáveis. Mas, esta tragédia tem responsáveis, não acontece por si

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só, como um tremor de terra ou ciclone devastador. A dívida é a consequência de

escolhas geopolíticas bem precisas. Sobretudo, é um potente mecanismo de

subordinação dos países do Sul, é, em suma, um novo colonialismo. Como

sempre, desenrolou-se em cinco actos como se tratasse de uma peça de teatro.

Acto 1: os anos 1960-1970

Após a segunda guerra mundial, os Estados Unidos criaram o plano Marshall

para a reconstrução da Europa. Investiram maciçamente na economia europeia

para a ajudar na sua reconstrução, para a ajudarem a pôr-se de pé, e os países

europeus tornaram-se muito rapidamente os seus parceiros comerciais

privilegiados. À medida que o tempo passava, havia cada vez mais dólares (a

moeda de referência) a circular no mundo, e as autoridades americanas tentavam

travar os pedidos de conversão de dólares em ouro, para não deixarem esvaziar

os seus cofres-fortes. Incentivam então os investimentos das empresas

americanas no estrangeiro, para evitar o regresso dos dólares em excesso e a

subida da taxa de inflação nos EUA. É esta a razão de fundo pela qual os bancos

ocidentais, nos anos 1960, nadavam em dólares (eurodólares) para a aplicação

dos quais procuravam mercados e investimentos. Emprestam-nos então aos

países do Sul que procuram financiar o seu desenvolvimento, nomeadamente os

Estados africanos, recentemente independentes, e aos países da América Latina.

A partir de 1973, o choque petrolífero gera enormes rendimentos aos países

produtores de petróleo que os colocam, por sua vez, nos bancos ocidentais: são

os petrodólares. Também aí os bancos passam a propô-los aos países do Sul, a

baixas taxas para os incitar a contrair empréstimos. Todos os empréstimos são

pois provenientes de bancos privados e constituem a parte privada da dívida

externa dos PVD.

Acresce a isto o facto de a crise se ter instalado nos Estados do Norte, a partir

do choque petrolífero. As mercadorias produzidas no Norte têm dificuldade em

encontrar comprador devido à recessão e ao início do desemprego em massa.

Estes países ricos decidem então distribuir poder de compra ao Sul, a fim de os

incitarem a comprar as mercadorias produzidas no Norte. Daí os empréstimos de

Estado a Estado, frequentemente sob a forma de créditos às exportações. Em

resumo, se emprestamos 10 milhões a baixas taxas de juro, é com a condição de

21

nos comprarem mercadorias neste valor, de 10 milhões... É a parte bilateral da

dívida externa dos PVD.

O terceiro actor desta história da dívida é o Banco Mundial. O Banco

Mundial é uma instituição criada em 1944 quando os Estados Unidos estavam

numa posição de força na cena internacional e é profundamente

antidemocrática dado que o sistema adoptado para os Estados-Membros é

"um dólar, uma voz". Os Estados Unidos possuem mais de 17% dos direitos de

voto (o que lhes fornece uma minoria de bloqueio), enquanto o grupo formado

por 24 países da África subsahariana detêm apenas 2%. A partir de 1968, o seu

presidente é Robert McNamara, antigo ministro da Defesa americano que geriu

a escalada da guerra no Vietname. Através do Banco Mundial, McNamara vai

agir para contrabalançar a influência soviética e as diferentes iniciativas

nacionalistas. O seu combate vai colocar-se no plano financeiro. De 1968 para

1973, o Banco Mundial vai atribuir mais empréstimos do que durante todo o

período de 1945 a 1968.

Estes empréstimos têm vários objectivos perfeitamente claros. Em primeiro

lugar, apoiar os aliados estratégicos dos Estados Unidos (Mobutu no Zaire,

Suharto na Indonésia, a ditadura brasileira e depois, um pouco mais tarde, as

ditaduras argentina e chilena...) para reforçar a zona de influência americana.

Servem igualmente para bloquear o desenvolvimento de certas políticas de

independência económica (Nasser, no Egipto, com a nacionalização do canal de

Suez, Krumah no Gana, Manley na Jamaica, Sukarno na Indonésia, etc.).

O Banco Mundial incita os países do Sul a contraírem empréstimos na

esperança, bem evidente, de financiar a modernização do seu sector de

exportação e de os ligar ao mercado mundial. É a parte multilateral da dívida

externa dos PED.

Durante estes anos, a dívida é ainda suportável para os países do Sul porque

estes empréstimos lhes permitem, apesar de tudo, produzir mais e, por

conseguinte, exportar mais e recuperar as divisas necessárias para os reembolsos

e para os novos investimentos.

Estes três intervenientes (bancos privados, Estados do Norte, Banco Mundial),

com a cumplicidade das classes dirigentes do Sul, estão na origem de um

aumento exponencial da dívida (é multiplicada por 12 entre 1968 e 1980), a que se

segue um momento decisivo e trágico.

22

Acto 2: a crise da dívida

No final do ano de 1979, para saírem da crise que os destrói, para lutar

contra uma inflação elevada e reafirmar a sua liderança mundial após os

malogros dolorosos no Vietname em 1975, no Irão e na Nicarágua em 1979, os

Estados Unidos iniciam uma viragem ultraliberal, que será reafirmada após a

eleição de Ronald Reagan para a presidência. Já desde há algum tempo atrás,

o Reino Unido fazia a mesma coisa e da mesma maneira, no governo de

Margaret Thatcher. Paul Volcker, o director do Federal Reserve, decide um

forte aumento das taxas de juro americanas com o objectivo de atrair os

capitais e de relançar, assim, a máquina económica americana. Os

investidores de todo o planeta são, por conseguinte, incitados fortemente a

colocar os seus capitais nos Estados Unidos. Mas qual a sua relação com a

dívida?

É que, até aí, as taxas de juro dos empréstimos concedidos aos Estados do

Sul eram certamente baixas, mas variáveis e ligadas às taxas americanas.

Eram aproximadamente de 4 a 5% nos anos 70, e passam, pelo menos, para

16 a 18%, ou mesmo mais, no momento mais alto possível da crise porque o

prémio de risco se torna enorme. Por conseguinte, de um dia para o outro, o

Sul tem que reembolsar o triplo em juros. A meio do jogo, as regras foram

alteradas de maneira deliberada: fez-se e completou-se a armadilha.

Além disso, os países do Sul são confrontados com uma outra mudança

brutal: a baixa das cotações das matérias-primas e dos produtos agrícolas,

que constituem basicamente as suas exportações. A grande maioria dos

empréstimos foi contraída em moedas fortes como o dólar. Durante os anos

70, os países devedores têm que, por conseguinte, obter cada vez mais divisas

para reembolsar os seus credores. Tentam então exportar ainda mais (café,

cacau, algodão, açúcar, amendoim, minérios, petróleo, etc..) para obterem

mais divisas, o que, por sua vez, faz descer ainda mais os preços destes

produtos, dada a ausência de procura suplementar no Norte para a produção

suplementar no Sul. O Sul reencontra-se prisioneiro da dívida sem, certamente,

poder cumprir os prazos. É a crise da dívida.

Em Agosto de 1982, o México é o primeiro país a anunciar que deixou de

estar em condições de reembolsar a dívida. É o fim do acto 2, curto mas brutal.

23

Acto 3: os planos de ajustamento estrutural

Esta crise da dívida ressoa como um trovão no mundo político e económico. As

instituições internacionais, que supostamente estavam a controlar o sistema de

modo a impedirem as crises, não viram chegar absolutamente nada, não

detectaram nenhum sinal de alarme.

Logo que um país deixar de poder pagar os seus reembolsos, o Fundo

Monetário Internacional (FMI) aparece, como um bombeiro financeiro. Mas, um

bombeiro burlesco que exacerbou o comportamento dos pirómanos… Mais ninguém quer emprestar a estes países que já não podem reembolsar

mais. O FMI é o seu único recurso. Aceita emprestar o dinheiro necessário (o que

permite sobretudo salvar os credores frequentemente privados do Norte), a

taxa elevada, é certo, e na condição de que o país em causa aceite efectuar a

política decidida pelos seus peritos: estas são as famosas condições do FMI.

Numa palavra, a política económica do Estado endividado passa para o controlo

do FMI e dos seus peritos ultraliberais. É aqui que se situa o aparecimento de uma

nova colonização: uma colonização económica. Já não há mesmo nenhuma

necessidade em manter uma administração e um exército colonial no país, pois, o

mecanismo da dívida encarrega-se sozinho de gerir a dependência.

As medidas preconizadas estão inscritas num Plano de ajustamento estrutural

(PAE), que corresponde sempre ao mesmo esquema: eliminação dos subsídios

aos produtos e aos serviços de primeira necessidade: pão, arroz, leite, açúcar,

combustível...; austeridade orçamental e redução das despesas, em geral redução

drástica dos orçamentos sociais "não-produtivos" (saúde, educação, subvenções

aos produtos básicos); desvalorização da moeda nacional; taxa de juro elevada,

para atrair os capitais estrangeiros com uma remuneração elevada; produção

agrícola toda ela voltada para a exportação (café, algodão, cacau, amendoim, chá,

etc.) para uma maior entrada de divisas, e, por isso, redução das culturas de

produtos alimentares e desflorestação para se ganharem novos terrenos; abertura

total dos mercados, ou seja, supressão das barreiras aduaneiras; liberalização da

economia, nomeadamente abandono do controlo dos movimentos de capitais e a

supressão do controlo dos câmbios; fiscalidade agravando ainda mais as

desigualdades com o princípio de uma taxa sobre o valor acrescentado (IVA) e a

preservação dos rendimentos do capital; privatizações maciças das empresas

24

públicas e, por conseguinte, a saída do Estado dos sectores de produção

concorrenciais... A poção é mesmo muito amarga.

Por exemplo, no Mali, Alfa Oumar Konaré é eleito Presidente em 1992, após a

ditadura do general Moussa Traoré. A sua política é dócil em relação ao FMI e o

seu objectivo é o restabelecimento dos grandes equilíbrios macroeconómicos.

Konaré procura promover as actividades comerciais privadas e sanear o sector

público, como se diz no FMI. Os efectivos da função pública passam então de

45.000 em 1991 para 37.700 em 1998, e os salários públicos sofrem uma redução,

em termos reais, compreendida entre 11% e 18 %. A pressão fiscal passou de

8,5% em 1988 para 14% em 1998, enquanto as despesas correntes passaram de

15% do PIB para 10,8 %. E o governo sente-se orgulhoso ao afirmar que, no plano

dos grandes equilíbrios, "a política de ajustamento permitiu uma melhoria notável"!

Das 90 empresas públicas em 1985 no Mali, só restam 36 em 1998, 26 foram

liquidadas e 28 foram privatizados. Em 1988, 75% das receitas fiscais do governo

vão para a massa salarial dos seus funcionários, em 1998 apenas vão 27%, o que

o governo qualifica de "saneamento notável das despesas". E isto continua: em

2000, auditorias da Caixa de Reforma do Mali (CRM) e do Instituto Nacional para a

Previdência Social (INPS) e a adopção de um plano de saneamento das suas

finanças; venda de 60% do capital de Electricidade do Mali (EDM); venda do Hotel

da Amizade; privatização em 35% da Sociedade Nacional dos Tabacos e Fósforos

do Mali (SONATAM), com a privatização total em vista; liquidação da Sociedade

Maliana de Material de Obras públicas (SLMTP), do Serviço das Retransmissões

Turísticas (ORT) e da Sociedade Nacional de Investigação e de Exploração Mineira

(SONAREM).

No entanto, o nível de vida das populações não melhora com isso. Alguns

números são suficientes: em 1999, a taxa bruta de escolarização primária é de

56%; o número médio de alunos por professor, no ensino primário, é 79; 27% das

crianças com menos de 5 anos sofrem de desnutrição; 59% da população tem

acesso a um centro de saúde no mínimo a mais de 15 Km; 17% habitações são

equipadas com água corrente e 12% com electricidade.

Outro exemplo: em Julho de 1999, o FMI atribuiu um crédito a Madagáscar. Em

troca, o governo procede a importantes reformas estruturais, como a privatização do

segundo banco público do país (um banco agrícola), bem como à liberalização dos

sectores das telecomunicações, da pesca e dos recursos mineiros. A companhia

25

petrolífera pública (Solima) foi privatizada mais tarde, em Junho de 2000. Mas, como

o país aplicava generosamente a política que lhe era imposta, merecia uma nova

lufada de oxigénio financeiro. A partir do Julho de 2000, foi desbloqueada a primeira

fracção de um novo crédito de ajustamento estrutural do Banco Mundial. É então o

toma lá dá cá...

Além disso, o FMI tem a habilidade de fazer passar a responsabilidade das

suas decisões para os governos em exercício, no Sul. Todos os anos, cada Estado

deve fazer relatórios em que analisam a situação económica e traçam as

perspectivas para o futuro. Num sentido ultraliberal, obviamente. Os empréstimos

e reescalonamentos diversos são atribuídos apenas na condição de estes

relatórios irem no "bom" sentido, e de serem completados por visitas de peritos do

Banco Mundial ou do FMI para disso se assegurarem directamente. Com efeito, as

instituições financeiras internacionais fazem assinar às autoridades locais a lista

das suas próprias reivindicações, para melhor explicar, se for caso disso, que

apenas tiveram que ratificar as escolhas dos autóctones... O mecanismo da dívida

é um mecanismo de subordinação muito subtil e mesmo muito impressionante.

Acto 4: A utilização dos dinheiros no Sul

Os empréstimos maciços contraídos pelos líderes dos países do Sul muito

pouco proveito trouxeram às populações locais. A maior parte foi decidida por

regimes ditatoriais, aliados estratégicos das grandes potências do Norte. Uma

parte importante das somas emprestadas foi desviada por estes regimes

corrompidos. Aceitaram facilmente endividar o seu país quando, de passagem,

arrecadaram comissões com o apoio dos outros actores do endividamento. Como

explicar que na altura da sua morte, Mobutu, à frente do Zaire durante mais de 30

anos, dispusesse de uma fortuna avaliada em 8 mil milhões de dólares,

equivalente a dois terços da dívida do seu país, sem mesmo se estar a entrar em

linha de conta com o enriquecimento dos seus familiares? Ou que no Haiti, em

1986, a dívida externa ascendia a 750 milhões de dólares quando a família

Duvalier, que governou com uma mão de ferro o país durante trinta anos (primeiro

François conhecido como Papa Doc seguidamente Jean-Claude

conhecido como Baby Doc), fugiu para a Côte d’Azur com uma fortuna avaliada

em mais de 900 milhões de dólares? Que outra explicação encontrar para o

26

enriquecimento da família de Suharto da Indonésia cuja fortuna, no momento em

que foi derrubado do poder, em 1998 e após 32 anos de reino, era avaliada em 40

mil milhões de dólares, enquanto o seu país estava num total marasmo?

Por vezes, como no caso da ditadura argentina (1976-1983), a situação é

grotesca. Durante este período, a dívida foi multiplicada por 5,5 para ascender a 45

mil milhões de dólares em 1983, essencialmente contraída junto de bancos

privados, com o acordo das autoridades americanas. A partir de 1976, um

empréstimo do FMI tinha dado um sinal extremamente forte aos bancos do Norte:

a Argentina da ditadura era frequentável. A junta no poder recorreu a uma dívida

forçada das empresas públicas, como a companhia petrolífera YPF, e a dívida

externa destas passou de 372 milhões de dólares para 6 mil milhões de dólares,

ou seja, foi multiplicada por 16 em 7 anos. Mas, as divisas emprestadas nessa

época praticamente nunca chegaram ao cofre das empresas públicas. As somas

emprestadas junto dos bancos dos Estados Unidos eram colocadas em grande

parte neste mesmo país sob a forma de depósitos, a uma taxa inferior à dos

empréstimos. Assistiu-se então a um enriquecimento pessoal dos familiares do

poder ditatorial via comissões importantes. Por exemplo, entre Julho e Novembro

de 1976, o Chase Manhattan Bank recebeu mensalmente depósitos de 22 milhões

de dólares e remunerou-os a cerca de 5,5%; durante este período e ao mesmo

ritmo, o Banco Central da Argentina contraiu mensalmente empréstimos de 30

milhões de dólares no mesmo banco a uma taxa 8,75 %. Tudo isto se fez com o

apoio activo do FMI e dos Estados Unidos, permitindo uma manutenção do regime

de terror aproximando ao mesmo tempo a Argentina dos Estados Unidos após a

experiência nacionalista de Peron e dos seus sucessores.

Assim, a dívida tem aumentado muito rapidamente, da mesma maneira que a

riqueza pessoal dos familiares dos homens no poder. Mas, isto foi igualmente

benéfico para os bancos do Norte: o dinheiro voltava, em parte, aos seus cofres, e

podia voltar a ser emprestado outra vez a outros tantos que também

reembolsaram... Além disso, a fortuna dos ditadores era muito útil aos bancos

porque lhes servia de garantia. Se, de repente, o governo de um país endividado

mostrasse má vontade em reembolsar os empréstimos contraídos em nome do

Estado, o banco podia gentilmente ameaçar congelar os activos pessoais secretos

dos líderes, ou mesmo confiscá-los. A corrupção e os desvios de fundos, por

conseguinte, desempenharam um papel importante.

27

Além disso, o dinheiro, que chegava sempre da mesma maneira vindo do país

credor foi utilizado para fins previamente estabelecidos.

Os créditos iam antes de mais nada para mega-projectos energéticos ou de infra-

estruturas (barragens, centrais térmicas, oleodutos...), muito frequentemente

inadaptados e megalomaníacos, que se cognominaram posteriormente de "elefantes

brancos". O objectivo não era melhorar a vida diária das populações autóctones,

mas tinha como finalidade extrair as riquezas naturais do Sul e transportá-las

facilmente para o mercado mundial. Por exemplo, a barragem do Inga, no Zaire,

permitiu criar uma linha de alta tensão sem precedentes, de 1.900 quilómetros de

comprimento, para o Katanga, província rica em minérios, tendo em vista a sua

extracção. Mas, esta linha não foi acompanhada da instalação de transformadores

para fornecer electricidade às aldeias por cima das quais passava...

Esta lógica ainda prevalece regularmente, como o prova a construção do

oleoduto Chade-Camarões, lançado em meados dos anos 90 e permitindo levar o

petróleo da região de Doba (no Chade, sem ligações directas ao oceano) até ao

terminal marítimo de Kribi (Camarões), que fica a 1.000 quilómetros de distância. A

sua instalação fez-se com o maior desrespeito pelos interesses das populações.

Por exemplo, originalmente, para compensar as populações dos prejuízos

causados por este projecto co-financiado pelo Banco Mundial e associando a

Shell, a Exxon e a Elf, os responsáveis propuseram 3000 FCFA (4,5 dólares) por

cada uma árvore de fruta da manga destruída, enquanto, de acordo com o

deputado chadiano Ngarléjy Yorongar, a primeira produção desta árvore pode dar

1000 mangas podendo ela valer 15 dólares...

A compra de armas ou de material militar para oprimir os povos também foi

muito importante no disparar da dívida. Muitas ditaduras mantiveram a sua

influência sobre as populações comprando a crédito as armas, com a

cumplicidade activa ou passiva dos credores. As populações actuais reembolsam

por conseguinte uma dívida que permitiu comprar as armas responsáveis pelo

desaparecimento dos seus familiares, e que se pense nos 30.000 mortos na

Argentina sob a ditadura (1976-1983), nas vítimas do regime de Apartheid na África

do Sul (1948-1994) ou no genocídio no Ruanda (1994). O dinheiro emprestado

servia também para alimentar as caixas pretas dos regimes existentes, para

comprometer os partidos de oposição e para financiar campanhas eleitorais

dispendiosas e políticas clientelistas.

28

Os empréstimos estão, antes de mais nada, associados à ajuda ligada. O

dinheiro serve então para comprar produtos fabricados pelas empresas do país

credor, contribuindo assim para melhorar a sua balança comercial. As

necessidades reais das populações dos PVD passam para segundo plano.

Infra-estruturas impostas pelas multinacionais do Norte, ajuda ligada, compra

de armas para uma repressão maciça, desvios e corrupção, aí está para que

serviram as verbas emprestadas durante décadas.

Acto 5: A taça extravasa

Nos anos 90, os países em desenvolvimento, na sua maioria, caíram sob o

cutelo do FMI. Mas, nada melhorou com isso, bem pelo contrário. A dívida

continua a sua corrida louca, como vimos, e as crises financeiras multiplicam-se. A

abertura total do Terceiro Mundo aos capitais estrangeiros e as medidas liberais

impostas pelo FMI atraíram capitais fortemente voláteis, empréstimos prontos a

saltarem em função dos mais pequenos sinais de fragilidade económica. Foi o

caso da América do Sul em 1994, seguidamente do Sudeste Asiático em 1997, da

Rússia em 1998, outra vez América Latina em 1999, da Turquia entre 1999 e 2002,

da Argentina em 2001-2002, do Brasil em 2002. Mas, sempre, e por toda a parte,

são impostas as mesmas receitas: novos empréstimos em troca de uma

liberalização acentuada da economia. De resto, estes novos empréstimos

sobrecarregam pesadamente a dívida, mas não são destinados a restaurarem, por

pouco que seja, o bem-estar das populações do Sul. São exactamente feitos para

permitir ao Estado em crise reembolsar os seus credores do Norte,

frequentemente responsáveis pelos investimentos arriscados e perigosos...

Sempre, mas sempre, a prioridade é dada à continuação do reembolso da

dívida. Assim, desde a crise de 1994, os rendimentos das exportações de petróleo

do México transitam por uma conta situada nos Estados Unidos, e um magistrado

americano tem a autorização de bloquear os fluxos desta conta para o México se

este não reembolsar a sua dívida. Os Estados assim dominados pelo FMI perdem

a sua soberania: é seguramente uma colonização económica.

A descida aparatosa do preço das matérias-primas prossegue

inexoravelmente. O que se observa assemelha-se bem mais à pilhagem dos

recursos do Sul que às trocas comerciais equitativas.

29

Em meados dos anos 90, os líderes dos países mais ricos estavam

particularmente inquietos com o sistema financeiro internacional. Em 1996, a

cimeira do G7 de Lyon decide por conseguinte lançar uma iniciativa extremamente

mediatizada para aligeirar um pouco a dívida dos países pobres: a iniciativa PPAE

("Países Pobres Altamente Endividados").

Esta iniciativa, reforçada na cimeira do G7 de Colónia em 1999, é suposta

aliviar a dívida dos países pobres e muito endividados. Mas, nasceu mal: não

resolve nada. Refere-se apenas a um pequeno número de países muito pobres (42

dos 165 PVD) e o seu objectivo limita-se a tornar a sua dívida externa sustentável.

O FMI e o Banco Mundial tentam aliviar a dívida exactamente no que é necessário

para pôr termo aos pagamentos em atraso e aos pedidos de reestruturações, sem

sequer o conseguir. Mas aproveitam-se, sobretudo, desta iniciativa, que parece

generosa, para impor um reforço do ajustamento estrutural. Apesar de uma

aparência de mudança permanece a mesma lógica.

Para beneficiar de uma redução de dívida no âmbito da iniciativa PPAE, as etapas

são numerosas e exigentes, e necessitam de um tempo desmedidamente longo.

Em primeiro lugar, os países susceptíveis de a pretender devem, de acordo

com o FMI, "estar perante uma situação de dívida insustentável" e "ter

antecedentes comprovados de aplicação das reformas e boas políticas

económicas através de programas apoiados pelo FMI e pelo Banco Mundial".

Trata-se de um verdadeiro percurso de combatente. O país referido por esta

iniciativa deve primeiro assinar um acordo com o FMI, a fim de efectuar, durante

um período de três anos, uma política económica aprovada por Washington. Esta

política apoia-se num Documento de Estratégia para a Redução da Pobreza

(DERP). Este documento estabelece detalhadamente a lista das privatizações, as

medidas de desregulação económica que permitem gerar recursos para o

reembolso da dívida por um lado, e como, por outro lado, os fundos que resultam

da redução da dívida serão utilizados, nomeadamente, para lutar contra a pobreza.

Vê-se a contradição.

Na sequência deste período de três anos, o FMI e o Banco Mundial procuram

saber se a política seguida por este país é suficiente para lhe permitir reembolsar a

sua dívida. O critério retido para determinar uma eventual insustentabilidade da

dívida é a relação entre o valor actual da sua dívida e o montante anual das suas

exportações. Em geral, se este rácio é superior à 150 %, a dívida é considerada

30

insustentável. Neste caso, este país atinge o ponto de decisão e é declarado

admissível à iniciativa PPAE.

Um país que tenha atingido favoravelmente o ponto de decisão deve então

prosseguir a aplicação das políticas aprovadas pelo FMI e redigir um DERP

definitivo. A duração deste período varia entre um e três anos e é determinada pela

redacção do DERP e pela aplicação satisfatória das reformas-chave acordadas

com o FMI. Estas reformas-chave correspondem, com efeito, a um reforço do

ajustamento estrutural dos anos 80 e de 90, rebaptizado DERP pela circunstância.

Seguidamente chega a fase de realização. O país beneficia então de uma

ligeira redução do valor da sua dívida externa de forma a torná-la sustentável. A

redução permite finalmente fazer com que os PED paguem até ao máximo das

suas possibilidades. Com efeito, anulam-se essencialmente os créditos

incobráveis. A iniciativa PPAE é, sobretudo, destinada a garantir a perenidade dos

reembolsos e a dissimular o reforço do ajustamento estrutural sob uma aparência

de generosidade. Em 2000, ou seja quatro anos após o início da iniciativa, os 42

PPAE transferiram somas colossais para o Norte: a transferência líquida sobre a

dívida foi negativa para eles em cerca de 2,3 mil milhões de dólares.

A partir de 2000, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e

Desenvolvimento (UNCTAD) é muito clara: "As esperanças que se tem actualmente

na aplicação da iniciativa reforçada em prol dos Países Pobres Altamente

Endividados (PPAE) não são realistas. A redução da dívida encarada como

desejável não será suficiente para que esta se torne suportável a médio prazo (...);

além disso, a amplitude da redução da dívida e a maneira como será feita não

terão efeitos directos essenciais para a redução da pobreza”.

No total, 34 entre os 42 PPAE são países da África subsahariana, aos quais é

necessário acrescentar 4 países da América Latina (as Honduras, a Nicarágua, a

Bolívia, a Guiana), 3 países da Ásia (o Laos, o Vietname e o Myanmar) e o Iémen.

Só os países muito pobres e muito endividados podem esperar ligeiras

reduções. Assim, a Nigéria é muito endividada, mas como se trata de um país

produtor de petróleo, não é considerada bastante pobre. Haiti, um dos países

mais pobres do planeta, não é considerado suficientemente endividado para ser

elegível. E os países onde vivem a maior parte dos pobres do planeta não são

referidos: a China, a Índia, a Indonésia, o Brasil, a Argentina, o México, as

Filipinas, o Paquistão, etc.. Os PPAE representam apenas 11% da população

31

total dos PVD. Como esperar sair do impasse financeiro actual onde estão

mergulhados todos os PVD com tal iniciativa?

Mesmo estes 42 países não serão todos eles beneficiados com reduções da

dívida. Com efeito, o Laos não pode aproveitar esta iniciativa, porque os seus

líderes julgam que traz mais inconvenientes que vantagens. Além disso, 4 países

chegaram à fase de decisão e tiveram uma resposta negativa: Angola, o Quénia, o

Vietname e o Iémen. A sua dívida é julgada sustentável, ainda que, por exemplo,

Angola, devastada por 25 anos de guerra civil mantida pelas multinacionais

petrolíferas, tenha tido de enfrentar em 2002 uma situação de fome sem

precedentes no seu território... Por último, as previsões indicam que três outros

países não estão em condições de beneficiar da iniciativa (devido um estado de

guerra ou a uma falta de cooperação com os países ricos): a Libéria, o Sudão e a

Somália, assim sancionados porque não são politicamente correctos. A iniciativa

PPTE refere-se pois, e no melhor dos casos, a 34 países.

Em Dezembro de 2002, 26 países tinham atingido o ponto de decisão, e 6 de

entre eles tinham atingido o ponto de realização: o Uganda, a Bolívia, o

Moçambique, a Tanzânia, o Burkina Faso e a Mauritânia.

A UNCTAD, no seu relatório de Setembro de 2002, é muito lúcida: "Após quase

duas décadas de programas de ajustamento estrutural, a pobreza aumentou, o

crescimento é geralmente lento e errático, as crises rurais agravaram-se e a

desindustrialização pôs a nu as perspectivas de crescimento." Desde há dois anos

que a redução da pobreza se tornou o objectivo fundamental dos programas e das

actividades das instituições financeiras internacionais na África e noutros países

com rendimentos modestos. Esta mudança de atitude merece ser saudada. Mas,

será que houve uma evolução das mentalidades"? Ou ainda: "Um exame

detalhado das medidas macroeconómicas e do ajustamento estrutural que figura

nos DERP permite constatar que não há nenhum questionamento fundamental dos

conselhos formulados no âmbito de que se chama o Consenso de Washington."

Detlef Kotte, um dos seus quadros dirigentes, não hesita mesmo em escrever: "O

FMI ou o Banco Mundial alteraram as palavras, alteraram as siglas, alteraram o seu

modo de consulta, mas não alteraram mesmo nada o seu credo." Vê-se, pois, hoje,

que o problema da dívida continua a ser o mesmo.

Tradução de: Damien Millet, "La dette du Tiers Monde?", CADTM, França, 2 de Dezembro de 2006. Artigo disponível em http://www.cadtm.org/imprimer.php3?id_article=22.

32

II. Argentina: de Memória de um saque à A dignidade dos sem-nada

II.1. A Dignidade do povo: uma viagem à Argentina, a verdadeira

Jean-Philippe Damiani

Setembro, 2006

Após Memória de um saque, o cineasta argentino Fernando Solanas assina com A dignidade dos sem-nada um espantoso documentário sobre a Argentina depois da

crise de 2001. Realizado a partir dos retratos de homens e de mulheres que lutam para

saírem da crise, este filme radical faz-nos descobrir a Argentina como ela é realmente.

Devastada é certo, mas também cheia de esperança, de cabeça levantada.

Um país devastado pelo ultraliberalismo

Foi há dez anos, mas já parece um século... A Argentina fazia inveja a toda a

América Latina. Dirigida por Carlos Menem, o "aluno exemplar do FMI" que

aplicava à letra o catecismo ultraliberal com a bênção de Washington e das

instituições monetárias internacionais: privatização total do sector público e dos

sectores vitais da economia (água, electricidade, gás...), despedimentos de

dezenas de milhares de funcionários, paridade forçada entre o peso e o dólar,

aumento das taxas de juro e liberalização das trocas comerciais... A Argentina era

uma espécie de laboratório económico.

Resultado da experiência: em 2001, a economia argentina encontra-se

inteiramente nas mãos das multinacionais estrangeiras, o Estado está em ruptura

de pagamentos, o desemprego atinge 25% da população, um em cada dois

argentinos vive abaixo do limiar de pobreza, diariamente cem pessoas morrem de

fome, os salários estão congelados e a classe dirigente, totalmente corrompida,

coloca o seu dinheiro no estrangeiro. Em Dezembro de 2001, o ministro da

Economia decide congelar as contas dos pequenos aforradores para reembolsar

as dívidas abissais dos bancos. A classe média, estrangulada e empobrecida, já

não aguenta mais. A 19 de Dezembro, os argentinos revoltam-se então,

provocando a queda do governo. Milhares de lojas comerciais são saqueadas e os

bairros das grandes cidades são devastados. A Argentina cai num caos donde ela,

só agora, começa com muita dificuldade a sair.

33

Argentina, a verdadeira

Como é que a Argentina, este país tão rico, chegou a esta situação? Em 2004,

Fernando Solanas, um dos grandes do cinema argentino, que foi distinguido com um

Urso de Ouro de honra no festival de Berlim, respondia a esta pergunta muito simples

com um documentário magistral, Memória de um saque. Este documentário fazia a

demonstração implacável das devastações sociais do liberalismo. Solanas acusava

Menem e as elites argentinas de corrupção. As multinacionais e os organismos

internacionais que defraudaram a Argentina também não eram poupados.

Com A dignidade dos sem-nada, Solanas propõe um "após" Memória de um saque. E é necessário ver este filme para conhecer a Argentina de hoje, a

verdadeira, a que não se limita aos mapas postais do Boca ou do Perito Moreno.

Este magnífico documentário, com cânticos corais, politicamente empenhado,

conduz-nos ao encontro dos argentinos que tudo perderam. Realizado entre 2001

e 2005, A dignidade dos sem-nada dá a palavra a estes numerosos excluídos que

souberam levantar a cabeça e combater a miséria com o sistema D[ignidade].

Para reencontrarem a sua dignidade, que rima com resistência e solidariedade.

No coração do caos

Através dos perfis de Martin, de Sylvia, de Gustavo ou de Carola, A dignidade dos sem-nada reconstitui, pois, a luta exemplar do povo argentino sujeito a um

caos económico e social que nos parece incrível, para não dizer terrível. O que é

que se vê da Argentina neste início do século XXI? Um professor pago a 800 pesos

por mês para ensinar crianças que estão a morrer de fome; cantinas populares

onde duas cebolas servem para fazer uma sopa para 300 pessoas; hospitais num

estado de ruína total, por falta de financiamento público, com os corredores cheios

de lixo e ocupados pelos sem abrigo, onde se marcam consultas para uma

operação a ser feita seis meses depois; pessoas que vivem em barracas, sem

água, nem electricidade, aos pés de arranha-céus cintilantes de Buenos Aires.

O povo unido jamais será vencido

Felizmente, os Argentinos demonstram uma incrível energia vital, pois o país

34

constrói-se, apesar de tudo, e sem ser muito ajudado pela sua classe dirigente.

Assim, as ocupações de estradas pelos "piqueteros" fizeram vergar o poder por

várias vezes. Centenas de fábricas e de empresas, que os proprietários

abandonaram em 2001, são retomadas pelos seus empregados num sistema de

autogestão, recriando um modelo económico alternativo. As expropriações são

combatidas com sucesso no tribunal por camponeses que entoam em grupo o

hino argentino, impedindo assim as vendas em leilão das terras apreendidas. O

presidente Nestor Kirchner, eleito em 2003, fez algumas reformas "sociais" (fim das

leis da impunidade, nova negociação da dívida, reforço do Mercosul...). No

entanto, ao sairmos de A dignidade dos sem-nada, sente-se que a salvação do povo

argentino virá apenas dele próprio. Porque este documentário, que retrata uma

constatação tão arrasadora como triste do desastre argentino, termina com uma

nota de esperança. "Com o meu filme, quis revelar as pequenas vitórias dos

excluídos, as acções solidárias que demonstram como este mundo pode ser

mudado", diz Fernando Solanas. Dois outros documentários (Argentina Latente e

Tierra Sublevada) estão já em preparação. Completarão o fresco do povo

argentino em luta. ¡El pueblo unido jamas sera vencido!

Jean-Philippe Damiani, La Dignité du peuple: un voyage en Argentine, la vraie, 22 de Setembro de 2006. Artigo disponível em disponível em www.routard.com/mag_evenement/dest/argentine.htm.

II.2. A dignidade do povo

Guillaume Massart

Film de Culte

Na sequência de Memória de um saque, que denunciava os mecanismos

políticos que conduziram a Argentina à crise económica, a A dignidade dos sem-

nada mostra como as organizações sociais e as populações mais necessitadas

enfrentaram o desemprego e a miséria que aí reina desde 2001.

Complicações

O último filme de Fernando E. Solanas trazia o nome terrível de Memória de um

35

saque. Matéria-prima do documentário, a memória está de novo no centro da A dignidade dos sem-nada. É a sua reconstituição e a sua salvaguarda que guiam a

mão dum cineasta obstinado e infatigável. E é ela, a memória, que permite que se

não perca o fio dos acontecimentos. Vista daqui, a "vaga argentina", tão celebrada,

parece já ter passado; o parêntese encantado parece ter já fechado novamente.

Quem está com atenção a isto pôde mesmo distinguir, de repente, este ano, os

limites, vendo primeiro a saída de El Aura2, canto do cisne e tentativa abortada de

renascimento do porta-voz nacional Fabián Bielinsky, e em seguida o anúncio

fulminante da sua morte, como tantas machadadas desferidas a um movimento

afinal demasiado efémero. Que se terá passado? A sequência introdutória de El

Aura trazia um ar de resposta: nada. Não se tinha passado nada. A sociedade

argentina tinha sofrido uma crise de epilepsia, tinha batido no chão, teve uma

perda de memória. Depois, acabou por se levantar. E acabou por retomar o seu

caminho, sem daí estar a tirar a mínima conclusão, às cegas — olhos vendados

mesmo, lembra o hispano-argentino. Intacto.

"Assim, a crise argentina era apenas epilepsia", escrevíamos nós em Março

passado. A dignidade dos sem-nada tem a função de incomodamente fazer-nos

recordar: a Argentina, doente, não se tratou, não fez o seu tratamento. E Solanas

aponta-nos as sequelas. Sentidas, dolorosas. Filme de energia bruta, câmara agitada,

montagem nada lenta, A dignidade dos sem-nada está a milhas do difamatório "The

Take", nunca procurando as imagens lindas nem idealizando nem os gestos belos

nem as almas bonitas: as boas-vindas num país do terceiro mundo dissimulado de

país desenvolvido. Trata-se antes de um esterco incrível, onde o deambular solidário se

organiza em bairros inundáveis saídos da L'Île aux Fleurs3, pés na lama, dentes

partidos, onde se partilha o mesmo banco desde há dois anos num hospital,

rebentando os ladrilhos, caindo sob o chumbo disparado aleatoriamente por forças da

ordem ultrapassadas... Solanas não poupa nada, acaricia a realidade, nem que seja

pelas suas pontas, descreve um fresco terrível mas caloroso, faz de uma montagem

espantosa, movimentada e caótica, uma arma política potente, precisa e sem deixar

margens para dúvidas. Homens e mulheres atirados para o nada, montes de palha

levados pelas borrascas de um liberalismo que se tornou louco, reencontram a palavra

e a imagem que lhes tinham sido roubadas.

2 El Aura, filme de Fabián Bielinsky, nas antípodas da temática de Solanas. 3 Ilha das Flores, documentário de Jorge Furtado, Brasil.

36

As Vinhas da Ira

Memória de um saque, dois anos depois? Há aqui também certamente um

pouco deste filme, nesta retrospectiva cronológica do hold-up argentino. A

novidade está em que A dignidade dos sem-nada mostra alguns sinais de

apaziguamento. De um apaziguamento desesperado, certamente, onde ilhas de

esperança flutuam com dificuldade no meio de um dilúvio de miséria — mas agora

com algum alívio. Esta esperança, embora frágil, é aquilo a que se agarra o filme, é

ela que o sustenta. A Dignidade da qual fala Solanas é esta solidariedade que faz

com que, mesmo não se tendo nada, tudo se compartilha — como a cantina

colectiva que, com duas cebolas e com água, alimenta quase três centenas de

pessoas. A partilha do nada, os braços juntos ao corpo, na sua pobreza, o agarrar-

se ao parapeito da vida até ao partir das unhas... É isto que Solanas berra na cara

da Argentina de vista enfraquecida, contando com o eco do seu grito para chegar

até nós ampliado pelo cinema. Dois momentos, em especial, surpreendem-nos

espantosamente pela sua carga simbólica e pela sua prodigiosa força visual.

Estamos num hospital em crise, onde se marcam consultas para uma operação a

6 meses de distância. Certos doentes sem um tostão andam 15 quilómetros a pé

para virem encalhar aqui, como milhares de muitos outros o fazem todos os dias,

às vezes, sem terem comido nada durante os vários dias que durou a viagem. É

uma agitação, sem que ninguém tenha dinheiro para comprar medicamentos, sem

que o Estado os ajude. De repente, imagem de arquivo, no ano transacto, a

mesma situação. De repente, um grupo de soldados armados irrompe no salão do

hospital para — para quê exactamente? — evacuar os sem abrigo que dormem

nos corredores deitados no chão. Em todo o caso, eles estão lá, encarapuçados,

ambiente de guerra civil. Alinham-se com cuidado. Julga-se então sonhar:

capacetes e escudos de protecção, das tropas especiais ouve-se o seu sapateado

nos ladrilhos, ei-los iniciando uma dança digna dos All Blacks.

Mais tarde, assistimos à venda, em leilão, dum terreno apreendido na sequência

da subida espantosa das taxas de juro bancárias. O movimento de apoio aos

expropriados está também na sala. Este nunca deixará o leiloeiro começar uma

frase, interrompendo-o incessantemente para cantar o hino argentino, insistindo

sobre "Libertad, Libertad, Libertad!" (a situação é difícil, ouvir-se-á no fim).

Rapidamente, o Comissário perde a paciência, ameaça evacuar os contestatários

37

um por um, enquadrados por dois uniformes... Nada a fazer, o protesto continua. O

Comissário passa então das ameaças à execução e ordena a evacuação. Nem uma

nem duas, os cantores reagrupam-se, fazem um muro de protecção com os corpos:

vocês não nos separarão, não somos isoláveis, somos uma só força, um só povo,

uma só voz, sofremos juntos, morreremos juntos. Impossível arrancar as uvas deste

cacho humano. Atirem sobre um, todo o ramo vem abaixo. Para os separar, é

necessário desenrolar o caracol humano... A chorar de raiva... Alguns acusarão sem

dúvida Solanas de nos atirar estas lágrimas. Que estejam mais atentos e aperceber-

se-ão de que elas correm por si, que ninguém as atira.

Tradução de: Guillaume Massart, La Dignité du peuple. Artigo disponível em http://www.filmdeculte.com/film/film.php?id=1579.

II.3. Cronologia de uma falência anunciada

Marie José Sirach

Journal l'Humanité

Setembro, 2006

Fernando Solanas elabora uma acusação implacável contra a lógica liberal.

Buenos Aires. Ao longe, torres modernas parecem chegar ao céu. No primeiro

plano, quilómetros de bairros de lata estendem-se sem fim. Aí se amontoam

milhares de homens, mulheres e crianças. Estamos em Dezembro de 2001. O país

conhece uma crise económica sem precedentes. O número de desempregados

aumenta de dia para dia. A crise que atravessa o país, sendo sobretudo

económica, é também política e moral. Os argentinos sofrem. De fome, de frio. De

tudo. As classes médias não são poupadas. Os bancos bloqueiam as contas dos

seus clientes. Os que pensavam poder ter ainda as suas magras economias não

têm mais nada. Tudo desaba. O sistema mete água por todo o lado. A 17 de

Dezembro de 2001, a polícia carrega sobre as mães na praça de Maio. A 18 de

Dezembro, dão-se as primeiras manifestações grandiosas nas ruas da capital.

Começa então a contagem decrescente com um movimento social sem

precedentes no país, que durará até 2003. Nos bairros, nas aldeias, nos bairros de

38

lata, as pessoas organizam-se e põem-se em marcha. São as pessoas de muito

pouco, os esquecidos do crescimento económico de um dos países mais ricos do

continente sul-americano.

Para contar esta história, Fernando Solanas recorta-a em capítulos, grandes

planos, parados, imagens que permitem apreender a desordem em face da

amplitude deste sismo que agitou o país e apreender também a esperança que

nasce no correr dos dias na frente da mobilização de todo um povo. Cada capítulo

articula-se em redor de uma personagem central ou de um facto notável. Volta a

dar a palavra a estes homens e a estas mulheres que falam a partir destes lugares,

símbolos de resistência. Planos fixos sobre os políticos que se agitam na gaiola

das suas funções. Os seus propósitos são um espanto de cinismo. Surdos ao

rumor da rua, não vêem vir este vento de revolta que se espalha por todo o país.

Face a estas marionetas que apenas sabem dar contas ao FMI, as palavras de

Toba, o mestre de escola, de Margarita, mulher que anda a apanhar farrapos e que

se desloca sempre com o seu rebanho de crianças, as de Sylvia, assistente social

num hospital público, ou as de Lucy, agricultora, ressoam como uma acusação

implacável contra uma política económica de efeitos desastrosos. As longas

marchas de "piqueteros" através de todo o país convergem para a capital. Todos

os habitantes saem para os acolher, para lhes oferecer de comer, de beber.

Mesmo os empregados de McDonnald fornecem-nos sumos de laranja. Solanas

não se satisfaz em dar-lhes a palavra, uma palavra digna e relevante. Uma voz-off

precisa os argumentos, dá números, relaciona as ligações entre os poderes

económicos e políticos e o arsenal repressivo que os protege. Em 2003, a

Argentina conhecerá um instante de acalmia após meses e meses de incerteza

política e económica. A situação parece estabilizar-se. No fundo, pouca coisa

mudou mas o povo argentino descansa ligeiramente. O movimento social falhou

ao querer construir uma alternativa política, dizem-nos em voz-off. Certamente.

Mas os testemunhos desta história têm a memória fresca. Onde as reportagens

televisivas se apagam da nossa memória imediatamente depois de serem vistas, o

filme de Solanas desfaz pacientemente os fios de uma história incrível para permitir

a cada um de nós compreender a dramaturgia. Solanas assina assim um filme

mais que salutar. Útil.

Tradução de: Marie José Sirach, “Chronologie d’une faillite annoncée”, Journal l'Humanité, 27 de Setembro de 2006. Artigo disponível em www.humanite.presse.fr/journal/2006-09-27/2006-09-27-837467.

39

II.4. Solidariedades argentinas.

A Dignidade dos Sem-Nada de Fernando Solanas

Françoise Barthélemy

Le Monde Diplomatique

Outubro, 2006

Memória de um Saque. A Argentina, o hold-up do século (2003), o

documentário de Fernando Solanas, analisa os prejuízos da política neoliberal de

Carlos Menem (1989-1999), seguido depois por Fernando de La Rua (1999-2001).

Segundo filme deste retrato dum país devastado, A Dignidade dos Sem-Nada

coloca a tónica sobre a resistência dos argentinos "sem recursos e sem nome" aos

quais o cineasta rende homenagem recitando – ouçam-se as vozes fora de campo

que cantam - um texto de versos em rima, recordando o gesto do gaúcho Martin

Fierro, a obra do poeta José Hernàndez.O filme utiliza várias linguagens,

entrevistas, material de arquivos, uma escrita sobre o ecrã em que indica os

lugares e as datas de rodagens, bem como o contraste das imagens apoiadas

pela música de Gerardo Gandini.

De quais armas se servem os que tudo perderam sem se considerarem

vencidos? A principal arma é a unidade, à qual se junta com a solidariedade. Pára-

se várias vezes, entre 2002 e 2004, sobre o movimento dos piqueteros,

desempregados que bloqueiam as vias de comunicação. Sobre a estrada nacional

3, perto de Matanza, estabeleceram acampamentos onde se misturam famílias,

cães, cavalos, na lama e com o frio. A organização é notável: é instalado um

sistema de abastecimento, regras de segurança, cursos de formação, até uma

assembleia que toma as decisões. "Olhem estas famílias inteiras, pés nus, cheias

de fome." Uma vergonha para um país tão rico. Tudo isto é sujo, é doloroso ", diz

um homem de 62 anos.

Movido pela mesma indignação, antigo professor e hoje mestre numa escola

de formação profissional em Linhares, Toba montou com voluntários um refeitório,

um humilde restaurante popular - onde cento e cinquenta crianças vêm comer no

fim de semana. Militante dos anos 1970, "sobrevivente de uma outra geração",

salvou a vida de Martin, um "escritor motard" atingido por uma bala na cabeça

quando participava nas manifestações populares de Dezembro de 2001. Depois,

estes dois tornaram-se irmãos.

40

Outra arma de combate: a imaginação, o espírito de iniciativa. Solanas está a

cinquenta quilómetros de Buenos Aires, em Santa Rosa, em plena pampa. Os

chacareos, pequenos agricultores, hipotecaram a sua terra para comprar material.

É aqui que a rapina dos banqueiros os ameaça: "Pediste emprestado vinte mil,

deves cem mil." Impossível o reembolso. O que imaginou esta grande combatente,

Lucy, a quem se juntaram duas centenas de mulheres endividadas como ela e

ameaçadas de ver os seus bens apreendidos? A cantarem em coro no tribunal o

hino nacional argentino, impedindo o avaliador de proceder ao leilão. A batalha foi

ganha. Como a que foi efectuada pelos 380 trabalhadores da fábrica de cerâmica

Zanon. Situada na província de Neuquén, na Patagónia, declarada em falência, foi

recuperada pelos trabalhadores que a gerem em autogestão.

"Com Dignidad de los Nadie, quis revelar as pequenas vitórias diárias dos

excluídos, as acções solidárias que mostram como este mundo pode ser mudado",

declara Solanas. Como artista exigente, construiu o seu filme com rigor,

organizando uma montagem que nos conduz do colectivo ao singular e mantendo

o espectador quase de respiração cortada (suspense). Então, diz-se que sim, que

a esperança se justifica.

Tradução de: Françoise Barthélemy, “Solidarités argentines”, Le Monde Diplomatique, Outubro de 2006. Artigo disponível em http://www.monde-diplomatique.fr/2006/10/BARTHELEMY/14021

II.5. A Dignidade dos Sem-Nada

um filme de Fernando Solanas

Selecção Oficial do Festival de Veneza de 2005

Jocelyne

8 de Outubro de 2006

"O povo unido jamais será vencido”

Sinopse

Depois de Memória de um saque, que desmontava os mecanismos que

conduziram a Argentina à crise económica de 2001, A dignidade dos sem-nada

41

mostra as consequências da crise sobre a população. O filme descreve por

pequenos toques, através de todo o país, o retrato de homens e de mulheres que

souberam levantar a cabeça e combater para reencontrar, apesar da fome e a

miséria, a sua dignidade.

É um filme sobre o poder da resistência social e sobre a vontade de um povo

ferido que procura reconstruir o seu país.

"Com A dignidade dos sem-nada quis revelar as pequenas vitórias diárias 'dos

excluídos', as acções solidárias que demonstram como este mundo pode ser

mudado."

Fernando Solanas

Fernando Solanas: um perfil "não é uma questão de óptica, mas de ideologia.

Tenho necessidade de captar a realidade do maior ângulo possível, o indivíduo, o

personagem e todo o contexto." Fernando Solanas. Esta mesma ambição levou-o

à realização de Memória de um saque, um documentário em que se vê Solanas

retomar a linha iniciada há já quase quarenta anos com o filme Hora dos Braseiros.

O diagnóstico é que o país, agora, não é muito diferente do de então, salvo que

actualmente o estado das coisas é bem mais grave. A crise que a Argentina

atravessou durante aos anos de 2001 e de 2002 é a mais profunda da sua história,

e Solanas designa os responsáveis: uma classe dirigente corrompida, mas

também as grandes holdings e os organismos financeiros internacionais, que

agiram com rapacidade e perfídia.

Uma vez mais, como o fez ao longo de toda a sua filmografia, Solanas escolhe

o fresco mural, a grande objectiva que lhe permite captar a realidade na dimensão

mais larga possível: o indivíduo e todo o seu contexto. O documentário começa

com a contraposição de um grande arranha-céus da city (a bipolarização, o

contraste, a antítese, são constantes em Memória de um saque) e de famílias que

procuram comida junto destes monumentos. A câmara está em movimento

permanente, mas o ritmo é sereno, como o de um transeunte que observa (a figura

de estilo usada é o “travelling”) e ao mesmo tempo reflecte sobre o que tem à sua

frente. A voz off de Solanas, faz discorrer os seus pensamentos: "O que é que se

passou na Argentina? Como foi possível que num país tão rico haja tanta fome?". A

tese central do filme aparece aqui: o país tinha sido devastado por um novo tipo

42

de agressão, executada em tempos de paz e de democracia; uma violência diária

e silenciosa "que deixa mais vítimas sociais, mais emigrados e mais mortes que o

terrorismo de Estado e a guerra das Malvinas." Solanas vê, contudo, uma luz no

fim do túnel.

A prova é A dignidade dos sem-nada, o seu documentário mais recente, uma

continuação de Memória del Saqueo organizado em redor de uma série de

histórias sobre a resistência popular na Argentina de hoje. Este novo mergulho de

Solanas na realidade do país propõe uma estrutura coral, com múltiplas vozes que

desenham o mapa do país após a devastação de Menem. "É uma espécie de livro

de crónicas e de contos, onde o testemunho se junta à narração, o ensaio se junta

à História, a vida se junta à ficção", como o define Solanas.

A dignidade dos sem-nada põe uma lupa sobre estes personagens anónimos,

os argentinos sem-nome, os heróis diários com as suas pequenas proezas de

cada dia para sobreviver, que a História com um grande H não regista e não

reconhece. Nesta mesma linha, Solanas, uma figura cada vez mais solitária - tão

distante do minimalismo do cinema argentino contemporâneo como das estruturas

do poder político - está já a preparar Argentina latente, o filme-ensaio que

completará este trilogia sobre um país que ainda não acabou de se curar.

Luciano Monteagudo, FIPRESCI, 2006

Biografia de Fernando Solanas

Fernando Ezequiel Solanas nasceu a 16 de Fevereiro de 1936 em Olivos, na

província de Buenos Aires. Fez estudos de piano, de composição musical e de

letras antes de entrar na Escola nacional de arte dramática de Buenos Aires, onde

frequentou cursos de interpretação e de encenador. Começa no cinema como

assistente de produção e roda em paralelo curtas-metragens como “Seguir

andando” em 1962. Em 1966, é co-fundador do grupo independente de produção

e divulgação de filmes "Cine Liberación" que se consagra à luta contra a

desinformação. Neste grupo, empreende a realização da sua primeira longa-

metragem documental La hora de los Hornos rodada clandestinamente em 16 mm,

sem o som sincronizado, que aparece ao fim de mais de dois anos de trabalho. O

filme é saudado aquando da sua saída, não somente pela sua liberdade formal,

43

mas também pelo seu impacto social e político. Solanas vai assim fazer nascer um

cinema empenhado e profundamente original, alimentado simultaneamente pelo

imaginário histórico e contemporâneo da Argentina, mas também pelas suas

esperanças e pelas suas decepções pessoais. Com a ideia que o filme devia

continuar a ser rodado nos anos seguintes, acrescentando novos capítulos, nunca

deixou, depois, de continuar a criticar o poder e a incitar à resistência, como nos

Los hijos de Fierro, um poema épico realizado em 1972. Teve que se exilar em

1976 após o golpe de Estado militar mas, de Paris, continua o seu trabalho e

realiza Tangos, El exílio de Gardel que lhe dá o Grande Prémio Especial do Júri no

Festival de Veneza em 1985. Depois, realiza Sur pelo qual recebe o Prémio de

Realização em Cannes em 1988, El viaje em 1992 e La nube em 1998,

homenagens ao seu país, antes de voltar a uma crítica mais radical dos segredos

do poder no seu último trabalho, Memória del Saqueo, verdadeiro fresco político

de uma implacável clareza sobre a crise argentina, dando seguimento aos

capítulos iniciados com La hora de los Hornos. Aquando da apresentação de

Memória del Saqueo no Festival de Berlim 2004, Fernando Solanas recebeu um

Urso de Ouro de honra pelo conjunto da sua obra.

Artigo traduzido de http://www.local.attac.org/13/aix/imprimersans.php3?id_article=792

II.6. Tu, Argentina, 5 anos depois...

Eric Toussaint

Damien Millet

International Debt Observatory

Janeiro, 2007

Argentina, falou-se muito de ti desde nesta noite de 19 para 20 de Dezembro de

2001 onde, após três anos de recessão económica, o teu povo se levantou contra a

política neoliberal efectuada pelo governo de Fernando de la Rua e pelo seu

desastroso ministro da Economia, Domingo Cavallo. Mostraste que a acção das

cidadãs e dos cidadãos pode alterar o curso da História.

Argentina, os eventos que conduziram à revolta nos finais de 2001 começou pela

44

decisão do Fundo Monetário Internacional (FMI) de não conceder um empréstimo já

previamente aceite, apesar de o governo argentino ter sempre aplicado as medidas

fortemente impopulares que o FMI exigia. de la Rua reagiu bloqueando as contas

bancárias dos aforradores e, espontaneamente, a tua classe média desceu à rua, a

quem se juntou também os "sem" (os sem emprego, os habitantes dos bairro de lata,

em resumo, uma grande maioria do teu povo pobre). A 27 de Dezembro de 2006, o

teu Tribunal Supremo ordenou, aliás, aos bancos que atribuíssem uma

indemnização total a estes aforradores anteriormente roubados.

Argentina, há exactamente 5 anos, três presidentes da República sucederam-

se em apenas alguns dias: de la Rua fugiu a 21 de Dezembro de 2001, e o seu

sucessor, Adolfo Rodriguez Saa, foi substituído por Eduardo Duhalde a 2 de

Janeiro de 2002. Decretaste a suspensão do pagamento da tua dívida externa,

perto de 100 mil milhões de dólares, isto é, a mais importante da História. Afectou

os credores privados assim como os países ricos agrupados no Clube de Paris;

centenas de fábricas, abandonadas pelos seus proprietários, foram ocupadas e a

actividade foi relançada sob a condução dos trabalhadores; os teus

desempregados reforçaram a sua capacidade de acção no âmbito dos

movimentos "piqueteros"; a tua moeda foi muito desvalorizada; os teus cidadãos

criaram moedas locais e gritaram aos teus políticos uma reivindicação unânime:

"que se vayan todos”! (“que se vão todos embora!”).

Argentina, depois de um quarto de século de acordos contínuos entre o FMI e

os teus governos (da ditadura militar entre 1976 e 1983 ao governo de la Rua

passando pelo regime corrupto de Carlos Menem), demonstraste que um país

podia deixar de reembolsar a dívida de maneira prolongada sem que os credores

fossem capazes de organizar represálias eficazes. O FMI, o Banco Mundial, os

governos dos países mais industrializados, os grandes meios de comunicação

social tinham anunciado que se iria instalar o caos. Ora o que é que aconteceu ?

Longe de naufragar, tu começaste a recuperar.

Argentina, o teu presidente eleito em Maio de 2003, Nestor Kirchner, desafiou

os credores privados propondo-lhes que trocassem os seus títulos contra novos

títulos mas de menor valor. Após longas negociações, terminadas em Fevereiro de

2005, cerca de 76% de entre eles aceitaram renunciar a mais de 60% do valor dos

créditos que detinham. O mundo tinha os olhos postos em ti e demonstrastes que

um povo podia dizer Não.

45

Argentina, a sequência desta história é bem mais triste. Porque este acordo

finalmente marcou o recomeço dos reembolsos aos credores privados. Além do

mais, há precisamente um ano, o teu governo reembolsou de forma antecipada a

totalidade da dívida para com FMI: 9,8 mil milhões de dólares ao todo. Estamos de

acordo, tu economizaste 900 milhões de dólares em juros, mas aqueles que

decidiram fazê-lo deram prova duma amnésia muito grave. A ditadura do general

Videla, apoiada pelo FMI e pelas grandes potências, tinha utilizado a dívida a fim

de reforçar o seu poder, de enriquecer os seus líderes e de submeter o país ao

modelo dominante. Para reembolsar, os regimes que se seguiram puseram em

saldo uma grande parte do património nacional e contraíram novas dívidas que

são elas também odiosas. Além disso, a obtenção destes novos empréstimos foi

condicionada à aplicação de medidas de liberalização maciça, privatização

sistemática e redução drástica dos orçamentos sociais.

Argentina, os teus governos poderiam ter utilizado melhor este dinheiro e o seu

exemplo teria podido ser seguido por todos os continentes! Teriam podido romper

os acordos com o FMI e com o Banco Mundial. Teriam podido apoiar-se na

sentença Olmos, pronunciada pelo Tribunal Federal de Justiça, e avançar sólidos

argumentos jurídicos para decretar que a dívida é odiosa e que não deve ser

reembolsada4.

Argentina, nós estamos espantados por ouvirmos que as tuas autoridades

negoceiam actualmente com o Clube de Paris, isto é, com um escândalo

institucional que reúne cada mês à porta fechada os representantes de 19 países

ricos no Ministério da Economia francês. Sem dúvida sabes que este Clube muito

secreto tem por objectivo forçar os países em desenvolvimento sobreendividados

a reembolsar a sua dívida ao máximo, sem sequer terem em conta as

consequências sociais. Deves-lhe 6,3 mil milhões de dólares, mas ainda uma vez

mais, esta dívida não beneficiou o teu povo. Pelo contrário, os países do Clube de

Paris, o FMI, o Banco Mundial, as grandes multinacionais utilizaram-no durante

décadas para o oprimirem, de modo a que os teus responsáveis lhes entregassem

4 Nota dos tradutores: Alejandre Olmos, um advogado argentino, apresentou em Abril de 1982 um processo penal que levou a uma investigação sobre as irregularidades em torno da dívida externa contraída pela ditadura militar entre 1796 e 1983. O veredicto final, dado pelo Juiz Federal Jorge Ballesteros em 14 de Julho de 2000, argumenta que a dívida gerada pelo ditadura militar era fundamentalmente ilegítima e ilegal. Para este assunto, ver o caderno de texto de apoio ao filme Memória del Saqueo, de 24 de Março de 2006, no âmbito do Ciclo Integrado de Cinema, Debates e Colóquios na FEUC, de 2005_2006, Combate à Pobreza no Mundo. Ingenuidade ou Compromisso?, disponível em http://www4.fe.uc.pt/ciclo_int/2005_2006.htm e também Mario Cafiero, “Proposal for a Balanced Long-Term Solution to Argentina’s Public Debt Problem!”, 29 de Setembro de 2004, documento disponível em http://www.jubileeresearch.org/news/argentina290904_1.htm.

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os teus serviços públicos privatizados, desregulamentassem a tua economia e

fizessem prova de uma ainda maior docilidade enquanto que ao mesmo tempo os

teus orçamentos sociais eram severamente amputados. O filme "Dignidad de los

nadies", do teu compatriota Fernando Solanas, mostra efectivamente as situações

de pobreza extrema às quais tudo isto conduziu.

Argentina, o teu presidente deve escolher entre servir o teu povo ou servir os

teus credores. Infelizmente, entrou na linha, foi mesmo simbolicamente à Bolsa de

Nova Iorque em Setembro passado para dar o toque de sino inaugural. De

imediato, os montantes que vais reembolsar nos próximos anos tornar-te-ão

impossível instaurar uma política alternativa ao modelo neoliberal. As tuas

exigências sociais, no entanto justas, não poderão ser satisfeitas enquanto não

repudiares esta dívida.

Argentina, há cinco anos, os teus manifestantes indicavam outra direcção que

podia alterar duravelmente a situação com benefício dos povos. Hoje ainda, é essa

a direcção que queremos.

Damien Millet, presidente do CADTM da França (Comité para a anulação da dívida do terceiro mundo, http://www.cadtm.org/). Eric Toussaint, presidente do CADTM da Bélgica. Tradução de Damien Millet e Eric Toussaint, “You, Argentina, 5 years on...”, International Debt Observatory, 4 de Janeiro de 2007. Artigo disponível em http://www.oid-ido.org/article.php3?id_article=388. Este artigo também se encontra disponível em http://www.clubdeparis.fr/spip.php?article13.

III. Parte Instituições internacionais: os sinais do descontentamento

III.1. O Banco Mundial prestes a reabilitar o papel do Estado

Matthieu Auzanneau

Le Monde

Abril, 2007

O Banco Mundial muda de era. O seu próximo Relatório mundial anual sobre o

desenvolvimento, que deve ser tornado público em Setembro, incentiva os

governos dos países pobres a enquadrar e apoiar os seus camponeses,

assumindo-se como contra-corrente à doutrina neoliberal "do ajustamento

estrutural" defendida pelo Fundo Monetário Internacional desde há uma geração.

47

Pela primeira vez desde 1982, este relatório, que orienta a estratégia do Banco

Mundial, concentra-se na agricultura. Abandonada pelas políticas de luta contra a

pobreza, a ajuda ao sector agrícola reaparece agora como um desafio essencial.

A versão provisória do World Development Report 2008 de que o Le Monde

teve conhecimento começa por uma constatação: "É impressionante ver que os

três quartos dos pobres dos países em desenvolvimento são rurais: 2,1 mil

milhões de indivíduos vivem abaixo do limiar de pobreza de 2 dólares por dia, ou

seja, um terço da humanidade... embora a agricultura não seja o único instrumento

capaz de os fazer sair da pobreza, é porém uma fonte altamente eficaz de

crescimento para se atingir isso."

"Os financiadores voltaram costas à agricultura"

Segue-se um diagnóstico que se assume um pouco como uma confissão de

responsabilidades: "Apesar disso, a capacidade da agricultura para o

desenvolvimento foi muito frequentemente bastante sub-utilizada. Com a

dominação da industrialização no debate político, o desenvolvimento pela

agricultura, muito vezes, nem sequer foi considerado como uma opção. Os países

em desenvolvimento têm muito frequentemente um sub-investimento e um mau-

investimento na agricultura, assim como enviesamentos políticos que se jogam

contra a agricultura e contra as populações rurais pobres. E os financiadores

viraram as costas à agricultura. Este abandono da agricultura teve custos elevados

para o crescimento, para o bem-estar e para o ambiente."

O relatório, em vias de validação pelos Estados-membros do Banco, está a ser

analisado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros francês desde o início do mês

de Abril. Ainda que o seu conteúdo possa vir a ser sujeito a alguma evolução (e

amenizado), "o Banco Mundial está determinado a ratificar esta evolução histórica

do seu discurso", afirma um alto responsável do FMI em Washington.

O francês Michel Griffon, responsável pela agricultura e pelo desenvolvimento

sustentável na Agência Nacional de Investigação, congratula-se com esta inversão

de rumo "que deveria orientar a acção do Banco Mundial por vinte anos". "Trata-se

do documento que esperávamos do Banco Mundial desde há mais de vinte anos,

depois das políticas de ajustamento estrutural terem varrido as políticas públicas

agrícolas anteriores sem as substituírem", aplaude.

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Fim do "Consenso de Washington"

Constatando que a parte da agricultura nas despesas públicas baixou entre

1980 e 2004, quer seja na África (de 6,4% para 5 %), na América Latina (de 14,8

para 7,4 %) ou na Ásia (de 8 para 2,7 %), o texto do Banco Mundial insiste na

necessidade de relançar estas ajudas. "O crescimento agrícola, embora conduzido

pelo sector privado e pelo mercado, é muito dependente do apoio do sector

público. É no entanto nos países onde a agricultura é mais vital que os Estados

tendem a ser os mais fracos... A aplicação de políticas de desenvolvimento

agrícola reclama sólidas estratégias nacionais e uma administração pública

aplicada a defender uma distribuição e uma responsabilidade financeira eficazes..."

Vincent Ribier, do Centro de cooperação internacional em investigação

agronómica para o desenvolvimento, participou numa reunião de especialistas

sobre o relatório no Quai d’Orsay a 6 de Abril passado. Impressionado por esta

mudança de tom, afirma: "as políticas neoliberais de ajustamento estrutural

defendidas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional tiveram um

impacto muito directo e muito negativo no mundo rural nos países pobres." De

acordo com este economista, o Banco Mundial prepara-se para selar pela primeira

vez num relatório internacional essencial "o fim do consenso de Washington", em

que assenta, desde 1989, a estratégia dos especialistas do Banco Mundial, do

Fundo Monetário Internacional e do Departamento do Tesouro americano:

privatização, desregulamentação, fraco nível de impostos, liberalização do

comércio. Um dos autores principais do relatório confirma: "está-se claramente

para lá do consenso de Washington, porque a pobreza não recuou e, agora, há

adicionalmente a urgência ambiental."

No momento em que, de acordo com as Nações Unidas, o êxodo rural também

nunca foi tão rápido na história, a nova linha adoptada pelo relatório do Banco

Mundial tem a sua origem na verificação de novos perigos. "A aceleração da

mudança climática, a eminência de uma crise da água, a lenta adopção das novas

biotecnologias, e o aparecimento brusco da procura de bio-carburantes e de

alimentos para o gado criam novas incertezas sobre as condições nas quais a

alimentação estará disponível na economia mundial", previne o Banco Mundial.

Tradução de: Matthieu Auzanneau, "La Banque mondiale en passe de réhabiliter le rôle de l’Etat", Le Monde, 20 de Abril de 2007.

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III.2. FMI contra "Banco do Sul"

Alain Faujas

Le Monde

Abril, 2007

O Brasil estuda a possibilidade de se juntar ao projecto, conduzido por Hugo

Chavez, de criar um concorrente sul-americano ao FMI.

Os latino-americanos vão matar o Fundo Monetário Internacional (FMI)? A

hipótese é menos absurda do que parece, se o projecto de "Banco do Sul" do

presidente venezuelano Hugo Chavez, ajudado pela Argentina, pela Bolívia e pelo

Equador, for também apoiado pelo Brasil, e o seu presidente, Lula da Silva, já

admitiu essa possibilidade a 17 de Abril.

Os países da América do Sul viveram como um diktat liberal e anglo-saxónico os

remédios que lhes foram impostos pelo FMI, quando estavam em crise, a partir dos

anos 80. Hoje, reembolsaram a totalidade da sua dívida, excepto o Equador. A sua

tesouraria é abundante e é o FMI, com os seus 9 "pequenos" mil milhões de dólares

de reservas (6,6 mil milhões de euros), que está aflito, dada a falta de concessão de

empréstimos a países que deles já não têm mais nenhuma necessidade!

Daí a dizer-se que as divisas obtidas graças ao aumento do preço das

matérias-primas poderiam garantir um sistema financeiro "do Sul" que mutualizaria

as reservas destes países e as emprestaria aos países com necessidades sem

passarem as difíceis e humilhantes provações do FMI, vai apenas um passo. Os

países asiáticos tinham-no esboçado aquando da crise de 1998. A América Latina

diz querer realizá-lo.

"A opinião pública latino-americana já não quer ouvir falar mais do FMI", diz-nos

Daniel Cohen, professor na Universidade Paris-I. Os fundos regionais vão por

conseguinte desenvolver-se. Será interessante ver se os créditos realizados a nível

regional serão melhor reembolsados que os do FMI e que os do Banco Mundial. A

equação complica-se com a chegada de novos credores como a China, cujas

intenções se conhecem mal. Vemos aí emergir um novo mundo financeiro

internacional".

Ainda falta percorrer um longo caminho antes desta revolução ter êxito. Um

Banco do Sul supõe uma aliança sólida entre os países que financiam e os que

beneficiam dos seus empréstimos. Ora a cumplicidade entre a Venezuela e o

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Brasil poderia não resistir à concorrência entre o etanol deste e os

hidrocarbonetos daquela.

A troca directa, já praticada sob a forma de médicos cubanos em Caracas

contra o petróleo venezuelano, será utilizada pelos países mais necessitados a fim

de lhes permitir reembolsar os seus vizinhos. Este sistema primitivo corre o risco

de vir a transformar-se num impasse técnico como aquele em que naufragou o

antigo COMECON comunista.

E quem gritará loucura quando os défices se acumularem? Que autoridade

regional, por pouco legítima que seja, dirá a Chavez que, ao não reinvestir na sua

indústria petroleira, ao estar a submetê-la ao domínio da sua revolução

"bolivariana", está ele a preparar a sua decrepitude?

Se os países latino-americanos conseguirem ser os guardiães vigilantes da sua

própria solvabilidade, o FMI pode estiolar-se. Se não for o caso, o "bombeiro da

finança mundial" reencontrará todo o seu lustro.

Tradução de: Alain Faujas, "FMI contre ‘Banque du Sul’", Le Monde, 20 de Abril de 2007.

IV. Alguns esquemas de leitura da realidade económica e social argentina

Mario Cafiero

Conway Hall, Londres

Setembro, 2004

Argentine External Debt:

A leading case for indebtness countries.

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53

Fonte: Mario Cafiero, “Argentine External Debt: A Leading Case for Indebtness Countries”, Conway Hall, Londres. Documento disponível em http://www.jubileeresearch.org/news/argentina290904.htm.

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Ciclo Integrado de Cinema,Debates e Colóquios na FEUC

1. Congo: Rei Branco, Borracha Vermelha, Morte Negra de Peter Bate

Debate com a participação de

Nuno Porto (FCTUC) e Osvaldo Silvestre (FLUC)

2. Lumumba de Raoul Peck

Debate com a participação de

João Tolda (FEUC) e Jaime Ferreira (FEUC)

3. Mobutu rei do Zaire de Thierry Michel

Debate com a participação de

Abílio Hernandez (FLUC), João Sousa Andrade (FEUC)

e José Manuel Pureza (FEUC)

4. Kisangani Diary de Hubert Sauper

Colóquio sobre A ONU nas encruzilhadas da história e da globalização

Com a participação de

António Gama (FLUC), Francisco Louçã (ISEG),

José Soares da Fonseca (FEUC) e Pezarat Correia (FEUC)

5. Na linha da frente: os meninos soldados do Congo, de Beck-Bukeni T. Waruzi

O filho do diabo de Sacha Mirzoeff

Vendedores de milagres de Gilles Remiche

Debate com a participação de

Anselmo Borges (FLUC), Carlos Saraiva (FMUC) e José Veiga Torres (FEUC)

6. Rio Congo: para lá das trevas de Thierry Michel

Debate com a participação de

Fernando Florêncio (FCTUC),

Nuno Porto (FCTUC) e Osvaldo Silvestre (FLUC)

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7. África em pedaços: a tragédia dos Grandes Lagos, de Jihan El Tahri

e Peter Chappell

Debate com a participação de

Maria Ioannis Baganha, Georges Courade, José Leitão,

Manuel Medina Ortega e Lahcen Oulhaj

8. Djourou: uma corda ao teu pescoço, de Olivier Zuchuat

Colóquio Pobreza, dívida externa e as três instituições irmãs:

FMI, OMC e Banco Mundial

Debate com a participação de

Maria Adelaide Duarte, Nuno Mota Pinto, Alice Sindzingre,

Andy Storey e Adelino Torres

9. Bamako de Abderrahmane sissako

Colóquio Pobreza, dívida externa e as três instituições irmãs:

FMI, OMC e Banco Mundial

Debate com a participação de

Eric Berr, Dominique Plihon, Joaquim Feio e Brandão Alves

10. A Catástrofe das Crianças em Guerra

Organização conjunta com os núcleos de estudantes de Direito da AAC

e do curso de Estudos Artísticos da FLUC.

Documentários da Global Witness e da AJEDI-Ka/Projet Enfants

sobre os Meninos Soldado

Na linha da frente: os meninos-soldado na linha da frente:

os meninos-soldado na RDC (2004)

Obrigação de protecção: justiça para os meninos-soldado na RDC (2005)

À espera de amanhã (2006)

Direito de resposta (2006)

Debate com a participação de

Fernando Florêncio (FCTUC), Carlos Saraiva (FMUC),

Pedro Caeiro (FDUC) e Fernando Nobre (AMI)

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Em África e para além de África: o neoliberalismo em questão, hoje.Debate: João Ferreira do Amaral (ISEG-UTL), Pedro Bacelar de Vasconcelos (ED-UM),José Luís Pio de Abreu (FM-UC), João Alberto Sousa Andrade (FE-UC)

Dia 23 de Maio de 2007 no Teatro Académico de Gil Vicente às 21.00 horas

COM O APOIO: